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Epifanias cênicas: arte é política
Crítica: Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém]

Apresentação do espetáculo Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém} em Porto Alegre. Foto: Adriana Marchiori

Renata Sorrah e cia brasileira de teatro em Porto Alegre

Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre, lotado nas duas sessões da peça. Foto: Adriana Marchiori

Todo o mundo ama Renata Sorrah. Talvez não todo o mundo do mundo inteiro, porque há quem prefira exercitar sentimentos menos nobres. O que é incontestável, porém, é que o público que lotou as duas sessões do Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém], no Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre, na quarta e quinta-feira, 4 e 5 de junho, na programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, vibrou numa emoção coletiva de admiração e carinho. Um fenômeno semelhante já havia sido testemunhado durante a temporada no SESI-SP, onde o espetáculo somou 64 apresentações entre 22 de agosto e 1º de dezembro de 2024, atraindo cerca de 27.400 pessoas. Mas bah, tchê, essa experiência no Rio Grande do Sul foi extraordinária. A atriz gaúcha Sandra Possani foi uma das pessoas que se emocionou do início ao fim da peça.

Em Porto Alegre, alguns espectadores mais afoitos buscavam eternizar os momentos pós-espetáculo em selfies. No contexto da peça, qualquer receio de que o público gaúcho, por vezes associado a um certo conservadorismo, fosse reticente com a linguagem contemporânea da Companhia Brasileira de Teatro desfez-se por completo. A plateia, composta por amantes das artes e especialmente do teatro, mostrou-se aberta e disposta a mergulhar de cabeça na proposta, permitindo-se expandir seus horizontes.

Essa receptividade entusiástica transformou-se em uma declaração coletiva de benquerença. Todas ali desejavam expressar, e o fizeram com uma ovação calorosa: “Nós amamos sua arte”. Muitos, naquele momento, sentiram-se conectados às emoções que a canção Beatriz tão bem entoa – aquela valsa composta por Edu Lobo, com letra de Chico Buarque, e eternizada na voz de Milton Nascimento: “… Olha / Será que é uma estrela / Será que é mentira / Será que é comédia / Será que é divina / A vida da atriz / Se ela um dia despencar do céu / E se os pagantes exigirem bis / E se o arcanjo passar o chapéu / E se eu pudesse entrar na sua vida…” – versos que capturam essa mescla de admiração distante e desejo de proximidade que tantos nutrimos por grandes artistas.

Curiosamente, essa relação entre público e celebridade o espetáculo questiona e desdobra. As falas da peça refletem essa obsessão de forma crítica e bem-humorada: Deixa ela… “Olha como ela sorri. Olha como ela anda… olha como ela dirige o carro.” A dramaturgia e a encenação de Marcio Abreu jogam com o conceito de celebridade de forma sagaz, agenciando sua desconstrução. Em cena, a “estrela” Renata Sorrah é instigada a ir além do que se espera de sua persona pública, revelando a humanidade e as complexidades por trás do ícone.

As grandiosas projeções do rosto de Sorrah em cena atuam como um recurso estético impactante e como uma metáfora visual potente que, ao magnificar a figura da atriz a proporções monumentais, força o espectador a um escrutínio íntimo sobre a construção da celebridade. Essa magnificação aprofunda o debate para além do universo estético e performático, adentrando questões urgentes e contemporâneas, como a ascensão de figuras desqualificáveis no campo político e a criação de um terreno fértil para a proliferação desenfreada de desinformação. A justaposição da imagem da atriz – uma figura de culto no teatro, na televisão e no cinema brasileiros – com a crítica incisiva a esses fenômenos sociais e políticos, estabelece um paralelo inquietante e insinua que a mesma lente crítica aguçada, aplicada ao estudo do culto de personalidades e à construção de ícones, deve ser rigorosamente direcionada à arena social e política.

Rodrigo Bolzan e Renata Sorrah. Foto: Adriana Marchiori

Bárbara Arakaki, Rodrigo Bolzan, Bianca Manicongo (Bixarte), Renata e Rafael Bacelar.Foto: Adriana Marchiori

Em um momento da encenação, Renata Sorrah remonta a uma epifania vivenciada na década de 1970, no limiar de um ensaio rotineiro de A Gaivota, onde interpretava Nina. Nesse trajeto cotidiano, uma súbita e profunda clareza se manifestou. Uma epifania, em sua essência, é isso: um lampejo de percepção tão profundo e inesperado que uma verdade fundamental irrompe na consciência, um ponto de inflexão existencial que altera a perspectiva do indivíduo. Essa reminiscência, meticulosamente partilhada com a plateia, irradia-se como feixes de luz que permeiam e moldam cada gesto, cada intenção e cada palavra proferida em cena. É essa memória fundacional que nutre a complexa engrenagem criativa do espetáculo, desempenhando o papel de um pilar que conecta a experiência pessoal e íntima da atriz e do elenco às questões intrínsecas de dilemas e complexidades do viver e à prática artística.

A dramaturgia, elaborada a partir da pesquisa e criação coletiva de Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria, estrutura-se em complexos estratos subjetivos sobrepostos, que deliberadamente conduzem o espectador por intrincados deslocamentos temporais e fissuras na consciência. A peça de Tchekhov move-se como um eco ressonante, uma matriz referencial e temática que possibilita explorar os dilemas entre arte e vida, idealismo e realidade. As sequências articulam-se não por encadeamento causal tradicional, mas por associações poéticas e excertos dialógicos forjados em improvisações, o que confere à narrativa um caráter fluido e em constante devir, resistindo a interpretações fechadas. A experiência performática incorpora recursos metateatrais, como a autorreferencialidade ao ato de criação e menções diretas ao processo de ensaio, desvelando a própria construção da obra e convidando o público a refletir sobre a natureza da representação.

O elenco, composto por Rentata, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo (Bixarte), revela-se uma verdadeira constelação de talentos. Cada integrante concede voz à sua singular vivência e corporeidade, tecendo-as à cena e enriquecendo a intrincada trama de subjetividades que a peça desdobra.

A Trajetória de uma Parceria Excepcional

Ao longo de mais de treze anos, a colaboração entre a Companhia Brasileira de Teatro, sob a direção de Marcio Abreu, e a atriz Renata Sorrah firmou-se como um dos encontros mais inspiradores e influentes no panorama teatral contemporâneo brasileiro. 

O capítulo inaugural dessa trajetória remonta a 2012, com Esta Criança, texto do dramaturgo francês Joël Pommerat. Na montagem, a Companhia, com Sorrah e o elenco de Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha, explorou dez situações-limite entre pais e filhos, valendo-se de estruturas fragmentadas e economia de gestos para revelar a urgência das emoções familiares.

Em 2015, a parceria firmou-se em Krum, texto de Hanoch Levin, onde a violência simbólica e o humor ácido integraram-se à pesquisa corporal e vocal do coletivo. O elenco contava com Cris Larin, Danilo Grangheia, Edson Rocha, Grace Passô, Inez Viana, Ranieri Gonzalez, Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan e Rodrigo Ferrarine. Naquele momento, se aprofundava uma linguagem teatral pautada na metalinguagem, na desarticulação de linearidades narrativas e na tensão entre corpo, memória e dicção, elementos que seriam mais explorados em trabalhos futuros.

Com Preto (2017), a colaboração ascendeu a um novo patamar de excelência artística, com a participação de Renata Sorrah no elenco, ao lado de Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan/Rafael Bacelar (em alternância).

Elenco da peça .Foto: Adriana Marchiori

Quando Renata e Bianca trocam de texto para focar no lugar de fala. Foto: Adriana Marchiori

Em Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém], os artistas demonstram, com uma eloquência poética que ressoa profundamente, que o ato de criar é intrinsecamente político, pois a arte não é apenas estética, mas uma expressão de agência e visão de mundo. Cada manifestação artística autêntica, ao propor novas perspectivas e realidades, afirma a possibilidade tangível de um mundo mais equitativo e sensível. É um gesto vital de resistência contra a uniformização do pensamento, a imposição de ideologias dominantes e as diversas formas de opressão social e cultural, abrindo espaço para a diversidade, a empatia e a transformação coletiva.

A vertente política da montagem assume contornos nítidos no atual panorama brasileiro, marcado pela polarização e pela emergência de discursos autoritários. A peça perscruta dilemas sociopolíticos sem resvalar no didatismo ou no panfletarismo, incorporando comentários sobre a história recente do país.

Em uma sequência de particular impacto, Renata Sorrah tece, por meio de frases concisas e incisivas, uma narrativa que imbrica eventos coletivos – a prisão de Lula, as manifestações feministas, o impeachment de Dilma, a primeira deputada trans no Congresso Nacional, a reeleição de Lula. A força dessa sequência reside na capacidade de evocar a memória coletiva sem a necessidade de explicações exaustivas, confiando na inteligência e na vivência do público. Em um período em que a cultura e a liberdade ainda sentem o impacto dos ataques sistemáticos empreendidos por aquele malfadado governo que nunca deveria ter ocupado o poder, a própria existência desta encenação, com sua complexidade estética e seu compromisso com o pensamento crítico, emerge como um gesto de insubmissão e como farol.

Os corpos em cena configuram-se como territórios de discurso e resistência, onde a presença se torna eloquente e irradiadora. A repetição calculada de gestos e falas e a pluralidade interpretativa – exemplificada quando vários atores proferem o mesmo texto e reiteram o gesto – compõem uma gramática teatral que desafia expectativas e convida o público a uma experiência sensorial e intelectual, desmitificando o processo criativo. Uma cena emblemática dessa dimensão surge quando uma atriz cisgênero, Renata, e uma atriz transgênero, Bianca Manicongo (Bixarte), trocam seus textos, uma discorrendo sobre corporalidades trans e a outra sobre etarismo, revelando como certos discursos, ao transitarem entre diferentes corpos, expõem profundas contradições sociais e a arbitrariedade de quem é autorizado a falar sobre certas experiências. Essa inversão provoca um questionamento crucial: a quem realmente compete falar em nome do outro, e como a identidade de quem se expressa influencia decisivamente a percepção e interpretação do que é dito.

Rafael Bacelar, montado de drag queen, faz um elogio ao lado esquerdo (do corpo). Foto: Adriana Marchiori

Humor e crítica na performance de Bacelar. Foto: Adriana Marchiori

Intérprete dubla Sacrifice, de Elton John. Foto: Adriana Marchiori

Em sua sequência de dança de caráter político, Rafael Bacelar constrói uma performance que reafirma a corporalidade como campo de disputa ideológica e expressão de identidades dissidentes. O artista inicia a cena ouvindo conselhos maternos em áudio enquanto se monta como drag queen perante os espectadores, estabelecendo uma intimidade transgressora com o público e borrando as fronteiras entre o pessoal e o político. Essa ação convida o espectador a um espaço de cumplicidade e sublinha a performatividade inerente à construção da identidade. Em um surpreendente desdobramento cênico, esse áudio materno é dublado, em vídeo projetado, por Renata Sorrah, que já havia estabelecido com Bacelar outra relação mãe-filho em cena de A Gaivota, criando uma camada adicional de intertextualidade e afeto que enriquece a narrativa. Durante a performance, ele tece um elogio poético ao lado esquerdo do corpo, instituindo uma metáfora explícita que alude aos partidos de esquerda no Brasil, um gesto de clara filiação política e artística.

Com humor perspicaz e crítica incisiva, Bacelar provoca a plateia por meio de uma comunicação direta e desafiadora: encara os espectadores, setoriza a assistência em “direita”, “esquerda” e “centrão”, gerando uma tensão permeada de comicidade que convida à autoanálise e ao riso nervoso. Essa interação performática força o público a confrontar suas próprias posições e preconceitos. O clímax da performance ocorre com uma potente dublagem da canção Sacrifice de Elton John, momento em que a plateia é completamente arrebatada pelo showman, que transforma a vulnerabilidade em força e a arte em um grito de liberdade. São múltiplas tessituras que se entrelaçam, constituindo uma vivência que se configura como um manifesto corpóreo-político pulsante e inesquecível.

Campo de atuação se expande e comprime no palco. Foto: Adriana Marchiori

Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo (Bixarte). Foto: Adriana Marchiori

A visualidade de Ao Vivo transpõe o fluxo mental para o espaço cênico, alternando entre abstração e concretude. Em cena, os próprios atores manipulam estruturas minimalistas e móveis, como cadeiras, mesas ou estantes de partitura, transformando-as em elementos cenográficos dinâmicos que criam transições entre distintos recortes de memória e estados de consciência. Essa manipulação é funcional e performática, sublinhando a maleabilidade da mente e a construção subjetiva da realidade. A iluminação, trabalhada com precisão cirúrgica nos focos e variações sutis de intensidade e cor, demarca e borra as fronteiras entre realidade e imaginário, salientando rupturas temporais e os jogos performáticos que desafiam a percepção do público.

Bianca Manicongo canta lindamente. Foto: Adriana Marchiori

Atriz cantora evoca o anseio por um país mais justo. Foto: Adriana Marchiori

Ao Vivo constrói uma poética da reexistência onde imaginação e memória se tornam instrumentos de compreensão e transformação da realidade. As reflexões sobre a perenidade da arte, o significado do ofício teatral e a efemeridade interpenetram-se com a crítica sociopolítica, culminando em momentos de beleza e profundidade. Em passagem emblemática, Bianca Manicongo evoca o anseio por um país onde seja possível “beijar bocas, beber água limpa, abraçar a floresta, brindar suas existências” – uma invocação poética do desejo coletivo por um Brasil mais justo, acolhedor e em harmonia com a natureza, um manifesto de utopia possível que ressoa como um chamado à ação e à esperança.

A música pulsa e ressoa com extraordinária potência. A dramaturgia sonora, urdida por Felipe Storino, constitui um elemento estruturante da encenação, operando como um fio condutor emocional e narrativo. A sonoridade ecoa para a plateia e encontra na voz inconfundível de Bianca Manicongo sua expressão mais sublime, especialmente na interpretação de Love is a Losing Game de Amy Winehouse. Há uma melancolia profunda nessa canção, que reflete o amor como um jogo de azar, uma aposta incerta, e ressoa com as vulnerabilidades e os riscos inerentes à vida artística e à militância política, particularmente para corpos dissidentes e historicamente perseguidos e ameaçados. Contudo, o espetáculo não se rende ao desalento; prefere o amor, mesmo com seus riscos, e encontra respiro na esperança suave que emana de canções como Magrelinha de Luiz Melodia – “E o pôr do sol renove e brilhe de novo os nossos sorrisos” – e nas interpretações de Começaria Tudo Outra Vez de Gonzaguinha. Esta junção de melancolia e esperança, de crítica e afeto, mergulha-nos na musicalidade que habita essa cabeça, essa peça, esse ato de resistência poética que é Ao Vivo – Dentro da Cabeça de Alguém, consolidando a música como um pilar fundamental da experiência.

A epifania mencionada por Renata Sorrah projeta-se como metáfora para o próprio espetáculo: um momento de revelação, um instante de clareza em meio à turbulência. É provável que alguma epifania ressoe também no público, gerando instantes de iluminação. Ao deixar o teatro, levamos conosco muitas coisinhas miúdas dessa obra complexa, mas também perguntas essenciais sobre nosso lugar no mundo e nossa responsabilidade perante a história.

 

Pollyanna Diniz também escreveu uma análise crítica de Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém] no contexto do Festival de Curitiba, que pode ser acessada [aqui].

 

 

Ficha Técnica

AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]
Texto e Direção Geral: Marcio Abreu
Pesquisa e Criação: Marcio Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria
Elenco: Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki, Bianca Manicongo (Bixarte)
Direção de Produção e Administração: José Maria e Cássia Damasceno
Iluminação e Assistência de Direção: Nadja Naira
Direção Musical e Trilha Sonora Original: Felipe Storino
Direção de Movimento e Colaboração Criativa: Cristina Moura
Assistência de Direção e Colaboração Criativa: Fábio Osório Monteiro
Figurinos: Luís Cláudio Silva | Apartamento 03
Direção Videográfica: Batman Zavareze
Cenografia: Batman Zavareze, João Boni, José Maria, Nadja Naira e Marcio Abreu
Assistente de Arte: Gabriel Silveira
Edição de Vídeo: João Oliveira
Captação das Imagens para Vídeos: Cacá Bernardes | Bruta Flor Filmes
Design de Som: Chico Santarosa
Assistência de Cenografia: Kauê Mar
Técnica de Vídeo, Luz e Programação Videomapping: Michelle Bezerra, Ricardo Barbosa e Denis Kageyama
Técnica de Luz e Som: Dafne Rufino
Fotos: Nana Moraes
Programação Visual: Pablito Kucarz e Miriam Fontoura
Produção Original: Sesi SP
Criação e Produção: Companhia Brasileira de Teatro

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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Manifesto de esperança
Crítica de AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém]

Renata Sorrah em AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém], peça da companhia brasileira de teatro, no Festival de Curitiba 2025. Foto: Lina Sumizono

Bárbara Arakaki, Bianca Manicongo, Rodrigo Bolzan e Rafael Bacelar. Foto: Lina Sumizono

Memória deveria ser verbo. Sim, memorizar é verbo, mas não diz o que eu gostaria. Quando falamos sobre memorizar, o sentido que salta, imediato, é o de decorar, repetir até que saibamos algo de cor. No dicionário, memorizar também pode ser lembrar, recordar, relembrar. Não é isso. Queria pensar neste “verbo-memória” como uma prática expandida, fluida, que não separa corpo e mente, material e imaterial, realidade e imaginação, plantas, animais e humanos, tempos cronológicos ou estelares.

Como seria exercer este verbo-memória relacionado à pandemia de covid-19? Quais imagens permanecem incrustadas em nós, aquelas dilatadas para além dos nossos corpos físicos? Quem continua conosco? O que mudou internamente? E coletivamente? Estamos falando do que aconteceu, do que ainda vai acontecer ou das duas coisas? Não sabemos essas respostas, não racionalmente. Em março de 2023, chegamos ao número de 700 mil pessoas mortas vítimas de covid-19 no Brasil. 700 mil pessoas. SETECENTAS MIL PESSOAS. Não há quem consiga apreender esse número e tudo que ele implica no hoje, no amanhã, no ontem, no tempo que não conhecemos.

AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém], peça da companhia brasileira de teatro, com direção de Marcio Abreu, experimenta algo da dimensão do que estou chamando de “verbo-memória”, inclusive na expansão de acontecimentos temporalmente recentes, como a pandemia. A atriz Renata Sorrah, que está no elenco ao lado de Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo, diz que a montagem encara os instantes de suspensão, quando parece que você teve uma epifania e entendeu tudo, com seu corpo, sua mente, sua alma e, logo depois, quase imediatamente, isso se encerra. O portal fecha. Está de modo praticamente literal no título, amplificar, ao vivo, a fração de tempo em que sua cabeça abre, antes dela fechar de novo.

No caso da peça, esse momento acontece quando a personagem está dirigindo, esse hábito que se torna automático, vento no rosto, vontade de fumar um cigarro, música tocando baixinho no rádio a caminho do ensaio da peça. A sensação de liberdade. Essa epifania talvez ocorra para os espectadores em alguma cena específica da montagem, tomara, mas como proponho o verbo que é prática, que se move, neste texto esse instante se desdobra e se esgarça, mesmo que passe como num segundo, ou ao longo de toda uma peça de 1h30min.

Em A crise da narração, Byung-Chul Han escreve que “a memória é uma prática narrativa que constantemente vincula novos acontecimentos e cria uma rede de relações”. A questão é que a nossa interação com o que nos cerca estaria reduzida à causalidade dos fatos e informações, o que significa o “desencantamento do mundo” e a perda da nossa capacidade de narrar. “As coisas existem, mas quedam em silêncio”, diz o filósofo. A peça da cia brasileira de teatro é um contraponto a esse silêncio. Ao esfacelamento da dimensão pública e privada da memória como prática. Os atores deslizam na liberdade da linguagem das artes vivas para que fatos e informações possam ser descritos e narrados e se tornem praticamente palpáveis. O que é falado ganha densidade como imagem, matéria que passa a existir.

Os atores representam a si mesmos e a alguns, muitos, espero que multidões de nós. Fazem isso de um lugar determinado do campo político, que se revela de modo claro pela escolha de quais fatos e memórias vão enovelar, pelo conteúdo do discurso elaborado, e pelos quereres de futuro. O exercício vertiginoso do verbo-memória nos aproxima da ideia de que o tempo inteiro estamos perdendo o mundo como o conhecíamos e outros estão sendo criados concomitantemente, inclusive no palco. Um mundo se desfaz, outro começa. O teatro é suporte de criação para esses mundos que podem se estender para além da sala de espetáculos. No teatro, escrevemos, atuamos, cantamos, dançamos. A música de Gonzaguinha, cantada lindamente por Bianca Manicongo, Bixarte, dá o tom: “Começaria tudo outra vez | Se preciso fosse, meu amor | A chama em meu peito ainda queima | Saiba, nada foi em vão”.

AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém] trabalha com memórias coletivas e individuais. Foto: Lina Sumizono

Rodrigo Bolzan. Foto: Lina Sumizono

Bárbara Arakaki. Foto: Lina Sumizono

Esses mundos que se fazem e se desfazem ao vivo são compostos a partir de experiências de linguagem, em registros que vão se alternando. Ao lado do discurso social e político direto, do autobiográfico, do meme de Nazaré e das citações atribuídas à Clarice Lispector, há camadas de maior abstração na encenação, ligadas à composição das cenas, às imagens em vídeo, à cenografia, à dramaturgia – e aqui, especialmente, à representação de um texto seminal para o teatro ocidental, A gaivota, de Anton Tchékhov.

O texto referência é uma obra encharcada do humano, uma mãe famosa, um namorado mais novo escritor, um filho escritor, uma jovem atriz com muitos sonhos. O texto instaura discussões sobre as relações humanas, o sonho, a vaidade, a melancolia, a desesperança, a depressão, o desespero do fim. Embora a dramaturgia de A Gaivota esteja incorporada à encenação de AO VIVO, e seja visível para quem conhece o texto, a história paira como uma epifania. A composição da cena, como imagem, é quase uma tela, um fim de tarde no jardim. Os nomes dos personagens não são ditos, assim como não há menção ao nome da peça. Isso talvez nos aproxime ainda mais desse duplo, Renata Sorrah e personagem, essa mulher que é uma atriz famosa, muito mais famosa do que o seu namorado, que ao perceber que pode perdê-lo diz que é apenas uma mulher comum, que se ressente da idade quando o homem que ama se encanta por uma mulher mais nova, que não tem certeza se é livre.

A Gaivota é inspiração para a peça da cia brasileira de teatro. Foto: Lina Sumizono

AO VIVO, inclusive, pode ser considerada uma grande, linda e merecida homenagem à Renata Sorrah, essa atriz que marcou a história do teatro, do cinema e da televisão. Que foi Nina em 1974, numa montagem de A Gaivota que tinha no elenco Tereza Rachel como Arkádina, além de nomes como Sergio Britto, Cecil Thiré e Renne de Vielmond. Cuja imagem garota, num tempo que é memória e se expande, é exibida no palco em Matou a família e foi ao cinema, filme de 1969, de Júlio Bressane. O Brasil acompanhou o envelhecimento de Renata Sorrah e isso é muito bonito, uma atriz plena com suas escolhas.

Etarismo, uma das discussões que se desprende de A Gaivota e da própria presença de Renata em cena, e transfobia são tratados no registro do discurso direto, do manifesto, do que precisa ser dito. Renata Sorrah e Bianca Manicongo, travesti, fazem uma cena de espelhamento, uma dando o discurso correspondente à outra. Renata diz, entre outras coisas, que amar e ser amada não é para todas as pessoas, só para as vivas, e a média de vida de uma travesti é de 35 anos. Bianca questiona a pressão sobre as mulheres velhas, associadas às bruxas, enquanto os homens velhos são associados à sabedoria. Os discursos se atravessam no lugar de decisão sobre o próprio corpo e da discussão sobre a empatia: “O problema de falar em nome do outro é que todo mundo acaba sem voz”.

Renata Sorrah e Bianca Manicongo dão voz a discursos uma da outra. Foto: Lina Sumizono

A peça – e a peça dentro da peça – nos lembram que muitos vão sucumbir neste processo de memória-verbo. Morte matada, morte morrida, morte que até parece vida. Rafael Bacelar desabafa: é difícil dizer que todas as esperanças acabaram, assim como está em A Gaivota. Mas AO VIVO explicita a desesperança por meio de Tchékhov para anunciar o contrário: há espaço para esperançar. Espaços. Se você não consegue enxergá-los, vamos abri-los juntos, nesta epifania de 1h30min. Esperançar, na peça, depende do que chamo de resgate da memória-verbo que está, inclusive, no corpo das atrizes e atores. No corpo de Bianca, uma travesti dividindo cena com Renata Sorrah porque é uma atriz ótima, uma cantora maravilhosa. E seu corpo diz por si. Sua voz diz por si. Precisamos de novas formas, afirma o texto do espetáculo. Formas que são ancoradas por corpos. Por vozes. E, ao lado do dito sotaque “neutro” de Renata Sorrah, o sotaque da televisão que aplaina as diferenças, o sotaque nordestino de Bianca explode com força. A frase não é de Clarice, é de Leminski, não está no espetáculo, mas poderia: “Isso de ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além”.

Vocalizar e sustentar o discurso que reage à homofobia, à transfobia, ao etarismo, à ascensão da extrema direita no país é uma forma de esperançar novos mundos para plateias diversas. Espectadores muitas vezes atraídos ao teatro pelo nome de Renata Sorrah, e que não necessariamente ouviriam esses discursos de outra forma, senão na plateia de um teatro, um espaço que proporciona essa convivência “forçada” com o outro por um tempo determinado.

A peça cumpre o papel de alcançar e falar diretamente com esse outro: AO VIVO estreou no ano passado, no dia 22 de agosto, e permaneceu em cartaz até 1 de dezembro, com sessões de quinta a domingo, esgotadas, no Sesi-SP, no Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, em São Paulo. Poucas pessoas abandonaram as sessões no meio. Na porta desse prédio, por anos, as pessoas se reuniam e faziam vigílias para pedir por intervenção militar no país. Um pato inflável de cinco metros criticava a política tributária do governo da presidenta Dilma Rousseff. Então é significativo que, neste lugar, um grupo de teatro que completa 25 anos em 2025 possa falar sobre os desejos de um novo Brasil, como um manifesto lindo e potente que anuncia esses passos, incluindo “banhar o Brasil”, “abraçar a floresta”, “beber água limpa”, “convocar as bichas todas”, “beijar as bocas”, “desbrazilizar para existir Brasil”.

O espetáculo é acolhido – o que não quer dizer que as pessoas concordem com o que está dito ali – porque consegue balancear radicalidade do discurso e humanização. A partir de A Gaivota, da relação entre mãe e filho, por exemplo, Rafael Bacelar protagoniza uma cena em que se transforma em drag queen no palco – se maquia, coloca salto e peruca – e dialoga com um áudio de sua mãe. “Eu me conformei porque eu te vi feliz e ninguém tem o direito de obrigar o outro a ser o que se quer ser”. Que mãe não se identifica? Enquanto dança – propondo uma brincadeira de dançar apenas com o lado esquerdo do corpo – Rafael mistura sua história ao discurso político e à história recente do país: diz que começou a dançar com a esquerda em 2002, saiu da linha da pobreza, entrou na universidade pública. O apelo da cena é flagrante: o público, dividido pelo ator entre direita, esquerda e centrão, entra na brincadeira. Há, no entanto, um discurso sobre esquerda que particulariza, que personaliza na figura do presidente Lula a própria esquerda, e que, a despeito do que estamos vivendo hoje no Brasil, diz textualmente que recuperamos a radicalidade da esquerda. Queríamos que fosse verdade.

Rafael Bacelar se transforma em drag queen no palco e protagoniza cena sobre direita e esquerda no país, Foto: Lina Sumizono

Na memória que é verbo, de tempos entrelaçados, quem sabe isso possa se concretizar. Algum dia, outro tempo, nosso tempo. E o pôr do sol renove e brilhe de novo os nossos sorrisos, como diz a música de Luiz Melodia. O que fica desse tempo que não voltamos a viver? O que queremos guardar? O que queremos fazer novo? AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém] é esse vislumbre de esperança, que nos faz pensar quais outros mundos desejamos instituir. “Escutar, correr e agir”. E ser felizes. “Diante de nós, aquilo que formos capazes de construir agora”, anuncia o texto.

O espetáculo AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém] foi apresentado nos dias 27 e 28 de março de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha técnica:

Texto e direção: Marcio Abreu
Pesquisa e criação: Marcio Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria
Elenco: Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bixarte
Direção de produção e administração: José Maria e Cássia Damasceno
Iluminação e assistência de direção: Nadja Naira
Direção musical e trilha sonora original: Felipe Storino
Direção de movimento e colaboração criativa: Cristina Moura
Assistência de direção e colaboração criativa: Fábio Osório Monteiro
Direção videográfica: Batman Zavareze
Figurinos: Luís Cláudio Silva | Apartamento 03
Cenografia: Batman Zavareze, João Boni, Marcio Abreu, Nadja Naira e José Maria
Assistente de arte: Gabriel Silveira
Edição de vídeo: João Oliveira
Captação de imagens para vídeos: Cacá Bernardes | Bruta Flor Filmes
Design de som: Chico Santarosa
Assistência de cenografia: Kauê Mar
Técnica de vídeo, luz e programação videomapping: Michelle Bezerra, Ricardo Barbosa e Denis Kageyama
Técnica de luz e som: Dafne Rufino
Cenotécnica e maquinaria: Tinho Viana, Alexander Peixoto, Sasso Campanaro e Douglas Caldas
Fotos: Nana Moraes
Programação visual: Pablito Kucarz e Miriam Fontoura
Criação e produção: companhia brasileira de teatro

Peça é também uma homenagem à Renata Sorrah. Foto: Lina Sumizono

 

 

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Delicadas, e explosivas, relações familiares

Difíceis relações entre pais e filhos são abordadas na peça Esta criança. Fotos: Annelize Tozetto

Difíceis relações entre pais e filhos são abordadas na peça Esta criança. Fotos: Annelize Tozetto

É muito bom ver uma atriz consagrada se associar a uma companhia jovem e em plena ascensão para realizar um trabalho de fôlego, de pesquisa e de entrega. No caso, Renata Sorrah em parceria com Cia Brasileira de Teatro, grupo que já esteve no Recife com Vida, Oxigênio e Isso te interessa?. A parceria entre intérprete e trupe rendeu energia, troca e revitalização para as partes envolvidas.

Esta criança, um texto forte do dramaturgo francês Joel Pommerat, – que catalisa aspectos estranho e familiar – mete o dedo nas feridas das difíceis relações entre pais e filhos. E tem um pouco de tudo, o espectador pode até se identificar.

Marcio Abreu é responsável pela direção do espetáculo, com assistência de direção de Nadja Naira. No elenco, além de Ranata Sorrah estão Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha.

Esta Criança foi o grande vencedor da 25ª edição do Prêmio Shell de Teatro do Rio

Esta Criança foi o grande vencedor da 25ª edição do Prêmio Shell de Teatro do Rio

A peça é composta por 10 situações familiares que não têm ligações entre si. Mas todas convergem para o mesmo tema. As relações de parentesco que podem conter nitroglicerina pura. As variadas abordagens privilegiam aspectos constrangedores, engraçados, tristes e estranhos. Uma mulher quer doar seu pequeno bebê a um casal de seu prédio e o discurso levanta questões da alegria e surpresa da adoção e a tensão e as mil explicações para o abandono.

Uma jovem mulher grávida expõe suas projeções de felicidade, para mostrar aos seus próprios pais que ela pode ir além. Há um diálogo entre uma menininha que porta uma mochila vermelha e seu pai, ele sentado numa pequena cadeira e ela na grande. A garota rejeita o pai que tenta chantageá-la. Um homem explode numa refeição em família e diz que seu pai não é o seu espelho e que por trás de uma aparência tranquila existe um vulcão.

Ansiedade, medo, desejo de provar alguma coisa, desejo de ser alguma coisa. Esse mundo de projeções e lembranças é feito de humor e magia. Mãe, pai, filho, esses papéis que são trocados.

O espetáculo Esta criança foi o grande vencedor da 25ª edição do Prêmio Shell de Teatro do Rio. Teve cinco indicações e levou quatro troféus para casa: Renata Sorrah (melhor atriz), Marcio Abreu (melhor diretor), Nadja Naira (melhor iluminação) e Fernando Marés (melhor cenário).

A encenação percorre relações miúdas e cheias de significado para um homem comum. São fragmentos de alta-tensão. A intensidade que vai além das palavras. Os subterrâneos emocionais são invadidos. Há a virulência da palavra plena, com uma faca afiada.

O encenador conduz tudo com mão firme para extrair a delicadeza, esses pontos fracos marcados na pele e na memória. A cenografia de Fernando Marés e a iluminação de Nadja Naira afinam a proposta, a primeira distorcendo um pouco essa noção do real – que tem tudo a ver com as lembranças do que ocorreu para cada um, que podem estar mais próximas ou distantes do fato em si. A iluminação de Nadja Naira trabalha com os claros/escuros e salienta as sombras em belas imagens.

Renata Sorrah está plena como nesta cena do reconhecimento do corpo do fiho;

Renata Sorrah está plena na encenação, como nesta cena do reconhecimento do corpo do fiho

Um dos momentos mais fortes da peça é quando duas amigas vão ao IML para identificar um corpo, que suspeita-se ser filho de uma delas. Renata Sorrah e Giovana Soar trabalham o desequilíbrio entre felicidade, alívio, egoísmo e dor. A cena é emblemática do espetáculo. Talvez se o diretor Marcio Abreu diminuir um pouco a duração, ganhe em intensidade, força e impacto.

Renata Sorrah está plena, em toda sua capacidade de intérprete, linda no palco, como mãe ou como filha. Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha têm ótimas participações, garantindo a alta qualidade da encenação.

E nos papéis de pai ou mãe, “desejo e sina”, filho ou filha, alguns conseguem arrancar do outro “coração a fecha farpada” e “e sem medo do grito”, com o perdão pedido, dado, não dado, sonhado para tornar a vida mais bela.

* A jornalista Ivana Moura viajou a convite da produção do Festival de Teatro de Curitiba

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Um jovem diretor (e ator) aos 70

Aderbal participou do II Encontro de Diretores de Teatro e do Cena Contemporânea, em Brasília. Foto: Sullian Princivali

Em 2010, ele dirigiu Macbeth, com um elenco encabeçado por Renata Sorrah e Daniel Dantas. Também levou aos palcos Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, com a colaboração dos diretores musicais Jaques Morelenbaum e Jaime Alem. Emendou com a peça Depois do filme, em que é autor, diretor e ator (há dez anos ele não atuava no teatro) e também com a direção de Na selva das cidades, que está em cartaz no CCBB do Rio de Janeiro e tem no elenco Daniel Dantas e Maria Luiza Mendonça.

O ritmo intenso de trabalho não denuncia a idade de Aderbal Freire-Filho, diretor cearense radicado no Rio de Janeiro: 70 anos. Já tinha entrevistado o diretor algumas vezes por telefone, mas foi nesta última edição do Cena Contemporânea, em Brasília, que tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente. Aderbal participou do II Encontro de Diretores de Teatro (que teve como tema O diretor e o texto) e ainda apresentou a montagem Depois do filme nos dias 30 e 31. Como voltei de Brasília antes disso, fiz questão de acompanhar a demonstração de trabalho de Freire-Filho no Encontro de Diretores. A entrevista com o diretor tinha feito dias antes, por telefone, quando Marieta Severo e Andréa Beltrão vieram ao Recife para apresentar As centenárias.

No Encontro de Diretores, Freire-Filho voltou à década de 1970 para relembrar o Grêmio Brasileiro Dramático, grupo que mantinha quatro peças em cartaz ao mesmo tempo. “Foi a minha primeira tentativa de manter um grupo. Duas dessas peças eram do Roberto Athayde e duas do Flávio Márcio”, contou. Falou ainda do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, nos anos 1990, que estreou com uma experiência que marcaria toda a trajetória do diretor dali para frente: o romance-em-cena. O espetáculo era A mulher carioca aos 22 anos. “Era uma época em que havia uma discussão entre o teatro da palavra e o teatro da imagem. E eu queria as duas coisas juntas”, avalia. Mais de dez anos depois, vieram outras duas peças que levavam o romance inteiro à cena: O que diz Molero (que deve virar filme) e O púcaro búlgaro.

“Penso que o teatro pode muito, desde que o ator conquiste a cumplicidade do espectador para forçar a sua imaginação”, explicou o diretor. “Sinto absoluta necessidade de ter do ator a sua medida de ruptura, de quebra de ilusão. No cinema, a ilusão é contínua. Mas nesse teatro e no romance-em-cena, é descontínua e compartilhada. É um jogo permanente. Nada é estranho a essa arte do teatro cuja ilusão é tão tênue”. O diretor falava da capacidade dos atores de assumirem vários papeis na montagem. Exemplificou isso com dois textos: um de Roberto Bolaño e outro de Lobo Antunes.

Depois, fez uma ponte entre os seus trabalhos anteriores e Depois do filme. Foi muito bom porque tivemos a oportunidade de ver um pouquinho da peça, mesmo que de improviso. Algumas cadeiras (o cenário mesmo possui 15 cadeiras e ainda uma instalação com outras 15) foram levadas ao palco e Aderbal fez a primeira cena do espetáculo e também uma que se passa num famoso bar do Rio, Academia da Cachaça. Como ele diz na entrevista, apesar da peça ser um monólogo, são vários os personagens interpretados pelo ator num jogo de ilusão compartilhado, a partir do talento e técnica, pelo público. Aderbal, que não vem ao Recife desde a apresentação de O que diz Molero, disse que está com muita vontade de circular e a capital pernambucana está sim nesses planos.

Entrevista // Aderbal Freire-Filho

Você está voltando aos palcos como ator depois de um intervalo de dez anos e um filme que fala sobre a amizade entre três amigos. Porque levar esse personagem do cinema ao teatro? E o que o Ulisses tem de autobiográfico?
Depois que eu vi o filme Juventude, do Domingos de Oliveira, que são sim três amigos de infância que uma noite se encontram e ficam conversando sobre muitas coisas – eu, Paulo José e o Domingos de Oliveira; e o filme passou em Gramado, fez temporada nos cinemas do Rio e São Paulo, mas acho que não tinha uma boa distribuição pelo país, então percebi que esse nome Ulisses tem tudo a ver com o Ulisses do Homero, do Joyce, já sugere um herói viajante. Eu me apropriei desse personagem e imaginei umas situações depois que ele terminou esse dia de conversa com os amigos. É uma certa decadência do meu personagem. Na realidade, uma reflexão sobre a vida, a idade, pessoas que como eu chegam aos 70 e ainda se acham capazes de muitas coisas, mas têm mais consciência de que o tempo é curto. Culturalmente, a gente dura mais do que durava o meu avô, um homem de 70 anos antigamente estaca no fim da vida, mas eu me sinto resistindo, vivendo, trabalhando, namorando, mas com a consciência que o tempo é curto. É uma evidência de encarar a morte, tendo ainda a vontade de fazer muita coisa, sentimentos jovens como o do amor, do desejo, tudo isso me interessava muito no personagem e eu continuei.

Personagem Ulisses saiu do filme Juventude, com Domingos Oliveira e Paulo José. Foto: Grupo Estação/Divulgação

Mas é autobiográfico?
Não, não é autobiográfico. Quis fazer um monólogo, mas faço vários personagens. Faço uma vendedora boliviana de pulseira, por exemplo. Os sentimentos de Ulisses muito provavelmente são meus, de aparência pessoal, idade. Tem uma referência que eu faço há um instituto de orientação profissional, porque eu tinha que escolher uma profissão lá atrás. Eu me diverti, ficava lá trabalhando, com meu assistente de direção.

A peça começa como se fosse um roteiro de cinema? Qual a influência do cinema?
É, eu fiz a peça como se fosse um roteiro de cinema. Toda cena eu começo como se fosse um roteiro. Tipo: “exterior, ponte Rio Niterói, noite; interior, dia, Academia da Cachaça, Leblon”. Noutras peças já tem isso, de gostar de ter trabalhar com outros gêneros. Foi assim em Moby Dick, por exemplo. E em Depois do filme eu brinco, como que dizendo que o que acontecia no filme era verdade. Conto na peça uma história de uma cena que foi gravada, mas não ficou na versão final. É uma brincadeira, falando de personagens e atores, uns como verdadeiros e outros não.

Existe alguma previsão de circulação?
Tenho muita vontade! Vou para Vitória e no Rio não se fico até agosto ou setembro ou se fico até outubro.

Aderbal Freire-Filho vai encenar Depois do filme no Cena Contemporânea. Foto: Nil Caniné

Andréa Beltrão nos disse que você foi um “diretor-criador” na peça As centenárias. Como foi esse trabalho e a primeira parceria com Newton Moreno?
É uma peça com duas atrizes que tem uma história muito bonita, que já fizeram várias peças juntas, que tem uma relação pessoal. E queria acentuar essa amizade no palco. Os papeis que, no livro, seriam direcionados a outros atores, como o coronel, a viúva, Lampião, são feitos pelas próprias atrizes. A peça começa e termina num velório e entre essa cena e a última tem todos os velórios e cada um tem um personagem novo. Sávio Moll, que faz A Morte deu uma composição incrível ao personagem, até porque além da formação de ator, ele é palhaço. Então a minha ideia foi potencializar o trabalho das duas atrizes. Se as duas iriam fazer as carpideiras, a primeira coisa, que foi uma decisão, inspiração, foi que elas tivessem todos esses outros personagens. E isso criou uma necessidade de que elas dialogassem, às vezes, com elas mesmas. Aí entram os bonecos: cada uma delas passa a ter um mamulengo, um boneco de mão que é a sua própria personagem. Isso elimina os atores propostos originalmente pelo livro. Algumas coisas também foram adaptadas. A relação texto e encenação é sempre assim.

As centenárias foi parceria entre Newton Moreno, Aderbal, Marieta e Andréa

Você tem um novo projeto com Andréa Beltrão e Newton Moreno, que é um musical, Jacinta. Como está esse processo?
É a pior atriz do mundo, uma portuguesa. Eu já fiz três peças com a Andréa: A prova, Sonata de Outono e As centenárias. E esse é o próximo projeto, mas ainda não tem nada certo, tem muita vontade! Fizemos uns encontros, umas leituras, trocamos umas ideias, umas sugestões para ajustar no texto.

Como foi trabalhar com o Newton Moreno? O que você acha do texto dele?
Conheci o Newton com As centenárias e vi outras peças. Fiquei encantado com essa aproximação, com a sensibilidade desse poeta, ator, com o alicerce dele, que é fincado no interior, com um olhar do tamanho do mundo. Ele se apóia no conhecimento profundo da sua sociedade, da sua terra, do seu ambiente e projeta isso pra uma cabeça e um coração universais. E tem essa generosidade no que ele faz, essa disponibilidade. Ele não é só autor, mas um homem de teatro, tem formação de ator, de homem do palco, conhece bem como o texto é. Como ele fez isso com outras peças, na direção, sabe o quanto a peça dele vai se transformar noutra peça no palco.

A sua direção mais recente é Na selva das cidades, em cartaz no CCBB no Rio. Como foi esse trabalho?
É uma peça da juventude de Bertold Brecht, uma das primeiras peças dele. Tem uma montagem histórica, feita pelo Zé Celso nos anos 1960 e, desde lá, pelo menos no Rio, não houve outra montagem. Conta a história de um confronto entre dois homens de características bem diferentes – um comerciante e um jovem idealista. No elenco temos nove atores, entre eles Daniel Dantas, Maria Luiza Mendonça, Marcelo Olimpo – aliás, o projeto é dele, ele é da Cia. dos Atores e ele e Daniel Dantas fazem os dois protagonistas, Ines Viana. Ficamos em cartaz até outubro.

Na selva das cidades, com direção de Freire-Filho, está em cartaz no CCBB do Rio. Foto: Dalton Valério

E qual seu próximo projeto?
Emendei uma porção de coisas, juntei Mac Beth, com Orpheu, com Depois do filme e agora Na selva das cidades. Quero me dar um mês ou dois, mas tenho muitas coisas para fazer. Quero filmar O que diz Molero em parceria com o Walter Carvalho, que é nordestino.

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Teatro pela net

Vida, da Companhia Brasileira de Teatro

Sim, como diz a campanha veiculada pela Globo Nordeste, “Teatro é ao vivo. Vá ver”. Mas se você nem sempre está no lugar que queria e aquele espetáculo que você ficou doido para assistir desde a estreia ainda não tem previsão de passar pela sua cidade, dê uma olhadinha no site Cennarium – It´s showtime (www.cennarium.com).

O projeto está completando um ano. Resgatei um trecho de uma matéria de Thiago Corrêa para o DP ano passado, falando do lançamento do site:

“Fruto do investimento inicial de R$ 10 milhões e do trabalho desenvolvido nos últimos sete meses pela holding Nortik, o projeto passa a oferecer exibições de espetáculos para o país inteiro, por meio de transmissão via internet. Nesse primeiro momento, serão oferecidas mais de 25 peças. No programa, para ser visto de qualquer lugar e horário, estão peças como Cacilda do Teatro Oficina e La música com a atriz Xuxa Lopes. Outras 40 já estão captadas e o plano é colocar pelo menos duas novas por semana. “Nosso critério é a popularização da cultura, queremos atender um leque grande de produções, atingir todos os níveis de espetáculo”, explicou o diretor da Cennarium, Roberto Lima, durante coletiva de imprensa realizada na última quarta-feira.

Por enquanto só estão disponíveis espetáculos do eixo Rio-São Paulo, mas existe a possibilidade de, num segundo momento, o projeto abrir espaço para produções de outros centros do país. “Ainda não compensa sairmos do eixo, mas se juntarmos umas cinco peças numa cidade aí vale a pena”, justificou o CEO, Harry Fernandes, ressaltando que as gravações envolvem o trabalho de 30 a 40 pessoas. Os vídeos são gravados por cinco a 12 câmeras em uma sessão da peça, com o som captado através de microfones usados em jogos de futebol. “Fazemos a gravação sem mexer na luz e no som da peça, queremos transportar com qualidade a sensação do teatro, de como está sendo produzido no palco”, apontou o diretor da Cennarium.

As peças serão assistidas pela internet em sistema semelhante ao pay-per-view da TV a cabo, podendo ser assistidas várias vezes, no intervalo de 24 horas. Os espetáculos são divididos em blocos de 12 a 16 minutos para facilitar o acesso dos internautas, possibilitar inserções comerciais e se adaptar às comodidades do ambiente familiar. “Se fosse uma câmera só seria muito chato, estamos entre o teatro e uma linguagem de televisão, com closes e planos médios”, avaliou o ator Fúlvio Stefanini, que esteve na coletiva.

As peças custam pelo menos R$ 10 e no máximo metade do ingresso físico. Segundo o diretor do Cennarium, o valor é estipulado pelas próprias companhias teatrais e vão se transformar numa nova fonte de renda para o grupo. “As companhias terão até 50% do lucro líquido das nossas vendas e vão poder vender três inserções comerciais”, disse Lima, lembrando ainda que uma mesma companhia poderá receber por mais de um espetáculo, inclusive pelos que já saíram de cartaz mas podem ser vistos no site. O tempo mínimo de permanência no site é de cinco anos.

Tirando a exibição das peças, o restante do conteúdo é aberto, trazendo fotos, ficha técnica, sinopses e entrevistas com o elenco. Para assistir às peças, os interessados devem se cadastrar no site, efetuar o pagamento e selecionar o espetáculo. “Usamos o sistema de download progressivo, em que o vídeo é carregado enquanto você assiste a ele. Optamos por ele por não saber qual a conexão do público. Mas em média cada cinco minutos de vídeo são carregados em 15 segundos”, explicou o diretor de tecnologia Guto Costa.”

Recebemos um e-mail da assessoria do Cennarium avisando que neste domingo, Dia Mundial do Teatro, todo o portfólio do site, que já conta com mais de 70 opções, estará aberto ao público gratuitamente, das 14h às 20h.

Macbeth estará disponível gratuitamente

Tem, por exemplo, Macbeth, com Renata Sorrah; Um navio no espaço ou Ana Cristina César, com Bel Kutner e Paulo José; Vida, da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba. E ainda comédia, infantis, musicais, dança. Faça a sua programação e celebre o teatro neste domingo, nem que seja na frente do computador!

Um navio navio espaço ou Ana Cristina César/Foto: Emi Hoshi/ clix.fot.br

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