Arquivo da tag: Teatro Experimental de Arte (TEA)

Feteag confirma Caruaru como
epicentro de descentralização cultural
Peças dos primeiros dias

Entrado do Teatro Lycio Neves no dia da apresentação do Magiluth. Foto: Jorge Farias

Plateia do Teatro Lycio Neves no dia da apresentação de Neva. Foto: Jorge Farias

Fabio Pascoal, diretor e curador do Feteag. Foto: Jorge Farias / Divulgação

A 34ª edição do Festival de Teatro do Agreste (Feteag) acontece sob a égide de uma provocação contemporânea urgente: como manter a humanidade em um mundo hiperconectado? A resposta do Teatro Experimental de Arte (TEA), idealizador e realizador do festival, parece estar na própria escolha curatorial desta edição – uma seleção que equilibra conexão global com intimidade humana, velocidade tecnológica com desaceleração contemplativa.

Em um momento histórico em que a digitalização ameaça fragmentar experiências coletivas, o Feteag 2025 se posiciona como um laboratório de resistência. As escolhas artísticas desta edição arquitetam encontros. Encontros entre públicos diversos, entre linguagens teatrais distintas, entre o cosmopolita e o regional – mas, sobretudo, encontros genuinamente humanos. A participação de La cocina Pública, do grupo chileno Teatro Container no  Assentamento Normandia é inspiração para muitos debates políticos e estéticos.

A curadoria demonstra maturidade ao compreender que estar “conectado com o mundo” não significa necessariamente aderir aos seus ritmos sufocantes. Pelo contrário: a programação funciona como um convite à desaceleração reflexiva, criando espaços onde a experiência teatral pode operar como antídoto ao frenesi urbano contemporâneo.

A aposta em reforçar o território de Caruaru mostra-se cada vez mais acertada. A cidade, que já não corresponde às memórias mais remotas de uma urbe menor, se posiciona como metrópole cultural em potencial. O crescimento urbano veio acompanhado de uma ampla oferta de serviços, mas é no setor cultural que reside ainda o maior espaço para desenvolvimento – lacuna que o Feteag vem preenchendo sistematicamente há mais de três décadas.

O que se observa nesta edição é uma inversão de fluxos culturais tradicionalmente centrípetos. Ao invés de drenar talentos e públicos para os grandes centros, o festival transforma Caruaru em um ímã cultural, atraindo artistas, críticos, curadores e espectadores de diversas regiões. Essa descentralização é geográfica e simbólica, questionando hierarquias culturais estabelecidas.

Talvez o fenômeno mais fascinante desta edição seja o engajamento de uma legião de jovens com o teatro. Estudantes que se transformam em multiplicadores culturais, divulgando, debatendo, vibrando com as propostas artísticas. Esse movimento de apropriação juvenil do festival sugere que estamos diante de uma mudança geracional no consumo e na produção cultural da região.

À mon seul désir (Ao meu único desejo), de Gaëlle Bourges (França)

À mon seul désir, na abertura do Feteag no Recife. Foto: Walton Ribeiro / Divulgação

A abertura do Feteag no Recife (9 e 10 de outubro) com a obra À mon seul désir, de Gaëlle Bourges, sublinha a ousadia curatorial do festival. Espetáculo faz uma desconstrução crítica e performática de um dos ícones da arte medieval, a série de tapeçarias A Dama e o Unicórnio. Bourges utiliza a obra original, rica em simbolismo alegórico sobre os cinco sentidos e o “único desejo”, como ponto de partida para um exame perspicaz da representação feminina na arte ocidental e das construções sociais em torno da feminilidade, pureza e desejo.

As tapeçarias originais, datadas do século XV, apresentam uma figura feminina idealizada, cercada por animais fantásticos e elementos florais, frequentemente interpretada como um emblema de virtude e castidade. Bourges, no entanto, subverte essa leitura ao despir as intérpretes, expondo a vulnerabilidade e a força do corpo feminino em sua forma mais crua. A encenação, com quatro artistas nuas, explora a dualidade entre a figura idealizada da Dama e os simbolismos contidos no bestiário da tapeçaria, como o leão e o unicórnio. Ao vestir as intérpretes com máscaras de animais como o coelho — tradicionalmente associado à fertilidade e, por vezes, à luxúria — e questionar a virgindade da Dama através da exposição do corpo feminino em diferentes perspectivas e movimentos, Bourges provoca e convida o público a repensar os códigos morais e estéticos que moldam nossa percepção da história da arte e da identidade feminina.

A transição de um movimento gracioso e quase pictórico para uma sarabanda frenética de Coelhos pode ser interpretada como uma libertação catártica dessas convenções, um rompimento com a passividade e a idealização atribuídas historicamente à mulher na arte. É um ato de reencarnação dos símbolos, onde o corpo presente e vivo das bailarinas se torna o veículo para uma nova narrativa. A bagagem da diretora, com seu interesse no corpo feminino como ferramentas de análise e expressão sobre autonomia, permeia toda a construção cênica, promovendo a ressignificação da imagem da mulher e a crítica ao olhar patriarcal na história da arte. À mon seul désir é, portanto, uma abertura que celebra a artea, mesmo tempo que a questiona, a transforma e a recontextualiza, proposta alinhada com a escolha curatorial deste ano do Feteag de ampliar diálogos e estéticas desafiadoras.

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Dancemos… que o mundo se acaba! (Bailemos… que se acaba el mundo!), de BiNeural-MonoKultur (Argentina)

Florencia Baigorrí e Maximiliano Carrasco Garrido, comandam as coreografias. Foto: Kari Carvalho / Divulgação

A performance Dancemos… que o mundo se acaba! (Bailemos… que se acaba el mundo!), do coletivo argentino BiNeural-MonoKultur, apresentada em Caruaru, é um exemplo notável de teatro imersivo e participativo que dialoga diretamente com o contexto social contemporâneo. A escolha de um espaço não-convencional como a Estação Ferroviária de Caruaru adiciona camadas de significado. Uma estação, por sua natureza, é um local de trânsito, de chegadas e partidas, de encontros e despedidas, e evoca a ideia de uma jornada coletiva e individual, ressoando com a temática da peça. A proposta de uma experiência coletiva mediada por fones de ouvido ressalta o desejo de romper com as barreiras tradicionais entre palco e plateia, convidando o público a ser co-criador da obra.

A peça é particularmente ressonante por ter sido concebida durante a pandemia de COVID-19, estabelecendo um paralelo provocador com a Epidemia da Dança de Estrasburgo de 1518. Essa conexão histórica explora a dança como uma resposta primal e, por vezes, incontrolável, a momentos de crise, ansiedade coletiva e incerteza existencial. A “Epidemia da Dança” foi um fenômeno em massa, onde centenas de pessoas dançaram incontrolavelmente por dias, muitas vezes até a exaustão ou morte. A ideia de dançar “como se o mundo estivesse acabando” chega como um ato de resistência, libertação e celebração da vida em meio à incerteza, seja ela o contágio dançante de 1518, a pandemia recente, ou as crises climáticas e sociais atuais.

A companhia, conhecida por envolver o público de forma ativa, transforma cada espectador em um cocriador da experiência. Os fones de ouvido criam “bolhas” individuais de percepção sonora – cada participante ouve instruções, músicas e narrativas que guiam seus movimentos e emoções. Paradoxalmente, essa individualização auditiva fomenta uma unidade coletiva, pois todos estão sincronizados por uma mesma “voz” invisível, mas livres para interpretar e expressar-se corporalmente. A coreografia e as instruções compartilhadas forjam uma unidade coletiva, permitindo que cada participante explore sua própria relação com o movimento, a música e o corpo em um espaço compartilhado. Dancemos… é um convite à catarse, à reconexão com o prazer físico e social da dança, e à redescoberta da capacidade do corpo de se expressar e de se libertar, um poderoso antídoto em tempos de isolamento e angústia.

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Magiluth honra local da construção de Édipo REC, em Caruaru

Giordano Castro e Gabriela Cicarello, com Édipo e Jocasta, na sessão do Feteag. Foto: Jorge Farias

Édipo REC é uma releitura vibrante e provocadora da tragédia clássica, concebida pelo Grupo Magiluth como um “jogo” cênico. A peça transforma o mito de Édipo em uma experiência imersiva que dissolve a fronteira entre palco e plateia. Utilizando uma linguagem que mistura teatro, festa e cinema, a montagem transforma Tebas em um Recife contemporâneo e fantasmagórico. Com um DJ no comando da trilha sonora pop e um Corifeu que filma a ação em tempo real, o espetáculo questiona a relevância da tragédia hoje e usa a tecnologia para refletir sobre a era da superexposição e das narrativas digitais.

Em sua apresentação em Caruaru, durante o Feteag 2025, a peça envolveu o público desde antes do início, com os atores interagindo e distribuindo cervejas do lado de fora do Teatro Lycio Neves. A primeira hora se desenrolou como uma festa efervescente, com os espectadores em pé, dançando ao som de ritmos pop. A reação da plateia foi selvagem e contagiante, com uma entrega total à atmosfera de festa. No entanto, essa mesma audiência mostrou-se surpreendentemente tímida quando provocada a um “beijaço” geral, revelando as complexidades e limites da participação mesmo em um ambiente de intensa interação.

O elenco demonstrou um entrosamento comparável a uma orquestra sinfônica, onde cada músico domina seu instrumento em perfeita harmonia com o conjunto. Roberto Brandão assumiu Tirésias com um cinismo elegante e debochado, enquanto Gabriela Cicarello entregou uma Jocasta altiva, permeada por uma melancolia profunda que transbordava em cada gesto. Um momento inesperado e marcante da sessão foi a ação de um espectador anônimo que lançou lixo orgânico no palco no final do primeiro ato. O cheiro pútrido de laranjas estragadas invadiu o teatro, atacando violentamente o olfato da plateia e materializando sensorialmente a “praga” de Tebas. Embora não fizesse parte do roteiro, o gesto adicionou uma camada visceral de caos e decadência que prenunciava tragicamente o segundo ato.

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A potência da indignação articulada em Fábulas de Nossas Fúrias

Coletivo Atores à Deriva (RN) transforma raiva em arte política. Foto: Jorge Farias

Fábulas de Nossas Fúrias, do Coletivo Atores à Deriva, do Rio GRande do Norte, foi apresentado no Feteag como um trabalho teatral que reverbera intensamente, soltando a voz de um acúmulo de silêncios e indignações historicamente reprimidas. Alex Cordeiro assina a direção e constrói a dramaturgia em parceria com Giordano Castro, criando um tecido dramatúrgico que se apropria dos conceitos de “fábula” e “fúria” como estruturas para uma análise das contradições humanas e sociais. A criação do espetáculo contou com a colaboração de Alex Cordeiro, Álvaro Dantas, Mattheus Corpo, Doc Câmara e Thuyza Fagundes, configurando um processo criativo coletivo que se reflete na multiplicidade de vozes e perspectivas presentes em cena.

A peça estabelece uma confrontação direta com a “Justa Raiva” teorizada por Paulo Freire, conceito que reconhece a indignação como um direito legítimo dos oprimidos e como força motriz para a transformação social. Essa perspectiva freireana entende a raiva como uma resposta consciente e necessária às injustiças, diferenciando-a da revolta cega ou do ódio destrutivo, posicionando-a como uma energia pedagógica e libertadora.

Os 17 anos de pesquisa do Atores à Deriva encontram neste espetáculo um tema que ressoa profundamente com as vivências e inquietações dos integrantes do grupo. O trabalho se constrói como um grito articulado, utilizando a fábula como estratagema narrativo para expor opressões contemporâneas de forma alegórica, mas impactante. 

O trabalho corporal desenvolvido pelo elenco (Álvaro Dantas, Doc Câmara, Mattheus Corpo e Alex Cordeiro), sob a direção de movimento e preparação corporal de Dudu Galvão, constitui um dos pilares fundamentais do espetáculo. O corpo em cena assume o território de expressão da fúria e da vulnerabilidade. Através de uma “animalização da existência”, os atores exploram fisicamente os impulsos e essas urgências. Movimentos que variam entre a contorção, a explosão e o recolhimento, respirações que ecoam a angústia, e olhares que carregam histórias de opressão, comunicam dimensões que a palavra sozinha não consegue abarcar. Na gestualidade que transita entre referências animais e a fragilidade humana, a peça encontra um de seus momentos mais potentes, estabelecendo uma comunicação direta e emotiva com a plateia.

Estruturada em fábulas contemporâneas protagonizadas por um macaco, uma baleia e um veado, a dramaturgia, aposta na capacidade de encarar frontalmente as violências do racismo, da misoginia e da homofobia. Cada fábula, embora autônoma, tece uma crítica direta a sistemas de poder e preconceito. A escolha de valorizar o termo “veado”, historicamente usado de forma pejorativa, para afirmar subjetividades gay e seus modos de amar, afirma-se como um ato de subversão linguística e política que espelha a proposta central da peça. Nesse contexto, ações cotidianas como “beijar na rua” adquirem caráter de “fúria” afirmativa, desafiando a heteronormatividade compulsória e as tentativas de invisibilidade. A dramaturgia inverte a lógica conservadora que hierarquiza identidades para celebrar resistências e modos diversos de existir.

A dramaturgia também evidencia a importância das redes de apoio e afetos na construção de subjetividades LGBTQIA+, demonstrando como a solidariedade coletiva se torna estratégia de sobrevivência e resistência em contextos hostis.

Grupo reflete sobre a masculinidade hegemônica. Foto: Jorge Farias

É fundamental ressaltar a relevância política de um grupo formado majoritariamente por homens que encara frontalmente as fragilidades e contradições da masculinidade hegemônica. O espetáculo desnaturaliza padrões machistas ao expor como as pressões de gênero afetam  os corpos masculinos, criando espaço para discussões sobre orientações sexuais e identidades de gênero que desafiam a rigidez dos papéis sociais impostos. Para um coletivo de homens, assumir publicamente as vulnerabilidades da masculinidade e os atravessamentos das questões de gênero constitui um ato de coragem artística e política que amplia os territórios possíveis para a expressão das diversidades.

No entanto, as próprias fissuras dramatúrgicas do espetáculo funcionam como dobras de articulação que revelam camadas complexas da experiência teatral. As transições entre as fábulas não operam por continuidade linear, mas por contaminação emocional e temática – um procedimento que exige do espectador uma disponibilidade para ir além de seus limites nessa construção receptora. Essas lacunas intencionais entre os núcleos narrativos constituem espaços de respiração onde o público processa as camadas de violência e resistência apresentadas. As aparentes descontinuidades se atuam, na verdade, como estratégias dramatúrgicas que permitem que cada fábula ressoe de forma independente antes de se articular com as demais.

Para alguns espectadores, essas dobras podem gerar momentos de desconexão; para outros, constituem territórios férteis onde as indignações pessoais encontram eco nas fúrias cênicas. A dramaturgia assume, assim, o risco de uma incompletude proposital, convidando cada plateia a preencher os intervalos com suas próprias experiências de opressão e resistência.

Beijo inspirado no espetáculo do Grupo Magiluth. Foto: Jorge Farias

Enquanto construção cênica, a dramaturgia e encenação explicitam suas influências e referências, como no beijo francamente inspirado na peça Dinamarca, do Magiluth, estabelecendo um diálogo intertextual que enriquece as camadas interpretativas do trabalho. Essas citações funcionam como reconhecimentos de uma genealogia teatral comprometida com a discussão de sexualidades e identidades dissidentes.

Apesar das questões estruturais apontadas, Fábulas de Nossas Fúrias confirma-se como um espetáculo relevante que articula um trabalho corporal consistente com uma dramaturgia provocativa. Sua capacidade de convocar o público a refletir sobre suas próprias indignações e os lugares de onde elas emergem faz da peça uma experiência marcante. O trabalho  impulsiona discussões sobre direitos de existência e expressão, consolidando o teatro como espaço fundamental para a articulação de afetos transformadores e para a celebração da resistência.

Neva, montagem de Marianne Consentino

Peça pensa a arte em tempos de colapso. Foto Jorge Farias

Neva, na montagem dirigida por Marianne Consentino apresentada no Teatro Lycio Neves durante o Feteag, afirma-se como um espetáculo de complexa densidade, que questiona os limites e contradições entre arte e política, entre a necessidade de criar e a urgência de agir. A peça, escrita pelo dramaturgo chileno Guillermo Calderón em 2005, explora paixões e desencantos que permeiam o universo teatral: a paixão pelo palco, pela arte de interpretar, pelo ofício de representar, mas também interroga as inércias que se justificam em nome da arte, os descompassos entre criação artística e compromisso político, e as dificuldades inerentes a uma arte efêmera que luta constantemente por sua própria sustentabilidade e relevância social.

No centro desta tensão encontra-se uma protagonista que insiste em encontrar o fio condutor de sua personagem enquanto o mundo literalmente desmorona do lado de fora do teatro, metáfora potente para os dilemas do artista contemporâneo diante das crises sociais e da constante necessidade de justificar a existência da arte em meio ao caos.

A escolha de Marianne Consentino por esta dramaturgia, integrada à sua pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, sob supervisão da professora Dra. Sonia Rangel, transforma a montagem em um laboratório de investigação sobre as relações entre teatro e memória, entre criação artística e contexto histórico. A diretora constrói um espetáculo que dialoga tanto com as urgências do texto original quanto com as ressonâncias que a obra adquire no contexto brasileiro contemporâneo, especialmente em um momento de polarização política e questionamentos sobre o papel da arte em tempos de crise democrática e de constantes ataques às políticas culturais.

O elenco formado por Vika Schabbach, Igor de Almeida, Gardênia Fontes e Guilherme Mergulhão constrói a atmosfera claustrofóbica de três atores refugiados em um teatro de São Petersburgo no fatídico Domingo Sangrento de 9 de janeiro de 1905. Neste dia histórico, manifestantes que marchavam pacificamente para entregar uma petição ao Czar, reivindicando melhores condições de trabalho, foram brutalmente fuzilados pela Guarda Imperial, evento que se tornaria o estopim da Revolução Russa de 1917.

A protagonista Olga Knipper, viúva de Anton Tchekhov e primeira atriz do Teatro de Arte de Moscou, surge como uma figura emblemática desta tensão entre luto pessoal e catástrofe coletiva. Incapaz de representar após a morte do marido por tuberculose seis meses antes, ela insiste em encenar repetidamente a morte de Tchekhov com seus colegas Masha e Aleko, numa compulsão que revela tanto a necessidade de elaborar o luto quanto a incapacidade de se conectar com a tragédia histórica que se desenrola nas ruas.

Vika Schabbach constrói essa complexa protagonista com notável sensibilidade e leveza, expondo as nuances das contradições de uma atriz que exterioriza suas próprias inseguranças através da arte. Suas interações com Igor de Almeida e Gardênia Fontes criam momentos de extrema cumplicidade, recriando a intimidade peculiar de uma sala de ensaio onde os limites entre pessoa e personagem se dissolvem, tornando visíveis os segredos íntimos do ofício teatral.

Um tecido visual com referências clássicas e registros da realidade atual. Foto: Jorge Farias

O material imagético construído por Consentino constitui um dos aspectos mais ricos e provocativos da montagem. A diretora elabora um tecido visual que trabalha deliberadamente com ironias e contrastes entre o que é dito no texto e as imagens projetadas, criando camadas interpretativas que expandem temporalmente a reflexão proposta por Calderón. As referências visuais transitam das clássicas sequências do Encouraçado Potemkin de Eisenstein, com sua famosa escadaria e a violência revolucionária, passando por filmes de propaganda stalinista, até alcançar vídeos contemporâneos que documentam opressões no Brasil e em toda a Nossa América Latina no século XXI. Esta montagem imagética inclui ainda registros dos movimentos patrióticos bolsonaristas, com suas ações frequentemente risíveis e grotescas, estabelecendo uma ponte provocativa entre a repressão czarista de 1905, os autoritarismos do século XX e as manifestações neofascistas atuais.

Particularmente instigante é a incorporação da dramaturgia incidental Estudo Nº 1 Morte e Vida do Grupo Magiluth, que funciona na linha do “plágio e combinação”, seguindo a estética antropofágica de Tom Zé. Esta inserção metateatral, onde uma cena do espetáculo do Magiluth surge dentro do próprio Neva, cria um efeito de mise en abyme que questiona as fronteiras entre criação e citação, entre originalidade e apropriação. Esta estratégia reforça o questionamento central da peça sobre a relevância e a serventia do teatro, ecoando a pergunta que atravessa toda a obra: para que serve a arte quando o mundo está em chamas?

A montagem de Consentino consegue, assim, atualizar a urgência do texto de Calderón para o contexto latinoamericano destes tempos. A questão sobre a importância da memória das ditaduras para a América Latina e o papel do teatro contemporâneo no avivamento desta memória traumática encontra na encenação uma pulsação cênica complexa.

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50 anos de teatro

Auto da Compadecida, do Teatro Experimental de Arte. Foto: Fábio Pascoal

Dentro das comemorações dos seus 50 anos e para homenagear mais uma vez Argemiro Pascoal, o Teatro Experimental de Arte (TEA) realiza uma mostra em Caruaru que começa hoje e segue até o dia 27. A abertura será no Teatro João Lyra Filho, às 20h, com o espetáculo Odemar, da Cia Máscaras de Teatro. A programação inclui várias montagens da cidade, a peça Aquilo que meu olhar guardou para você, do Magiluth e, para encerrar, Auto da Compadecida, do próprio TEA. Os ingressos para a mostra são gratuitos e podem ser retirados com uma hora de antecedência, na bilheteria dos teatros.

Confira a programação:

Dia 18/10, às 20h
Odemar, Cia Máscaras de Teatro – Recife/PE
Onde: Teatro João Lyra Filho

Dia 19/10, às 20h
Roma, da Guthiere Produções – Caruaru/PE
Onde:Teatro Rui Limeira Rosal / SESC

Dia 19/10, às 21h
Rainha, da Cia Gabriel Sá – Caruaru/PE
Onde:Teatro Rui Limeira Rosal / SESC

Dia 20/10, às 20h
Frei Molambo, da Naldo Venâncio – Caruaru/PE
Onde:Teatro Rui Limeira Rosal / SESC

Dia 21/10, às 20h
111, da Alumiarmente – Caruaru/PE
Onde:Teatro Rui Limeira Rosal / SESC

Dia 24/10, às 20h
Aquilo que meu olhar guardou pra você, do Grupo Magiluth – Recife/PE
Onde:Teatro Rui Limeira Rosal / SESC

Dia 25/10, às 20h
Um Inimigo do Povo, do Grupo de Teatro Cena Aberta do SESC – Caruaru/PE
Onde:Teatro Rui Limeira Rosal / SESC

Dia 26/10, às 20h
Exibição do filme Deus danado
Onde:Teatro Rui Limeira Rosal / SESC

Dia 27/10, às 20h
Auto da Compadecida, do Teatro Experimental de Arte – Caruaru/PE
Onde:Teatro Rui Limeira Rosal / SESC

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Vinte anos de festa cênica

Sua Incelença Ricardo III

Começa nesta terça-feira, com o espetáculo Sua Incelença, Ricardo III, do grupo Clowns de Shakespeare, de Natal (RN), o Festival de Teatro de Curitiba. A montagem dirigida por Gabriel Villela, reúne cantoria de funerais nordestinos com rock and roll para tratar de poder. É o encontro entre o sertão brasileiro e a Inglaterra elisabetana. São duas apresentações, hoje, dia do aniversário da cidade, e amanhã, ambas no Bebedouro do Largo da Ordem, um dos cartões postais da capital paranaense.

Este ano, o Festival de Curitiba completa 20 anos e busca “reconhecer no teatro brasileiro atual uma sintonia com o país vibrante e intenso” e que reflita a renovação da linguagem cênica.

Com uma perspectiva de reunir na capital do Paraná quase 3 mil artistas em 31 peças da mostra principal e quase 400 no Fringe, o festival vai até o dia 10 de abril.

Vinte anos depois da primeira edição, o teatro continua a ocupar o centro da cena, mas hoje tem coadjuvantes que enriquecem o encontro, com produções de dança, circo, stand up, música, cinema e gastronomia, além de inovações tecnológicas. Entre outros, o festival vai abrigar shows musicais, com Maria Gadú e Música de brinquedo, do Pato Fu.

Para a mostra principal foram selecionadas 11 companhias. Os mineiros do Galpão, atacam com uma versão de Tio Vânia, escrito entre 1896 e 1897 por Anton Tchekhov, com direção de Yara de Novaes. Cláudio Botelho e Charles Moeller levam o Carnaval para o Teatro Guairão com o musical É com esse que eu vou.

Marina une o conto A Sereiazinha, de Hans Christian Andersen, com as canções praieiras de Dorival Caymmi.

Marina

Nascida no Paraná e radicada no Rio de Janeiro, a Armazém Cia de Teatro apresenta o premiado Antes da coisa toda começar. É a 19ª montagem da companhia, desta vez uma dobradinha dramatúrgica de Maurício Arruda de Mendonça e Paulo de Moraes, esse último também assina a direção. A trupe do Armazém faz quatro apresentações no Festival.

A Cia. de Dança Deborah Colker fará a pré-estreia de Tathyana, peça baseada em Eugene Onegin, o romance em versos publicado em 1832 por Aleksander Puchkin.

Tathyana

Os Satyros estreiam O último stand up, com direção de Fábio Mazzoni; uma investigação sobre pessoas comuns do centro de São Paulo, onde fica a sede do grupo. A encenação é inspirada no poema Pátroclo ou o Destino, de Marguerite Yourcenar. Já a Sutil Companhia encena Trilhas Sonoras de Amores Perdidos.

Tercer Cuerpo é a montagem internacional da mostra, espetáculo do diretor argentino Cláudio Tolcachir.

Para montar a grade da programação principal, os curadores se guiaram por quatro linhas: movimento forte de teatro de grupo, influência de textos nacionais, onda de musicais e confusão de gêneros. “O público está mais participante, exigente e questionador”, atesta o diretor do festival, Leandro Knopfholz. Segundo ele, o festival cresceu mais do que os criadores (o próprio Knopfholz, Cássio Chamecki e Victor Aronis) imaginaram em 1992. De lá pra cá, foram contabilizados 2,8 mil espetáculos, com cerca de 1,6 milhão de espectadores.

De Caruaru – Dos quase 400 espetáculos do Fringe, a mostra paralela do Festival, um deles é pernambucano. Trata-se de A metamorfose, produzido pelo Teatro Experimental de Arte (TEA), de Caruaru. Dirigido por Fábio Pascoal, o espetáculo é baseado na obra de Franz Kafka. No elenco estão as atrizes: Julliana Soares e Geysiane Melo, que irão se apresentar dias 4, 5 e 6 de abril.

Metamorfose Foto Euclides Ferreira

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Desafio Kafka em Curitiba

Teatro Experimental de Arte / Foto: Euclides Ferreira

Numa miscelânea de 373 espetáculos que vão participar da mostra paralela do Festival de Teatro de Curitiba, no Paraná, entre os dias 29 de março e 10 de abril, apenas um deles é pernambucano. Na mostra principal, que tem 31 montagens, não há nenhum representante do estado.

A metamorfose é uma produção do Teatro Experimental de Arte (TEA), de Caruaru. O Fringe, como é chamada essa programação de espetáculos que não participa da grade principal, e ocupa todos os espaços possíveis da cidade, não custeia despesas como passagens aéreas, hospedagem e alimentação para os grupos que vão se apresentar. O maior interesse para esses espetáculos é a divulgação, e ainda o fato de integrar um festival que está completando 20 anos.

É nisso que aposta Fábio Pascoal, diretor da encenação pernambucana. “Acompanho o festival em Curitiba regularmente, desde 2003, como curador do Festival de Teatro do Agreste (Feteag), realizado em Caruaru. E o que vejo em Curitiba é uma grande vitrine. Uma possibilidade de outras pessoas acessarem o espetáculo, inclusive curadores”, explica.

A montagem de Caruaru é baseada na obra de Franz Kafka. “É uma peça que se divide muito bem entre momentos de narrativa e ação, a partir das experiências vividas por mãe e filha”, conta. No palco, apenas duas atrizes: Julliana Soares e Geysiane Melo. Isso, aliás, facilitou a ida ao Paraná. “São duas atrizes e dois técnicos. Uma equipe pequena. Estamos imaginando gastar em torno de R$ 5 mil”, avalia o diretor, que também assina a iluminação. A sonoplastia é de Paulo Henrique.

Teatro Experimental de Arte / Foto: Euclides Ferreira

A estreia de A metamorfose foi em 2006; em 2008, o grupo fez uma temporada no Teatro Joaquim Cardozo, no Recife. Mas é possível dizer que a peça já tem uma carreira nacional: participou dos festivais de Londrina, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, esteve em João Pessoa.

Em Curitiba, os pernambucanos vão fazer três apresentações – nos dias 4, 5 e 6 de abril, em horários bem distintos: às 11h, às 14h, e às 20h. “Como são muitos espetáculos se apresentando ao mesmo tempo, sabemos que é difícil ser visto, ganhar a concorrência. Contratamos até uma assessoria de imprensa local, para tentar buscar ainda mais espaço”, conta.

Essa é a primeira vez que o Teatro Experimental de Arte, criado há 49 anos por nomes como o casal de atores Argemiro Pascoal e Arary Marrocos, participa do festival. É também a primeira direção de Fábio Pascoal. A última montagem do grupo, que tem como sede o Teatro Lício Neves e cerca de 20 integrantes, estreou ano passado. Foi Auto da Compadecida, com direção de José Carlos.

Clowns de Shakespeare

Grupo potiguar abre festival – Se ano passado nenhum espetáculo nordestino entrou na grade da mostra principal do Festival de Curitiba, nesta edição, uma companhia do Rio Grande do Norte vai abrir a programação, no dia 29, mesma data do aniversário da capital paranaense. É a Clowns de Shakespeare, que vai estrear a montagem Sua Incelença, Ricardo III. A direção é do mineiro Gabriel Villela. “Há três anos trabalhamos com essa ideia. É um espetáculo a céu aberto, que é primo-irmão do Romeu e Julieta”, explica o diretor. A montagem, aliás, vai participar de um festival de teatro na Rússia, em maio; se apresenta em Moscou e ainda excursiona por outras cidades do interior.

Para montar a programação curitibana, o diretor Leandro Knopfholz diz que os curadores perceberam quatro tendências no teatro brasileiro. “O teatro de grupo está voltando. É também mais forte a influência dos textos nacionais; temos uma onda de musicais; e vimos a confusão de gêneros que se estabelece”, afirma o diretor. Todas essas questões apontadas por Knopfholz, se refletem nas escolhas para esta 20ª edição do festival.

Armazém Companhia de Teatro

Três dos grupos mais importantes do país, por exemplo, estão na mostra principal: o Galpão, de Minas Gerais, os Satyros, de São Paulo, e a Armazém Companhia de Teatro, radicada no Rio de Janeiro. Essa última, vai apresentar o seu 19º espetáculo: Antes da coisa toda começar, fruto da parceria dramatúrgica de Maurício Arruda de Mendonça e Paulo de Moraes, que assina a direção. Os Satyros estreiam O último stand up, com direção de Fábio Mazzoni; uma investigação sobre pessoas anônimas do centro de São Paulo. E o Galpão estreia Tio Vânia, direção de Yara de Novaes, a partir da obra de Tchekhov, que tem no sentimento do fracasso humano um de seus nortes.

Os Satyros

Grupo Galpão

Além da mostra principal e do Fringe, outros eventos também se agregam ao festival, como o Risorama, que promove apresentações de stand up (aliás, o pernambucano Murilo Gun, um dos precursores do stand up por aqui, também participa do festival), o Gastronomix, É tudo improviso, PUC Ideias (que terá debates), e Sesi dramaturgia. Este ano, o festival tem ainda shows musicais, como Maria Gadú e Música de brinquedo, do Pato Fu. “O Festival de Curitiba não perde o foco. Continuamos sendo um festival que mostra as tendências do teatro brasileiro, um ponto de eixo e de encontro de quem faz e assiste teatro”, finaliza o diretor.
(Essa minha matéria foi publicada neste domingo, 27 de fevereiro, no Diario de Pernambuco)

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