Arquivo da categoria: Ensaio

Histórias que vêm do lixo
Chorume
#Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
# 7

Chorume Doc – Foto André Amorim / Diulgação

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume Doc – Foto André Amorim

 

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume, da Companhia Ortaet, de Iguatu, é um espetáculo de teatro documentário que investiga as relações e repercussões na/da vida a partir do lixão a céu aberto daquela cidade no interior do Ceará. A força propulsora do trabalho está calcada nos relatos de experiência /depoimentos das catadoras do bairro Chapadinha.

Alguns documentos encontrados no local são disparadores dessa encenação de teatro documentário. O projeto de montagem foi composto por Cleilson Queiroz e José Filho, contemplado no laboratório de teatro do Porto Iracema das Artes 2020, com tutoria de Marcelo Soler. O trabalho também foi agraciado com o edital de criação artística Arte Livre – Secult Ceará, por meio da lei Aldir Blanc 2020.

É preciso pensar o local que inspirou a peça antes de analisar a cena. O lixão está situado às margens da CE 282, no bairro Chapadinha, um dos mais pobres de Iguatu e desprovido de políticas públicas eficazes.

Um lixão a céu aberto é uma prova irrefutável da incompetência e do descaso do Estado em qualquer cidade brasileira, poderia dizer do mundo, mas vamos ficar no território nacional. Iguatu do Ceará não tem aterro sanitário adequado. É desse terreno inóspito, o lixão, que alguns cidadãos iguatuenses garantem sua sobrevivência precária.

O Chorume do título é definido como um líquido que se constitui do acúmulo de lixo e se infiltra na terra. Esse fluido infectante de cor escura que escorre do lixão produz odor nauseabundo, é proveniente de uma série de processos químicos, biológicos e físicos de decomposição. Sua ação polui os mananciais, a terra e o ar.

O Lixão de Iguatu, seu odor e sua fumaça não estão nas pautas de debates públicos, apesar da gravidade da situação e ameaça para a saúde coletiva da cidade, principalmente dos catadores do lixo do local.

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume Doc – Foto André Amorim

A Companhia Ortaet expõe cenicamente alguns aspectos do impacto da cultura consumista no Planeta Terra, nos agravamentos na economia, esfacelamento da vida social, os entraves da política e sem dúvidas, comprometimentos na cultura. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017) escreveu muito sobre a “liquefação” da sociedade contemporânea. Em Vida para Consumo (2008), por exemplo, Bauman expõe o processo da conversão de pessoas em mercadorias.

Como elucida o sociólogo polonês, o que a sociedade consumista busca não é satisfazer necessidades, mas estabelecer relações de poder a partir do ato de consumir. Excesso, desperdício e a produção de lixo estão associadas a isso.

A peça traça metáforas dos riscos associados ao consumismo e ao descarte. E realça a alienação.

Na cena estão Aldenir Martins, Betânia Lopes, Carla Moraes, Cleilson Queiroz e Ronald Carvalho. As atrizes e os atores começam vestidos do que chamam de figurinos burgueses. Mas o material das roupas, dos ternos, dos vestidos, dos adereços e até das luvas não é da melhor qualidade. Isso cria uma boa dobra da imitação da burguesia, eles mesmos não sendo, já chega como uma crítica ao universo do consumo em alguma camada, pois mira uma certa elite local sem nenhuma empatia com o mundo além de si e que se alimenta de uma filosofia barata e que fabrica muito descarte.

Os burgueses da peça brindam, se comportam como se estivessem em uma festa. Uns falam ao microfone, enaltecendo seus papeis de exploradores. Uma delas apresenta a boneca Barbie. O jogo do elenco expõe as estruturas de dominação, os mecanismos de poder dentro do próprio grupo.

Os poderosos lavam as mãos na cena. O poder está normalmente nas mãos dos homens brancos. As mulheres pobres e oprimidas pelo sistema, no desenvolvimento do quadro, ficam com a tarefa de servir, em algum momento. Enquanto a madame de classe média assume uma compulsão consumista, o corpo da mulher das classes mais modestas sofre da objetificação e é tratado como descartável, como muitos objetos no sistema capitalista. A montagem reforça o caráter de humilhação nesse desequilíbrio na ocupação dos espaços. A mulher limpa o chão e isso é uma ação concreta.  

A peça avança e os atores entregam folhetos de publicidade ao público. Compre, exigem os folhetos lançados para convencer qualquer um cair nas malhas do consumo.

E a peça faz um giro com os dois rapazes da encenação se livrando de suas roupas burguesas. De sungas vermelhas, eles protagonizam um jogo libidinoso. Uma das mulheres, também já com as roupas de baixo, aciona uma máquina de fumaça ou de matar mosquito, remetendo ao vapor das queimadas do lixão.

Algumas cenas ou microcenas devem ter uma lógica interna própria para mover a peça, mas não projeta tanto para fora quadro, para além de seus criadores. Parece alguma senha de difícil acesso. Essas representações proporcionam pouco acesso ao núcleo duro da obra e parecem ilustrar alguma coisa, mas já como algo sobrando do circuito. 

Quando passam a narrar os relatos de vida dos moradores da região do lixão, os atores exibem retratos das catadoras e catadores de materiais recicláveis. Apresentam os documentos dessa realidade. Instala-se ou amplia-se o “pacto documental” com o espectador.

O lixão funciona, nesse caso, como arquivo a céu aberto, onde são descobertos materiais que guardam histórias, e dos seus resíduos são criadas narrativas. Com alguns desses objetos, a peça discute o descarte.

A boneca, com a cabeça arrancada, nas mãos do ator, cumpre a função de documento. Encontrada no lixão, ela carrega e projeta os processos de violência contra a mulher, que são debatidos no espetáculo Chorume.

O cruzamento das vivências das gentes que moram no bairro e trabalham no lixão com as experiências dos artistas do elenco amplia a humanização das narrativas e situa o corpo da cidade de Iguatu. Esses procedimentos envolvem a plateia com as conversas ao pé de ouvido, a exibição das fotos e a confidência de peculiaridades das personagens e materiais que simbolizam sonhos/realizações, como o vestido de noiva.

A Companhia Ortaet de teatro é um dos grupos mais antigos do interior do Estado do Ceará e desde 1999 vitaliza cenicamente a cidade de Iguatu. Em 2014, foi reconhecida como “Entidade de Utilidade Pública” pela Prefeitura Municipal e Câmara de Vereadores de Iguatu. Desde sua fundação já encenou mais de 15 espetáculos.

Enquanto teatro documental, a peça Chorume tem ambição de retribuir ao pessoal ligado ao lixão a gentileza de compartilhar as vivências. E interferir na transformação daquela realidade. Como o posicionamento crítico do espetáculo, o grupo lança sinalizações de saídas a partir do teatro.

Com direção, dramaturgia e tutoria de Marcelo Soler e assistência de direção de José Filho a montagem faz escolas estéticas do teatro documentário e do teatro épico. As armações apresentam os documentos e um pouco do processo criativo. As saliências políticas e o humor corrosivo funcionam bem para acionar o pensamento crítico.

Chorume se permite a compor vários fragmentos do documentário e da narrativa fabular do consumo. Uma série de cenas são encadeadas para tratar da exploração, da miséria, perpassadas pela desigualdade histórica, reforçadas no período neofascismo bolsonarista.

Alguns ajustes nas passagens, nas conexões de cena podem potencializar esse Chorume já tão perspicaz da crítica social, na afirmação de sua territorialidade, na conexão com seu entorno, no desejo de humanização das teias sociais, na chamada para a reflexão da realidade.  

Há pensamento crítico e inventiva composição estética na cena fora dos grandes centros. Talvez seja importante reforçar isso. Que compõe e recompõe imagens desumanizadoras na perspectiva de libertar o imaginário.  

 

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Ledores no breu
Crítica
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#5

Ledores no Breu foi apresentado no Teatro Dona Amélia. Foto André Amorim / Divulgação

Participação do público em Ledores no Breu. Foto André Amorim / Divulgação

Dinho Lima Flor é um ator intenso, visceral. Sua atuação é marcada pela entrega, pela emoção e pela sintonia fina com a plateia. Rebento do teatro Ventoforte, do saudoso Ilo Krugli, ele se doa apaixonante enquanto intérprete. Sua Cia. do Tijolo foi tramada na convivência com Krugli. Essa trupe faz teatro contemporâneo alimentado pela seiva da cultura popular. Da melhor mistura de ethos e pathos, que conjuga o epos e a lírica, a depender do contexto.

Já no início a trupe paulistana seguiu os passos de Patativa do Assaré nos repentes, na poesia, na vida do artista cearense para erguer o belo trabalho Concerto de Ispinho e Fulô.

Além do lirismo, Cantata para um Bastidor de Utopias está carregada da porção política de libertação. Para falar dos anônimos em busca por justiça, a peça junta três eixos históricos: o enforcamento – em 1831 – de Mariana Pineda, jovem heroína que desafiou o autoritarismo do Rei Fernando VII bordando uma bandeira para os liberais; o assassinato de Federico García Lorca em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola; e a ditadura militar brasileira (1964-1985) e suas repercussões.

Com O Avesso do Claustro o grupo leva ao palco a trajetória de Dom Helder Camara (1909-1999), o Bispo Vermelho, “emblemática personagem nas históricas lutas de resistência política durante o regime militar e na aproximação da igreja católica com as demandas dos movimentos sociais”, como dizem os artistas do Tijolo, numa montagem que junta simbioticamente poesia, música e teatro.

Dinho Lima Flor em Ledores no Breu. Foto: André Amorim

Ledores no Breu participou da Aldeia do Velho Chico 2022. Foto: André Amorim / Divulgação

Ledores no Breu. Foto André Amorim /  Divulgação

Em Ledores no Breu – solo do pernambucano de Tacaimbó Dinho Lima Flor, sob direção de Rodrigo Mercadante – é o corpo do ator que conduz a plateia pela escuridão dos que não leem, uma espécie de cegueira para interpretar o mundo letrado e os feixes de luz que podem chegar com a alfabetização.

Paulo Freire, Patativa do Assaré, Frei Betto, Lêdo Ivo (com Os pobres na estação), Guimarães Rosa, Luis Fernando Veríssimo, Zé da Luz e mais recentemente Maria Valéria Rezende são convocades para a rede. E mais, sons e músicas de Cartola, Jackson do Pandeiro, Chico César, Manu Chao, Palavras, de Gonzaguinha e Samba da utopia, de Jonathan Silva (criado especialmente para a peça).

Canções, relatos, causos, episódios compõem essa teia dramatúrgica de descobertas emocionadas das letras – caso de Joaquim que compõe a primeira palavra, o nome da sua amada Nina, contada por Paulo Freire de sua experiência em sala de aula. E o lance da menina proibida pelo pai de estudar por ser mulher, que enfrenta a implacável ordem paterna e decide aprender a ler com a ajuda de uma amiga, com graveto na areia em vez de lápis e papel.

Ou a narrativa de Patativa do Assaré que diz que largou de ser “matador de passarinho”, que fazia por diversão como outros meninos da sua idade, e seguiu a imitar os cantos desses animais voadores.  

Como uma atuação ardente, Dinho Lima Flor passeia por vários estilos interpretativos, transita pela comicidade popular, vai ao exagero, testa a sutileza, comenta temas atuais, se avizinha do trágico. Muito habilmente cria seu jogo na relação com a plateia, assume a performance, convoca personagens, finge que encarna e sai. Cobra pelos índices de analfabetismo no Brasil em pleno século 21.

É uma exuberância de muitos teatros. Cumplicidade íntima com o público magnetizado na troca de afetos, danças e abraços carinhosos, materiais e simbólicos. Com a prosa/verso e o corpo desse ator, a palavra encanta.

O figurino branco vai sendo enodoado de carvão no decorrer da cena, o mesmo carvão que serve para escrever e provocar reações sensoriais. Carteiras escolares fazem parte da composição.  Rolos grandes de papel pardo são desenrolados para formar estradas e suportes para a escrita. A direção de Rodrigo Mercadante estimula ritmos, andamentos, revolucionando emoções do ator e agitando as sensibilidades do público.

Mulheres portam faixam com expressões como “Mais escolas e menos cadeias”, em um vídeo de manifestações.  Sabemos que o analfabetismo, o não letramento, é uma estratégia de subjugação dos governos não democráticos. Isso é um problema, diria até um crime, um confisco de direitos dos mais pobres – causa e consequência da falta de oportunidades; uma política de opressão, manutenção de privilégios muitas vezes associada a desvios de recursos.

Na Aldeia do Velho Chico, realizado em Petrolina no mês de agosto, no palco do Teatro Dona Amélia, do Sesc, com os espectadores também no tablado, magnetizados, a sessão não utilizou os recursos dos vídeos, mas eles fazem parte da obra.  

A palavra escrita com carvão em Ledores do Breu. Foto: André Amorim

Ledores no Breu – Foto André Amorim

Marcas de tirania – O iletrado

Deixei para analisar por derradeiro o eixo da peça que tem por texto Confissão de Caboclo, do poeta Zé da Luz.

Já escrevi outra crítica Ledores no Breu e segui o caminho da grandeza de Paulo Freire e da interpretação de Dinho Lima Flor, como faço até aqui. Mas tinha algo que me incomodava no espetáculo, que dessa vez ficou evidente.

Por não saber ler, um homem comete um crime contra sua companheira. Desde que foi publicado, o poema Confissão de Caboclo, de Zé da Luz, é reiteradamente lido / interpretado dessa forma. A ignorância aparece como a causadora da morte.

Mais além do analfabetismo que é apontado com o grande mal a ser combatido, o poema de Zé da Luz – um dos pilares do espetáculo – precisa de uma atualização crítica dentro da encenação.

A ignorância de uma determinada regra não é suficiente para inocentar quem a viola. As mulheres historicamente sofreram / sofrem opressões e violências de várias naturezas, em várias gradações.

É absolutamente insustentável que a cruel, odiosa e desumana tese de legítima defesa da honra tenha sido usada durante tanto tempo para proteger os homens acusados/autores de feminicídio. Foi sim usada como argumento por advogados que desdenharam os princípios da dignidade humana, da proteção à vida, da igualdade de gênero (que infelizmente ainda não existe em sua plenitude).

Muitos homens foram absorvidos com esse escudo após matar uma mulher, sob alegação do término ou traição em uma vinculação afetiva.

O poeta Severino de Andrade Silva, mais conhecido como Zé da Luz (1904 – 1965) foi um poeta popular paraibano, que publicava em forma de cordel. Escreveu entre outros Brasi Cabôco, A Cacimba, As Flô de Puxinanã, A Terra Caiu no Chão, Ai! Se Sêsse!…, Sertão em carne e osso.

Confissão de Caboclo encerra com a expressão “que crime não saber ler”, depois que o narrador descobre que Rosa Maria não o traiu, motivo que ele explica ao delegado de ter tirado a vida da mulher que ele diz que amava.

Alguns estudiosos apontam que o poema trata do analfabetismo como um crime social. É preciso mudar essa lente de leitura. Existe um crime de feminicídio. E o não letramento da personagem que mata não pode ser atenuante para o assassinato. Mulher não é objeto que pode ser descartada / assassinada quando não corresponde às expectativas.

No espetáculo Ledores no Breu o narrador confessa que matou Rosa Maria por suspeita que ela o traía com Chico Faria, seu antigo noivo. Não existe prova da traição. Apenas uma carta que o personagem-narrador não sabe decifrar. Por trás dessa carta é urdida a defesa dessa figura.

A personagem de Zé da Luz é apresentada como um homem bom, trabalhador e apaixonado por sua esposa.  

A questão que se apresenta é que o ator defende sua personagem como um homem que, que guiado por fortes emoções (“Cego de raiva e paixão”), assassina a mulher do poema com um facão. E isso é feito em camadas de envolvimento emocional com a plateia. Sua personagem é defendida com garra, recebendo os componentes mais humanizados, o que faz com que o feminicídio da ficção se torne um ato naturalizado dentro do contexto exposto.

Um feminicídio é um feminicídio. Falta essa dobra dentro do espetáculo. Pois todo o abraçamento em favor do autor da ação é narrado pelo ponto de vista do assassino. O espetáculo é composto de fragmentos e esse episódio da Confissão de caboclo está está dividido em dois momentos, entrecortados por outras situações e músicas.

Ledores no Breu é uma peça que estreou em 2014. Muitos avanços na esteira dos direitos da mulher ocorreram. E fica difícil receber o caboclo narrador apenas com o sofrimento que ele passa, sem fazer um giro de perspectiva desse pathos para a Rosa Maria assassinada. Algo de epos para problematizar a cena ou algum outro procedimento.

A cumplicidade amorosa, o envolvimento na peça não pode suplantar o fato de que uma mulher foi assassinada. Não existem motivos para uma mulher ser morta. E isso não está lá. A personagem marido não pode receber a indulgência da plateia enquanto o olhar para a mulher é de que essas coisas acontecem.

Então, creio que Ledores no Breu precisa de uma pequena revisão para honrar o que o grupo representa no cenário teatral e saudar os valores que são defendidos em seus espetáculos. O patriarcado continua ainda hoje, século 21, a naturalizar assassinatos de mulheres (cis e trans) feitos por homens rejeitados e desequilibrados, que encontram pretextos reais ou imaginários para suas terríveis atitudes. Mas não dá para deixar que arte comprometida com o humanismo faça romantização de um assassinato.

Não sei como isso poderá ser executado em cena. É contigo Mercadante. É contigo Lima Flor. É contigo Cia. do Tijolo. Romper com o que Paulo Freire chamou de “cultura do silêncio” e transformar os analfabetos em protagonistas de suas histórias é também expor a responsabilidade do relacionamento com o mundo ao redor.

 

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Petrolina dança
a partir dos espetáculos
Onde Ele Anda é Outro Céu
e Rio de Contas
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#4

André Vitor Brandão em Onde Ele Anda é Outro Céu. Foto: Thierri Oliveira / Divulgação

Rio de Contas. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Os espetáculos de dança são mais porosos que os de teatro na leitura, na recepção. Fornecem indícios e “obrigam” a espectadora/o espectador a se empenharem mais na percepção; agitar o sensorial, ativar a cognição. As reflexões, ideias, emoções são transformadas em movimentos, gestos, deslocamentos no espaço. As coreografias se abrem a muitas possibilidades de fruição e a dramaturgia se enlaça subjetiva ao ser da plateia (corpo/mente/espírito e mais) provocada pela cena. Aciona coisas indescritíveis.

A dança contemporânea gosta de jogar com o enigmático. Lança projeções, recupera resíduos. Pode sugerir temática, mas com tantas entradas (e saídas) prossegue desafiante.

Onde Ele Anda É Outro Céu, primeiro solo de André Vitor Brandão desliza no terreno da crise existencial do ser humano, um painel bastante amplo. Outra pista do espetáculo que estreou em 2016, em Petrolina, no Sertão de Pernambuco: A peça coreográfica tem por inspiração o conto O Homem Cadente, do livro Fio das Miçangas, do escritor moçambicano Mia Couto.

Nesse conto, a personagem de Mia Couto – Zuzé Neto, José Antunes Marques Neto, “em artes de aero-anjo” –  contraria as leis físicas. O homem Cadente trabalha com fronteiras entre sonho e realidade. O narrador-personagem observa o homem que cai, “pairando como águia real”, numa recriação linguística, traçando metáforas do cotidiano.

O espetáculo suscita muitas perguntas sobre os estados das gentes na contemporaneidade. Por que as pessoas caem? Aos montes? Em muitos aspectos? E nem percebemos? Isso na fricção de limites entre real e ficcional.

O solo complexifica mais quando chama o artista surrealista belga René Magritte (1898-1967) para a dança. A peça coreográfica traz referências das obras Golconda (aquela da chuva de estranhos homens, que caem do céu) O Filho do Homem (um autorretrato, com o indivíduo de sobretudo e chapéu coco, com o rosto em grande parte escondido por uma maçã verde suspensa no ar). Além da icônica A Traição das Imagens, que carrega a frase “Ceci n’est pas une pipe” (“Isso não é um cachimbo”), para lembrar que a pintura de um objeto é uma pintura e não o objeto real em si. Isso já é de uma grandeza…

E estão na dança do André. Nas imagens, nos símbolos, nos signos. Na quebra do jogo de representação do real, ele explode a potência do corpo; um corpo insubordinado – lembrando dos disciplinamentos citados por Foucault.

Fico pensando se fosse usada na montagem mais tecnologia de ponta que existe para o teatro, como outras soluções de flutuação ainda mais ilusionista, e utilização de técnicas vorazes de luz e fumaça. Como o espetáculo é de 2016 e muita tecnologia avançou, quem sabe?!!! Sei, sei… que esses expedientes custam caro e para o teatro não chega verba com facilidade, mas foi uma ideia; quem sabe?! Foi exercício de imaginação na esteira do que o próprio espetáculo diz, de que tudo é possível.

Projeto A Escola vai ao Sesc, durante apresentação de espetáculos na Aldeia do Velho Chico

Outras vozes se juntaram a André Brandão na composição desse solo. Para poetizar no corpo do bailarino essa figura que sonha e que segue outra lógica entraram na ciranda Jailson Lima na direção artística; Renata Camargo na direção de movimento; Renata Pimentel na dramaturgia; Orlando Dantas na criação do figurino; Fernando Pereira no designer de luz; Eugênio Cruz na trilha sonora original e Eugênio Junior na assessoria sobre técnicas de rapel.

A produção é da Qualquer um dos 2 Companhia de Dança, que e recebeu o incentivo do Governo do Estado de Pernambuco, através do edital Funcultura 2013/2014, para essa  montagem.

Assisti à peça numa sessão do projeto A Escola vai ao Sesc, uma das ações da Aldeia do Velho Chico. Mais uma constatação, dentre tantas outras, de como a arte é essencial e como faz uma diferença profunda na vida dos futuros cidadãos. Mais sensibilidade na lida com o mundo (como precisamos disso nesses tempos de intolerância de toda ordem), formação de sujeitos mais críticos.

Onde Ele Anda é Outro Céu. Foto Thierri Oliveira Divulgação

Quando questiona o real, Onde Ele Anda É Outro Céu propõe experiências diferentes, promove surpresa e impacto nos movimentos, gestos, sugestões, desenhos coreográficos. Nos conduz por caminhos do irreal, desperta emoção ao aproximar do fantástico, ao jogar com os paradoxos visuais, ao empurrar o controle da razão humana para fora do teatro em alguns momentos da peça.

O ator/bailarino desenha no palco um espaço-tempo em que tudo é possível. E vai alargando o campo desse encontro com a plateia. Solta indícios das sementes da criação artística. Nesse esquema onírico, a personagem segue outra lógica.

Brandão e seus artistas-cúmplices exploram o espaço da ficção, onde não existe um compromisso estreito com a realidade. Outras inspirações para o espetáculo chegaram com os colaboradores para serem plasmadas no corpo do bailarino: da trupe de comédia surreal britânica Monty Python, do genial Bach (amo!!!!), de Stela do Patrocínio (poeta psiquiatrizada), de Estamira – poesia encarnada, que protagonizou o documentário, que leva seu nome e morou por um tempo no aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro – entre outros.

A obra artística aposta com força na capacidade transformadora do sonho. E então compõe imagens sugeridas pelas obras inspiradoras, de pássaros, dos movimentos dos bichos e de e invenções criativas conjugadas, da profusão de referências dos artistas envolvidos no processo. A expressão de simplicidade e lirismo, trabalhadas em muitas camadas de estudos alusões e treinamentos.

Enquanto intérprete-criador, André fricciona a natureza dos sonhos numa investigação que expõe a dança como linguagem que provoca reflexões, traça leituras do mundo, investe com força na sensibilidade e subjetividade.

Salve o espaço utópico, alimento das transgressões humanas. A poética ganhou outras estratégias de voos, de travessias, avisando que mesmo com quedas há ludicidade e encantamento. Como sugere o conto do escritor africano, deixemos Zuzé, o homem cadente, voar.

Rio de Contas

Rio de Contas. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

O diretor Jailson Lima entende a dança como expressão e práxis emancipadora. Não por acaso, a dança é de todas as artes a que mais avança em Petrolina, essa cidade pernambucana orgulhosa de si, encravada na região semiárida nordestina. Isso norteia para uma cultura que assume onde estão fincados os pés e no esperançar freiriano; da autonomia dos sujeitos e ao mesmo tempo no caráter de comunhão do coletivo. São coisas fáceis de dizer e difíceis de executar. Jailson encara.

Envolvido na Cia de Dança do Sesc Petrolina desde sua criação, em 1995, ele se juntou aos seus escolhidos por afinidade para se lançarem ao exercício conjunto da constante libertação. A montagem de Rio de Contas é uma projeção disso tudo.

Inspirado num conto também do escritor moçambicano Mia Couto, chamado Nas Águas do Tempo, do livro Estórias abensonhadas, o espetáculo Rio de Contas brotou em 2014 e é atravessado pela metáfora “a água e o tempo são irmãos gêmeos nascidos do mesmo ventre”.

Com 18 intérpretes (com margem de 2 para mais ou para menos), trilha sonora assinada por Sônia Guimarães, cenários do artista visual Antonio Carlos Coelho de Assis “Coelhão”, Rio de Contas articula uma teia dançante ancestral a partir do São Francisco, que alimenta corpos e imaginários.

Rio de Contas. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

Rio de Contas. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

A peça coreográfica vibra na sensibilidade delicada. A trilha sonora de Soninha Guimarães traça a grande dramaturgia do espetáculo acalentando, inspirando, promovendo movimentos, instigando, incentivando, lembrando que a vida tem dessas ondas e nós, projetando o futuro sem esquecer daqueles que vieram antes, que estão impregnados no presente.

A criação coreográfica, assinada por Jailson, valoriza os corpos dos dançantes envolvidos, potencializando a estrutura física de cada artista e respeitando suas limitações, ampliando suas capacidades de movimento, de gestual, erguendo uma corporeidade coletiva forte.

É arte contemporânea inspirada na tradição da oralidade, nos passos ancestrais das danças desse território – como o Samba de Veio. Estão impregnados nesses corpos resistentes, de predominância negra e indígena o traçado histórico das pontes erguidas, da dor de viver, do combate à violência, sem perder a alegria.

Os artistas dessa terra questionam na própria carne a linguagem da dança, do para quem dançar e como alargar essa troca.

Na busca do protagonismo da própria história, os artistas da peça Rio de Contas trabalham para derreter o colonialismo dentro das estruturas.

No espetáculo a vida é afinada pelo São Francisco que trafega, escoa. Os corpos cumprem suas funções vitais, entram em conflito, convivem, se desencontram. Entre afetos e atritos, as águas correm. Os tons dessa coreografia são suaves, há liberdade de movimentos que se expandem para proferir a rima da dança.

As práticas artísticas e formativas do grupo junto aos intérpretes/ criadores permitem que os integrantes e seu público ampliem as possibilidades de atuar no mundo. Isso é desempenho político, cidadão, de intervenção estética dentro da ética. É micropolítica trançando revoluções.

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HUB PE Criativo
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#3

Samba de Veio da Ilha do Massangano. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

Maracatu Beira Rio. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

Junina Renascer do Sertão. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

Rudimar Constâncio, gerente de Cultura Regional do Sesc PE . Foto: André Amorim / Divulgação

Rita Marize, gestora do SescPE. Foto: André Amorim Divulgação

Diretor regional do Sesc Pernambuco, Oswaldo Ramos. Foto: André Amorim / Divulgação

Nas conversas durante o festival, muito se ouvia falar em HUB Criativo. Será algum aplicativo ou código de Internet? Parece com aquelas siglas de hospedagem de turismo.

Mas não é nada disso.

Projeto articulado pelo Sistema Fecomércio, através do Sesc Pernambuco e do Sebrae, o HUB PE Criativo é uma iniciativa que tem por objetivo “promover o desenvolvimento social e econômico de regiões do estado de Pernambuco, tendo a cultura como principal condutora desse processo”, explica Rudimar Constâncio, gerente de Cultura Regional do Sesc PE.

A Aldeia do Velho Chico foi escolhida para as primeiras ações do programa. “Consideramos a cultura como o grande vetor para impulsionar o desenvolvimento dos territórios, promover outras dinâmicas na economia”, advoga o diretor regional do Sesc Pernambuco, Oswaldo Ramos. “É muito importante a absorção da Aldeia, como evento tradicional, nesse engajamento coletivo. É uma sinergia para fortalecer o processo”, pensa. “Cultura faz as conexões dos ecossistemas, o Sesc faz a mediação dessa cadeia produtiva da arte e o HUB vai qualificar as pessoas e como desdobramento pensar a sustentabilidade. Somando expertises será possível beneficiar outros setores tradicionais, a cultura de tradição, a rede de apoio, a cadeia de turismo, a formação etc…”, defende.

A primeira ação do HUB Criativo PE ocorreu justamente em Petrolina, com a 18ª edição da Aldeia do Velho Chico e ocupou diversos espaços da cidade durante o período. #aldeiaemretomada.

A proposta é que o processo aconteça até junho de 2023. Rudimar Constâncio conta que estão previstas muitas ações, entre elas, 80 cursos presenciais e online, 45 palestras, sete Encontros de Negócios Criativos, sete mostras e festivais culturais, seis feiras criativas, quatro desfiles de moda com foco na criação artística, cinco exposições artístico-cultural, cinco roteiros para o desenvolvimento do Turismo Criativo, criação de sete museus orgânicos e aproximadamente quatro mil atendimentos a pequenos negócios e empreendedores.

“A ideia é unir a questão da economia criativa com o empoderamento dos artistas do brinquedo”, situa Rudimar. Em Nova Olinda, no Ceará, por exemplo, existem mais de 20 museus orgânicos, onde os mestres falam dos seus brinquedos. “É turismo de experiência”, se anima, numa parceria para os Museus Orgânicos, do Sesc com a Fundação Casa Grande, “que ressignifica as casas dos Mestres, transformando-as em lugares de memória afetiva com possibilidade de visitação e movimento do turismo local”.

Entusiasta do HUB PE Criativo, a gestora do Sesc Rita Marize diz que é um abraço que a cidade dá nos seus artistas, na busca de qualificar ainda mais. “Cada um pode viver melhor através da cultura”, pensa.

Essas atividades estão inseridas em oito grandes programas culturais, articuladas para ocorrerem em sete cidades do Grande Recife, Zona da Mata Norte, Agreste e Sertão. São elas: Petrolina, com Aldeia do Velho Chico; Jaboatão dos Guararapes, com Aldeia Yapoatã; Recife; com Transborda as linguagens de cena; Triunfo, com Festival Dona Marias; Arcoverde, com Festival de Economia Criativa na Pisada dos Cocos NE; Goiana, com Festival de Economia Criativa Brincantes da Mata Norte; e Garanhuns, com Mostra Marco Freitas e Webinário de Economia Criativa, Inovação e Tecnologias. Juntos, vão trabalhar os eixos de fruição, fomento, gestão, pesquisa, formação. Além de empreendedorismo conduzido pelo Sebrae.

Essa rede de projetos de economia criativa está em sintonia com o que essas instituições consideram como modelos inovadores para transformação socioeconômica dos territórios a partir das culturas locais. “O Hub é fruto de nosso entendimento da relevância do setor cultural para a sociedade. Buscamos fortalecer esse campo, e nossa meta é qualificar a malha criativa e robustecer os territórios onde estão inseridas”, arremata Oswaldo Ramos.

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Força desde a nascente
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#2

André Vitor Brandão. Foto: André Amorim Divulgação

Perguntei a André Vitor Brandão, supervisor de Cultura do Sesc Petrolina e coordenador do Festival, se a Aldeia do Velho Chico era feminino ou ile, André respondeu que a referência no nascedouro do festival são as mulheres e que Galiana Brasil fez a ponte com o Palco Giratório. “Então a inclinação é para o lugar do ile. A potência está nas diferenças estéticas, nesse conceito de diferenças”. Ele conta que em 2020 a proposta ao falar da transição foi o de pensar futuros nas várias linguagens.

2021 veio com a força de reencantar a vida, olhar para o mundo pós-transformado, com outras práticas de sociabilidade e afetos. “Neste ano, a Aldeia é uma retomada dos espaços, retomada das ruas, da economia”, pontua.

Brandão, que também é dançarino e coreógrafo, entende que o Rio São Francisco é um elemento fundamental tanto na vida social da cidade como na arte e na cultura. “A conexão é com o Rio. Como o Rio interfere na realidade simbólica, no modo de pensar. Na construção desse corpo ribeirinho. O Rio como elemento integrador da cidade. Tem a ver com as metáforas, com os fluxos”. E exemplifica com a rota flutuante das artes visuais, um espaço de produção da região, barco dispositivo.

Crianças durante apresentação do Samba de Veio da Ilha do Massangano. Foto Fernando Pereira

Jailson Lima, na minha chegada, dá o tom de que o festival busca valorizar a cultura de Petrolina, principalmente. Salienta, em outro momento, que não tem interesse de levar “qualquer” artista / pessoa /profissional para o seu festival. Aqueles que só pensem em usufruir dos banhos de rio e demais riquezas da região sem a intenção de trocar com a cidade estão dispensados. Aviso dado.

A realização da Aldeia assegura a entrada de 200 a 300 mil reais em Petrolina. Para além do dinheiro, a injeção de vida, a pulsação de Eros para reconectar com a alegria; isso não tem preço, como diz a sabedoria popular. O espírito de celebração impera nesses dias, é tempo de tomar fôlego.

André e Jailson, dois artistas e pensadores da dança de Petrolina, salientam que a cena da dança na cidade ribeirinha, transborda Pernambuco. Os dois têm razão para o orgulho. Além do trabalho criativo com a arte, a unidade do Sesc que eles tocam investe nas potencialidades no campo da educação e do pensamento crítico.

O espaço de apoio na formação da cidadania é desenvolvido entre crianças e adolescentes e ganham lugar de destaque durante a realização do festival. Um exemplo disso são os debates após os espetáculos, com alunos de escolas da região, quando é possível perceber a importância de ações como essas.

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