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O Magiluth desnuda as engrenagens do colapso
Crítica do espetáculo Estudo Nº1: Morte e Vida

Temporada comemorativa dos 20 anos do grupo. Foto: Vitor-Pessoa

                                           Por Ivana Moura

“Não faltaram alertas. As sirenes apitaram o tempo todo. A consciência dos desastres ecológicos é antiga, viva, fundamentada, documentada, provada, mesmo desde o início da chamada ‘era industrial’ ou ‘civilização da máquina’. Não podemos dizer que não sabíamos.  Contudo, existem muitas maneiras de saber e de ignorar ao mesmo tempo”, pondera o filósofo francês Bruno Latour no seu livro Diante de Gaia: Oito Conferências sobre a Natureza no Antropoceno (Ubu Editora, 2020), um dos mais contundentes manifestos sobre as alterações climáticas que assombram nosso presente. Para Latour, vivemos um momento de profunda ruptura, em que as certezas da modernidade desmoronam diante de Gaia, essa força indomável que reage às agressões humanas e nos obriga a repensar radicalmente nossa relação com a Terra.

É nesse cenário de urgência e perplexidade que se insere Estudo Nº1: Morte e Vida, um mergulho visceral nas entranhas do nosso tempo, conduzido por um grupo de artistas-pesquisadores que se lançam no desafio de atualizar a obra de João Cabral de Melo Neto à luz das urgências do presente. Nessa travessia, o Grupo Magiluth – formado pelos atores Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral, Lucas Torres e Pedro Wagner (que não está no elenco desta montagem) – mobiliza um arsenal de recursos cênicos e dramatúrgicos para expor as engrenagens do capitalismo global e seus impactos sobre a vida humana e o planeta. A peça está em cartaz no Teatro Arraial Ariano Suassuna como parte das comemorações dos 20 anos de trajetória da trupe recifense.

Com direção de Luiz Fernando Marques e direção musical de Rodrigo Mercadante, o Magiluth implode as fronteiras entre o teatro, a performance e a instalação para dissecar as vísceras expostas de um sistema que produz morte e desigualdade em escala mundial. No palco-mundo, os “severinos” do nosso tempo ganham carne, osso e grito: refugiados climáticos, trabalhadores precarizados, populações deslocadas pela seca, pelas guerras e pela fome.

Ao longo do espetáculo, somos chacoalhados por imagens que nos arrancam da zona de conforto e nos obrigam a encarar a realidade crua da crise que nos devora. Das enchentes que arrasaram o sul do Brasil à elevação do nível dos oceanos que ameaça engolir nações insulares como Kiribati, o Magiluth cartografa a geografia desigual dos desastres ambientais, expondo como eles atingem de forma desproporcional os mais pobres e marginalizados. Uma radiografia implacável da insustentabilidade do modelo de desenvolvimento predatório que rege nossa civilização.

Ressoa no palco as consequências da crise climática no Rio Grande do Sul, que são devastadoras: mais de 1 milhão de pessoas impactadas, mais de cem mortos e desaparecidos. Um cenário de guerra alertado pela ciência há décadas e que hoje é parte da nova (e grave) realidade do clima. Uma realidade que se impõe de forma brutal, escancarando a negligência e a ganância dos políticos abutres que historicamente trataram a questão ambiental com desprezo no Brasil.

É importante lembrar que Estudo Nº1: Morte e Vida estreou em janeiro de 2022, em um momento de grande tensão política no país, às vésperas de uma eleição presidencial decisiva. Naquele contexto, o espetáculo já trazia em suas camadas de sentido uma reflexão sobre o papel crucial do Nordeste e de seu povo na resistência democrática, como ficou evidente com a vitória de Lula sobre Bolsonaro, graças em grande parte aos votos nordestinos.

Agora, em maio de 2024, na temporada comemorativa dos 20 anos do Magiluth, as questões ambientais abordadas na peça ganham ainda mais relevância e urgência, diante da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul.

Mas Estudo Nº1: Morte e Vida não se limita a um diagnóstico sombrio do presente. Ele é, sobretudo, um grito de alerta e convocação, que nos desafia a reimaginar radicalmente nossa relação com a natureza, com os outros seres e com o próprio sistema econômico que nos governa. Ao atualizar a obra de João Cabral à luz das urgências do nosso tempo, o Magiluth reafirma o papel da arte como trincheira de luta por um mundo mais justo e sustentável, capaz de fabular outros futuros possíveis a partir dos escombros do Antropoceno.

Essa postura implica em reconhecer que não há saídas fáceis ou individuais para a crise sistêmica que vivemos, e que precisamos construir coletivamente novas formas de existência e coexistência na Terra. Formas que passam necessariamente por uma reinvenção radical de nossa relação com os outros seres, com os ecossistemas e com os próprios limites do planeta. Uma reinvenção que exige criatividade, coragem e compromisso ético-político, para além das fórmulas prontas e das soluções de mercado.

É nesse sentido é preciso prestar atenção e dar visibilidade às histórias, práticas e modos de vida que brotam nas brechas e nas ruínas do capitalismo. Modos de vida que muitas vezes são invisibilizados ou desqualificados pelos discursos hegemônicos, mas que carregam consigo sementes de resistência e reinvenção.

Cena do canavial, trabalhador da cana dança Michael Jackson. 

Sugiro que o espetáculo do Magiluth se alinha a uma postura ético-estética de habitar as contradições do presente e de buscar saídas coletivas para a crise que nos assola. Uma postura que se traduz na própria forma fragmentária e multivocal da encenação, que recusa as narrativas lineares e totalizantes em prol de uma dramaturgia mais aberta e porosa, em condições de acolher diferentes vozes, saberes e modos de existência.

Ao mesmo tempo, ao trazer para o palco os corpos e as histórias dos “severinos” do nosso tempo – os refugiados climáticos, os trabalhadores precarizados, as populações deslocadas pela seca e pela fome -, o Magiluth parece abraçar a densidade poética desses modos de vida que resistem e reexistem nas margens do capitalismo. Modos de vida que carregam consigo não apenas o testemunho da catástrofe em curso, mas também a potência de outros mundos possíveis.

Bruno Latour no prefácio de Diante de Gaia, escrito para a edição brasileira lançada em 2020, fala que, naquele momento, o Brasil enfrentava uma verdadeira “tempestade perfeita”, com a sobreposição de múltiplas crises – sanitária, política, ecológica, moral e religiosa. Um cenário agravado pela postura negacionista e irresponsável do governo Bolsonaro, que não apenas negligenciou a gravidade da pandemia, mas também aprofundou o desmonte das políticas ambientais e o ataque aos direitos dos povos indígenas e das populações mais vulneráveis.

Na estreia de Estudo Nº1: Morte e Vida em janeiro de 2022, vivíamos em meio às incertezas de um ano eleitoral decisivo para os rumos do país. Naquele momento, a cena em que os atores entoam “olé, olé, olá, Severino, Severino” ganhava uma conotação política explícita, com o público progressista respondendo com o grito de “Lula lá”. Uma manifestação espontânea da esperança de que a eleição de Lula representasse uma inflexão no enfrentamento das crises que assolavam (e ainda assolam) o Brasil.

Passados dois anos, e com Lula novamente à frente do governo, o espetáculo ganha novas camadas de sentido em sua temporada comemorativa dos 20 anos do Magiluth. Se, por um lado, a cena do “olé, olé, olá”” perde protagonismo, por outro ela se reveste de uma dimensão histórica, como um lampejo da memória de um tempo que não podemos esquecer. Um tempo em que a própria possibilidade de vislumbrar outros futuros parecia ameaçada pela sombra do autoritarismo.

Paralelamente, as questões das migrações e da crise climática, que já estavam presentes no espetáculo desde sua estreia, ganham ainda mais relevância e urgência no contexto atual.

Mudar nossa ideia sobre a Terra, sobre a vida, sobre nós mesmos. Eis o desafio que o Magiluth nos lança, com a coragem de quem sabe que a arte não pode mais se dar ao luxo da inocência.  E é nessa travessia incerta, feita de perguntas sem resposta e de gestos de reinvenção, que o teatro se faz trincheira e semente, luto e luta, morte e vida severina. Um teatro que nos ajuda a fabular outros mundos, antes que seja tarde demais.

Serviço
Espetáculo Estudo nº1: Morte e Vida
Teatro Arraial Ariano Suassuna (Rua da Aurora, 457, Boa Vista – Recife-PE)
Dias: 9, 10, 11, 12, 16, 17, 18 e 19 de maio de 2024
Horários: Quintas, sextas e sábados, às 20h; Domingos, às 17h
R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia), à venda no Sympla
Classificação indicativa: 16 anos

Leia Mais. A crítica da temporada de estreia em 2022:  Ensaio nº 1: Morte e Vida. 2022.

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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