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Pra quem é (ou não) de credo*

Sobre o conceito da face no filho de Deus. Foto: Mariano Czarnobai/Divulgação PMPA

Sobre o conceito da face no filho de Deus. Foto: Mariano Czarnobai/Divulgação PMPA

Depois de presenciar uma das piores faces que Deus pode assumir, o que dizer? Com que estranha capacidade de regeneração nossos sentidos, violentados, se recompõem e permitem que articulemos novamente as ideias na cabeça. Mas… ideias? Nenhuma, tudo vazio. Nada mais a dizer. As palavras que eventualmente carregamos no corpo e na memória são suprimidas diante de imagens – na falta de léxico, me repito – violentas. Mas tentemos.

Somos mortais, e isso aprendemos logo cedo. Mas o fato de termos um prazo de validade não é o que mais assusta, embora boa parte de nós pensemos que assim seja. Não. A questão é a sujeição da matéria. Fora nos casos de morte súbita, o corpo, em geral, assume um estado de desintegração constante que só pode conduzir para o seu fim e, sobre ele, a mente já não tem mais nenhum domínio. A matéria-corpo esvai-se, átomo a átomo, em todos os estados físicos possíveis – já não quer pertencer a este aqui e agora. Antes de sumir-se, contudo, deixa as suas últimas marcas, indesejáveis; já não interessam. Mancha a superfície alva das coisas e não há assepsia que dê conta. Se espalha, contamina. Impossível reter.

O barro de que fomos feitos derrete, marrom, e com ele as últimas partículas de oxigênio (o sopro da vida). Entre um e outro, a paciência e a dedicação de quem, ainda longe de alcançar esse estado da matéria, convive e é responsável por quem está próximo do fim. Responsabilidade, eu disse, mas sustentada por que? “Honrarás teu pai e tua mãe”. Da justiça dos homens, a obrigatoriedade do cuidado com os mais velhos. Suficiente?

A tudo isso assistimos no espetáculo de Romeo Castellucci, Sobre o conceito da face no filho de Deus, carro-chefe da 20ª edição do Porto Alegre Em Cena. Se iniciamos esse comentário com uma série de considerações impressionistas, é por que é muito particularmente que a obra chega a cada um dos espectadores. Como bem disse o diretor italiano, “Deixo passar as imagens. Imagens que pertencem à história de cada um de nós. As imagens estão à espera de serem interpretadas em um sistema de sinais, sempre diferentes, assim como são diferentes, uns dos outros, os espectadores.”

Sim, temos imagens. Mas também sonoridade. Da boca do imenso Cristo (pintura de Antonello da Messina (1430-1479) projetada no fundo do palco, como a materialização da onipresença divina), à qual o filho, desesperançado, se abraça, ouvimos um sussurro: “Jesus… Jesus… Jesus…”, que retornará ao final da cena seguinte, em eco às últimas granadas atiradas contra a imagem. Nessa cena, oito crianças entram no palco e, de suas mochilas, retiram a munição que atiram na face serena que as (nos) observa. Compõe a cena, ainda, o barulho de bombas lançadas, explodindo num crescendo sonoro ao qual se mistura uma música sacra. É perturbador. Quando todas as crianças se retiram, uma última permanece e volta-se para a plateia. Do outro lado do palco, também na boca de cena, o ator que faz o pai levanta-se e também coloca-se diante da plateia. A linha da vida diante de nossos olhos?

A agressão visual continua no último momento do espetáculo. O ator-pai sai do proscênio para a coxia carregando e derramando ao longo do caminho, de dentro de um galão (desses de gasolina), os excrementos fecais com que contaminou toda a primeira cena. Só resta o Cristo, que nos olha. Alguém começa a mexer a imagem por trás, de modo a fazer parecer, num primeiro momento, bichos, “pragas” subcutâneas corroendo a matéria divina por dentro. No momento seguinte são riscos, linhas projetadas da altura dos olhos ao nariz, que deformam a face de Deus. Mas, não são bem “riscos”: numa mudança de luz percebemos que é o ator-pai que “irriga”, com o galão de excrementos, a imagem de Deus, até o ponto em que ela fica quase toda negra. Então, ele e mais três homens começam a rasgar a lona onde estava estampada a imagem e, por detrás dela, vemos a inscrição:

you
are not
my
shepeard

, evidenciado o “not” apenas alguns instantes depois. Através da inscrição – gravada num mural com letras vazadas – enxergamos uma nova e mesma face de Deus, que permanece, para quem (quer) crê, para quem não.
Diante dessas descrições, entende-se a agitação que o espetáculo provoca na comunidade cristã por onde quer que passe. Mas esses são conflitos até administráveis. Agora, quem terá sido capaz de acalmar suas próprias inquietações depois de assistir a esse Castellucci?

*texto de Nayara Brito, jornalista e mestranda do PPGAC/UFRGS

Peça foi a principal atração do Porto Alegre Em Cena

Peça foi a principal atração do Porto Alegre Em Cena

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Porto Alegre em Cena nota 20

Sobre o conceito da face no filho de Deus, do grupo italiano Socìetas Raffaello Sanzio, é a principal atração do POA em cena

Sobre o conceito da face no filho de Deus é a principal atração internacional do POA em cena

“Não é nada fácil dentro da realidade brasileira manter um evento do porte do Porto Alegre em Cena”, dá conta o material de divulgação do festival.

É verdade. Em 20 anos, o POA em Cena gerou uma verdadeira oxigenação criativa ao trazer ao Brasil nomes como Pina Bauch, Peter Brook, o lituano Eimuntas Nekrosius, Ariane Mnouchkine com seu Thèâtre du Soleil, Berliner Ensemble, os diretores e cineastas Bob Wilson e Patrice Chéreau, a atriz Isabelle Hupert, as cantoras Marianne Faithfull e Laurie Anderson, para ficar nos mais incensados.

Como outras iniciativas culturais, este ano o festival teve seu orçamento reduzido e ficou em R$ 3,18 milhões. Nos anos anteriores, o orçamento foi mais robusto: em 2012 foi de R$ 4,53 milhões, em 2011 de R$ 5,81 milhões.

Mas o Porto Alegre em Cena continua grandioso e diversificado. Começou nesta última terça-feira (3) com o show Negra melodia, da atriz e cantora Zezé Motta; e prossegue até o dia 23, em vários pontos da capital gaúcha.

Este ano, a principal atração internacional é o companhia italiana Raffaello Sanzio com o espetáculo Sobre o conceito da face no filho de Deus. On the Concept of the Face, regarding the Son of God tem sessões nos dias 19, 20 e 21 de setembro no Theatro São Pedro. O grupo já esteve no Poa em Cena em 1999, com Orestea (Una Commedia Organica), releitura da tragédia de Ésquilo com elenco formado por mulheres gordas e homens magros. E em 2006, com Buchettino, em que o público ouvia a história do Pequeno Polegar deitado em camas.

Em Sobre o conceito da face no filho de Deus, o diretor Romeo Castellucci focaliza os temas da fé, o tempo que escoa e os abismos humanos. O espetáculo explora a relação entre um filho (Sergio Scarlatella) e seu pai (Gianna Plazzi), tendo como cenário uma imagem gigante da face de Jesus Cristo, feito pelo pintor italiano Antonello de Messina (1430-1479).

O sofrimento, a velhice, a doença, a fragilidade do corpo humano chegam de forma contundente. Um idoso nu sofre vários ataques de disenteria. Seu filho faz a limpeza. Crianças jogam granadas de plástico no retrato de Cristo. Excrementos fecais são despejados na tela e o rosto cede lugar aos dizeres: “Você (não) é meu pastor”. A montagem causou polêmicas por onde passou, despertando reações de protesto.

O jornal francês La Croix, da esquerda-católica, atestou que “Como um espelho obscuro, o espetáculo remete à consciência todas as suas limitações, sua fragilidade, sua finitude infinita. A seus medos e suas experiências mais íntimas, suas crenças, sua fé no homem. Em Deus”.

Já o crítico Michael Billington, do jornal inglês The Guardian, escreveu sobre a montagem:
“Acredito que Castellucci esteja dizendo algo sobre a ânsia pela fé em uma era sem Deus, sobre a continuação do processo pelo qual os filhos se sacrificam pelos pais e sobre as ligações entre o espírito e a carne falível”.

Outros destaques – Entre os destaques da programação estão ainda a Companhia Brasileira de Teatro, com Esta criança, que tem Renata Sorrah no elenco e texto do francês Joël Pommerat; Não Sobre o Amor, espetáculo com direção de Felipe Hirsch que é baseado na troca de correspondências entre os escritores Victor Shklovsky (Leonardo Medeiros) e Elsa Triolet (Julia Feldens) e tem cenografia de Daniela Thomas. Além do Ói Nóis Aqui Traveiz, que celebra 35 anos e faz uma releitura da tragédia grega em Medeia Vozes. Já o diretor Roberto Alvim mostra Peep Classic Ésquilo, versões das tragédias As Suplicantes e Os Persas, Sete Contra Tebas e Prometeu e Oresteia I e II.

Esta criança, com Renata Sorrah no elenco, é um dos destaques nacionais

Esta criança, com Renata Sorrah no elenco, é um dos destaques nacionais

Três espetáculos de Pernambuco estão na programação: As Levianas em Cabaré Vaudeville, O beijo no asfalto e Viúva, porém honesta.

As Levianas mistura música e humor; as quatro palhaças homenageiam divas como Edith Piaf, La Lupe, Nina Simone e Billie Holiday, mas também enveredam pelo brega cult, com canções de Sidney Magal, Marquinhos Moura e Tina Charles.

Em O beijo no asfalto, o diretor Cláudio Lira utiliza referências contemporâneas ao texto de Nelson Rodrigues. Na trama um jovem tem sua vida transformada após socorrer – e beijar – um desconhecido que fora atropelado, causando grande repercussão na mídia.

Magiluth apresenta Viúva, porém honesta. Foto: Sergio Silvestri/FTC (Divulgação)

Magiluth apresenta Viúva, porém honesta. Foto: Sergio Silvestri/FTC (Divulgação)

O Grupo Magiluth também vai de Nelson Rodrigues, com a farsesca Viúva, porém honesta. Os atores se revezam em todos os papeis e imprimem um ritmo alucinante à história da filha do diretor de um dos mais influentes jornais do país, que teve seu marido morto, atropelado por uma carrocinha de picolé. A direção é de Pedro Vilela.

Espetáculos Internacionais

A mulher que matou os peixes (França)
Dez mil seres (Ilha da Madeira)
Extasis (Uruguai)
Sobre o conceito da face no filho de Deus (Itália)
Teatro Clown (Chile)
Monoblock – Poemas e textos sem eloquência de Juan José Gurrola (México)

Espetáculos Nacionais

Ah, a humanidade! E outras boas intenções (RJ)
Aos nossos filhos (SP)
As canções que você dançou pra mim (RJ)
As Levianas em Cabaré Vaudeville (PE)
Circo Negro (PR)
Esta Criança (PR/RJ)
Eudóxia de Barros (SP)
Mandinho (RS)
Não sobre o amor (SP/PR)
Negra Melodia – Zezé Motta (RJ)
O beijo no asfalto (PE)
Oh os belos dias (SP)
Olhos de onda – Adriana Calcanhotto (RJ)
Peep Classic Ésquilo (SP)
Tô Tatiando – Zélia Duncan (RJ)
Viúva, porém honesta (PE)
Centímetro (RS)

Espetáculo gacúchos– Concorrendo ao Prêmio Braskem em Cena Porto Alegre

A Noite Árabe – Verte e Grupojogo
Casa das Especiarias – Terpsi
CNPJ – Uma Comédia Totalmente Ficcional – Teatro Sarcáustico
Coração Randevu – com Zé Adão Barbosa e direção de Patrícia Fagundes
Eu Estive Aqui – Porto Alegre Cia de Dança
Estremeço – Cia Teatro Di Stravaganza
Las Cuatro Esquinas – Cia de Flamenco Del Puerto
Natalício Cavalo – Cia Rústica
O Baile do Anastácio – Oigalê
Parafuso de Algodão – Grupo ContraQueda

Espetáculos locais – Descentralização em 04 regiões

Serpentina ou Meu Amigo Nélson – Casa do Artista Rio-Grandense
O Baile do Anastácio – Usina do Gasômetro e Parque Farroupilha
Ilha dos Amores – Um diálogo sensual com a cidade – Arroio Dilúvio
Espaço Improviso – MEME Santo de Casa
Música de Cena – MEME Santo de Casa

A realização é da Prefeitura de Porto Alegre através da Secretaria Municipal de Cultura. Os patrocinadores são o Ministério da Cultura, Secretaria de Estado da Cultura, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Petrobras, Braskem, Caixa e as empresas Companhia Zaffari e Timac Agro.

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