Arquivo da categoria: Ensaio

Petrolina dança
a partir dos espetáculos
Onde Ele Anda é Outro Céu
e Rio de Contas
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#4

André Vitor Brandão em Onde Ele Anda é Outro Céu. Foto: Thierri Oliveira / Divulgação

Rio de Contas. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Os espetáculos de dança são mais porosos que os de teatro na leitura, na recepção. Fornecem indícios e “obrigam” a espectadora/o espectador a se empenharem mais na percepção; agitar o sensorial, ativar a cognição. As reflexões, ideias, emoções são transformadas em movimentos, gestos, deslocamentos no espaço. As coreografias se abrem a muitas possibilidades de fruição e a dramaturgia se enlaça subjetiva ao ser da plateia (corpo/mente/espírito e mais) provocada pela cena. Aciona coisas indescritíveis.

A dança contemporânea gosta de jogar com o enigmático. Lança projeções, recupera resíduos. Pode sugerir temática, mas com tantas entradas (e saídas) prossegue desafiante.

Onde Ele Anda É Outro Céu, primeiro solo de André Vitor Brandão desliza no terreno da crise existencial do ser humano, um painel bastante amplo. Outra pista do espetáculo que estreou em 2016, em Petrolina, no Sertão de Pernambuco: A peça coreográfica tem por inspiração o conto O Homem Cadente, do livro Fio das Miçangas, do escritor moçambicano Mia Couto.

Nesse conto, a personagem de Mia Couto – Zuzé Neto, José Antunes Marques Neto, “em artes de aero-anjo” –  contraria as leis físicas. O homem Cadente trabalha com fronteiras entre sonho e realidade. O narrador-personagem observa o homem que cai, “pairando como águia real”, numa recriação linguística, traçando metáforas do cotidiano.

O espetáculo suscita muitas perguntas sobre os estados das gentes na contemporaneidade. Por que as pessoas caem? Aos montes? Em muitos aspectos? E nem percebemos? Isso na fricção de limites entre real e ficcional.

O solo complexifica mais quando chama o artista surrealista belga René Magritte (1898-1967) para a dança. A peça coreográfica traz referências das obras Golconda (aquela da chuva de estranhos homens, que caem do céu) O Filho do Homem (um autorretrato, com o indivíduo de sobretudo e chapéu coco, com o rosto em grande parte escondido por uma maçã verde suspensa no ar). Além da icônica A Traição das Imagens, que carrega a frase “Ceci n’est pas une pipe” (“Isso não é um cachimbo”), para lembrar que a pintura de um objeto é uma pintura e não o objeto real em si. Isso já é de uma grandeza…

E estão na dança do André. Nas imagens, nos símbolos, nos signos. Na quebra do jogo de representação do real, ele explode a potência do corpo; um corpo insubordinado – lembrando dos disciplinamentos citados por Foucault.

Fico pensando se fosse usada na montagem mais tecnologia de ponta que existe para o teatro, como outras soluções de flutuação ainda mais ilusionista, e utilização de técnicas vorazes de luz e fumaça. Como o espetáculo é de 2016 e muita tecnologia avançou, quem sabe?!!! Sei, sei… que esses expedientes custam caro e para o teatro não chega verba com facilidade, mas foi uma ideia; quem sabe?! Foi exercício de imaginação na esteira do que o próprio espetáculo diz, de que tudo é possível.

Projeto A Escola vai ao Sesc, durante apresentação de espetáculos na Aldeia do Velho Chico

Outras vozes se juntaram a André Brandão na composição desse solo. Para poetizar no corpo do bailarino essa figura que sonha e que segue outra lógica entraram na ciranda Jailson Lima na direção artística; Renata Camargo na direção de movimento; Renata Pimentel na dramaturgia; Orlando Dantas na criação do figurino; Fernando Pereira no designer de luz; Eugênio Cruz na trilha sonora original e Eugênio Junior na assessoria sobre técnicas de rapel.

A produção é da Qualquer um dos 2 Companhia de Dança, que e recebeu o incentivo do Governo do Estado de Pernambuco, através do edital Funcultura 2013/2014, para essa  montagem.

Assisti à peça numa sessão do projeto A Escola vai ao Sesc, uma das ações da Aldeia do Velho Chico. Mais uma constatação, dentre tantas outras, de como a arte é essencial e como faz uma diferença profunda na vida dos futuros cidadãos. Mais sensibilidade na lida com o mundo (como precisamos disso nesses tempos de intolerância de toda ordem), formação de sujeitos mais críticos.

Onde Ele Anda é Outro Céu. Foto Thierri Oliveira Divulgação

Quando questiona o real, Onde Ele Anda É Outro Céu propõe experiências diferentes, promove surpresa e impacto nos movimentos, gestos, sugestões, desenhos coreográficos. Nos conduz por caminhos do irreal, desperta emoção ao aproximar do fantástico, ao jogar com os paradoxos visuais, ao empurrar o controle da razão humana para fora do teatro em alguns momentos da peça.

O ator/bailarino desenha no palco um espaço-tempo em que tudo é possível. E vai alargando o campo desse encontro com a plateia. Solta indícios das sementes da criação artística. Nesse esquema onírico, a personagem segue outra lógica.

Brandão e seus artistas-cúmplices exploram o espaço da ficção, onde não existe um compromisso estreito com a realidade. Outras inspirações para o espetáculo chegaram com os colaboradores para serem plasmadas no corpo do bailarino: da trupe de comédia surreal britânica Monty Python, do genial Bach (amo!!!!), de Stela do Patrocínio (poeta psiquiatrizada), de Estamira – poesia encarnada, que protagonizou o documentário, que leva seu nome e morou por um tempo no aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro – entre outros.

A obra artística aposta com força na capacidade transformadora do sonho. E então compõe imagens sugeridas pelas obras inspiradoras, de pássaros, dos movimentos dos bichos e de e invenções criativas conjugadas, da profusão de referências dos artistas envolvidos no processo. A expressão de simplicidade e lirismo, trabalhadas em muitas camadas de estudos alusões e treinamentos.

Enquanto intérprete-criador, André fricciona a natureza dos sonhos numa investigação que expõe a dança como linguagem que provoca reflexões, traça leituras do mundo, investe com força na sensibilidade e subjetividade.

Salve o espaço utópico, alimento das transgressões humanas. A poética ganhou outras estratégias de voos, de travessias, avisando que mesmo com quedas há ludicidade e encantamento. Como sugere o conto do escritor africano, deixemos Zuzé, o homem cadente, voar.

Rio de Contas

Rio de Contas. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

O diretor Jailson Lima entende a dança como expressão e práxis emancipadora. Não por acaso, a dança é de todas as artes a que mais avança em Petrolina, essa cidade pernambucana orgulhosa de si, encravada na região semiárida nordestina. Isso norteia para uma cultura que assume onde estão fincados os pés e no esperançar freiriano; da autonomia dos sujeitos e ao mesmo tempo no caráter de comunhão do coletivo. São coisas fáceis de dizer e difíceis de executar. Jailson encara.

Envolvido na Cia de Dança do Sesc Petrolina desde sua criação, em 1995, ele se juntou aos seus escolhidos por afinidade para se lançarem ao exercício conjunto da constante libertação. A montagem de Rio de Contas é uma projeção disso tudo.

Inspirado num conto também do escritor moçambicano Mia Couto, chamado Nas Águas do Tempo, do livro Estórias abensonhadas, o espetáculo Rio de Contas brotou em 2014 e é atravessado pela metáfora “a água e o tempo são irmãos gêmeos nascidos do mesmo ventre”.

Com 18 intérpretes (com margem de 2 para mais ou para menos), trilha sonora assinada por Sônia Guimarães, cenários do artista visual Antonio Carlos Coelho de Assis “Coelhão”, Rio de Contas articula uma teia dançante ancestral a partir do São Francisco, que alimenta corpos e imaginários.

Rio de Contas. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

Rio de Contas. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

A peça coreográfica vibra na sensibilidade delicada. A trilha sonora de Soninha Guimarães traça a grande dramaturgia do espetáculo acalentando, inspirando, promovendo movimentos, instigando, incentivando, lembrando que a vida tem dessas ondas e nós, projetando o futuro sem esquecer daqueles que vieram antes, que estão impregnados no presente.

A criação coreográfica, assinada por Jailson, valoriza os corpos dos dançantes envolvidos, potencializando a estrutura física de cada artista e respeitando suas limitações, ampliando suas capacidades de movimento, de gestual, erguendo uma corporeidade coletiva forte.

É arte contemporânea inspirada na tradição da oralidade, nos passos ancestrais das danças desse território – como o Samba de Veio. Estão impregnados nesses corpos resistentes, de predominância negra e indígena o traçado histórico das pontes erguidas, da dor de viver, do combate à violência, sem perder a alegria.

Os artistas dessa terra questionam na própria carne a linguagem da dança, do para quem dançar e como alargar essa troca.

Na busca do protagonismo da própria história, os artistas da peça Rio de Contas trabalham para derreter o colonialismo dentro das estruturas.

No espetáculo a vida é afinada pelo São Francisco que trafega, escoa. Os corpos cumprem suas funções vitais, entram em conflito, convivem, se desencontram. Entre afetos e atritos, as águas correm. Os tons dessa coreografia são suaves, há liberdade de movimentos que se expandem para proferir a rima da dança.

As práticas artísticas e formativas do grupo junto aos intérpretes/ criadores permitem que os integrantes e seu público ampliem as possibilidades de atuar no mundo. Isso é desempenho político, cidadão, de intervenção estética dentro da ética. É micropolítica trançando revoluções.

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HUB PE Criativo
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#3

Samba de Veio da Ilha do Massangano. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

Maracatu Beira Rio. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

Junina Renascer do Sertão. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

Rudimar Constâncio, gerente de Cultura Regional do Sesc PE . Foto: André Amorim / Divulgação

Rita Marize, gestora do SescPE. Foto: André Amorim Divulgação

Diretor regional do Sesc Pernambuco, Oswaldo Ramos. Foto: André Amorim / Divulgação

Nas conversas durante o festival, muito se ouvia falar em HUB Criativo. Será algum aplicativo ou código de Internet? Parece com aquelas siglas de hospedagem de turismo.

Mas não é nada disso.

Projeto articulado pelo Sistema Fecomércio, através do Sesc Pernambuco e do Sebrae, o HUB PE Criativo é uma iniciativa que tem por objetivo “promover o desenvolvimento social e econômico de regiões do estado de Pernambuco, tendo a cultura como principal condutora desse processo”, explica Rudimar Constâncio, gerente de Cultura Regional do Sesc PE.

A Aldeia do Velho Chico foi escolhida para as primeiras ações do programa. “Consideramos a cultura como o grande vetor para impulsionar o desenvolvimento dos territórios, promover outras dinâmicas na economia”, advoga o diretor regional do Sesc Pernambuco, Oswaldo Ramos. “É muito importante a absorção da Aldeia, como evento tradicional, nesse engajamento coletivo. É uma sinergia para fortalecer o processo”, pensa. “Cultura faz as conexões dos ecossistemas, o Sesc faz a mediação dessa cadeia produtiva da arte e o HUB vai qualificar as pessoas e como desdobramento pensar a sustentabilidade. Somando expertises será possível beneficiar outros setores tradicionais, a cultura de tradição, a rede de apoio, a cadeia de turismo, a formação etc…”, defende.

A primeira ação do HUB Criativo PE ocorreu justamente em Petrolina, com a 18ª edição da Aldeia do Velho Chico e ocupou diversos espaços da cidade durante o período. #aldeiaemretomada.

A proposta é que o processo aconteça até junho de 2023. Rudimar Constâncio conta que estão previstas muitas ações, entre elas, 80 cursos presenciais e online, 45 palestras, sete Encontros de Negócios Criativos, sete mostras e festivais culturais, seis feiras criativas, quatro desfiles de moda com foco na criação artística, cinco exposições artístico-cultural, cinco roteiros para o desenvolvimento do Turismo Criativo, criação de sete museus orgânicos e aproximadamente quatro mil atendimentos a pequenos negócios e empreendedores.

“A ideia é unir a questão da economia criativa com o empoderamento dos artistas do brinquedo”, situa Rudimar. Em Nova Olinda, no Ceará, por exemplo, existem mais de 20 museus orgânicos, onde os mestres falam dos seus brinquedos. “É turismo de experiência”, se anima, numa parceria para os Museus Orgânicos, do Sesc com a Fundação Casa Grande, “que ressignifica as casas dos Mestres, transformando-as em lugares de memória afetiva com possibilidade de visitação e movimento do turismo local”.

Entusiasta do HUB PE Criativo, a gestora do Sesc Rita Marize diz que é um abraço que a cidade dá nos seus artistas, na busca de qualificar ainda mais. “Cada um pode viver melhor através da cultura”, pensa.

Essas atividades estão inseridas em oito grandes programas culturais, articuladas para ocorrerem em sete cidades do Grande Recife, Zona da Mata Norte, Agreste e Sertão. São elas: Petrolina, com Aldeia do Velho Chico; Jaboatão dos Guararapes, com Aldeia Yapoatã; Recife; com Transborda as linguagens de cena; Triunfo, com Festival Dona Marias; Arcoverde, com Festival de Economia Criativa na Pisada dos Cocos NE; Goiana, com Festival de Economia Criativa Brincantes da Mata Norte; e Garanhuns, com Mostra Marco Freitas e Webinário de Economia Criativa, Inovação e Tecnologias. Juntos, vão trabalhar os eixos de fruição, fomento, gestão, pesquisa, formação. Além de empreendedorismo conduzido pelo Sebrae.

Essa rede de projetos de economia criativa está em sintonia com o que essas instituições consideram como modelos inovadores para transformação socioeconômica dos territórios a partir das culturas locais. “O Hub é fruto de nosso entendimento da relevância do setor cultural para a sociedade. Buscamos fortalecer esse campo, e nossa meta é qualificar a malha criativa e robustecer os territórios onde estão inseridas”, arremata Oswaldo Ramos.

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Força desde a nascente
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#2

André Vitor Brandão. Foto: André Amorim Divulgação

Perguntei a André Vitor Brandão, supervisor de Cultura do Sesc Petrolina e coordenador do Festival, se a Aldeia do Velho Chico era feminino ou ile, André respondeu que a referência no nascedouro do festival são as mulheres e que Galiana Brasil fez a ponte com o Palco Giratório. “Então a inclinação é para o lugar do ile. A potência está nas diferenças estéticas, nesse conceito de diferenças”. Ele conta que em 2020 a proposta ao falar da transição foi o de pensar futuros nas várias linguagens.

2021 veio com a força de reencantar a vida, olhar para o mundo pós-transformado, com outras práticas de sociabilidade e afetos. “Neste ano, a Aldeia é uma retomada dos espaços, retomada das ruas, da economia”, pontua.

Brandão, que também é dançarino e coreógrafo, entende que o Rio São Francisco é um elemento fundamental tanto na vida social da cidade como na arte e na cultura. “A conexão é com o Rio. Como o Rio interfere na realidade simbólica, no modo de pensar. Na construção desse corpo ribeirinho. O Rio como elemento integrador da cidade. Tem a ver com as metáforas, com os fluxos”. E exemplifica com a rota flutuante das artes visuais, um espaço de produção da região, barco dispositivo.

Crianças durante apresentação do Samba de Veio da Ilha do Massangano. Foto Fernando Pereira

Jailson Lima, na minha chegada, dá o tom de que o festival busca valorizar a cultura de Petrolina, principalmente. Salienta, em outro momento, que não tem interesse de levar “qualquer” artista / pessoa /profissional para o seu festival. Aqueles que só pensem em usufruir dos banhos de rio e demais riquezas da região sem a intenção de trocar com a cidade estão dispensados. Aviso dado.

A realização da Aldeia assegura a entrada de 200 a 300 mil reais em Petrolina. Para além do dinheiro, a injeção de vida, a pulsação de Eros para reconectar com a alegria; isso não tem preço, como diz a sabedoria popular. O espírito de celebração impera nesses dias, é tempo de tomar fôlego.

André e Jailson, dois artistas e pensadores da dança de Petrolina, salientam que a cena da dança na cidade ribeirinha, transborda Pernambuco. Os dois têm razão para o orgulho. Além do trabalho criativo com a arte, a unidade do Sesc que eles tocam investe nas potencialidades no campo da educação e do pensamento crítico.

O espaço de apoio na formação da cidadania é desenvolvido entre crianças e adolescentes e ganham lugar de destaque durante a realização do festival. Um exemplo disso são os debates após os espetáculos, com alunos de escolas da região, quando é possível perceber a importância de ações como essas.

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Fluxos do Rio São Francisco
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#1

Junina Renascer do Sertão. Foto André Amorim / Divulgação

Marujada. Foto André Amorim / Divulgação

 Jailson Lima,  Thom Galiano, Galiana Brasil, André Vitor Brandão e Rita Marize na abertura da Aldeia do Velho Chico. Foto André Amorim / Divulgação

Reisado da Mata de São José. Foto André Amorim / Divulgação

Samba de Véio da Ilha do Massangano. Foto André Amorim / Divulgação

A Aldeia do Velho Chico instala /propõe / produz experiências para ficar viva na memória. Pelo espírito de celebração, por tudo que transborda do Rio São Francisco transformada em arte expandida, pela beleza captada de relance nas coisas simples, pelos momentos revigorantes, inspiradores e a convivência com os humanos com tudo que cabe nessa palavra nas múltiplas camadas. É aprendizado concentrado / na veia.

Realizado pelo Sesc de Petrolina, esse Festival de Artes do Vale do São Francisco, a Aldeia do Velho Chico alcançou a maioridade neste 2022. Em sua 18ª edição, essa jovem chegou sedenta de encontros, de confluência qualificada. A prática curatorial acionou a ideia de “retomada”. Depois da gravidade da pandemia e dos estragos do pandemônio, a vida em potência urge como ação, atuação, ato político e poético.

Assim se fez. Assim se vai fazendo.

Ser o que se é amplia o ato político e poético. A organização do festival articula o sentido de retomada de territórios e das identidades, que são coisas muito complexas, mas que podem estar refletidas até em gestos cotidianos. Projetado na programação.

A inclusão de artistas da cidade na equipe de produção, com a contratação de bailarinos e atores da cena petrolinense e de seus arredores, assegura uma renda para o pessoal. É prática constante dos gestores da unidade Sesc Petrolina, como braço de apoio aos artistas. Os exercícios utópicos estão antenados com as pautas afirmativas e levam para a roda questões dos pretos, das mulheres, das trans, contra a violência prioritária contra esses grupos.

A ação cultural ocorreu de 19 a 28 de agosto, em Petrolina, um município do estado de Pernambuco, distante da capital, Recife, cerca de 750 km, o que equivale a cerca de 12 horas de carro. A viagem de avião São Paulo-Petrolina dura 2h40, duração de voo menor do que para o Recife.

A cidade

Petrolina abriga uma população estimada em 350 mil habitantes. A cidade faz divisa com o município de Juazeiro (BA) e ambas são banhadas pelo Rio São Francisco. “Eu gosto de Juazeiro e adoro Petrolina”, diz o refrão da música Petrolina-Juazeiro, de autoria de Jorge de Altinho, composta há mais de 40 anos e que até hoje embala os corações dos seus habitantes.

Essa foi a primeira vez que visitei Petrolina, apesar de já ter pisado em várias outras cidades do Sertão Pernambucano.

Sempre me disseram que Petrolina é uma cidade rica. São bem faladas suas vinícolas irrigadas pelas águas do São Francisco e indústrias de produção de vinho. Em um dos  dias do festival fui em comitiva percorrer uma vinícola, uma portuguesa. Quando um técnico da empesa disse que seus patrões portugueses estavam no Brasil há 18 anos, alguém de rápido raciocínio perguntou: “Só?!!!” Ai ai ai ai ai ai humor pernambucano. Certeiro, cortante.

O clima semiárido quente petrolinense cedeu espaço para os ventos e temperaturas mais frias nesses dias de agosto do festival, coisa que até os nativos estranharam.  O mundo está estranho e os efeitos do Antropoceno chegam aos quatro cantos do planeta.

A cidade orgulha-se das esculturas de Ana das Carrancas (1923 – 2008) e de outros rebentos artesãos. São comentadas suas frutas de exportação. São conhecidos os políticos antiquados (provincianos), de perfil oligárquico, com a família Coelho dando as cartas há mais de sete décadas.  

Na contracorrente da práxis do privilégio para poucos, resvala uma atmosfera libertária que contagia as corpas de artistas, gestores, fazedores e cidadãos da cultura ribeirinhes.  

Muitos flashes no decorrer dessas jornadas reforçam esse entendimento de que a Aldeia trabalha esse território em sintonia com as lutas e os avanços das chamadas pautas afirmativas, ou seja a busca por respeito, dignidade e protagonismo das pessoas que sempre estiveram alijadas desse processo: população negra, trans, LGBTQIA+, pobres e outros.

Exemplos felizes desses reconhecimentos foram vistos no desfile de abertura do festival, entre muitas cenas, a de um jovem de 16 anos que fazia malabarismos como a baliza desafiando os costumes obsoletos. Ou as funções de lideranças ocupadas por pessoas que geram representatividade, transformando o lugar que poderia ser de medo num espaço de vida.

Isso não é pouco. As ações para valorizar as manifestações tradicionais. Ou a valorização dos artistas da região, que permite criar uma sustentação de carreiras artísticas. Movimenta as bases do contexto social.

Rapaz da baliza, no desfile da Banda M Poeta C Drummond – Foto Andre Amorim / Divulgação

Ciel no Gogo. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Ciel Foto Fernando Pereira / Divulgação

Fazendo um arco desse espírito de liberdade do início com o fechamento da programação destaco a atuação compositor, ator, bailarino e cantor de timbre raro Ciel dos Santos. Contratenor, ele solta a voz na tessitura feminina e seu canto vai do contralto ao mezzo soprano, o que alguns chamam de uma voz andrógina.

Ciel mistura um som nordestino com ritmos latinos, coco, afoxé, música de matriz africana, umas pitadas de jazz, outras sonoridades e com uma saia minúscula, músculos à mostra, batom e purpurina “joga fora no lixo” qualquer espécie de caretice. E performa uma liberdade que atravessa suas vivências rurais e contagia em grau avançado xs espectadores que se afinam com suas experiências. Ele tem atitude, representatividade.  

São contraditórios os cenários das cidades brasileiras. A partir dos paradoxos, percebo que a Aldeia do Velho Chico funciona como microcosmo experimental onde a cultura é regada como prioridade tanto na perspectiva do desenvolvimento econômico quanto da valorização humana.

Aldeia do Velho Chico

Produzida pelo Sesc de Petrolina, a Aldeia do Velho Chico foi concebida em 2005 pela então professora de artes visuais do Sesc Edneide Torres, pelo atual diretor do Sesc Petrolina Jailson Lima, pela gestora Galiana Brasil (agora no Itaú Cultural, mas à época no Sesc PE) e pelo artista Thom Galiano. Inspirado no fluxo do rio e suas reverberações, navegam no festival múltiplas linguagens. Seus criadores mantêm forte ligação com o festival e algum grau de ingerência na programação.

Com perspectiva multicultural, a Aldeia é um desdobramento do Palco Giratório, um projeto de circulação das artes cênicas, que foi reduzido nos últimos anos, mas tem muita importância para a área.

Na rota do festival está valorização da cultura de Petrolina, principalmente. E a ativação do senso de pertencimento na ocupação de territórios. Na execução isso se reflete num programa que considere os trabalhadores da cultura da região e revigore os intercâmbios entre criadores que atuam nos interiores do Nordeste. Sentir-se inserido e aceito faz parte do processo.

Cortejo Abre Alas Pro Velho Chico. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Maracatu Beira Rio. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Banda Marcial Osa Santana. Foto Fernando Pereira Divulgação

Junina Renascer do Sertão. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Marujada. Foto André Amorim / Divulgação

Galiana Brasil, Jailson Lima, Ana Dias, Oswaldo e Rudimar no Cortejo Abre Alas Pro Velho Chico. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Desfile e Apresentações Palco Porta do Rio

Desde o primeiro dia da Aldeia do Velho Chico, um fim de tarde da sexta-feira 19 de agosto de 2022, a pisada seguia coesa à reconquista de identidades negro-indígenas. Sejam nas coreografias das quadrilhas juninas Buscapé, de Juazeiro e Renascer do Sertão, de Petrolina, que fizeram o esquente em frente ao Sesc Petrolina.

Ou nas apresentações no palco Porta do Rio do Reisado da Mata de São José (Orocó/PE), Reisado do Lambedor (Lagoa Grande/PE), Os Kongos (Sento Sé/BA), Marujada (Curaçá/BA) e Samba de Véio da Ilha do Massangano (Petrolina/PE).

Em cada passo, em cada gesto, nos cantos, palmas, partituras coreográficas, jogos de corpo eram reveladas constelação de lutas, orações e celebrações; a ancestralidade atravessada e manifesta, suas memórias de resistência, suas rotas de vivências negras e indígenas no Sertão do São Francisco.

Reisado do Lambedor na apresentação de abertura, no Palco Porta do Rio. Foto Fernando Pereira / Divulgação

O Reisado do Lambedor, da Comunidade Quilombola do Lambedor, localizada na zona rural de Lagoa Grande, por exemplo, tem quase 300 anos de tradição. Seus integrantes contam que Isaac Borges, um negro escravizado que fugiu das terras em que era explorado, no interior baiano, foi um dos fundadores da comunidade. O filho de Isaac, o líder quilombola José Borges formou a brincadeira do Reisado do Lambedor. Tornou-se uma das manifestações culturais mais tradicionais do Vale do São Francisco.  

No dia seguinte conhecemos um pouco mais da Comunidade Quilombola do Lambedor. Lá na comunidade, entre mugidos de bezerros, bodejar de bodes, os integrantes do Lambedor expõem suas lutas e desafios. Da sobrevivência do grupo à valorização do brinquedo para as novas gerações. Generosamente compartilham seus cânticos e danças, e oferecem uma mesa farta de alimentos que produzem no local.

Da abertura ao fechamento, muitas águas correram por baixo da ponte. O início estava carregado de uma ansiedade indisfarçável, a volta do evento à presencialidade. O Cortejo Abre-Alas para o Velho Chico com Bonecos Gigantes Zé Pereira e Vitalina, de Belém de São Francisco, e os petrolinenses Frevuca, Maracatu Beira Rio e Banda Marcial Osa Santana tomaram as ruas.

Esse ocupar as ruas tem também um sentido de resguardar corpas em festas pela vida, pela alegria e pela esperança.

Antes de chegar à beira do rio para as saudações, inalamos o cheiro do acarajé, atravessamos as bandeiras tremulando dos candidatos políticos locais a cargos elegíveis e flagrei olhares desatentos de uns, curiosos de outros e desejosos daqueles ainda “presos” às rotinas de trabalho.

O gerente do Sesc Petrolina, Jailson Lima enfatiza que o cortejo anuncia, vibrando, ao comércio que o Sesc produz cultura. “Chegue junto. Estamos há 18 anos celebrando a produção da cidade, independente do gosto”, assinala. “A tradição tem uma influência muito grande na produção cênica”, diz ele para mencionar ou assinalar que “aposta na produção daqui que não é visibilizada. Buscamos trazer o Rio em diálogo com a cidade. Olhar o contexto”, indica.

 

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Minha pequena maratona pelos bosques do Mirada

Erupção – O levante ainda não terminou, da ColetivA Ocupação, de SP. Foto: Matheus José Maria / Divulgação

Fuck me, espetáculo da argentina Marina Otero. Foto: Diego Astarita / Divulgação

Hamlet, montagem com artistas com Síndrome de Down da Teatro La Plaza, de Lima, Peru. Foto: Divulgação  

Cuando Pases Sobre Mi Tumba, do dramaturgo e diretor franco-uruguaio Sérgio Blanco. Foto: Divulgação

La Mujer que soy, do Teatro Bombón, da Argentina. Foto: Divulgação

Fiz minha pequena maratona pelos bosques do Mirada. 13 espetáculos + um e uma abertura de processo em seis dias, de 12 a 17 de setembro. Minha curadoria particular seguiu alguns critérios. Montagens com maior dificuldade de ver depois, visto que não desceriam a serra ou pouco provavelmente circulariam pelo Brasil. Alguns grupos que já conhecia, interesse pela temática, disponibilidade de ingresso e intuição, ou seja, apostar no que a produção estava vendendo como espetáculo. Dessa forma consegui assistir peças de Portugal, Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai.

O Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas ocorreu entre 9 e 18 de setembro. Cheguei no quarto dia de festival e fui embora antes do fim. Acho que tenho algum problema com essa ideia de fim.

No Mirada acontecem tantas coisas ao mesmo tempo, com choques de horários, que é humanamente impossível acompanhar tudo. Então existem muitos Miradas dentro do Mirada, como ocorre com grandes festivais pelo mundo. Performances, ações formativas, lançamento de livros, etc. etc. etc.  Só de espetáculos programados foram 36.  Alguns não verei jamais e espero que não sejam os que me tocariam profundamente. Mas isso a gente nunca saberá. Parecem ideias tão abstratas como as possibilidades de encontros não concretizadas.

Foi um percurso irregular em meio a essa profusão de vozes que projetam, talvez, o recorte mais cintilante da produção contemporânea das artes cênicas ibero-americanas.

De gratas surpresas e pequenos desapontamentos (mas isso é porque de algum modo havia expectativa), confirmações e inquietações. A vida é um pouco assim, né?!!!

No ano que marca o bicentenário da “Independência” do Brasil, Portugal é o país homenageado. Independência com muitas aspas, mas a data é oficial. É uma provocação pensar sobre a relação entre os dois países. Isso foi posto em cena de alguma forma. Nós que avançamos de colônia à monarquia até chegar à República, já passamos por tanta coisa: “libertação”, eleições restritas, ditaduras, golpes, ditaduras, eleições amplas, democracia, golpe, de-mo-o-quê?, a “invasão” de Portugal por brasileiros que fugiram desse estado de coisas dos últimos quatro anos. Não sei se assisti aos mais impactantes espetáculos portugueses. Mas muitas redes foram trançadas, vi de longe.

Farei um passeio pelos espetáculos que acompanhei desse evento produzido pelo Sesc São Paulo, por ordem das peças que assisti, mas isso pode mudar ao longo do caminho. 

As atrizes Mayra Homar e Maiamar Abrodos estão no espetáculo La Mujer que Soy. Foto: Divulgação

La Mujer que soy, Teatro Bombón

O saguão do histórico Atlântico Hotel, situado defronte do mar de Santos ficou animado para as apresentações da peça La Mujer que Soy, uma produção do festival argentino Teatro Bombón, de Buenos Aires, Argentina, que se tornou o xodó do Mirada, com todas as sessões lotadas.  O número reduzido de espectadores, o local fora do teatro (a peça foi criada para ocorrer em site specific), a simultaneidade da encenação em dois apartamentos exibindo duas perspectivas da mesma história, talvez, tenham sido o chamariz.

As surpresas positivas ainda são maiores no jogo cênico. Escolhi começar pelo lado B, Martha’s, um apê sóbrio, que traduz o estilo de vida da moradora. Num pequeno espaço, com cerca de 30 espectadores “muito unidos”, a personagem Cecilia, a filha (Mayra Homar) chega com a namorada (Daniela Pal) na casa de Marta, a mãe (Silvia Villazur), para passar uma temporada. Marta, e a plateia, suspeitam que a namorada é uma tremenda aproveitadora, disposta a dar uns golpes enquanto faz declarações de amor.

No lado A, Mercedes’, um apê vibrante, de temática queer; Marta tenta reconquistar o carinho do ex-marido, a travesti Mercedes que fez a transição de gênero após o divórcio, vivida pela atriz transexual Maiamar Abrodos. É inspiradora como é conduzida na peça uma relação amorosa entre uma mulher trans e outra cisgênero, sem conotações estranhas ou discriminatórias: um exercício amoroso no fluxo de vida. 

É uma história de gente comum, às voltas com seus dramas ordinários, movida pela busca de felicidade, contada de forma emotiva e com uma proximidade desconcertante. A dramaturgia e direção de Nelson Valente equalizam as tensões com maestria.

Para mim se destacam nesta montagem as corpas insubmissas aos padrões de beleza, a bulir de desejo e que vão à luta para conquistar o que querem.

La Mujer que Soy me ganhou pelas interpretações fortes, com intensidade e entrega e vibração específica, marcadas de uma jeita argentina de ser, algo que vai do estridente à delicadeza. E como destaque dessa cena, a atuação de Silvia Villazur com sua presença intensa, com capacidade de dizer muito com um levantar de sobrancelhas ou um pequeno gesto com a cabeça. Fez o coração do público pulsar em suas mãos.

Essa lente de aumento para uma determinada realidade que o Teatro Bombón propõe é super interessante. Criado em 2014 enquanto festival de arte site-specific de obras curtas, o programa já chegou a dez edições, com mais de  60 obras originais de teatro, dança e performance. Com curadoria de Monina Bonelli, Cristian Scotton e Sol Salinas, o Teatro Bombón ativa o sentido comunitário do fazer teatral, que, ao que parece, tem resultados excelentes de reconexão humana.

A Produção no Brasil é assinada pela OFF Produções Culturais, com André Cajaiba, Celso Curi, Heloisa Andersen e Wesley Kawaai.

La Mujer que Soy foi um dos melhores momentos do meu percurso neste sexto Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc, o Mirada 2022.

Orgia, Pasolini, montagem portuguesa com direção de Nuno M Cardoso. Foto: Raquel Balsa / Divulgação

ORGIA, PASOLINI Teatro Nacional 21 

Há uma radicalidade na encenação de Orgia, Pasolini, do diretor português Nuno M Cardoso, que não é fácil de entrar, ou de ficar. A densidade do texto exige muita atenção e disponibilidade da plateia. A ação cênica é rara, quase ausente. Os elementos da encenação são reduzidos. O diretor já disse que se espera que plateia ouça mais que veja.

O palco se transforma em altar sacrificial, um círculo de muitas toneladas de argila preta onde os atores se confundem com o material – uma instalação da artista Ivana Sehic. Um território enlameado combina violência, culpa e obsessão. Mas não é uma história pornográfica ou erotizada. O figurino negro, a luz baixa, os elementos são combinados para saturar o trajeto noturno.

Orgia ocorre num domingo de Páscoa. Um homem já morto vai ao teatro contar sobre os momentos finais da sua vida e elucidar o motivo do suicídio. Uma voz póstuma, entre narrador e protagonista a “rebobinar a existência”. Ele e uma mulher buscam se entregar aos prazeres sadomasoquistas, mas a moral hipócrita da sociedade produz a esquizofrenia, que pressiona a mulher a se suicidar. O homem vai atrás de outra parceira, mas ele se suicida.,

Teatro da palavra, protagonismo da palavra, Orgia é reflexão densa, profunda sobre Eros e Tânatos. É arma contra o pensamento precário destes tempos.

A peça adentra pelos rituais de continuidade em repetição. As figuras são ideias a serem ouvidas durante uma hora e meia. Três intérpretes (Albano Jerónimo, Beatriz Batarda e Marina Leonardo) se deslocam no palco. Albano Jerónimo e Beatriz Batarda lutam, sem fúria. Os movimentos são contidos, a velocidade é lenta. Mas a palavra fere.

Festa de inauguração, do Teatro do Concreto, com direção de Francis Wilker Foto: Diego Bresani

Festa de inauguração  – Teatro do concreto

A história é uma construção, com predominância das narrativas dos vencedores, ou seja, da elite, é o que performa o Teatro do Concreto na sua Festa de inauguração, apresentada na Casa da Frontaria Azulejada. Mas de vez em quando os subalternos driblam essa regra. A peça foi inspirada numa reforma por infiltração no teto do Salão Verde do Congresso Nacional, em 2011. Foram encontradas no local mensagens (para o futuro) escritas a lápis, nas paredes que ficam entre o forro e a laje, pelos operários que construíram o prédio em 1959.

Entre os registros, o de José Silva Guerra, datado de 22 de abril: “Que os homens de amanhã que aqui vierem tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra”.

O espetáculo, com Gleide Firmino, Micheli Santini, Adilson Diaz e Diego Borges, trabalha o ciclo constante da humanidade de construção-destruição-construção para irradiar com humor corrosivo, às vezes com melancolia, ou até faíscas de esperança, a relação entre o público e o privado, o que de público é realmente usufruído pelo coletivo e o confisco da coisa pública por alguns privados.  

A dramaturgia de João Turchi e a direção de Francis Wilker manejam em quadros performativos os conteúdos soterrados que emergem em algum apontamento da história pela ação artística.

A plateia participa ativamente dos momentos de quebrar e do ajuste de compor os destroços para a próxima sessão. Há algo de esperançar nesse performar ruínas.

Uma alegria assistir a essa montagem em que o microfone da peça e a coroa do príncipe de Shakespeare são revezados pelos atores. Um Hamlet inesquecível. Foto: Divulgação

Levar ao palco uma visão de mundo revigorada por jovens e adultos com Síndrome de Down foi o que o grupo peruano Teatro La Plaza fez no espetáculo Hamlet. A experiência dessas pessoas preenche algumas lacunas da máquina da ficção e desloca outras brechas para criar diferentes percursos para o clássico de William Shakespeare.

Sem pudores nem autocomplacência, a turma segue e subverte as pulsações do príncipe da Dinamarca, potencializa Ofelia, cria outras armadilhas para Claudio. Ao falar direto com a plateia sobre a condição deles, algum tipo de comprometimento intelectual ou dificuldade motora, o elenco revela sobre a singularidade de cada artista, de forma engraçada e apaixonante. E mais, o elenco reafirma como é difícil e prazeroso fazer teatro.

Com irreverência, originalidade e eco pop, a montagem – assinada pela peruana Chela De Ferrari com dramaturgismo com Claudia Tangoa, Jonathan Oliveros e Luis Alberto León –  propõe algumas subversões. Dificuldades de fala e linguagem, problemas de habilidades sensoriais e perceptivas são levantados para apontar que nosotros / nosotras temos algo quebrado, insuficiente, qualquer um e como é difícil reconhecer.

Ao combater o preconceito e a discriminação com uma onda elétrica de humanidade, pela via do teatro, os artistas do La Plaza sinalizam para quem quiser ver e ouvir que como é baixa nossa vã filosofia sobre normalidade e arte.

Vida longa à ColetivA Ocupação, de São Paulo e a sua Erupção – O levante ainda não terminou, que estreou no Mirada. Foto: Divulgação

Erupção – O levante ainda não terminou

Estreia disputada do espetáculo Erupção – O levante ainda não terminouda ColetivA Ocupação, de São Paulo, com direção de Martha Kiss Perrone.  A montagem foi gestada da indagação: “O que é o fim do mundo para mundos que já terminaram há muito tempo?”. A existência é luta no trabalho desses jovens artistas que carregam a cena de revolução, festa, guerra, subversão no tempo espiralado entre passado e futuro, numa perspectiva decolonial. As corpas cis e trans fervem e desse calor são traçadas coreografias, experimentados breves virtuosismos da dança urbana, numa insubordinação da Terra que borbulha e gente se revolta.

Há uma mistura de bruxaria negra, levante dos Malês, Revolução de São Domingos e uma energia concentrada de que a guerra é contra todos aqueles que os querem matar, fisicamente, intelectualmente, psicologicamente, e de outros jeitos.    

A coletivA é feita por jovens artistas que buscam o protagonismo de suas histórias com sede de liberdade.  Erupção – O levante ainda não terminou é a segunda peça da companhia que chegou chegando com Quando Quebra Queima (2017), erguida nas ocupações de escolas públicas em São Paulo.

A presença quente dessas garotas e desses garotos nesta segunda peça da ColetivA Ocupação projeta-se vibrante e utópica. Em Quando quebra queima, o elenco transpirava arte com um jeito meio desengonçado das corpas desequilibradamente de adolescentes em  crescimento, aquela fase de transição em que há desajustes de domínio. Em Erupção – O levante ainda não terminou, a trupe chega com carga total de hormônios. E ainda destreza das corpas, ousadia e uma beleza coletiva contagiante, numa mostra de que a vida que importa é poesia, e essa poética se traduz em revolução. A montagem cruza temas como colonialidade, questões ambientais, genocídios e antirracismo. Vida longa e força na luta para a ColetivA Ocupação, de São Paulo e seu espetáculo Erupção – O levante ainda não terminou. Evoé!!!

Tijuana, com o ator Lázaro Gabino Rodríguez. Foto: Divulgação

A crise de representatividade como questão da política, e do teatro, é tensionada pelo coletivo mexicano Lagartijas Tiradas ao Sol, no espetáculo Tijuana. Nele, o ator Lázaro Gabino Rodríguez conta e performa sua experiência quando adotou / inventou a identidade, por quase seis meses, de Santiago Ramírez, um cidadão que vai morar em Tijuana (Baja California, na fronteira com os Estados Unidos), para ganhar um salário-mínimo numa fábrica.

Com essa experiência, o artista buscou explorar as possibilidades de representação. “Viver” a vida de outra pessoa, isso seria atuar? Essa é uma pergunta constante no trabalho.

Santiago Ramirez “escolheu” morar numa das regiões mais pobres da cidade, onde alugou um quarto numa casa de família.

Gabino Rodriguez é um ator com bom trânsito no circuito dos festivais internacionais. Em Tijuana ele expõe seus arquivos de texto e vídeo, narra o que passou e embaralha o status de verdade. A família que lhe alugou o quarto aceita tão plenamente o disfarce como real que Ramirez é agregado nos almoços de domingo.

O intérprete viveu esse tempo apartado do seu mundo de classe média e mergulhou na dureza da vida operária. Não atingiu os seis meses com 3,5€ euros por dia, desafio que tinha se proposto. Pesaram as dores nas costas, o medo de ser desmascarado e agredido por não ser quem dizia ser até a morte, a pressão do bairro, a falta de água quente. A rotina massacrante comprometeu, aos poucos, sua condição emocional.

Essa dramaturgia baseada em práticas dos teatros do real, documentário e performativo desloca a percepção do espectador. Os procedimentos do real e do ficcional são borrados durante a encenação provocando desequilíbrios constantes na apreensão cognitiva e percepção sensorial do espectador. 

A peça integra um ousado projeto chamado La Democracia in Mexico e prevê a criação de uma série de espetáculos na intenção de conjeturar acerca da realidade mexicana e suas contradições.

Fuck me, espetáculo de Marina Otero com cinco bailarinos. Foto: Divulgação

A argentina Marina Otero realmente me desconcertou com seu com Fuck me. Saí atordoada do espetáculo, sem saber o que pensar nos primeiros momentos. Sotero aparece em cena andando com dificuldade e convence que se arrebentou na lida da dança radical, nos traumas e tombos, nas quedas de quebrar ossos.  Mas em Fuck me, a fraqueza é apenas uma máscara da bailarina imponente.

A artista levou seu corpo ao limite humano em prol de seus projetos. Esse equipamento de carne-nervos-sangue-ossos submetido a tantos choques e aberturas aparece danificado na cena. Prejudicada com seu instrumento de trabalho, ela convoca cinco bailarinos, belos, musculosos e dispostos a tomar o lugar de sacrifício para substituí-la na cena, na derradeira parte de um autorretrato criado por Otero.

São cinco Pablos, nome escolhido pela dançarina e coreógrafa argentina, entregues à causa narcisista de Marina Otero. Cada um deles narra um pedaço da trajetória dela. Marina dança desde a infância. É uma obsessão desde lá. E ela revela mais de sua vida, a filha de pai militar, e a repercussão da trajetória da ditadura que devastou seu país, a misoginia e o machismo de homens com os quais se envolveu. A violência que sempre atravessou seu corpo.

Marina é convincente e os arquivos de sua vida pregressa comprovam as manobras corporais feitas pela artista, que beiram a autodestruição, alguns espetáculos, suas memórias familiares e os registros do hospital que dão testemunho de sua espinha estragada. O sofrimento, a operação, a dança que cai.

Foi numa cama de hospital que ela concebeu essa última parte da série auto fictícia Recordar para Vivir, iniciada em 2012 com Andrea, seguida em 2014 com Recordar 30 Años para Vivir 65 Minutos. Ela lembra uma Frida Kahlo do século 21, às voltas em expressar com arte suas dores de corpo quebrado, de ser ela própria arte apesar de toda ruína. É impactante, desafiador.

Essa peça-catarse remete para qualquer coisa de amodovariana na exposição desses destroços, desses elementos que a artista leva para o palco, da criação feita enquanto se recuperava de uma grave lesão na coluna, ocorrida em 2019. O acidente a deixou sem caminhar, dançar e trepar, que em sua prática está tudo relacionado.

Marina embaralha os tempos presente e passado. Mesmo quando se apresenta como uma velhinha com limitações motoras, ela se mostra altiva a exigir de seus bailarinos uma doação máxima. Sem poder dançar, ela passa para eles a missão de executar movimentos ousados, extravagantes, numa multiplicação dela mesma.

Essa peça arrebatadora atiça nas suas camadas os efeitos do passar do tempo. Traz um desempenho deslumbrante dos bailarinos Augusto Chiappe, Cristian Vega, Fred Raposo, Matías Rebossio, Miguel Valdivieso. É possível lembrar da autoflagelação de Angelica Liddell. Mas Marina Otero tem um percurso todo seu, deslumbrante na oscilação do tragicômico. E acima de tudo admirável e imprevisível em sua cena final.  

Cuando Pases Sobre Mi Tumba, com dramaturgia e direção de Sergio Blanco. Foto: Divulgação

“A verdade também se inventa”,  é uma frase do espetáculo Tijuuana, do coletivo mexicano Lagartijas Tiradas ao Sol, mas que cabe muito bem em outras peças.

As pistas falsas traçam os fios no jogo da autoficção do dramaturgo franco-uruguaio Sérgio Blanco na peça Cuando pases sobre mi tumba. Mais uma vez ele narra sua própria morte de forma fictícia e nesta montagem Blanco é interpretado por Sebastián Serantes. Ele decide morrer e para isso recorre ao suicídio assistido, em uma clínica em Genebra, na Suíça. Faz uma consulta com o Dr. Godwin (Gustavo Saffores). O último desejo de Sergio é que seu corpo, depois de enterrado, seja violado por um jovem necrófilo iraniano (Felipe Ipar).

Blanco faz uma autópsia do desejo de poder decidir sobre o término da existência. E explica na encenação a diferença entre a morte assistida e a eutanásia. O tema é tabu e quem já viu alguma coisa da trajetória do artista prossegue encantada com sua capacidade de criar tramas tão inventivas, que não sabemos o que é real e o que não.

 Blanco, que assina o texto e a direção, tem um estilo único de misturar elementos, de ajustar a progressão dramática, mexer com  gráficos projetados, utilizar intervenções musicais, manejar com precisão drama pesado com momentos engraçados. 

A encenação é dinâmica e encantadora, intensa e maneja bem as emoções. Blanco é expert em manter a plateia entusiasmada por suas histórias.

La Luna en El Amazonas, do Mapa Teatro, da Colômbia. Foto: Rolf Abderhalden / Divulgação

La Luna en el Amazonas – Mapa Teatro

Mas é preciso apressar o passo desse passeio. E serei mais suscita nas próximas paragens. Espero.

O espetáculo La Luna en el Amazonas, dirigido pelos irmãos Heidi Abderhalden e Rolf Abderhalden, do grupo Mapa Teatro, de Bogotá, faz conexões da realidade atual com episódio do século 19, sobre uma comunidade indígena que se isolou em virtude da violenta invasão ao seu território na Amazônia colombiana.

O espetáculo faz referências ao filme Memória (2021), do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, gravado na Colômbia e com atuação de dois atores da peça.

Para erguer a montagem eles fizeram uma cuidadosa pesquisa cruzando textos  científicos e ficcionais, articulando potente material visual, sons eletrônicos e música ao vivo e o resultado é uma enxurrada de imagens, arranjadas em variadas velocidades e combinações que se assemelha a uma viagem lisérgica.

 São muito graves denúncias de destruição, assassinatos, apropriações que o grupo faz com no espetáculo. A trupe fala em resistência poética das áreas da floresta contra uma possível nova colonização. Mas não consegui abraçar em plenitude o excesso de informações, imagens, jogos visuais e gráficos, dramaturgia desse quase-manifesto.

Brasa, de Tiago Cadete. Foto: Bruno Simão / Divulgação

Brasa – Tiago Cadete/Co-Pacabana

Séculos se passaram desde a chegada dos portugueses ao que hoje chamamos de Brasil. Depois disso, sabemos agora com mais consciência (torço), vieram a colonização, evangelização forçada, escravização dos povos originários e dos trazidos forçosamente da África, tudo isso realizado com muita violência e incalculável número de mortos. Tiago Cadete é um criador lusófono que investiga os impactos desses processos e as relações entre Brasil e Portugal atualmente.

Brasa, de Cadete examina essas negociações atuais desse ato de cruzar os oceanos de antigos colonizadores e colonizados, agora motivado por outras ordens e o aumento das migrações de brasileiros para Portugal.

O próprio Tiago Cadete vivenciou esse trânsito entre entre Lisboa e Rio de Janeiro nos últimos oito anos. Artista performativo e visual, o português veio ao Brasil para cursar pós-graduação na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ao lado de cocriadores migrantes dos dois países – Isabél Zuaa, Julia Salem, Keli Freitas, Magnum Alexandre Soares, Ana Lobato, Dori Nigro, Gustavo Ciríaco e Raquel André -, Cadete constrói sua Brasa de crítica histórica.

Na peça ele expõe atritos de percepções e convergências e tenta aprofundar a análise em algumas perspectivas. Leva à cena com doses de humor a “Carta do Achamento do Brasil”, do Pero Vaz Caminha, desdobrada em outras sequências em que são exploradas questões de xenofobia e ações antidemocráticas de vários tipos, em graus ampliados.

A plateia é alojada em um dos dois espaços cenográficos e acompanha imagens de uma floresta em chamas, dança das caveiras, referências ao futebol, à língua, aos sentimentos  para fazer arder um pensamento crítico sem subserviência.  

Discurso de Promocion, com o Grupo Yuyachkani. Foto:Musuk Nolte / Divulgação

Discurso de Promocion, com o Grupo Yuyachkani. Foto:Musuk Nolte / Divulgação

Discurso de Promocion – Grupo Yuyachkani

O grupo peruano Yuyachkani explora uma linha memorialística em seus trabalhos e em Discurso de promoción (Festa de formatura) passa em cena o bicentenário da Independência do Peru, agenciando criticamente as heranças coloniais. Existe uma exuberância na cena que beira o caótico e o exagero para apresentar vários períodos históricos e a crítica a esses momentos. A trupe teatral nascida em 1971 tem uma importância indiscutível para o mapa das artes do seu país, tanto por sua atuação coletiva quanto pelas escolhas políticas, das teatralidades peruanas e das tradições indígenas.

O Yuyachkani utiliza nas suas obras arquivo documental, fotografia, instalação, dança e jogo, valorização do corpo no espaço e ativismo cidadão, como eles chamam. Sob a direção de Miguel Rubio Zapata, Discurso de promoción tem de tudo isso um pouco, de forma muito intensa. Entre ações performativas, envolvendo cultura popular e dispositivos do teatro documentário são mais de duas horas.

Apresentado no Herval 33, uma espécie de grande galpão em Santos, a ação se deslocava no espaço cênico e o público precisava acompanhar as andanças, ora sentando-se no chão, ora ficando em pé, o que provocou um cansaço desnecessário. Há de ter outras soluções menos incômodas para a fruição do espetáculo.

A encenação passa por vários estados – do festivo ao fúnebre – e começa com uma espécie de quermesse em que estudantes com um civismo cego exaltam o bicentenário da independência e com apresentações amadoras buscam arrecadar dinheiro para a formatura da turma, que será comemorada com uma excursão a Machu Picchu, cidade edificada pelos incas.

O segundo ato dá uma guinada para a revisão crítica dos heróis oficiais e de outras representações históricas. São muitos dados específicos da contestação dos atos emancipatórios e da ocupação dos espaços de libertação por homens brancos com algum destaque político ou religioso e a representação secundária do povo. É extremamente louvável essa crítica e autocritica no trato da história. Mas há dificuldade de recepção para a cena, principalmente para quem não é do país do Yuyachkani.

Fronte[i]ra |Fracas[s]o, parceria do Teatro de Los Andes e Clowns de Shakespeare Foto: Rafael Telles  / Divulgação

Fronte[i]ra |Fracas[s]o – Teatro de Los Andes e Clowns de Shakespeare

Da parceria de duas importantes trupes cênicas de pesquisa, o Teatro de Los Andes, de Yotala, na Bolívia, com os brasileiros do Clowns de Shakespeare, de Natal (RN), nasceu o trabalho cênico Fronte[i]ra |Fracas[s]o, que começou a ser gestado no ambiente digital.

Parece-me um espetáculo com muito caminho pela frente, de reajustes dos procedimentos escolhidos. Na primeira parte, no pátio do espaço Arcos do Valongo, os atores expõem o processo criativo das trupes, dividindo a plateia em grupos menores para escutar as histórias das pesquisas de campo nas cidades de Brasiléia, no Acre, e Cobija, no Departamento de Pando, na Bolívia.

O procedimento dos pequenos deslocamentos no local, até a ação de pular corda mostrou-se como muito esforço para pouca fruição.

No segundo momento é apresentada uma fábula que orbita em torno do prenúncio da divisão territorial de um vilarejo fictício. Com presenças mornas no palco e um cansaço evidente por toda a luta empreendida, o espetáculo não empolgou na apresentação de estreia no Mirada.

Todo e qualquer revés registrado na cena, na minha opinião, é reflexo das garras insaciáveis do capitalismo. As nefastas ações (ou desações) de políticas culturais que vêm tentando sufocar os artistas, no Brasil e em outros países, tem repercussões no corpo individual e no corpo de cada conjunto.

Na encenação, o elenco fala que outros atores e atrizes foram embora, largaram os grupos, ou até mesmo deixaram (espero que momentaneamente) o teatro para conseguirem sobreviver em outra função. Isso é muito grave e além das questões políticas dos territórios, o que me chamou mais atenção foram esses relatos diluídos em meio à fábula. A sobrevivência dos artistas, a integridade de seus grupos, é uma questão urgente a se pensar.

Dragón, de Guillermo Calderón. Foto: Eugenia Paz / Divulgação

Dragón, do dramaturgo chileno Guillermo Calderón leva para a cena uma crise artística. Enquanto articula o próximo projeto, o coletivo teatral Dragón – que se reúne periodicamente no restaurante Plaza Italia, na região central de Santiago – vê emergir um conflito interno incontornável entre seus integrantes. Eles tinham elegido o tema da traição e o motivo se transforma em contexto. Qual a posição da arte nas batalhas políticas?

O historiador negro Walter Rodney (1942-1980), da Guiana, um panafricanista, e ativista político, morto vítima de atentado à bomba, em 1980, aos 38 anos, é uma das inspirações da dramaturgia. Ele é citado nas conversas do coletivo. As técnicas do teatro do oprimido, mais especificamente a do teatro invisível, do diretor Augusto Boal (1931-2009) estão entre as referências como método de ação.  

Falso e verdadeiro em tempos de fake News.

A peça propõe um debate ético sobre o que artistas podem apresentar e quem eles podem representar e de que forma. A maneira, a inflexão, acentuação, modulação. Configura-se que o grupo cai na própria armadilha. Ao deixar o Chile e escolher a América Latina como cenário, na sessão que vi no Mirada o grupo adota o Brasil como território das suas referências. Não foi bom, não.

Calderón já havia dito em alguma entrevista sobre Dragón que procurou “um novo sentido de humor, uma renovada ideia de comédia”.

O tom das referências ao Brasil – de deboche e de escárnio – faz perguntar até onde pode ir um artista ao formular enunciados ou tomar o lugar da representação. Em uma cena, alguém do elenco utiliza uma peruca para falar de cotas para negros no Brasil. Isso foi incendiário.   

Com racismo entranhado nas estruturas deste país, me parece que Calderón não tinha o direito de fazer esse tratamento. Com o Brasil tingido de sangue principalmente dos negros e uma situação política deplorável, é inaceitável determinadas alusões.

Para fazer uma exposição das contradições latentes o autor precisaria ter mais propriedade de fala. O humor ácido não é um salvo-conduto para enfiar um país nas suas experimentações.

O breve e acalorado debate que se seguiu à apresentação no Mirada trouxe a tona a indignação de parte da plateia com os procedimentos levados ao palco, que chegaram como zombaria, escárnio. Ou uma atitude tão arrogante de um artista que mostrou desprezo, desconsideração ou insensibilidade com as linhas tênues do que é possível performar e representar na casa alheia.   

Ou, como diz Pollyanna Diniz, a peça reproduz no palco o que a gente condena na arte. Dragón explicita (e é) uma arte branca, falsamente engajada, que não sabe se posicionar de modo efetivo, mas faz barulho. A cena conduz a crítica a partir da reprodução do modelo criticado. E o traído é o espectador. Será que para criticar o modo como fazemos arte precisamos insistir nos mesmos moldes? Vamos tentar ampliar para problematizar as escolhas: será que, para criticar o machismo, é necessário reproduzir o machismo em cena? Para criticar uma violência, é preciso reproduzir violência? Neste caso, o espectador é o traído, aquele que encontrou no palco uma dramaturgia, entendida de modo ampliado, que apenas reitera o que critica.

Cosmos, Cleo Diára, Isabél Zuaa, Nádia Yracema. Foto: Divulgação

Cosmos – Cleo Diára, Isabél Zuaa, Nádia Yracema

Dois momentos do espetáculo Cosmos ficaram acesos na memória, a da vibração do corpo coletivo, da grandeza para fazer a revolução, com potência para inventar novos mundos.

A jornada interplanetária de Cosmos, das artistas Cleo Diára, Isabél Zuaa, Nádia Yracema e elenco é feita de feixes de luz para transportar personagens entre guerras, atravessar fome e pandemia, enfrentar o capitalismo selvagem e o racismo e seguir em busca de liberdade.

A peça fala de criação de um novo mundo, mas que existem outros antecedentes. As artistas de linhagens cabo-verdiana, angolana e portuguesa buscam na mitologia africana e no afrofuturismo as sustentações do espetáculo.

Desse trajeto pelo Mirada, os sinais emanados do palco que chegam é que as democracias estão sempre em risco. É disso que o teatro está falando. Que o mundo é / está desumano, nós já sabemos. Mas mesmo com todo o histórico de colonização, golpes de estado, e violência há sempre injeções de ânimos na veia política, como propõe Erupção e da poética como investe Hamlet. Até o próximo festival Mirada!

  • A jornalista e crítica Ivana Moura viajou a convite da organização do Mirada 2022 – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas e do Sesc São Paulo
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