Arquivo mensais:setembro 2013

Branca Dias, uma mulher à frente de seu tempo

Patricia Assunção é Branca Dias e Geraldo Cosmo, Diogo Fernandes. Foto: Aldeia Yapoatan/ Divulgação

Branca Dias é uma personagem fascinante e já foi motivo de peças de teatro, romances, poemas e até de música (Branca Dias, de Edu Lobo, no disco Camaleão, é uma exemplo). Há muita mitificação em torno dela. O dramaturgo Dias Gomes usou uma versão que desloca a figura para a Paraíba – onde teria nascido em 1734 e morrido na fogueira em 1761 – como inspiração para escrever O Santo Inquérito, de 1966.  Dias Gomes chegou a dizer que “a verdade histórica é secundária, pois seria mais relevante elucidar a verdade humana que a história comporta”.

Duas faces de um mito, de Bruno Feitler, e Uma Comunidade Judaica na América Portuguesa, de Leonardo Dantas Silva, são os dois estudos mais citados para tratar da questão histórica de Branca Dias. Ambos os autores se valeram de fontes como o registro documental da Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil e do livro Gente da Nação: cristãos novos e judeus em Pernambuco 1542-1654, de José Antônio Gonsalves de Mello.

De acordo com essas pesquisas, Branca Dias teria nascido em Portugal no ano de 1515, tendo sido esposa do mercador Diogo Fernandes, que veio do além-mar, no século XVI, para se fixar em Pernambuco.

Branca Dias encarou seu marido de igual para igual

O espetáculo Senhora de engenho – Entre a cruz e a Torá, texto de Miriam Halfim, com direção de Emanuel David D’Lucard e montagem da Companhia Popular de Teatro de Camaragibe, resgata a vida dessa portuguesa que teria chegado à capitania de Pernambuco em 1550. Ela foi perseguida pela inquisição na Europa por ser judia e protagonizou mudanças significativas no Nordeste do Brasil colônia.

A vida de Branca é cheia de nuances e repleta de elementos dramáticos. No texto assinado por Miriam Halfim, a protagonista é uma mulher boníssima, justa, de temperamento forte e determinado. Em Senhora de engenho – Entre a cruz o torá os termos devoção, traição, amor, perdão, esperança e fé não são apenas palavras de efeito, mas chaves para compreender essa figura.

Com o incentivo de montagem do Funcultura em 2011, a peça cumpriu duas temporadas no Engenho Camaragibe, o casarão onde a heroína morou. Em agosto, o grupo fez várias apresentações no Chile, dentro da programação do VIII Festival Internacional de Teatro Itinerante por Chiloé Profundo/FITICH Inverno.

Há poucos dias, a encenação integrou o Festival Aldeia Yapoatan, em Jaboatão dos Guararapes. A peça foi apresentada na Associação Comunitária de Muribeca, seguindo proposta do Sesc Piedade de descentralizar as atividades artísticas.

Francis de Souza como Madalena Gonçalves

É uma montagem popular do grupo de Camaragibe, com poucos recursos de produção, com um jeito intimista de contar essa história quase épica. O cenário é formado por uma grande mesa, cadeiras, baús, cadeira de balanço, candelabro com velas, lona no chão. A opção do diretor permite que a trajetória de Branca Dias possa ser contada em qualquer galpão, como ocorreu no Chile e em Muribeca.

As do Chile eu não vi, mas Emanuel David D’Lucard falou que o grupo inseriu palavras em espanhol no meio dos diálogos e que isso criou uma cumplicidade com a plateia. No bairro da Muribeca, a apresentação foi numa noite nublada, em que choveu um pouco. O salão central da Associação foi ocupado pelo cenário no centro e cadeiras para o público. Essa proximidade física estabeleceu um clima das histórias contadas ao redor da fogueira.

A atriz Patricia Assunção faz Branca Dias imponente, determinada, altiva, otimista. Ela comanda a cena para mostrar que sua personagem foi uma mulher à frente do seu tempo, a desafiar costumes e não se dobrar diante das dificuldades. É apontada como a primeira mulher portuguesa a manter uma “esnoga” (sinagoga) em suas terras, e a primeira professora de meninas. Além disso, ela ajudou o marido a reerguer a propriedade depois do ataque dos índios e tocou o negócio quando o marido morreu.

O marido Diogo Fernandes veio primeiro para ocupar as terras doadas por Duarte Coelho. Quando Branca Dias chegou encontrou amante e a filha bastarda, Briolanja. O elenco dá conta do recado e o que pode faltar em técnica é compensado pela garra de seus integrantes.

Francis de Souza explora riqueza humana da amante do senhor de engenho

Francis de Souza  interpreta Madalena Gonçalves, a amante de Diogo antes da chegada de Branca. A atriz cria uma personagem instigante, meio desafiadora, meio conciliadora, meio invejosa, meio conformada. Mas ainda com um misto de erotismo e cumplicidade.

Branca Dias cedeu para a amante do marido e sua filha a casa em Olinda e manda buscá-las depois do incêndio do engenho. Essa generosidade de Branca potencializa a inveja de Briolanja Fernandes, interpretada por Dul Santos. A atriz faz uma bastarda dura, mas sem muitas nuances, que está sempre no extremo do grito ou do ato, que chega a incomodar.

Dul Santos como a revoltada Briolanja Fernandes

Geraldo Cosmo compôs Diogo Fernandes elegante no porte, sedutor e muito influenciado pela mulher. Uma das cenas marcantes é no momento da morte, quando tentam fazê-lo aceitar Jesus.

Pedro Dias é o poeta

Pedro Dias encarna Bento Teixeira, autor do primeiro poema brasileiro, que frequentou o engenho e era um grande admirador de Branca. Com um ar sempre derrotado, ele é enganado pela sua mulher que, ao contrário de Branca (que alavanca o Marido Diogo), seca-lhe as forças.

Yah Vasconcelos faz uma das filhas de Branca, Brites Fernandes, que tem deficiência cognitiva. É uma figura vivaz, que desperta a solidariedade. Ainda estão no elenco Euclides Farias, Izabelly Natally, Guto Kelevra, Gessica Nascimento como judeus de Sambenito, índios, judeus e convidados do casamento.

Yah Vasconcelos no papel de Brites Fernandes

A iluminação e o figurino, com suas peças rudes, nos remetem a um lugar meio isolado, sem conforto, numa terra que precisava ser dominada, como deve ter sido o ambiente que Branca Dias enfrentou na sua vida no Brasil. É a encenação de uma biografia romanceada que dá muita dignidade à protagonista.

*Este texto é resultado de uma parceria com o Sesc Piedade, realizador do Aldeia Yapoatan

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Peça As Confrarias expõe lado podre do poder

Espetáculo As confrarias, montagem da Cia Teatro de Seraphim. Foto: Larissa Moura

Uma mulher do povo contra um mundo injusto, desumano e cruel. Como Antígona, heroína de Sófocles, Marta desafia os poderosos para sepultar seu ente querido. O dramaturgo Jorge Andrade (1922 -1984) foi buscar material no Brasil colonial (tempo da mineração) para falar das atrocidades que brasileiros anônimos foram vítimas no final da década de 1960. Uma estratégia para estabelecer o distanciamento crítico.

O espetáculo As Confrarias leva para o centro da cena a trajetória de uma mãe, Marta, na sua determinação por enterrar seu filho, José, um ator assassinado. As autoridades desconfiaram que ele participava de movimentos revolucionários e o extinguiram. Sua morte, como sua vida, vale pouco para os detentores do poder, mas não para a sua mãe. José multiplicava seu corpo em muitas vidas, nas suas metamorfoses de ator. Morto vira uma arma em mãos maternas para lutar contra a prepotência e a hipocrisia desses “clubes” que se arrogam ser senhores do destino material e espiritual de toda comunidade. No final do espetáculo ela fala: “(…) Sabe por que o deixei naquele adro? Por que usei seu corpo? (…) porque… se eu o enterrasse com minhas mãos, esqueceriam que você viveu… e porque morreu”.

Nilza Lisboa, como Marta, Roberto Brandão (José) e Carlos Lira (Sebastião)

Não, não é uma peça fácil de ser erguida. A começar pelo número de personagens, mais de 40. As mudanças temporais também exigem uma engenharia (produção, verba para traduzir a opulência das confrarias) e criatividade para não cair no didatismo. E também uma pulsação contemporânea para que a peça não seja encarada como um episódio longínquo do passado. Criar nervuras que toquem e signifiquem no presente.

Escrita em 1969, a peça As Confrarias ficou inédita até este ano, quando a Cia. Teatro de Seraphim encarou o desafio de encená-la. A montagem fez temporada no Teatro Barreto Júnior, no Recife, e participou há pouco do  Aldeia Yapoatan – II Mostra de Artes em Jaboatão dos Guararapes.

O encenador Antonio Cadengue diminuiu a peça, cortou cenas, personagens, multiplicou papéis para um mesmo intérprete. O espetáculo de um único ato está dividido em dois planos de ação: presente e passado. A Marta do presente é interpretada por Lúcia Machado. A do passado, por Nilza Lisboa. Alternando entre passado e presente, estão as passagens – muito bonitas, por sinal – da mãe e de Quitéria, namorada de José, carregando uma rede com o corpo inerte do filho de Marta. As portas do cenário significam, fecham e abrem, em movimentos de revelação/ocultação. A cenografia é assinada por Doris Rollemberg.

Portas se abrem para revelar a passagem do morto

Um dado histórico é de fundamental importância para o entendimento dessa luta. Não existiam cemitérios públicos no período colonial brasileiro. Os que existiam funcionavam junto às igrejas, em solo dito sagrado. As igrejas guardavam os registros de nascimento, casamento ou morte. Pense num poder!!! Isso passa a ser um problema para Marta, porque seu filho não era vinculado a nenhuma ordem.

E os integrantes das irmandades e confrarias não eram santos e estavam muito mais preocupados com o reino da Terra e os seus prazeres materiais do que com o reino do Céu. Funcionavam como clubes fechados que serviam aos interesses de determinados grupos sociais. Para participar de cada uma delas havia uma longa lista de exigências. E por trás dessas exigências se escondiam a tirania de seus dirigentes, que manipulavam discursos e regras a partir de seus interesses, dando interpretações bem pessoais às leis.

Pároco da Irmandade de São José (Rudimar Constâncio) pressiona Marta

Pároco da Irmandade de São José (Rudimar Constâncio) pressiona Marta

Marta, uma desclassificada, questiona o poder das confrarias ao aparecer em cada uma delas para pedir um lugar para sepultar o corpo de José. É um embate individual contra o mundo hostil que a cerca. Os diálogos estão repletos de tensão e ironias de todos os lados.

A peleja de Marta é travada em um único dia, em Vila Rica (hoje Ouro Preto, Minas Gerais), no século XVIII, à época da Inconfidência Mineira. Andrade não enfocou os que a Pátria consagrou como heróis. O dramaturgo põe uma lente de aumento na relação de despotismo dos religiosos para com os marginalizados. E desnuda os procedimentos de exclusão por parte de quem estigmatiza os abandonados da sociedade. No caso os confrades desqualificam, eliminam de seus quadros tendo como parâmetros – não muito claros – questões de cor e raça. Muitas profissões também são alvo de perseguição, a de ator é uma delas.

A protagonista de As Confrarias também é personagem de outra peça de Jorge Andrade, O Sumidouro, em um papel secundário de uma empregada questionadora. Em As Confrarias, Marta conduz a trama. O debate sobre o papel social do produtor de arte também é levantado pelo autor em O Sumidouro, só que lá as crises de criação se concentram na figura do dramaturgo.

Os bastidores do poder são expostos a partir das confabulações, intrigas e decisões das irmandades e confrarias.

Os bastidores do poder são expostos a partir das confabulações, intrigas e decisões das irmandades

Como sabemos desde as bancas do colégio, devido à exploração do ouro, Minas Gerais teve um desenvolvimento muito grande. As “ligas” dirigidas pelos religiosos gostavam de exibir opulência. Na peça aparecem quatro de muitas que existiram em Vila Rica, no século XVIII. São elas: Irmandade do Carmo (confraria dos brancos e ricos); Irmandade do Rosário (dos negros puros); Irmandade de São José (dos pardos que recebia os artistas) e Irmandade da Ordem Terceira das Mercês (que juntava negros, brancos e mulatos).

A primeira Confraria visitada é a da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, que recusa o pedido:

Ministro – Não sabe que infiéis, suicidas e atores não podem ser enterrados em igrejas?

Marta – Uma confraria cativa em gargalheiras de sangue, de crença, interesses, de leis, torna-se covil de tiranos. Não seria aqui que deixaria o corpo do meu filho…

Antes desse arremate há todo um jogo de revelações até a conclusão de que o filho era ator, uma profissão considerada perigosa e marginal.

A Confraria do Rosário, que reúne escravos e ex-escravos, foi a segunda a ser visitada. “Meu filho viveu entre pessoas como vocês(…) e amou mulher de sua raça”, argumenta Marta. Mas por meio do embate discursivo ela chega à conclusão de que essa irmandade é tão preconceituosa quanto a outra: “A única diferença entre vocês e o Carmo é a cor da pele. Escondem-se atrás dela, e só sabem se lamentar. O que geram seus pais é produto de venda, compra ou troca. Escravizam também por este ouro! São tão odientos quantos os brancos”.

A Irmandade São José, dos mulatos, é a terceira a ser visitada por Marta. Lá também é rechaçada. Gananciosos e ávidos pelo poder, tentam conseguir informação sobre os inconfidentes para negociar em benefício próprio. Marta dá o troco deixando uma sacola de areia, que eles pensam que é ouro.

Cobiça é um dos pecados desses grupos

Cobiça é um dos pecados desses grupos

A quarta e última visitação de Marta é feita à Ordem Terceira da Mercês, irmandade que, teoricamente, admite sujeitos de todas as origens. O debate dos seus integrantes é o mesmo das outras confrarias, ouro, poder e desta vez se divertem com a notícia de que Marta pregou uma peça na irmandade de São José.

“Devem estar aqui os que pensam como meu filho, os homens que ele procurava. É esta a minha igreja”, provoca Marta. Depois de uma longa e torturante inquirição por parte dos religiosos, a protagonista grita: “Por quem meu filho morreu? Por vocês? Malditos hipócritas!”

Anjo Negro de Mapplethorpe em sequência de poses

Anjo Negro de Mapplethorpe em sequência de poses

As cenas seguem uma ordem de revelações. Abre com o ator Gilson Paz como o Anjo Negro de Mapplethorpe em sequência de poses (algumas carregando flores) para celebrar as imagens do fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe (1946-1989), famoso por suas fotografias de nus masculinos, carregadas de erotismo homossexual. Esse Anjo volta a parecer no decorrer do espetáculo, ou para saturar sentidos Terra/Céu, para investir na cena de sensualidade ou estabelecer conexões entre cenas.

A interpretação dos atores salienta o jogo de teatralidade. Isso ganha grandes proporções nos embates entre Marta e os confrades. Mas não há muitas variações entre presente e passado. No geral há uma frieza na montagem, que não aquece as palavras do autor. É como se as interpretações seguissem uma linha monocromática e previsível – mesmo com a alternância entre planos e a exposição de episódios soturnos, não ganham relevo.

O texto de Jorge Andrade é complexo e vai desfiando aos poucos a história de Marta, de seu marido Sebastião e de seu filho José. Em cada irmandade é revelada um pouco mais dessa trajetória.

Lúcia Machado

Lúcia Machado

Lúcia Machado vive a Marta da via-crucis. Com maestria faz o jogo teatral, provocando seus interlocutores, explorando com riqueza expressões faciais e gestuais. Mas houve problemas com a voz. Na apresentação no Teatro Luiz Mendonça, por exemplo, estava com pouca projeção vocal, o que dificultou a audição.

Brenda Ligia está bem no papel de Quitéria (namorada de José) que ganhou a liberdade com o dinheiro ganho como cortesã e desafia os costumes.

A opção do encenador de dobrar papéis é válida. Mas como os atores que se revezam nas confrarias pouco se diferenciam entre si, parece que há apenas trocas de figurino. Mesmo as reações mais fortes de um ou outro intérprete, como Rudimar Constâncio ou Ivo Barreto, Marcelino Dias ou Taveira Júnior, não demarcam as diferenças entre eles.

Não enxerguei individuações entre os representantes de cada confraria. E chego a pensar que isso poderia ter sido proposital para produzir o sentido de que todos agem da mesma forma. Mas o preconceito dos diferentes ganharia mais relevo.

A narrativa vai se encaixando e revelando detalhes terríveis da constituição humana. Mas sinto falta de vigor na montagem. Ela não vibra, com exceção da atuação de Lúcia (embora prejudicada pela projeção vocal). A história desperta interesse, mas não toca. Parece parada num passado distante sem que isso nos diga respeito.

A ideia de espelhamento de Marta, entre passado e presente é bem interessante. A Marta do passado (Nilza Lisboa) parece mais presa, meio sufocada em suas vestes. O melhor momento é quando ela desafia o religioso que tenta “catequizar” Quitéria. Marta busca chocar o homenzinho da igreja ao afirmar que assiste às cenas de amor de seu filho com a namorada.

Roberto Brandão interpreta José

Roberto Brandão interpreta José e Brenda Lígia, Quitéria

A atuação de Roberto Brandão, ator que faz José, é correta, mas sem brilho. Não traduz a juventude de seus anos nem a ousadia de suas escolhas. Parece acanhado, tímido demais para desafios tão grandes. O link com o presente – da insatisfação contra o mundo e manifestações que ocorrem mundo afora – poderia ter potência nas cenas das buscas do jovem ator, mas isso não se estabelece.

No metateatro (nas representações cênicas de José à partir da memória de Marta), falta fôlego a essa “apologia da expressão teatral”. Na tragédia Catão ele faz Marco-Bruto, com roupa de centurião, e falta peso, densidade, vigor.

Não podemos deixar de registrar que há uma meticulosa precisão na marcação cênica feita pelo encenador. Mas essa ocupação de espaços com suas hierarquias não é suficiente para incendiar a mente do espectador.  As marcas do encenador estão lá, mas parece um registro dobrado de si mesmo.

A revolta transforma um pacato cidadão

A revolta transforma um pacato cidadão

Carlos Lira, que interpreta Sebastião, não destaca a transformação pela qual passa esse pacato cidadão que plantava e colhia nas terras de Morro Velho. Encontraram ouro e anunciam que o subsolo pertencia ao Estado e à Igreja. Suas terras são confiscadas. Os momentos da revolta inicial, passando pelo engajamento político – de fazer justiça com as próprias mãos –, ao desfecho de ser enforcado, não são devidamente ressaltados em sua riqueza de detalhes.

Os figurinos e adereços de Anibal Santiago e Manuel Carlos são elegantes com seus ternos e opas. A iluminação tem momentos de envolvimentos, como nas aberturas das portas e passagem das mulheres carregando a rede, mas em outros parece errar a mão e a marcação, deixando atores no escuro, por exemplo.

A trilha sonora de Eli-Eri Moura dá textura às situações dramáticas; cria climas com os cruzamento das músicas sacras, barroca, até o toque do maracatu. É uma presença.

De todo modo, a Cia. Teatro de Seraphim e seu diretor Antonio Cadengue prossegue e persegue um teatro crítico, que leva à reflexão.

*Este texto é resultado de uma parceria com o Sesc Piedade, realizador do Aldeia Yapoatan

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Pra quem é (ou não) de credo*

Sobre o conceito da face no filho de Deus. Foto: Mariano Czarnobai/Divulgação PMPA

Sobre o conceito da face no filho de Deus. Foto: Mariano Czarnobai/Divulgação PMPA

Depois de presenciar uma das piores faces que Deus pode assumir, o que dizer? Com que estranha capacidade de regeneração nossos sentidos, violentados, se recompõem e permitem que articulemos novamente as ideias na cabeça. Mas… ideias? Nenhuma, tudo vazio. Nada mais a dizer. As palavras que eventualmente carregamos no corpo e na memória são suprimidas diante de imagens – na falta de léxico, me repito – violentas. Mas tentemos.

Somos mortais, e isso aprendemos logo cedo. Mas o fato de termos um prazo de validade não é o que mais assusta, embora boa parte de nós pensemos que assim seja. Não. A questão é a sujeição da matéria. Fora nos casos de morte súbita, o corpo, em geral, assume um estado de desintegração constante que só pode conduzir para o seu fim e, sobre ele, a mente já não tem mais nenhum domínio. A matéria-corpo esvai-se, átomo a átomo, em todos os estados físicos possíveis – já não quer pertencer a este aqui e agora. Antes de sumir-se, contudo, deixa as suas últimas marcas, indesejáveis; já não interessam. Mancha a superfície alva das coisas e não há assepsia que dê conta. Se espalha, contamina. Impossível reter.

O barro de que fomos feitos derrete, marrom, e com ele as últimas partículas de oxigênio (o sopro da vida). Entre um e outro, a paciência e a dedicação de quem, ainda longe de alcançar esse estado da matéria, convive e é responsável por quem está próximo do fim. Responsabilidade, eu disse, mas sustentada por que? “Honrarás teu pai e tua mãe”. Da justiça dos homens, a obrigatoriedade do cuidado com os mais velhos. Suficiente?

A tudo isso assistimos no espetáculo de Romeo Castellucci, Sobre o conceito da face no filho de Deus, carro-chefe da 20ª edição do Porto Alegre Em Cena. Se iniciamos esse comentário com uma série de considerações impressionistas, é por que é muito particularmente que a obra chega a cada um dos espectadores. Como bem disse o diretor italiano, “Deixo passar as imagens. Imagens que pertencem à história de cada um de nós. As imagens estão à espera de serem interpretadas em um sistema de sinais, sempre diferentes, assim como são diferentes, uns dos outros, os espectadores.”

Sim, temos imagens. Mas também sonoridade. Da boca do imenso Cristo (pintura de Antonello da Messina (1430-1479) projetada no fundo do palco, como a materialização da onipresença divina), à qual o filho, desesperançado, se abraça, ouvimos um sussurro: “Jesus… Jesus… Jesus…”, que retornará ao final da cena seguinte, em eco às últimas granadas atiradas contra a imagem. Nessa cena, oito crianças entram no palco e, de suas mochilas, retiram a munição que atiram na face serena que as (nos) observa. Compõe a cena, ainda, o barulho de bombas lançadas, explodindo num crescendo sonoro ao qual se mistura uma música sacra. É perturbador. Quando todas as crianças se retiram, uma última permanece e volta-se para a plateia. Do outro lado do palco, também na boca de cena, o ator que faz o pai levanta-se e também coloca-se diante da plateia. A linha da vida diante de nossos olhos?

A agressão visual continua no último momento do espetáculo. O ator-pai sai do proscênio para a coxia carregando e derramando ao longo do caminho, de dentro de um galão (desses de gasolina), os excrementos fecais com que contaminou toda a primeira cena. Só resta o Cristo, que nos olha. Alguém começa a mexer a imagem por trás, de modo a fazer parecer, num primeiro momento, bichos, “pragas” subcutâneas corroendo a matéria divina por dentro. No momento seguinte são riscos, linhas projetadas da altura dos olhos ao nariz, que deformam a face de Deus. Mas, não são bem “riscos”: numa mudança de luz percebemos que é o ator-pai que “irriga”, com o galão de excrementos, a imagem de Deus, até o ponto em que ela fica quase toda negra. Então, ele e mais três homens começam a rasgar a lona onde estava estampada a imagem e, por detrás dela, vemos a inscrição:

you
are not
my
shepeard

, evidenciado o “not” apenas alguns instantes depois. Através da inscrição – gravada num mural com letras vazadas – enxergamos uma nova e mesma face de Deus, que permanece, para quem (quer) crê, para quem não.
Diante dessas descrições, entende-se a agitação que o espetáculo provoca na comunidade cristã por onde quer que passe. Mas esses são conflitos até administráveis. Agora, quem terá sido capaz de acalmar suas próprias inquietações depois de assistir a esse Castellucci?

*texto de Nayara Brito, jornalista e mestranda do PPGAC/UFRGS

Peça foi a principal atração do Porto Alegre Em Cena

Peça foi a principal atração do Porto Alegre Em Cena

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Estreias pernambucanas no Janeiro 2014

Depois de anunciar na semana passada os espetáculos locais não-inéditos que vão compor a grade do Janeiro de Grandes Espetáculos 2014, a produção do festival divulgou agora quais vão estrear durante a 20º edição do evento. A programação deve ter ainda espetáculos pernambucanos que já participaram do festival e serão convidados; e montagens nacionais e internacionais, também convidadas pela curadoria. O Janeiro de Grandes Espetáculos será realizado de 8 a 26 de janeiro.

Grupo Grial estreia Terra. Na imagem, Maria Paula Costa Rêgo, bailarina e diretora. Foto: Léo Caldas/Divulgação

Grupo Grial estreia Terra. Na imagem, Maria Paula Costa Rêgo, bailarina e diretora. Foto: Léo Caldas/Divulgação

Categoria Dança:

Os sete buracos (Compassos Cia de Dança)

Terra (Grupo Grial)

Categoria Teatro para infância e juventude:

Era uma vez um rio (Cênicas Companhia de Repertório)

Categoria Teatro adulto:

Anjo negro (O Poste Soluções Luminosas)

Antônio Rodrigues, da Cênicas Cia de Repertório, assina a direção de Era uma vez um rio. Foto:

Antônio Rodrigues, da Cênicas Cia de Repertório, assina a direção de Era uma vez um rio. Foto: Pri Burh/Fundarpe

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O Teatro Ventoforte e suas muitas chaves

Ilo Krugli, criador do Teatro Ventoforte. Foto: Pollyanna Diniz

Ilo Krugli, criador do Teatro Ventoforte. Foto: Pollyanna Diniz

Quem entra no meio de uma apresentação do Teatro Ventoforte – grupo criado há 40 anos pelo diretor, dramaturgo, ator, poeta e artista plástico Ilo krugli – , pode não entender nada. Dependendo do momento em que esteja a encenação, quem sabe imagine até que a peça já terminou e os atores agora recebem o afago do público.

As 4 Chaves, por exemplo, espetáculo apresentado no Aldeia Yapoatan – II Mostra de Artes em Jaboatão dos Guararapes, quebra quaisquer limites entre atores e plateia, só que de uma forma bastante orgânica. Talvez porque as crianças tenham mesmo pouco pudor em se entregar a uma experiência ou porque é simplesmente outra maneira de pensar a encenação, sem que seja uma imposição subir ao palco ou que você tenha a lucidez de pensar, como tantas vezes acontece: “ok, chegou a hora da interação com o público. Podemos pular? Qual o próximo passo da cartilha mesmo?”.

Parte do público assistiu à peça no palco

Parte do público assistiu à peça no palco

Se para quem foi assistir à peça, a mudança é significativa, isso também acontece com o ator. A maneira fluida de pensar a encenação de As 4 Chaves exige outro estado de energia e de atenção. É como se todo o treinamento físico e preparação não fossem suficientes para dar conta dos estímulos e da efetividade das relações que podem ser construídas. A obra, embora com as amarrações e delimitações do grupo, de fato se estabelece quando há não só o encontro, mas a participação do outro.

O elenco conta com, além de Ilo lrugli, Ana Maria Carvalho, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Juan Velásquez, Alexandre Lavorini, Valquíria Rosa Elaine Duarte, Leandro Alma, Vanessa Carvalho, Thiago França e os músicos-atores Anderson Areias, Flávia Cunha e Bruno Lavorini. Os destaques vão para Juan Velásquez, que é o narrador da história; Rodrigo Mercadante e Karen Menatti, esses dois últimos também integrantes da Cia do Tijolo.

No enredo, quatro personagens e seus desejos: Joana quer engravidar; o Gigante sonha com um coração; Zé precisa de pão; e o Desconhecido seria tão mais feliz com uma namorada! Nada muito complicado – mas o que a partir daí pode surgir, é sempre uma surpresa. E assim lá se vão duas horas de peça.

Crianças ajudam a realizar o sonho de Joana

Crianças ajudam a realizar o sonho de Joana

A musicalidade é um dos pilares da encenação proposta por Ilo Krugli: os atores tocam e cantam, numa encenação completamente pontuada pelas canções. Outra base de trabalho é a cultura popular, que pode se evidenciar na escolha do repertório, no figurino, no cenário.

É um espetáculo lúdico, que vai funcionar ainda mais à medida em que as respostas do público são dadas. E essa construção não é um caminho fácil: por vezes, por exemplo, nos perguntamos se o enredo tem mesmo a força para segurar a proposta da encenação; é como se a história ficasse tão pulverizada que perdesse em potência. O texto aqui é visto como um elemento de composição nessa colcha de retalhos. Mas a impressão é que a experiência poderia ser alavancada pelo texto e isso não necessariamente acontece.

Outra questão que se mostra prioritariamente por conta da estrutura da montagem é a dificuldade em cortar e se livrar dos excessos da encenação. Aparar as arestas não é nada fácil. O espetáculo se mostra longo e da mesma forma que é uma maratona para os atores, é para o público. Quando, inclusive, todos imaginam que a montagem está resolvida, uma nova questão se estabelece e a peça parece recomeçar, mas já sem o fôlego inicial.

Ainda assim, mesmo com ponderações, a criatividade de Ilo Krugli e a competência do elenco que ele reuniu em As 4 Chaves são indiscutíveis. É mesmo emocionante ver um homem com mais de 80 anos no palco e nos mostrando que é possível pensar além de uma forma já estabelecida, nos fazendo enxergar possibilidades, nos abrindo horizontes de percepção.

*Este texto é resultado de uma parceria com o Sesc Piedade, realizador do Aldeia Yapoatan

Espetáculo foi encenado na lona de circo montada no Sesc Piedade

Espetáculo foi encenado na lona de circo montada no Sesc Piedade

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