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O beijo de Nelson

O beijo no asfalto tem direção de Claudio Lira. Foto: Pollyanna Diniz

O beijo no asfalto tem direção de Claudio Lira. Foto: Pollyanna Diniz

Ah, Nelson Rodrigues. O nosso clássico tão controverso. Que nos desestrutura com suas posições ideológicas, suas frases de efeito, seus textos de palavras ditas na hora certa, no momento exato, sem excessos. Que usa os instintos mais primitivos para falar de quem somos nós, das nossas capacidades, dos limiares da moral. Em O beijo no asfalto, o enredo tem muitas nuances. Da sujeira da imprensa em busca da venda de exemplares até a polícia corrupta, a relação entre duas irmãs, a confiança no outro, a homossexualidade.

O diretor pernambucano Claudio Lira, que estreou a sua versão de O beijo no asfalto no dia em que Nelson Rodrigues comemoraria seu centenário, ano passado, no Rio de Janeiro, tem sensibilidade e perspicácia para lidar com o texto de Nelson. Criou uma pequena vila de casas todas juntinhas. As fachadas são passagens que abrem possibilidades para a história, que permitem o olhar invasivo ou discreto dos espectadores da vida dos outros – embora a execução dessa ideia se deixe levar pelo caminho mais fácil: homens e mulheres de óculos escuros, jornal empunhado, figurinos cinzas, uma relação cinematográfica desnecessária.

Dona Matilde, a vizinha fofoqueira, é desdobrada em várias outras que participam da discussão através da projeção de vídeos. Há também a participação de Gino César e de Cardinot, o primeiro um popular apresentador de um programa de rádio e o segundo de televisão, comentando o caso. O bordão “durma com uma bronca dessas” levou a plateia ao delírio na primeira apresentação que o elenco fez no Recife, no Teatro de Santa Isabel. Afinal, os julgamentos continuam sendo feitos a priori e como é difícil destrinchar o real.

O elenco cresceu bastante (já vi a peça em três oportunidades – no Teatro de Santa Isabel, no Teatro Luiz Mendonça e no Barreto Júnior), mas as nuances e gradações ainda precisam ser perseguidas. Selminha, interpretada por Andrêzza Alves, vai da felicidade idealizada à desestruturação. Mas, principalmente no início da montagem, nas primeiras conversas com o pai e a irmã, o texto nem sempre consegue ter ressonância na atriz: “papai, papai” soa falso e descolado aos ouvidos dos espectadores.

Pascoal Filizola, Andrêzza Alves e Ivo Barreto

Pascoal Filizola, Andrêzza Alves e Ivo Barreto

Os principais destaques estão no elenco masculino. Pascoal Filizola, como o delegado Cunha, e Ivo Barreto, interpretando Amado Ribeiro (embora estereotipado principalmente pelos figurinos, um problema de toda a montagem) têm um jogo muito interessante em cena. Há ainda Arthur Canavarro (Arandir), numa atuação bastante convincente, Eduardo Japiassu (Aprígio), Sandra Rino (Viúva, D. Judith e Aruba), Daniela Travassos (Dália) e Lano de Lins (Barros, Werneck e travesti).

O mais interessante é realmente ouvir esse texto sendo dito na íntegra e o quanto ele consegue nos atingir, causando as reações mais diversas. Os diálogos são as pérolas desse espetáculo e o diretor sabe muito bem disso. Não precisa de enfeites. Precisa de sutilezas e nuances para que o texto possa nos inquietar ainda mais. Todo o resto é quase dispensável – inclusive a última cena da montagem. O texto termina no seu ápice. Não tem sentido colocar adendos que não agregam à dramaturgia, à encenação, que parecem sem objetivo.

*Este texto é fruto de uma parceria entre o Sesc Piedade e o Satisfeita, Yolanda? para a apreciação crítica de alguns espetáculos que participaram da mostra Aldeia Yapoatan.

O Beijo no asfalto será encenado hoje (27) e amanhã (28) no Teatro Marco Camarotti (com a proximidade é possível que o espetáculo ganhe bastante), no Sesc Santo Amaro, às 20h, dentro da programação do Festival Recife do Teatro Nacional. Os ingressos custam R$ 10 e R$ 5 (meia-entrada)

Arthur Canavarro e Daniela Travassos

Arthur Canavarro e Daniela Travassos

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O Teatro Ventoforte e suas muitas chaves

Ilo Krugli, criador do Teatro Ventoforte. Foto: Pollyanna Diniz

Ilo Krugli, criador do Teatro Ventoforte. Foto: Pollyanna Diniz

Quem entra no meio de uma apresentação do Teatro Ventoforte – grupo criado há 40 anos pelo diretor, dramaturgo, ator, poeta e artista plástico Ilo krugli – , pode não entender nada. Dependendo do momento em que esteja a encenação, quem sabe imagine até que a peça já terminou e os atores agora recebem o afago do público.

As 4 Chaves, por exemplo, espetáculo apresentado no Aldeia Yapoatan – II Mostra de Artes em Jaboatão dos Guararapes, quebra quaisquer limites entre atores e plateia, só que de uma forma bastante orgânica. Talvez porque as crianças tenham mesmo pouco pudor em se entregar a uma experiência ou porque é simplesmente outra maneira de pensar a encenação, sem que seja uma imposição subir ao palco ou que você tenha a lucidez de pensar, como tantas vezes acontece: “ok, chegou a hora da interação com o público. Podemos pular? Qual o próximo passo da cartilha mesmo?”.

Parte do público assistiu à peça no palco

Parte do público assistiu à peça no palco

Se para quem foi assistir à peça, a mudança é significativa, isso também acontece com o ator. A maneira fluida de pensar a encenação de As 4 Chaves exige outro estado de energia e de atenção. É como se todo o treinamento físico e preparação não fossem suficientes para dar conta dos estímulos e da efetividade das relações que podem ser construídas. A obra, embora com as amarrações e delimitações do grupo, de fato se estabelece quando há não só o encontro, mas a participação do outro.

O elenco conta com, além de Ilo lrugli, Ana Maria Carvalho, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Juan Velásquez, Alexandre Lavorini, Valquíria Rosa Elaine Duarte, Leandro Alma, Vanessa Carvalho, Thiago França e os músicos-atores Anderson Areias, Flávia Cunha e Bruno Lavorini. Os destaques vão para Juan Velásquez, que é o narrador da história; Rodrigo Mercadante e Karen Menatti, esses dois últimos também integrantes da Cia do Tijolo.

No enredo, quatro personagens e seus desejos: Joana quer engravidar; o Gigante sonha com um coração; Zé precisa de pão; e o Desconhecido seria tão mais feliz com uma namorada! Nada muito complicado – mas o que a partir daí pode surgir, é sempre uma surpresa. E assim lá se vão duas horas de peça.

Crianças ajudam a realizar o sonho de Joana

Crianças ajudam a realizar o sonho de Joana

A musicalidade é um dos pilares da encenação proposta por Ilo Krugli: os atores tocam e cantam, numa encenação completamente pontuada pelas canções. Outra base de trabalho é a cultura popular, que pode se evidenciar na escolha do repertório, no figurino, no cenário.

É um espetáculo lúdico, que vai funcionar ainda mais à medida em que as respostas do público são dadas. E essa construção não é um caminho fácil: por vezes, por exemplo, nos perguntamos se o enredo tem mesmo a força para segurar a proposta da encenação; é como se a história ficasse tão pulverizada que perdesse em potência. O texto aqui é visto como um elemento de composição nessa colcha de retalhos. Mas a impressão é que a experiência poderia ser alavancada pelo texto e isso não necessariamente acontece.

Outra questão que se mostra prioritariamente por conta da estrutura da montagem é a dificuldade em cortar e se livrar dos excessos da encenação. Aparar as arestas não é nada fácil. O espetáculo se mostra longo e da mesma forma que é uma maratona para os atores, é para o público. Quando, inclusive, todos imaginam que a montagem está resolvida, uma nova questão se estabelece e a peça parece recomeçar, mas já sem o fôlego inicial.

Ainda assim, mesmo com ponderações, a criatividade de Ilo Krugli e a competência do elenco que ele reuniu em As 4 Chaves são indiscutíveis. É mesmo emocionante ver um homem com mais de 80 anos no palco e nos mostrando que é possível pensar além de uma forma já estabelecida, nos fazendo enxergar possibilidades, nos abrindo horizontes de percepção.

*Este texto é resultado de uma parceria com o Sesc Piedade, realizador do Aldeia Yapoatan

Espetáculo foi encenado na lona de circo montada no Sesc Piedade

Espetáculo foi encenado na lona de circo montada no Sesc Piedade

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