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Soledad que ainda se nega a morrer

Apresentações comemoram um ano do espetáculo Soledad - a vida é fogo sob nossos pés e 37 anos de anistia

Apresentações comemoram um ano de Soledad – A vida é Fogo sob Nossos Pés e 37 anos de anistia no Brasil

O título é do curta metragem de Sebastián Coronel Bareiro, Soledad que aún te niegas a morir. Traduz com presteza a passagem digna, valente, corajosa pelo planeta Terra dessa mulher paraguaia que se tornou militante política e foi assassinada à traição pela ditadura militar brasileira por emboscada do pai da criança que ela carregava no ventre. Há muitas portas de interpretação para o monólogo épico Soledad – A Terra É Fogo Sob Nossos Pés. Todas insuficientes para dar conta da complexidade de uma criação cênica dessa natureza. Mas as percepções e interpretações seguem a urgência do tempo.

O espetáculo faz duas apresentações especiais, nestes 1º e 2 de setembro, no Teatro Hermilo Borba Filho, às 20h, como parte das comemorações de um ano da encenação. Ao mesmo tempo celebra os 37 anos da anistia brasileira. Nesta quinta-feira, logo após a sessão, será reservado um ato de gratidão em homenagem aos ex-prisioneiros políticos, militantes da época que devotaram suas vidas na batalha pela democracia. Além de pessoas que contribuíram com o processo da montagem.

E ainda tinha gente brindando neste último dia de agosto o golpe contra a Democracia. “Respeitem quem foi torturado”, exige a peça que toma posição por quem teve a determinação de cuidar do terreno da soberania e da igualdade. A peça ilumina pontos obscuros da história do Brasil e acompanha Soledad Barret Viedma, desde seu nascimento, passando por vários países, até sua morte. O discurso é veemente. Sozinha em cena, Hilda Torres acende o espírito da guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR.

“Falar sobre Soledad é traçar um caminho de poesia onde a dor e a alegria estão juntas, seguindo em marcha para erguer ideais libertadores. Falar sobre ‘Sol’ é falar de um pedaço de todos nós, que nos impulsiona diariamente a enfrentar, resistir, sem nunca abrir mão do brilho nos olhos ao imaginar um mundo melhor, com direitos iguais para todos e todas, na compreensão das nossas diferenças”, acredita a intérprete.

O livro Soledad no Recife, do escritor pernambucano Urariano Mota, foi o ponto de partida do processo, em janeiro de 2015. A dramaturgia é assinada pela atriz e pela diretora do espetáculo, Malú Bazán.

Soledad ganha os contornos de um animal que ama a liberdade e dela não abre mão. Com isso assume no seu corpo, nos seus gestos, na sua voz, a militância de todos, um dado universal. A trajetória dessa figura ganha uma poética viva e continua pulsando. Contra os ditadores de todos os tempos, contra a violência em qualquer paragem.

Soledad

Trechos da vida da guerrilheira são expostos no palco

A composição documental da encenação expõe momentos importantes da vida da guerrilheira. Os episódios de dor são exibidos, num cenário de poucos elementos, com uma luz que convida para a intimidade dessa existência e na alternância da representação do trajeto de Soledad e a exploração do metateatro desvelado em seu processo de criação.

O passado e o presente são confrontados, das barbáries de ontem e hoje, em que direitos são confiscados numa montagem em que esses elementos fazem parte de um organismo vivo, pulsante. Alguns retrocessos são denunciados, como o atentado contra o legado do educador pernambucano Paulo Freire.

É um espetáculo em que o feminino tem voz potencializada. E dá xeque-mate na misoginia e no machismo. Contra isso a força dessa mulher que pegou em armas, exigiu tratamento de igual para igual com os homens, mas também é tomada pela onda do feminino, do amor e da ternura.

A encenação exalta os mitos e ritos ancestrais e evoca os povos originários. E incorpora esses dados na passagem do banho na água com os seios à mostra; na celebração de orixás como Nanã, do candomblé. E cenas fortes como das cruzes gamadas, as suásticas, riscadas a aço em suas pernas pelos militantes neonazistas.

Maternidade defendida por Soledad

Maternidade defendida por Soledad

No artigo de Opinião de Urariano Mota, Dilma Rousseff e Soledad Barrett, publicado no último 29 de agosto, no Diario de Pernambuco, o escritor e jornalista traça elos da corrente: impeachment, Dilma, ditadura, anistia, Soledad no teatro e o Recife. “Entendam. Quando a brava presidenta amargou a prisão, todas as vezes em que as companheiras de cela voltavam da tortura, ela as recebia com os braços abertos, amparava, dava às sobreviventes sopinhas de colher na boca, e punha na vitrolinha de pilhas uma canção. Imaginem qual. As ex-presas políticas contam que Dilma sempre pedia a elas que prestassem muita atenção à letra de Para um amor no Recife, de Paulinho da Viola.

Paulinho cantava na cadeia ‘a razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você’ “. Boa lembrança de Mota.

Os traços afetivos de Soledad bolem com a memória de quem sofreu com a ditadura. Ou teve seus parentes e amigos mortos e/ou desaparecidos. A própria atriz Hilda Torres vive seu engajamento político que potencializa todos as emoções no palco. E como diz Urariano Mota é “Um encontro de teatro, história e resistência. Imperdível”

Entrevista // Hilda Torres

Hilda Torres em Aldeia do Velho Chico. Foto: Divulgação

Hilda Torres na Aldeia do Velho Chico. Foto: Divulgação

Um ano depois de viver agarrada no palco com Soledad Barret Viedma, (da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, morta ao lado de outros cinco companheiros) – fora o tempo de pesquisa, preparação da produção, ensaios – o que você tem a nos dizer sobre essa mulher?
Nasceu com sua mãe e ela apenas, por isso Soledad – Solidão; criança que cresceu entre sons de bombas e brincadeiras, levando recados codificados em suas saias para dirigentes comunistas, indo visitar seu pai na cadeia, quando não, ele estava clandestino, presente pelos ideais, mas ausente na lida diária; exilada com sua família com menos de 1 ano de idade e, com 16 anos, no Uruguai, no seu segundo exílio, começa a realizar apresentações de danças folclóricas em eventos solidários ao Paraguai; sequestrada aos 17 por um grupo neonazista que marca com uma navalha o símbolo do nazismo; vai pra URSS estudar teorias comunistas, em seguida vai para alguns países da América Latina na tentativa de invadir o Paraguai; 1967, vai para Cuba treinar para luta armada, casa-se e tem uma filha: Ñasaindy Barrett de Araújo, fruto do seu relacionamento com José Maria de Ferreira de Araújo; 1970, vem para o Brasil numa missão pela VPR; Mas aqui é entregue pelo “Cabo Anselmo”, até então o seu companheiro de quem estava grávida. Ela alfabetiza índios! Mulher, jovem, sonhadora, leal aos ideais, mãe, filha, companheira, dançarina, poetisa, militante aguerrida, dócil, serena, dedicada, destemida, empoderada… Soledad Barrett Viedma.

O que significam essas duas apresentações especiais? Essas celebrações?
Comemoraremos um ano de trajetória de um solo que fala de um passado tão presente, de uma mulher aguerrida que nos fortalece na luta de gênero sobretudo nos dias atuais em que vivemos. Comemorar essa trajetória, é também um momento de agradecer a todas e todos que contribuíram para essa realização, a equipe, amigos(as), colaboradores(as), parceiros(as), as plateias por onde passamos, aos festivais que nos convidaram! É um sentimento de gratidão!E a comemoração dos 37 anos de anistia no Brasil é referente a data da anistia que se comemora em agosto. Mas tendo em vista o que passamos atualmente e ao sentimento de gratidão que nos aflora nesse momento, decidimos agradecer aos ex-prisioneiros políticos e militantes que combateram o regime militar e que estiveram próximos ao processo da peça. Então agradeceremos não só pelo apoio nos dado, mas através deles, agradecer a todos e todas que entregaram suas vidas na luta por democracia, por um único sonho: liberdade! Essa geração atual precisa agradecer a uma geração que jamais poderá ser esquecida.

A vida ficou extremamente mais difícil no Brasil desde que vocês começaram a se envolver com a história de Soledad. Como você analisa esse arco do tempo do que acontece no país?
Desde o processo de pesquisa histórica para a montagem da peça, ainda em 2015, percebemos a relação íntima entre o passado e o presente. Nesse mesmo período aconteciam passeatas em São Paulo, principalmente, pedindo a “volta do golpe militar e chega de Paulo Freire”. Tudo começou a doer muito em nós, tanto que essas duas expressões entram na peça num momento de explosão de uma das cenas, justamente no Brasil. É isso! E depois do mergulho nessa época talvez seja mais difícil entender o que passamos hoje, ou mais fácil, e assim decidirmos por continuar a luta!

Soledad

Espetáculo homenageia presos políticos que lutaram por Democracia

O título da peça se refere a uma frase da protagonista, que exprime a bravura da militante. Ela já realizava um trabalho de empoderamento feminino na década de 1970. Como você detecta isso?
Resumo numa outra fala dela em resposta aos companheiros homens com quem ela treinava: “Não precisa, eu posso treinar com o mesmo fardamento que vocês”! Soledad hoje é nome e referência de luta feminina para vários movimentos feministas da América Latina!

Coragem e dignidade são palavras que queimam e no momento em que vivemos remete imediatamente para a presidenta Dilma Rousseff julgada (e condenada) por figuras de moral duvidosa, e com a morte política anunciada. Que paralelos são possíveis fazer dessas duas mulheres?
Ambas são destemidas, mulheres que não fizeram questão de serem vistas como a delicadeza da flor, mas que não abriram mão de serem firmes na luta por um mundo melhor.

O Brasil tem revelado que existe um teatro de resistência em atuação em cada canto desse país. Como sua produção vem conseguido essa proeza?
Já tivemos muitas portas abertas, alguns nãos. Normal. Mas já sentimos também que algumas portas foram fechadas justamente pela temática da peça, sobretudo, nos dias atuais.

“Percebemos a arte como gatilho para a transformação social. É preciso tirar a arte do papel da celebridade”, você já disse. Como seria possível isso nesse sistema capitalista capaz de inventar celebridades instantâneas o tempo inteiro?
Tudo vai depender das escolhas que cada fazedor(a) da arte fizer. Sim, trata-se de escolhas mesmo nos momentos de necessidade da demanda capitalista. Quanto ao público, a mídia, vive um perfil de fato com essa necessidade do “imediatismo” em tudo, inclusive nos mitos que muitas vezes representam o modismo e muito pouco os ideais, a forma de ver e sentir a vida.

Comunista come criancinhas???
Não, porque acreditamos nelas como uma esperança incansável para o futuro do País, da Nação, principalmente a nossa que precisa de um rumo onde ela própria seja “re”acreditada.

Ficha técnica
Atriz e idealizadora: Hilda Torres
Direção: Malú Bazán
Dramaturgia: Hilda Torres e Malú Bazán
Pesquisa histórica: Hilda Torres, Márcio Santos e Malú Bazán
Pesquisa cênica:
Hilda Torres e Malú Bazán
Concepção de cenário e figurino:
Malú Bázan
Execução de cenário e figurino:
Felipe Lopes e Maria José Lopes
Luz:
Eron Villar
Operação de Luz:
Eron Villar e Gabriel Félix
Direção musical:
Lucas Notaro
Arte visual:
Ñasaindy Lua
Produção:
Hilda Torres, Márcio Santos e Malú Bazán
Produção executiva:
Renato Barros
Produção geral: Márcio Santos
Realização: Cria do Palco
Fotografias: Rick de Eça

SERVIÇO
Soledad – A Terra É Fogo Sob Nossos Pés – Apresentações comemorativas
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho  – Cais Apolo, s/n , Bairro do Recife
Quando: Dias 1º e 2 de setembro às 20h
Ingressos: R$ 30 e R$ 15, à venda na bilheteria do teatro 1h antes do espetáculo
Informações: (81) 3355.3321
Duração: 1h10
Classificação: 14 anos

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Ressurreição de Soledad Barrett no palco

Hilda Torres interpreta Soledad - A terra é fogo sob nossos pés

Hilda Torres interpreta Soledad

Há espetáculos que falam destes tempos que pulsam, mesmo que remetam a outro. Soledad – A terra é fogo sob nossos pés faz parte dessa arte urgente e inadiável. Necessária e bela. Imperiosa para o presente ameaçado, e ajuste de conta com a História. E isso amplia sua escala de arte fincada no real e com as garras e os dentes afiados para não sermos devorados pelo obscurantismo. Não, de novo, não.

A entrega da interpretação de Hilda Torres é algo que precisa ser aplaudido. De pé. É a primeira dramatização da vida da guerrilheira paraguaia Soledad Barrett Viedma para palcos brasileiros. Ela foi caluniada como terrorista e ficou conhecida como a mulher do Cabo Anselmo, o policial infiltrado na guerrilha que a entregou a Fleury em 1973. Soledad e mais cinco militantes contra a ditadura foram executados no “O massacre da granja São Bento”. Ela estava grávida.

A peça faz única apresentação nesta quinta-feira, às 20h, no Teatro Hermilo Borba Filho, dentro da programação do Trema! Festival de Teatro.

Hilda Torres é idealizadora do espetáculo junto com a diretora Malú Bazan, que assinam o texto. O monólogo faz referências ao livro Soledad no Recife, de Urariano Mora, a uma série de entrevistas e pesquisa documental realizadas por ambas, à publicação 68, a geração que queria mudar o mundo“, compilação de relatos de uma centena de ex-militantes políticos, organizados e sistematizados Eliete Ferrer, do grupo Os Amigos de 68. Além de consultas ao tijolaço da Comissão da Verdade e registros do Tortura Nunca Mais. E poemas de Marco Albertim e da artista plástica Ñasaindy de Araújo Barrett, filha de Soledad, que assina composições e empresta sua voz de cantora ao espetáculo.

A montagem se expressa generosa e caudalosa para recuperar a vida e a luta de uma mulher entregue à repressão pelo marido, numa farsa encenada pelo Estado de terror e traição no Recife da ditadura militar. A peça manifesta o poder da arte, de promover a reparação – pelo menos da imagem púbica – das violações a direitos fundamentais. Para reescrever a História e subverter a ordem do esquecimento.

O monólogo poético, que também faz alusões ao período atual da política brasileira, traça o percurso de Soledad Barret, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Os seus conflitos como mulher, mãe, filha, militante perseguida. E recupera as facetas dessa musa política das esquerdas da América Latina.

Como já disse Urariano Mota, “Soledad Barrett Viedma é um dos casos mais eloquentes da guerra suja da ditadura no Brasil”. A peça é uma vitória pelo resgate da memória, da verdade e da justiça.

Serviço
Soledad – A terra é fogo sob nossos pés
Quando: Nesta quinta-feira, às 20h;
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho

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Manifesto contra a repressão, de ontem e de hoje

Hilda Torres no espetáculo Soledad. Foto: Flávia Gomes

Hilda Torres no espetáculo Soledad – A terra é fogo sob nossos pés. Foto: Flávia Gomes

A personagem Soledad, criada pela atriz Hilda Torres, assume o amálgama de militância política e paixão amorosa. Firme e doce. Sedutora na prática do bem comum. A ditadura brasileira (1964-1985) confiscou a vida da jovem guerrilheira paraguaia Soledad Barrett Viedma (1945-1973) de forma covarde. Um relevante trabalho de resgate foi feito pela intérprete em parceria com a diretora argentina Malú Bazán e a própria filha da militante, Ñasaindy Barrett, para erguer o espetáculo Soledad – A terra é fogo sob nossos pés. A montagem estrou ano passado e agora faz uma curta temporada às 20h dos sábados e às 19h dos domingos, no Teatro Hermilo Borba Filho, até o dia 10 de abril.

As veias dilaceradas da ativista respingam em toda América Latina, mas foi nos arredores do Recife que ela sofreu o golpe final e fatal. O agente duplo da ditadura José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, seu “companheiro amoroso” de quem estava grávida, a delatou ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, o terrível carrasco de presos políticos. Sol foi torturada e assassinada numa ação policial que exterminou mais cinco militantes da VPR: Pauline Philipe Reichstul, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luis Ferreira, Jarbas Pereira Marques e José Manoel da Silva. O episódio brutal ocorreu na Chácara São Bento, em 8 de janeiro de 1973, em Abreu e Lima, e ficou conhecido como Massacre de São Bento.

Soledad Barret fez parte da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). A justiça social estava no seu sangue. Era neta do escritor, jornalista, intelectual e líder anarquista Rafael Barrett. Uma ação de neonazistas em Montevidéu selou sua escolha pela guerrilha. Ao se recusar a reproduzir a frase “viva Hitler!”, ela foi submetida à violência de ter a suástica nazista gravada em suas coxas pelos extremistas.

Para seu aprendizado e atuação na guerrilha, e/ou fugindo das perseguições, Soledad morou na Argentina, no Uruguai, em Cuba e no Brasil, sob a ditadura militar. Em Cuba se enamorou de Zé Maria, pai de sua filha Ñasaindy.

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Excelente atuação de Hilda Torres

Essa cena do real faz um resgate dessa mulher guerreira que era injustamente mencionada como a mulher do Cabo Anselmo. A atriz Hilda Torres e a diretora Malú Bazán construíram a dramaturgia a partir de poemas e textos de pessoas envolvidas na história de Soledad e do livro do jornalista Urariano Mota, Soledad em Recife, relato que resgata a passagem da paraguaia por Pernambucano.

O monólogo poético utiliza poemas, músicas, elementos sonoros, cadeira, livro e outros objetos, como uma boneca confeccionada por Maria de Lourdes Albuquerque, 94, uma das mulheres de fibra que encetou o movimento das mães em busca de seus filhos no período da ditadura. Nas laterais do palco estão esparramados papéis usados durante o processo de produção da peça.

A história de Soledad é contada da forma digna, com entrega total da atriz Hilda Torres. O tom da encenação é totalmente feminista, de empoderamento da mulher, e com caráter libertário, contra as repressões. Mas o peso dessa história de luta, que expõe muitas barbaridades cometidas contra essa mulher aguerrida, não cai no panfletário. As posições da encenação são claras em defesa da vida, pelo respeito à pessoa humana e pela liberdade em todos os níveis.

Empoderamento feminino

Empoderamento feminino

Com os seios desnudos, Hilda entra no palco traçando conexões com a feminilidade, maternidade, com o Planeta Terra. Há muitas camadas de metáforas. E segue outras composições. Nas dobras da saia, levava os recados de libertação como herança de família.

Seus movimentos se alteram entre a narração da intimidade amorosa com a família e amigos e a luta armada, que aprende em pé de igualdade com os homens.

O empenho da intérprete em catapultar a imagem de Soledad para um lugar mais alto passou pelo aprendizado de algumas palavras e expressões em guarani, já que a militante falava o idioma; chegou aos passos rápidos e fortes do cavalo-marinho, que traçam com beleza coreográfica as cenas de batalha.

Os fatos narrados ostentam um ‘status de verdade’, pelo compromisso dos criadores com a realidade de Soledad e dos revolucionários que comprometeram seu tempo e até perderam a vida nessas lutas. Esse teatro documentário, político (e não há outro sentido no teatro político que não seja libertador) clama pelos povos oprimidos do continente. Os elementos ficcionais na montagem completam sua sustentação poética.

É uma atuação de fôlego de Hilda Torres. A maior de sua carreira. Uma entrega total. Potente e bela. Por seus poros, por seus olhos, nos seus gestos, na gradação de sua voz, nas explosões emotivas da personagem pulsam o essencial de vida. Coragem para tornar a existência grande. É comovente quando ela clama pelos desaparecidos políticos e a plateia responde “presente”. A potencialidade dessa anexação do real faz o teatro vibrar. E mesmo o espectador mais anestesiado com o excesso de informação sai da passividade para pertencer e se revoltar contra as barbaridades.

O projeto conta com uma equipe técnica afinada, como a iluminação cúmplice de Eron Villar e direção musical de Lucas Notaro. Soledad – A terra é fogo sob nossos pés fala de um período terrível de perseguições, mas aponta também para os tempos que correm da política brasileira.

Mas não é um espetáculo para qualquer espectador. Para quem tem certeza que há hierarquização de humanos enquanto valor de pessoa, que os pobres não têm direitos a melhorar de vida, que não deve haver empoderamento das mulheres, talvez seja melhor não aparecer. Para os que tem incertezas sobre essas questões ainda há alguma chance. E para quem defende a liberdade, os direitos humanos, o respeito às diferenças é uma encenação para se recarregar.

Ficha Técnica

Direção, cenário e figurino: Malú Bazán
Dramaturgia e pesquisa cênica: Hilda Torres e Malú Bazán
Pesquisa histórica: Hilda Torres, Márcio Santos e Malú Bazán
Execução de cenário e figurino: Felipe Lopes e Maria José Lopes
Iluminação: Eron Villar
Operação de luz: Eron Villar e Gabriel Félix (Villa Lux)
Direção musical: Lucas Notaro
Operação de som e produção executiva: Márcio Santos
Consultoria do idioma guarani: Adrián Morínigo Villalba
Atriz, idealizadora e coordenadora do projeto: Hilda Torres

SERVIÇO

Soledad – A Terra é Fogo Sob Nossos Pés (Cria do Palco – Recife/PE)
Quando: Sábados, às 20h; e domingos, às 19h. Até o dia 10 de abril.
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho, no Bairro do Recife
Quanto: R$ 30 e R$ 15

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Guerrilha e amor, uma mistura explosiva

Hilda Torres no espetáculo Soledad

Hilda Torres no espetáculo Soledad

janeiro-de-grandes-espetáculos-SSSSMuitos morreram pela liberdade. E cada vez que um personagem desses ganha os holofotes é uma justiça para a história. A  guerrilheira paraguaia Soledad Barrett Viedma (1945-1973) teve sua voz sufocada pela opressão das ditaduras por 42 anos. Até o ano passado, quando a atriz Hilda Torres, a diretora argentina Malú Bazán e a própria filha da militante, Ñasaindy Barrett, se juntaram para montar o espetáculo Soledad – A terra é fogo sob nossos pés.

O drama de “Sol” expõe as veias abertas da América Latina numa época de grande opressão política. Um trajeto de vida e poesia. Soledad foi mais uma vítima das barbaridades da ditadura militar do Brasil (1964-1985).

Ela morou na Argentina, no Uruguai, em Cuba e no Brasil, fugindo das repressões. Ao ser sequestrada por um bando de neonazistas em Montevidéu, ela adotou a guerrilha. Ao se recusar dizer a frase “viva Hitler!”, ela foi marcada nas coxas com a suástica nazista. Em Cuba, onde aprendeu a luta armada, conheceu Zé Maria, pai de sua filha Ñasaindy.

No Brasil se apaixonou por José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, companheiro que a entregaria à polícia, às garras do delegado Sérgio Fleury. O Massacre de São Bento matou Soledad grávida e outros cinco militantes na Chácara São Bento, em Abreu e Lima.

É um espetáculo emocionante.

SERVIÇO

Espetáculos de Hoje no Janeiro de Grandes Espetáculos

Soledad – A Terra é Fogo Sob Nossos Pés (Cria do Palco – Recife/PE)
Quando: Dia 18 de janeiro de 2016 (segunda), 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 20 e R$ 10

Luas de Há Muito Sóis (Papelão Produções e Fafe Cidade das Artes – Recife/Brasil/  Fafe/ Portugal)
Quando: Dias 18 e 19 de janeiro de 2016 (segunda e terça), 20h
Onde: Teatro Capiba (SESC Casa Amarela)
Quanto: R$ 20 e R$ 10

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Coletivo Angu de Teatro reestreia Essa febre no Rio

Hermila Guedes em Essa febre que não passa. Foto: Ivana Moura

“(…) Hoje fico pensando se não foi um atraso de vida, essa minha vocação para gostar do longe. Tudo, quanto mais distante daquela nossa realidade pobrezinha, mais eu gostava. Imagina, numa ponta de rua do mundo, uma criatura crescendo completamente em desacordo! Tânia, Fátima, Goreti, todas elas sonhavam com altares, maridos, filhos, um emprego no Banco do Brasil, talvez. Você lembra? E eu não tinha com quem falar sobre como foi bonito o começo, o meio e o fim de Dolores Duran.”

Cinco contos embebidos em sensibilidade, amor, perda, força, ternura. Essa febre que não passa, montagem do Coletivo Angu de Teatro a partir do livro homônimo da jornalista Luce Pereira, transpira tudo isso. Com algumas especificidades e primeiras vezes: o elenco é todo feminino e André Brasileiro estreia na direção, sob o olhar sempre atento de Marcondes Lima, diretor das três montagens anteriores do grupo: Angu de sangue, Ópera e Rasif – Mar que arrebenta.

No palco, Ceronha Pontes, Hilda Torres, Márcia Cruz, Mayra Waquim, Nínive Caldas e também Hermila Guedes ou Lili Rocha. Desde o ano passado, quando Hermila precisou gravar novela que Lili divide o papel com ela; e agora como o filme Era ma vez eu, Verônica terá pré-estreia em alguns lugares, Lili entra em cena novamente.

Ceronha Pontes e Nínive Caldas

A peça é formada por vários quadros; esses personagens são ligados de forma muito sutil; existem de forma independente. Uma mulher que perdeu o grande amor e ouve My way no último dia do ano; outra que fez concessões e achou que um gato poderia restaurar laços rompidos; uma tia que nunca viu o mar. É uma peça entrecortada por sensibilidade, em que o voal do cenário mostra e esconde; vai sendo aberto aos pouquinhos; as memórias vão aparecendo, seja em fotos, palavras, gestos. A música é feita ao vivo, com direito até a tango.

Essa febre que não passa reestreia hoje no Rio de Janeiro dentro do projeto Visões Coletivas, no Teatro Glauce Rocha.

Serviço:
Essa febre que não passa
Quando: De quinta a domingo, até 16 de dezembro, às 19h
Onde: Teatro Glauce Rocha (Avenida Rio Branco, 179, Centro, Rio de Janeiro)
Quanto: R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada)
Informações: (21) 2220-0259

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Vou aproveitar para postar um texto que escrevi para a revista Continente de novembro sobre o projeto Visões Coletivas, que está levando Essa febre ao Rio:

Seis meses em cena carioca
Grupos nordestinos mostrarão produção recente dentro do projeto Visões coletivas

Texto // Pollyanna Diniz

Há três anos, o Teatro Glauce Rocha, no Centro do Rio de Janeiro, reabria as portas. A programação que dava as boas vindas ao público tinha sotaque pernambucano: eram montagens do Recife, do Cabo de Santo Agostinho, de Caruaru e de Arcoverde. O Coletivo Angu de Teatro estava nessa seara apresentando Angu de sangue, texto de Marcelino Freire.

A companhia pernambucana que completa dez anos em 2013 voltou ao Glauce Rocha no último mês de março para uma curta temporada que provocou muita fila na porta do teatro – a apresentação de Essa febre que não passa, texto da jornalista Luce Pereira. Depois dessas duas experiências, o Angu agora ocupa a casa de espetáculos carioca por um tempo mais prolongado. Serão seis meses de peças de grupos nordestinos dentro de um projeto proposto pela companhia, intitulado Visões coletivas – Nordeste contemporâneo.

“Já pensávamos em fazer um projeto semelhante desde 2008. Mas não tinha ainda um formato ideal. Isso só veio com o edital de ocupação do teatro, lançado pela Funarte”, explica Tadeu Gondim, idealizador do projeto e produtor do Coletivo Angu de Teatro. Na grade de espetáculos, montagens do Recife, de Fortaleza, de Natal, de João Pessoa e ainda de Salvador. “Assim como no resto do país, o teatro de grupo também está fervilhando no Nordeste. E claro que existe a curiosidade do público do Sudeste sobre o que é feito no Nordeste. Ainda há uma visão, para quem não conhece, de que teatro nordestino é cordel e fala de seca”, avalia Gondim.

Do Recife, a programação inclui três montagens do Angu – Angu de sangue (novembro), Essa febre que não passa (dezembro) e Ópera (janeiro) – e o espetáculo O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas (novembro), da Trupe Ensaia Aqui e Acolá. Já se apresentaram, na abertura do projeto mês passado, os grupos Mão Molenga Teatro de Bonecos, com O fio mágico, e a Cia. Enlassos, com Assim me contaram, assim vou contando…

Grupo Bagaceira de Teatro apresenta repertório em fevereiro. Na foto, A mão na face, que estreou no Recife. Foto: Pollyanna Diniz

No caso de algumas companhias, o público poderá ter uma visão mais ampla da produção, com a apresentação de mais de um espetáculo do repertório. O grupo Bagaceira de Teatro, por exemplo, do Ceará, participa do projeto com quatro montagens: Tá namorando! Tá namorando!, Meire Love, A mão na face e Lesados. Da Paraíba, está na programação Deus da fortuna, do Coletivo Alfenin de teatro; do Rio Grande do Norte, A mar aberto, do Coletivo Atores a Deriva. E ainda Ricardo Guilherme (CE), com Bravíssimo e A comédia de Dante e Moacir; Fábio Vidal (BA) com o espetáculo Sebastião; Felícia de Castro (BA) com Rosário; e Ceronha Pontes (CE) com Camille Claudel. A única exceção na programação é o francês Maurice Durozier, ator do Théâtre du Soleil que mantém uma relação próxima com o Nordeste brasileiro.

“O nosso mote é discutir o teatro contemporâneo feito no Nordeste. E talvez a gente perceba que as questões contemporâneas são muito parecidas, sejam elas tratadas por espetáculos do Nordeste ou do Sudeste. Nos nossos espetáculos, por exemplo, as referências nordestinas estão sempre muito presentes. Mas se dão de outra forma – não necessariamente no tema, na estética. O discurso é contemporâneo”, finaliza Tadeu Gondim.

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