Arquivo mensais:março 2011

Vinte anos de festa cênica

Sua Incelença Ricardo III

Começa nesta terça-feira, com o espetáculo Sua Incelença, Ricardo III, do grupo Clowns de Shakespeare, de Natal (RN), o Festival de Teatro de Curitiba. A montagem dirigida por Gabriel Villela, reúne cantoria de funerais nordestinos com rock and roll para tratar de poder. É o encontro entre o sertão brasileiro e a Inglaterra elisabetana. São duas apresentações, hoje, dia do aniversário da cidade, e amanhã, ambas no Bebedouro do Largo da Ordem, um dos cartões postais da capital paranaense.

Este ano, o Festival de Curitiba completa 20 anos e busca “reconhecer no teatro brasileiro atual uma sintonia com o país vibrante e intenso” e que reflita a renovação da linguagem cênica.

Com uma perspectiva de reunir na capital do Paraná quase 3 mil artistas em 31 peças da mostra principal e quase 400 no Fringe, o festival vai até o dia 10 de abril.

Vinte anos depois da primeira edição, o teatro continua a ocupar o centro da cena, mas hoje tem coadjuvantes que enriquecem o encontro, com produções de dança, circo, stand up, música, cinema e gastronomia, além de inovações tecnológicas. Entre outros, o festival vai abrigar shows musicais, com Maria Gadú e Música de brinquedo, do Pato Fu.

Para a mostra principal foram selecionadas 11 companhias. Os mineiros do Galpão, atacam com uma versão de Tio Vânia, escrito entre 1896 e 1897 por Anton Tchekhov, com direção de Yara de Novaes. Cláudio Botelho e Charles Moeller levam o Carnaval para o Teatro Guairão com o musical É com esse que eu vou.

Marina une o conto A Sereiazinha, de Hans Christian Andersen, com as canções praieiras de Dorival Caymmi.

Marina

Nascida no Paraná e radicada no Rio de Janeiro, a Armazém Cia de Teatro apresenta o premiado Antes da coisa toda começar. É a 19ª montagem da companhia, desta vez uma dobradinha dramatúrgica de Maurício Arruda de Mendonça e Paulo de Moraes, esse último também assina a direção. A trupe do Armazém faz quatro apresentações no Festival.

A Cia. de Dança Deborah Colker fará a pré-estreia de Tathyana, peça baseada em Eugene Onegin, o romance em versos publicado em 1832 por Aleksander Puchkin.

Tathyana

Os Satyros estreiam O último stand up, com direção de Fábio Mazzoni; uma investigação sobre pessoas comuns do centro de São Paulo, onde fica a sede do grupo. A encenação é inspirada no poema Pátroclo ou o Destino, de Marguerite Yourcenar. Já a Sutil Companhia encena Trilhas Sonoras de Amores Perdidos.

Tercer Cuerpo é a montagem internacional da mostra, espetáculo do diretor argentino Cláudio Tolcachir.

Para montar a grade da programação principal, os curadores se guiaram por quatro linhas: movimento forte de teatro de grupo, influência de textos nacionais, onda de musicais e confusão de gêneros. “O público está mais participante, exigente e questionador”, atesta o diretor do festival, Leandro Knopfholz. Segundo ele, o festival cresceu mais do que os criadores (o próprio Knopfholz, Cássio Chamecki e Victor Aronis) imaginaram em 1992. De lá pra cá, foram contabilizados 2,8 mil espetáculos, com cerca de 1,6 milhão de espectadores.

De Caruaru – Dos quase 400 espetáculos do Fringe, a mostra paralela do Festival, um deles é pernambucano. Trata-se de A metamorfose, produzido pelo Teatro Experimental de Arte (TEA), de Caruaru. Dirigido por Fábio Pascoal, o espetáculo é baseado na obra de Franz Kafka. No elenco estão as atrizes: Julliana Soares e Geysiane Melo, que irão se apresentar dias 4, 5 e 6 de abril.

Metamorfose Foto Euclides Ferreira

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Enfim, o parque completo!

Vinte e seis de março de 2021. Marque na agenda. Abra o jornal para ler a reportagem. Se os nossos governantes foram eficientes e cumpridores dos seus papeis, essa será a data em que o Teatro Luiz Mendonça e a galeria Janete Costa, no Parque Dona Lindu, em Boa Viagem, estarão completando 10 anos de atividades. O repórter certamente irá ouvir as pessoas que estiveram na inauguração (realizada sábado), e puderam acompanhar um show memorável de Lenine e da Orquestra Sinfônica do Recife e passear pela exposição Amor e solidariedade, de Abelardo da Hora.

Lenine e a Orquestra Sinfônica fizeram show inesquecível. Foto: Ivana Moura

A galeria Janete Costa, por exemplo, tem um espaço físico que possibilita a realização de grandes exposições. “Como noutros locais projetados por Niemeyer, aqui também há uma dificuldade na hora da montagem das exposições, da iluminação, por conta do projeto arquitetônico. Mas o espaço está bem resolvido. O Recife merece uma galeria assim e mamãe certamente estaria muito feliz”, disse no último sábado a galerista e filha de Janete Costa, Lúcia Santos.

A mostra Amor e solidariedade, que comemora os 60 anos da primeira exposição do artista Abelardo da Hora, realizada em 1948, oferece a possibilidade de se conhecer mais de perto a obra desse pernambucano de 86 anos, que vai muito além das famosas esculturas de mulheres espalhadas por edifícios da cidade. O que talvez mais chame atenção seja a preocupação e o retrato social que podem ser resgatados daquelas obras – tanto das esculturas como dos desenhos. Como na série Família, desenhos de 1970, ou da escultura Hiroshima. “Ele é o meu mestre. Precisa mais do que isso?”, questionou a artista Guita Charifker, que conta ter participado do Ateliê Coletivo, ao lado de artistas como Samico e José Cláudio, fundado por Abelardo da Hora.

Na rápida solenidade de abertura dos equipamentos culturais, o prefeito João da Costa subiu ao palco do Luiz Mendonça e disse que sempre defendeu o projeto do parque, desde quando ainda era secretário do ex-prefeito João Paulo. “É um equipamento público que a cidade do Recife reclamava, precisava”.

Galeria Janete Costa foi inaugurada com mostra de Abelardo da Hora. Foto: Nando Chiappetta

Depois, foi a vez de Elba Ramalho fazer um participação muito especial. Contou um pouco da sua própria história ao relembrar o amigo Luiz Mendonça, diretor teatral que ela conheceu na época em que foi para o Rio de Janeiro com o Quinteto Violado e decidiu ficar. “Ele perguntou se eu era atriz, se eu cantava, dançava. Disse que sim. Ele disse então que tinha uma apresentação em Vitória. Perguntei quando era o ensaio e ele disse que não tinha ensaio, tinha estreia”. Depois de interpretar Veja Margarida, Elba deixou o palco para as atrações principais: Lenine e a Orquestra Sinfônica.

Como bem disse Lenine, as suas músicas foram “vestidas de roupa de domingo”. Aquele melhor traje, que a gente só usa em ocasiões especiais, e quer até registrar em foto. Composições de tom tão contemporâneo, que fazem sucesso nas rádios e trilhas de novelas, ganharam o acompanhamento de quase 80 músicos. Os arranjos e o comando do piano foram de Ruriá Duprat, ´meu alter ego sinfônico`, disse Lenine; e a regência da Sinfônica do maestro Osman Gioia. Em Paciência, o público cantou junto; ficou encantado com os arranjos de Silêncio das estrelas; com Leão do Norte, se encheu de orgulho; se balançou ao som de Lavadeira do rio. Ao final, a sensação foi de que essa era apenas uma – de muitas – noites culturais que o Recife ainda pode prestigiar naquele espaço. O recifense pode cobrar.

Teatro Luiz Mendonça. Foto: Nando Chiappetta

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A noite do Lindu

Quer saber como foi a inauguração do Teatro Luiz Mendonça e da Galeria Janete Costa? Preparamos uma galeria de fotos, com imagens de Ivana Moura e Nando Chiappetta. Confira!

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Teatro pela net

Vida, da Companhia Brasileira de Teatro

Sim, como diz a campanha veiculada pela Globo Nordeste, “Teatro é ao vivo. Vá ver”. Mas se você nem sempre está no lugar que queria e aquele espetáculo que você ficou doido para assistir desde a estreia ainda não tem previsão de passar pela sua cidade, dê uma olhadinha no site Cennarium – It´s showtime (www.cennarium.com).

O projeto está completando um ano. Resgatei um trecho de uma matéria de Thiago Corrêa para o DP ano passado, falando do lançamento do site:

“Fruto do investimento inicial de R$ 10 milhões e do trabalho desenvolvido nos últimos sete meses pela holding Nortik, o projeto passa a oferecer exibições de espetáculos para o país inteiro, por meio de transmissão via internet. Nesse primeiro momento, serão oferecidas mais de 25 peças. No programa, para ser visto de qualquer lugar e horário, estão peças como Cacilda do Teatro Oficina e La música com a atriz Xuxa Lopes. Outras 40 já estão captadas e o plano é colocar pelo menos duas novas por semana. “Nosso critério é a popularização da cultura, queremos atender um leque grande de produções, atingir todos os níveis de espetáculo”, explicou o diretor da Cennarium, Roberto Lima, durante coletiva de imprensa realizada na última quarta-feira.

Por enquanto só estão disponíveis espetáculos do eixo Rio-São Paulo, mas existe a possibilidade de, num segundo momento, o projeto abrir espaço para produções de outros centros do país. “Ainda não compensa sairmos do eixo, mas se juntarmos umas cinco peças numa cidade aí vale a pena”, justificou o CEO, Harry Fernandes, ressaltando que as gravações envolvem o trabalho de 30 a 40 pessoas. Os vídeos são gravados por cinco a 12 câmeras em uma sessão da peça, com o som captado através de microfones usados em jogos de futebol. “Fazemos a gravação sem mexer na luz e no som da peça, queremos transportar com qualidade a sensação do teatro, de como está sendo produzido no palco”, apontou o diretor da Cennarium.

As peças serão assistidas pela internet em sistema semelhante ao pay-per-view da TV a cabo, podendo ser assistidas várias vezes, no intervalo de 24 horas. Os espetáculos são divididos em blocos de 12 a 16 minutos para facilitar o acesso dos internautas, possibilitar inserções comerciais e se adaptar às comodidades do ambiente familiar. “Se fosse uma câmera só seria muito chato, estamos entre o teatro e uma linguagem de televisão, com closes e planos médios”, avaliou o ator Fúlvio Stefanini, que esteve na coletiva.

As peças custam pelo menos R$ 10 e no máximo metade do ingresso físico. Segundo o diretor do Cennarium, o valor é estipulado pelas próprias companhias teatrais e vão se transformar numa nova fonte de renda para o grupo. “As companhias terão até 50% do lucro líquido das nossas vendas e vão poder vender três inserções comerciais”, disse Lima, lembrando ainda que uma mesma companhia poderá receber por mais de um espetáculo, inclusive pelos que já saíram de cartaz mas podem ser vistos no site. O tempo mínimo de permanência no site é de cinco anos.

Tirando a exibição das peças, o restante do conteúdo é aberto, trazendo fotos, ficha técnica, sinopses e entrevistas com o elenco. Para assistir às peças, os interessados devem se cadastrar no site, efetuar o pagamento e selecionar o espetáculo. “Usamos o sistema de download progressivo, em que o vídeo é carregado enquanto você assiste a ele. Optamos por ele por não saber qual a conexão do público. Mas em média cada cinco minutos de vídeo são carregados em 15 segundos”, explicou o diretor de tecnologia Guto Costa.”

Recebemos um e-mail da assessoria do Cennarium avisando que neste domingo, Dia Mundial do Teatro, todo o portfólio do site, que já conta com mais de 70 opções, estará aberto ao público gratuitamente, das 14h às 20h.

Macbeth estará disponível gratuitamente

Tem, por exemplo, Macbeth, com Renata Sorrah; Um navio no espaço ou Ana Cristina César, com Bel Kutner e Paulo José; Vida, da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba. E ainda comédia, infantis, musicais, dança. Faça a sua programação e celebre o teatro neste domingo, nem que seja na frente do computador!

Um navio navio espaço ou Ana Cristina César/Foto: Emi Hoshi/ clix.fot.br

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Circo social em livro

Colaboração de Tatiana Meira

Montagem O vendedor de caranguejo / Foto: Jorge Clésio

Corria o ano de 2002 e a equipe dos canadenses do Cirque du Soleil estava em Pernambuco e buscava um espaço para ministrar uma oficina com os integrantes da Escola Pernambucana de Circo (EPC). Conseguiu fazer o curso com os monitores da ONG no Sesc Piedade, onde já trabalhava o ator e diretor de teatro Rudimar Constâncio. “Desci para ver o trabalho e fiquei encantado”, recorda Rudimar, que lança hoje o livro Circo social: A experiência da Escola Pernambucana de Circo, na Estação Cultural Senador José Ermírio de Moraes, em Piedade.

Fruto do curso de especialização no Ensino de Artes da Universidade Federal de Pernambuco, a pesquisa foi realizada por Rudimar Constâncio em 2005 e recebeu atualização para a publicação, com patrocínio do Funcultura (de quase R$ 30 mil). A construção da nova sede da Escola, construída com a ajuda da Oxfam, na Vila do Buriti, na Macaxeira, há três anos, foi acrescentada ao estudo, inclusive com imagens. O professor Marco Camarotti chegou aser convidado para orientar a pesquisa, mas veio a falecer. A tarefa coube a João Denys Araújo, que assina o prefácio do livro.

Ilustrado com fotografias de espetáculos da EPC e com diagramação colorida de Claudio Lira, a publicação registra a trajetória da instituição, mas seu maior mérito é ir além de contar a história e elencar espetáculos e ações culturais. “O mais importante foi fazer o embate entre as opiniões dos integrantes da escola, pois distribuímos questionários para alunos, monitores e funcionários”, conta o autor. “O que me chama a atenção é o aprimoramento técnico. Eles não se dizem profissionais, mas têm ensaios diários, ganham cachê e buscam o apuro estético. Além de serem muito transparentes com as informações, terem uma gestão compartilhada”, ressalta Rudimar.

Para Fátima Pontes, coordenadora da ONG, que entrou na EPC dois anos após a fundação da escola, era um sonho antigo registrar a trajetória deles. Mas faltava um pesquisador que analisasse o processo pedagógico do circo-educação e se dispusesse a conferir se os jovens atendidos pela ONG conseguiram ou não sair da situação de risco social. “Buscamos a construção de uma nova visão da arte circense. É maravilhosa esta visbilidade alcançada pelo livro, que mostra que temos coisas boas e também problemas a sanar”, admite Fátima Pontes.

Ela destaca que atualmente são 20 integrantes na Trupe Circus, o braço artístico da ONG, e mais 80 alunos, entre crianças e adolescentes, na escola, recebendo aulas de música, teatro, dança e circo. Hoje, eles ensaiam um novo espetáculo, Círculos que não se fecham, sobre a violência na juventude, e marcado para estrear em maio. Mas todas as produções da EPC, a exemplo de O vendedor de caranguejo, Presepadas ou Ilusão – Um ensaio melodramático circense, estão elencadas no livro.

Rudimar Constâncio, o autor. Foto: Rodrigo Moreira

Palhaços sabem fazer música

Logo na entrada do casarão à beira-mar, em Piedade, o público será recebido pela Trupe Circus, da Escola Pernambucana, com números de pirofagia, malabares, equilibrismo em perna de pau. Em seguida, às 19h, os doze palhaços do elenco da ONG Doutores da Alegria Recife utilizam seus dotes de cantores e instrumentistas para fazer rir no espetáculo Palhaços em conSerto.

Terceira produção teatral dos Doutores da Alegria na capital pernambucana (onde fizeram sucesso com Poemas esparadrápicos), Palhaços em conSerto é permeado por gags divertidas e dividido em três “atos”. A direção é de Fernando Escrich, com direção artística de Enne Marx. Com alegria e muito bom humor, eles partem das situações cênicas improvisadas nas visitas hospitalares, para chegar a canções criadas pelo elenco e outras de domínio público, além de versões da bossa nova. Para fechar com chave de ouro a noite do lançamento, a cantora Allexa Vieira faz show, defendendo o samba de raiz.

Palhaços em conserto, uma das atrações da noite. Foto: Luciana Dantas

Os Riscos da Beleza
Apresentação de Circo social: A experiência da Escola Pernambucana de Circo, por João Denys

Nesta primeira década do século XXI tenho tido o prazer de escrever prefácios a ensaios relevantes que têm arejado com vigor uma área de publicação até bem pouco tempo escassa em Pernambuco, resultante de pesquisas acadêmicas sobre a arte, mais especificamente sobre o teatro e suas ramificações teóricas, históricas e pedagógicas.O prazer agora é redobrado, quando tenho de revisitar o rico trabalho de Rudimar Constâncio que tive a sorte de orientar no Curso de Especialização em Ensino de Artes, da Universidade Federal de Pernambuco. Aqui, os leitores tomarão contato com uma obra cuja seriedade e honestidade me impressionam e espero impressionem cada receptor interessado em conhecer a experiência ímpar da Escola Pernambucana de Circo, seus propósitos artísticos, formativos e sociais.Seguro o volume dos originais em minhas mãos e sinto o peso da responsabilidade e do compromisso do autor com a produção, ordenação e disseminação do conhecimento. Rudimar faz parte desta plêiade de criaturas múltiplas e ecléticas que conseguem realizar com qualidade, mesmo dividido em inúmeras atividades de natureza distinta.

Folheio, relendo a obra, e observo que o pesquisador não se ateve a publicar o resultado de sua monografia. Ele não a deixou adormecida na gaveta à espera da oportunidade para transformá-la em livro. Pelo contrário, percebo com entusiasmo que ele esteve durante mais de cinco anos burilando e enriquecendo seu material, pondo-o em movimento. Durante este tempo o pesquisador atento atualizou o trabalho, seguiu os novos caminhos trilhados pela Escola, ampliou a documentação, incorporou um amplo dossiê sobre seu objeto de estudo.Até aqui os leitores já chegaram à conclusão de que este prefácio, como a maioria dos prefácios, é redundante, antecipa e louva o que se vai encontrar no bojo da obra, logo pode ser dispensado. Porém, não é bem assim. Embora eu mesmo e muitos leitores não vejamos muita serventia nos prefácios, este pretende não apenas convidá-los à leitura, mas dar um testemunho sobre o que trata Circo social: a experiência da Escola Pernambucana de Circo.

Muito já se falou sobre o circo, sobre o ensino das artes cênicas, sobre os aspectos benéficos da arte à saúde e à formação fraterna do ser humano. Hoje, cada vez mais, acentuam-se os efeitos terapêuticos do riso, da leitura, da performance do clown, do canto, da música, da dança, da representação. As artes formam artistas, acionam as zonas de prazer, acalantam, alimentam, auxiliam no desenvolvimento psicomotor, ajudam nos processos de ensino-aprendizagem, contribuem na formação do cidadão, beneficiam tanto quem produz quanto quem usufrui. No entanto, poucas artes, ou nenhuma delas, se igualam ao circo, no que diz respeito à experimentação prática no laboratório de vida e sociedade em trânsito que o constitui. Não há escola viva que pedagogicamente ponha em risco a própria vida em favor da vida, do prazer, da alegria, das lágrimas, do terror, da compaixão e da beleza. As artes do circo e suas vivências comunitárias, de profunda interdependência humana, exigem do aprendiz uma entrega total para a técnica e para o outro, num processo de árdua construção disciplinar e rigoroso treinamento psicofísico para, nos extremos de uma formação que nunca finda, gerar leveza e poesia.O ensino da arte que se quer integral e politicamente responsável dificilmente atingirá plenamente seus objetivos fora dessa roda e desse moinho movidos e semoventes que denominamos circo. O circo é uma sociedade de labor diuturno; uma sociedade de sonho e fantasia construídos com a energia dos ossos, dos músculos, das peles e da imaginação. É um conjunto fraterno de diferenças; uma Babel de canais comunicantes acionados com a elasticidade muscular e ideacional, com o equilíbrio precaríssimo de tudo, com a força física e criativa, com a comunhão real entre picadeiro e plateia.

A expressão tautológica circo social designa na atualidade a atividade circense que almeja contribuir com o restauro da cidadania de jovens postos em situação de risco pelas elites econômicas, artísticas, espirituais, intelectuais e científicas tanto do Brasil, quanto de outros países corroídos por mazelas sociais. Este circo joga pedagogicamente com a inversão das situações de risco. O risco mórbido, negativo, próprio das perversões da violência, das sombras da criminalidade, das sendas tortuosas das drogas, das margens das margens, do despedaçamento dos valores, isto é, o risco, semente e fruto das desigualdades sociais e matanças mútuas, é substituído por outros riscos: o risco reluzente da dança perigosa, exaustivamente preparada; o risco de ouro dos saltos mortais; o risco em bloco das pirâmides de seres entusiasmados; o risco fulgurante das quedas, das acrobacias, dos volteios, dos malabares, dos vôos dos corpos em estado de graça, dos maneios das figuras em permanente estado de riso; os riscos da beleza. Nenhuma arte cênica expõe com tão exata precisão os poderes do corpo criativo a plateias inebriadas e transfiguradas em crianças.

Para escrever este prefácio, o circo me chamou, Charles Chaplin me chamou, Ingmar Bergman me chamou, O maior espetáculo da terra me chamou, Fellini me chamou, o Circo Portugal me chamou, na minha tórrida terra natal, exatamente entre o Natal e a novidade deste 2011, sem que eu pedisse, para renovar, como a leitura que agora empreendo desta pesquisa, a emoção do globo da morte; para não conter as lágrimas à entrada triunfal dos artistas; para constatar que o descuido, a desatenção, o equívoco, a condescendência não têm lugar nessa galáxia de arte e luta fraterna. Não quero, contudo, fazer do circo um espaço paradisíaco, de amor e concórdia, como poderá parecer este meu discurso. Longe de mim tal idealização. O que enfatizo são os poderes de realização estética em situação de risco que é a própria condição circense. Nessa comunidade, no cotidiano do espetáculo ou fora dele, qualquer descuido é a finitude se fazendo sem retorno.

O circo, como o perfume, nos força a lembrança, a rememoração de um tempo irresgatável, mas latente. O circo faz girar inversamente o motor de nossas idades. Sua lona celeste salpicada de estrelas nos conduz para o tempo morto que se faz vida. Foi no circo que vi meu primeiro drama, meu primeiro espetáculo teatral com efeitos cenográficos inesquecíveis e que, indeléveis, permanecem até o presente em meu espírito criador. O aperto de terror que hoje imagino os primevos espectadores experimentavam ante a tragédia, creio ter sido semelhante ao que senti no circo de minha infância. E que menino ou menina não sentiu esse pavor que atrai? Federico Fellini refere-se ao idêntico sentimento, quando, aos dez anos, foge de casa e se junta ao Circo Pierino. Essa capacidade que tem o circo de influenciar e acompanhar a vida de artistas, segundo o autor de I clowns (1970), a despeito de toda a literatura sobre a atividade circense, deve-se ao seu poder de se repropor

como um núcleo precioso, uma dimensão, um clima autêntico, que não se pode arquivar nem enterrar porque esse modo de viver e representar contém de forma exemplar alguns mitos eternos: a aventura, a viagem, o risco, a ameaça, a velocidade, o aparecer ante as luzes… e também o aspecto mais mortificante, que sempre se repete, da gente que vem te ver e te obriga a exibir-te. É um exame monstruoso por parte dos outros, que têm esse direito, biológico, racial, quando vêm para dizer: Bem, estou aqui, me faz rir, emociona, faz chorar.

Para além desses mitos e “iscas” para os adolescentes de sempre, retorno à noite recente, debaixo das luzes do Circo Portugal, onde, boquiaberto, preparava-me para escrever esta resposta ao trabalho produzido por um professor artista. A cada número, a cada entrada de música e luz, me vieram à mente os conteúdos concretos ou ingredientes que edificam o artista e o cidadão: união, responsabilidade, compromisso, fraternidade, precisão, confiança. Enquanto nas outras artes esses ingredientes muitas vezes podem apenas fazer parte de um discurso e até mesmo constituírem-se em categorias abstratas, no circo eles se exibem em toda a sua concretude. Não há lugar para a retórica da responsabilidade, nem da confiança, nem da fé. A fé está lá, laborando, sendo experimentada de corpo e alma às nossas vistas, aos nossos pulsos.

Quando jovens, meninas e meninos, moços e velhos experimentam o encontro dramático do picadeiro, aquele “exame monstruoso”, de que fala Fellini; quando experimentam as correrias, os enganos, as quedas, as pauladas; quando dominam os espaços do solo e do ar; quando conquistam o equilíbrio e a velocidade de reflexos cerebrais, quando domam a adrenalina, executam as danças mortais à perfeição, só então poderão executar o curioso projeto de que fala Jean Genet, quando escreve O funâmbulo: “sonhar-se, tornar sensível este sonho que novamente se tornará sonho em outras cabeças!” É a conjugação de dezenas de braços, olhos e mentes que propicia um átimo de beleza. Tudo tem de ser preciso: o atirar facas, o engolir fogo, o desaparecer no espelho, o sumir no vazio, o despencar dos panos multicores, o atravessar círculos fumegantes. Roçar a morte faz parte dessa homenagem à vida, dessa aprendizagem do mundo real, simbólico e imaginário. É essa a dramaturgia do circo em toda a sua crueldade. A exatidão de cada númeroé o que forma e enforma sua beleza. O circo é, “junto com a poesia, a guerra, a tourada, um dos únicos jogos cruéis que subsistem”.

No circo, experimenta-se, portanto, uma educação plena de máxima exigência. O circo exige mais que a vida e exigem dele ainda mais. O circense, do mais humilde trabalhador ao que domina a técnica mais apurada, não escapa à exigência de consumar-se num brilho que atrai e se refaz a cada treinamento, a cada superação de limites, a cada novo espetáculo.O improviso, tão presente no circo, só é possível pelo domínio das técnicas. O improviso não é fruto do acaso, mas consequência do conhecimento. Eis outra grande virtude dos que se arriscam nessa arte de todos os riscos. A eficiência tem de ser absoluta.Educar com e pelo circo é exercer a pedagogia da magia; é a prática laboratorial da confiança cabal. Confiança na prática, equilíbrio na prática, força na prática, concentração real, foco e agilidade reais.

O circo promove o aprendizado concreto das responsabilidades psicofísicas de cada um consigo próprio e de cada um com o outro na produção poética viva. Esta ética e esta estética são inconciliáveis no mundo em que vivemos. Porém, o treinamento no mundo do circo pode influenciar uma transfiguração das atitudes individuais e das relações humanas fora do universo circense. Por isso enfatizo tanto seus poderes.Genet, no exuberante poema dedicado à arte do circense, compara o circo a um monstro e é nesse monstro de outras eras em que o artista consegue, mesmo que por segundos, rivalizar com os astros do firmamento. Talvez nesse instante de cintilação resida a chave pedagógica e ontológica do fenômeno circo-mundo. Diz ele:

Um imenso animal, ressuscitado das épocas diluvianas, pousa pesadamente nas cidades: a gente entra, e o monstro está cheio de maravilhas mecânicas e cruéis: amazonas, palhaços, leões com seu domador, um prestidigitador, um malabarista, trapezistas alemãs, um cavalo que fala e conta, e você.Vocês são os restos de uma era fabulosa. Vocês vêm de muito longe. Seus antepassados comiam vidro moído, fogo, encantavam serpentes, pombas, faziam malabarismos com ovos, faziam tagarelar um concílio de cavalos. […]Lá fora, o barulho dissonante, a desordem; dentro, a certeza genealógica que vem dos milênios, a segurança de se saber preso numa espécie de fábrica onde se forjam os jogos precisos que servem a exposição solene de vocês mesmos, aqueles que preparam a Festa. Vocês só vivem para a Festa. Não para aquela que, mediante pagamento, os pais e as mães de família proporcionam a si próprios. Falo da celebridade de vocês por alguns minutos. Obscuramente, nos flancos do monstro, vocês compreenderam que cada um de nós deve tender a isto: tentar aparecer diante de si próprio em sua apoteose. É em você mesmo, enfim, que durante alguns minutos o espetáculo te transforma. Teu breve túmulo nos ilumina. Você está trancado nele mas, ao mesmo tempo, tua imagem não pára de fugir dali. A maravilha seria vocês terem o poder de se fixarem assim, ao mesmo tempo no picadeiro e no céu sob a forma de constelação. Este privilégio é reservado a poucos heróis.Mas, por dez segundos – é pouco? – vocês cintilam.

No faz-de-conta do circo, paradoxalmente, não há espaço para o faz-de-conta. Como nos perigos da vida, tudo está em jogo. O adolescente, habituado à dureza desses perigos, encontra nas técnicas circenses o desafio bonito para escoar seu excesso de energia. Depara-se com o limite de sua força e de seu equilíbrio. Canaliza e deságua sua agressividade em expansão criativa e sente a vibração calorosa que emana dos aplausos. Conduzido com orientação responsável e autoridade pedagógica, o aprendiz integra-se criticamente à vida e à comunidade, percebe-se estrela a se construir em cada novo luzir. Transmuta o negativo em positivo. Podem ser arautos e multiplicadores de sonhos e aptidões. Fellini nos lembra que os clowns foram aqueles que anunciaram seu futuro de artista: “esses personagens grotescos e aberrantes, bêbados, em farrapos e desconjuntados, na sua irracionalidade, na sua violência, em seus caprichos esquisitos, foram uma aparição em minha infância, uma profecia, a antecipação da minha vocação.”

Para os jovens não só do Brasil, mas do mundo todo, que se iniciam na vida circense a escolha pela arte dos clowns é uma das mais salutares. O clown é a personificação do rude, do torpe. É o figural artístico cujo referente está lá no meio mais pobre, nas vielas das grandes cidades, nas praças, na sarjeta. Mas, também, nos brinquedos populares, na arte do povo. Apropriar-se da técnica do palhaço ou do clown (há diferenças entre eles) significa dar o salto mortal contra a miséria por meio da gargalhada. A irracionalidade da galhofa, a rebeldia contestatória do palhaço conduz o aprendiz às possíveis práticas sociais de convívio sadio e de auto-estima. “Ser clown é bom para a saúde”, dizia o velho clown Bario, em depoimento a Fellini. Bario exortava o Estado para abrir escolas de clowns:

Em cada clown há um acrobata. Se não és um acrobata, não cais direito, e uma boa queda faz rir até hoje. Sem recursos é claro que… Mas o Estado devia pensar nisso e abri uma escola de clowns. Sem limites de idade, que quando alguém tem vocação até aos quarenta pode começar, pode se tornar um clown. Até um engenheiro, por assim dizer, se tiver queda, pode ser clown, ou professores, médicos, advogados. Seriam ótimos.

Creio, a esta altura, ser desnecessário insistir na eficácia educativa do circo, na importância deste livro, na minha paixão pelas artes cênicas e pela pedagogia da arte. Quero, no entanto, para concluir, lembrar do meu mais recente encontro com o circo aqui referenciado: terminado o espetáculo, saí lentamente, como se algo me prendesse ao espaço; saí leve como quem sai de um templo. No entorno deste animal, como diz Genet, preso ao chão por cordas, ganchos, mastros e cabos de aço, deparo-me com uma artista em trajes domésticos, sem mais o brilho e a dimensão que há pouco vira no palco, saindo do seu trailer com um pequeno regador aguando seu jardim ambulante sob o céu profundo dos Currais Novos. Que coisa mais bonita, meu Deus! Fiquei paralisado diante de outro espetáculo. Porém, ele parecia invisível aos transeuntes. Que beleza! Carregar um jardim sob o sol inclemente de tantos sertões e mantê-lo vivo em todas as praças. Quis ensinar logo este ato generoso que testemunhei: uma escola de circo é como um jardim que se rega e carrega debaixo do braço, suspenso nas janelas dos vagões, em curso.

Eis porque meu prefácio faz menos prefaciar que testemunhar e dialogar com o firme e determinado trabalho de Rudimar Constâncio, que você, leitor, certamente terá a alegria de conhecer. Oxalá este livro conduza seus leitores a incentivar a Escola Pernambucana de Circo; dirija muitos aos espetáculos da Trupe Circus; favoreça o florescimento de novas escolas circenses, transporte a cidade ao circo e aos riscos da beleza.

João Denys Araújo Leite
Recife, Madalena, janeiro de 2011

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