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Nomeando Jacy*

Jacy, espetáculo do Grupo Carmin, de Natal. Foto: Jennifer Glass

Jacy, espetáculo do Grupo Carmin, de Natal. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

O espetáculo do Grupo Carmin, de Natal, Rio Grande do Norte, se apresenta pela primeira vez em São Paulo na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo da Cooperativa Paulista de Teatro. Combinação de projeto, obra do acaso e investigação (artística e quase policial), a gênese da criação da peça, escrita em colaboração com os filósofos Pablo Capistrano e Iracema Macedo, é compartilhada com os espectadores pela atriz Quitéria Kelly, pelo ator, diretor e dramaturgo Henrique Fontes, e pelo cineasta Pedro Fiuza, que com palavras e imagens nos relatam duas aventuras paralelas. Uma delas é a criação de uma peça que começou como uma pesquisa sobre a velhice e que foi atravessada por uma história que eles não puderam ignorar. A outra é essa história que eles não puderam ignorar, a vida de uma mulher chamada Jacy, que nasceu em Natal, se emancipou com a II Guerra Mundial, mudou-se para o Rio de Janeiro, foi amante de um militar americano que ministrava treinamentos suspeitos para os militares brasileiros durante a ditadura, e voltou para Natal para morrer no esquecimento. Até que um artista de teatro se deparou com uma imagem na rua.

A conexão entre as duas histórias é justamente essa imagem, uma imagem performativa (se é que se pode dizer algo assim), que fez uma interpelação, como um ato de fala de uma aparição. Andando por uma rua de Natal no ano de 2010, Henrique se deparou com papeis voando de um saco de lixo, entre móveis e objetos recém-descartados, entre eles uma frasqueira daquelas que mulheres de alta classe usavam nos anos 1960. Dentro dessa frasqueira, documentos, artigos de maquiagem, cartas, cartões e objetos pessoais de Jacy. Assim se deu o encontro casual de um homem com um objeto jogado no lixo, que se revela uma sintonia muito fina do acaso com a fortuna e resulta num encontro minuciosamente elaborado do teatro com a história.

A peça é sobre Jacy, mas também é sobre a velhice e sobre o teatro. E é sobre as imagens e a nossa capacidade de se deixar atravessar por elas a ponto de alterar as nossas rotas previamente programadas. O sentido da criação artística é o desvio e, em alguma medida, o da vida de Jacy também. O desvio aqui foi causado por uma interpelação do acaso, um chamado, como se a imagem tivesse dito “Henrique!” e ele entendeu que era com ele. Como vimos no palco do Centro Cultural São Paulo, Quitéria dedica o espetáculo a Jacy, chamando seu nome, como quem devolve a interpelação. Ela diz: “Jacy, onde você estiver, etc.”

Seria possível escrever sobre o espetáculo a partir de diversos pontos de vista. O trabalho é um prato cheio de questões atuais e relevantes sobre a cidade de Natal, a ideia de Nordeste, a história do Brasil, a presença das famílias de poder na política brasileira, os procedimentos de encenação teatral, as poéticas contemporâneas de dramaturgia de teatro documental e suas técnicas de atuação, bem como as implicações entre escrita ficcional e narrativa historiográfica. Mas escolho, tendo em vista o curto prazo e o pequeno espaço, apenas chamar a atenção para o gesto de nomear, interpelar, convocar. Nesse caso, convocar os mortos, convocar uma mulher, falecida, a contar a sua história. Desvelar a vida de Jacy, tirá-la do anonimato, pronunciar seu nome, é um gesto tão artístico quanto político, uma forma de assumir a responsabilidade sobre a memória de alguém, ressuscitar afetos, reescrever as histórias e a história de um lugar de fala nada oficial.

Peça traz história de personagem real, permeada pela ficção

Peça traz história de personagem real, permeada pela ficção

Ouvimos a história pessoal, tão real quanto fictícia, de Jacy, uma mulher independente, amante, escritora de cartas, que não seguia as regras do seu meio, e nos damos conta de que vivemos hoje no Brasil um momento de grandes revoluções nas mentes e ainda maiores retrocessos na política no que diz respeito ao entendimento do que é uma família. E temos que, em pleno 2015, defender com unhas e dentes os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo. O lugar da mulher na sociedade brasileira está à flor da pele na história pessoal de Jacy, como relatada pela dramaturgia do espetáculo. A família, como instituição, também está em cheque na peça do Grupo Carmin. E a velhice, questão política e social da maior importância, pontua a história da mulher, da família e do país com delicadeza diligente.

E tem um Brasil ali. O fato de que o ponto de vista da peça é marcado pelas ruas e pela história
de Natal é justamente o que oferece aos espectadores um olhar específico, particular, criativo, um olhar autoral para essa massa informe de imagens e narrativas que é a ideia de um país. Esse olhar autoral é o que cria mundos e, em consequência, dá a ver o que cria.

Jacy é daquelas peças que fazem a gente ver que o teatro está no mundo e que o teatro é muito importante. Como Jacy, essa figura possivelmente encantadora que parecia não ser ninguém especial para quem estava à sua volta, o teatro tem passado despercebido nas narrativas e nas imagens sobre história, memória e identidade brasileiras. Descobrir Jacy é descobrir o teatro, a maravilha da criação real-ficcional a partir de uma imagem, de um acaso, de uma convocação que muda o percurso programado, (re)descobrir, mais uma vez, que o teatro tem muito a dizer e que os modos de dizer do teatro têm força de interpelação.

Ficha técnica
Textos: Pablo Capistrano e Iracema Macedo
Dramaturgia: Henrique Fontes e Pablo Capistrano
Direção: Henrique Fontes
Assistente de direção: Lenilton Teixeira
Consultoria: Marcio Abreu
Atores: Quitéria Kelly e Henrique Fontes
Videomaker: Pedro Fiúza
Designer de Luz: Ronaldo Costa
Direção artística e cenografia: Mathieu Duvignaud
Trilha sonora original: Luiz Gadelha e Simona Talma
Coordenação de produção: Quitéria Kelly
Assistente de produção e desenhista: Daniel Torres
Designer gráfico: Vitor Bezerra
Fotógrafo: Vlademir Alexandre

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*Crítica escrita por Daniele Avila Small – Questão de Crítica/DocumentaCena**
**A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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O fetiche da miséria e a maldade do outro*

Condomínio Nova Era. Foto: Jennifer Glass

Condomínio Nova Era. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

Condomínio Nova Era, peça do grupo A Digna Companhia, está na programação da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo com apresentações no espaço do grupo Sobrevento, talvez pequeno demais para o espetáculo criado originalmente para se apresentar em outro lugar. Na peça, nove atores e um músico contam a história de um edifício ocupado por pessoas simples, em condições miseráveis, sofrendo (em linhas gerais) com a falta d’água, a ameaça de despejo e a ausência de perspectivas de vida. O cenário é gradualmente montado e desmontado pelos atores em diferentes parte do espaço cênico. Os espectadores se deslocam entre uma cena e outra, o que dá ao andamento do espetáculo uma certa monotonia. A cada troca, um esfriamento e, com mais gente na plateia do que o espaço comporta, a possibilidade de ver a próxima cena de outro lugar ruim.

A peça se coloca como crítica social, com uma noção literal de teatro político, ou seja, teatro que se entende como político porque trata de um tema político e passa uma mensagem clara de opressores de um lado e oprimidos do outro. Mas o espetáculo é mais midiático do que político na medida em que apresenta as situações como preto no branco, sem espaço para nuances e complexidades, como fazem os noticiários de TV: imagens-fetiche para tentar chocar o espectador e verdades proferidas em tom grave de verdade e denúncia. Penso em imagens-fetiche como aquelas de uma visibilidade espetacular, não dialética, que quer impressionar. A imagem gravada e veiculada numa TV no cenário, em que um jovem delinquente cheio de raiva é entrevistado por um repórter cretino que faz perguntas para estimular o garoto a dizer coisas detestáveis, que estimulam o ódio e o asco do outro, é um exemplo de fetichização. Em vários momentos, o espetáculo assume o mesmo regime de visibilidade das imagens, quando mostra uma tentativa de identificação com o sofrimento, com a miséria, com a pobreza. E também quando fetichiza o esforço do artista.

Outra questão que talvez comprometa a dimensão crítica e política da peça é o fato de que o espetáculo está “pregando para convertidos”. Me parece que o público da peça é aquele que já sabe que a especulação mobiliária é desumana e higienista, que a polícia é violenta e abusiva e trabalha a favor do capital, e que uma parte imensa da população mundial vive em condições de precariedade absoluta. Quando todo mundo concorda, quando tudo já está dado, sem possibilidade de questionamento, não há debate. Sem debate, não há dimensão crítica. Ao espectador, só cabe confirmar o que já sabe e baixar a cabeça para o discurso dos artistas. Isso não é político. A vitimização de um e a demonização do outro não dá espaço para a reflexão. Por mais que essa polaridade faça sentido na vida, me parece que na arte precisamos ir além dos conceitos binários para instaurar um espaço de pensamento.

A ideia mesma de deslocar os espectadores também é uma espécie de fetiche, que parte de uma crença de que o espectador tem que estar literalmente se mexendo, sendo fisicamente tocado, sensoriamente incomodado ou atingido por alguma substância ou objeto que os artistas atiram na sua direção para ser um espectador “ativo”. Como se dar atenção a um espetáculo, criar imagens e desenvolver um pensamento sobre o que vê fosse de uma passividade condenável. No caso dessa peça especificamente, percebo uma pressuposição com relação ao espectador com a qual não compactuo: a de que o espectador precisa ser despertado da sua ignorância. No discurso da peça e no tom geral da montagem, especialmente quando o diretor entra em cena e começa a falar diretamente com o público sobre si mesmo e o seu próprio trabalho, me pareceu nítida a ideia de que os personagens e os artistas estão em um lugar de superioridade. Pelo tom messiânico do diretor, fica a impressão de que ele se sente detendor de verdades que os espectadores precisam ouvir. A encenação da “entrega” revela mais vaidade do que modéstia.

Em seu artigo O espectador emancipado, Jacques Rancière apresenta uma argumentação muito coerente sobre essa noção de teatro como lugar simplificado da assembleia, no qual o espectador é tratado como se estivesse numa condição de menoridade. Como o espaço do texto e o prazo de publicação são curtos, não me detenho na referência, mas recomendo a leitura, que ajuda a esclarecer o que estou querendo dizer sobre essa relação desigual entre artista e espectador.

É muito difícil quando o teatro tenta fazer denúncias no calor da hora. A urgência da pauta da denúncia não dá chance para o distanciamento necessário para a elaboração poética. A violência é expressão da maldade do homem, mais que dos interesses capitalistas e das diferenças de classe. E a maldade é uma das coisas mais complexas que a humanidade tem que enfrentar como condição própria. Se o mal é condição da humanidade como espécie, representá-lo como condição do outro (um outro esterotipado) pode parecer ingênuo e auto-indulgente.

Peça traz noção literal de teatro político

Peça traz noção literal de teatro político

Ficha técnica
Dramaturgia: Victor Nóvoa
Direção: Rogério Tarifa
Elenco: Adilson Azevedo, Eduardo Mossri, Flavio Barollo, Helena Cardoso, Jonathan Silva, Liz Mantovani, Karen Menatti, Rogério Tarifa, Victor Nóvoa e Zimbher
Direção musical: Jonathan Silva e Zimbher
Composição da trilha original: Jonathan Silva, Zimbher e Flavio Barollo (música: Homem Falido)
Cenografia: Ana Rita Bueno e Rogério Tarifa
Instalação audiovisual: Flavio Barollo
Figurinos: Ana Rita Bueno
Criação de luz: Marisa Bentivegna
Workshop de preparação de atores: Ana Cristina Colla
Operação Som e Luz: Igor Sane
Atores nos vídeos: (Quarto Jucilene) Bruno Maldegan e Priscila Ortelã
Design gráfico: Vertente Design
Fotos: Alécio

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*Crítica escrita por Daniele Avila Small – Questão de Crítica/DocumentaCena**
**A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Da lama ao caos do encontro

A cidade dos rios invisíveis. Foto: Jennifer Glass

A cidade dos rios invisíveis. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

O trajeto entre as estações Brás e Jardim Romano dura algo em torno de 40 minutos. Antes mesmo de começar o caminho, se você entrou no trem assim que ele abriu as portas, a espera é um pouco maior: até quem parece enfadado depois de um dia de trabalho, desenvolve certa solidariedade por aquele que desce as escadas correndo apressado para não perder o transporte. Ah, até porque os papeis sempre podem se inverter no dia seguinte. Em tudo na vida.
Fechadas as portas, enquanto o trem avança em direção ao extremo leste de São Paulo, temos tempo suficiente para nos perdemos em nós mesmos. Os olhos vagueiam pela janela e dentro do próprio trem, no encontro visual com personagens anônimos. Quanto mais longe do Centro, mais as pessoas se entregam à exaustão, dormem; mais as paisagens e a arquitetura mudam. As verticalizações da “cidade-progresso” dão espaço a outros arranjos habitacionais, geralmente bem mais coloridos e diversos.

Nesse percurso, ouvindo uma gravação no mp3 (sim, o som alto, que se instaura para a coletividade, é proibido no trem) que incluiu o barulho do rio, textos poéticos, reflexões e depoimentos, começa o espetáculo A cidade dos rios invisíveis, do grupo Estopô Balaio (De)Criação, Memória e Narrativa. Foram três sessões dentro da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, todas marcadas pela chuva que caiu na capital nesses últimos dias.

Os criadores do grupo chegaram ao Jardim Romano no ano de 2011, pouco depois que as águas haviam baixado. Durante quatro meses, o rio que passa por trás da comunidade entrou mais uma vez nas casas que ficam na parte mais baixa do bairro. Da mesma forma que, muitas vezes sem pedir licença, tomamos o espaço da natureza, vez ou outra, recebemos um sinal. Talvez não seja nem uma resposta desaforada, mas é assim mesmo que geralmente encaramos. O rio que invadiu e alagou as casas deixou marcas em diversos âmbitos na comunidade.

Montagem da Estopô Balaio começa na estação  Brás e vai até o Jardim Romano, extremo leste de São Paulo

Montagem da Estopô Balaio começa na estação Brás e vai até o Jardim Romano, extremo leste de São Paulo

Enquanto as crianças diziam que tinham visto peixes “pularem” no meio da enchente, jovens e adultos carregavam outras memórias e experiências normalmente bem menos lúdicas. Desde então, tendo a comunidade como parte efetiva do grupo, o Estopô Balaio já fez outros dois trabalhos a partir das vivências no Jardim Romano. O terceiro é justamente A cidade dos rios invisíveis, que usou como uma das referências o livro As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino.

O movimento de travessia em direção ao encontro está no cerne do projeto. Na itinerância do Brás ao Jardim Romano, no caminho pelas ruas e becos até o rio. No encontro entre os atores “profissionais” e atores “moradores”, entre esses e o espectador. No encontro entre a poesia e os relatos da vida cotidiana. Os atores vão conduzindo a itinerância: que, dependendo da chuva, tem até 13 momentos, a maioria deles marcados por personagens do próprio bairro. Na Rua Miguel de Quadros Marinho, por exemplo, ouvimos a entrevista de Dona Jacira, nordestina, que fala sobre a condição da mulher. Na Rua Cochonilha, o público se depara com invenções, para ver a vida de outra forma. No Beco da Rata, mais poesia. Crianças da comunidade acompanham o percurso inteiro empolgados (até que algum pai ou mãe chama) e também participam da encenação.

Se as relações, inclusive na arte, podem ser mais rápidas e fortuitas, não foi o que aconteceu entre o Estopô Balaio e o Jardim Romano. Isso é muito claro para quem acompanha a apresentação e faz a diferença completamente nesse projeto, que diz muito mais sobre respeito e empoderamento do que só sobre arte e teatro em si. Foi no bairro, por exemplo, que o grupo instalou sua sede, numa demonstração efetiva de que o olhar estrangeiro queria ser tomado, fundido, pelo olhar local.

Atores "moradores" participam da encenação

Atores “moradores” participam da encenação

Esse talvez seja o principal mérito desse trabalho. Ao mesmo tempo em que os atores “profissionais” realmente acumulam experiências de vida e não só simulacros e memórias, os atores “moradores” atravessam o caminho em direção à própria voz. Estão todos no mesmo barco, na mesma rua de paralelepípedo, no mesmo beco enlameado que tem as paredes cobertas de poesia. Todos se influenciam, se misturam, se deixam afetar.

É um espetáculo também que desperta a noção de pertencimento, discute a cidade que queremos, a vida que desejamos levar, os sonhos pelos quais lutamos. Se durante muito tempo na comunidade, era o rio quem vinha ao encontro dos moradores, impondo como eles mesmo dizem, os tempos da água, da lama e do pó, agora somos nós que vamos ao rio, num movimento não só de autocompreensão, mas de tentativa de diálogo com o mundo no qual estamos inseridos.

Ficha Técnica
Ideia original, roteiro e direção: João Júnior
Dramaturgia: Estopô Balaio
Atores: Ana Carolina Marinho, Juão Nin, Johnny Salaberg e Renato Caetano
Atores-moradores: Adrielle Rezende, Bruno Cavalcante, Bruno Fuziwara, Keli Andrade e Paulo Oliveira
Participação: Emerson Alcade
Trilha Sonora: Marko Concá
Sonoplastia: Carol Guimaris e Doutor Aeiuton
Poesias: Debora Fiúza “Rata”, Emerson Alcade e Jacira Flores
Canções: Diane Oliveira, Dustin Mc e Matheus Farias, Juão Nin, Marko Concá
Figurino: João Júnior
Artes Visuais: Paula Mendes, Renato Caetano e Clayton Lima
Dança de Rua: Kel Look, Popper Diniz, Jeans, Bia Ferreira, Big Baby e Mell Reis
Produção: Wemerson Nunes, Clayton Lima e Ana Maria Marinho
Comunicação: Ramilla Souza

Montagem terminou sob chuva forte, no rio. Foto: Reprodução facebook/Estopô Balaio

Montagem terminou sob chuva forte. Foto: Reprodução facebook/Estopô Balaio

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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“A memória é uma força, não um fardo.”*

Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

A citação que intitula esse texto é um comentário do programa da exposição de Tadeusz Kantor, atualmente em cartaz no Sesc Belenzinho, a que tive oportunidade de assistir logo antes da apresentação de Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia do grupo Opovoempé na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. Menciono aqui a exposição não apenas para contextualizar a citação, mas para lembrar que a recepção de uma obra é sempre trabalhada pela sua poética. O estado do corpo em uma exposição que nos interessa é uma mistura interessante de atenção e distração. O início desse trabalho do Opovoempé opera a passagem para esse estado.

O espaço cênico é formado por mesas, painéis, paredes e um espaço vazio, com o número 68 no centro de uma forma circular, em referência ao ano de 1968. Os painéis contêm frases que enquadram os tópicos propostos com documentos de diferentes procedências: cópias de matérias de jornal, artigos publicados nos anais da AMPUH, monografias, impressos de páginas na Internet, projetos de lei, um mapa cujas ruas devem ser renomeadas, etc. Nas mesas, jogos e outros documentos como livros e dispositivos de áudio com fones de ouvido para cada um ler ou escutar gravações de discursos ou depoimentos acerca da ditadura militar no Brasil e da situação análoga em outros países latino-americanos.

Entre os livros, me chamaram a atenção os de Educação Moral e Cívica em uma mesa que lembra uma mesa de professor na sala de aula, com aquela típica bandeirinha do Brasil. Sobre a mesa, uma sinalização que dizia algo como “Criança Anos 70”. Tendo nascido em 1976, me lembro de ter aula de Moral e Cívica, mas não me lembrava do conteúdo dessas aulas. Em dois livros, encontrei narrativas – pretensamente históricas – sobre índios. Em um deles, uma narrativa praticamente eliminava os índios do Brasil, falando deles no pretérito: “O índio, que era o homem primitivo do Brasil, vivia, na oportunidade da descoberta deste, no regime da mais rudimentar cultura, aproximando-se esta, da Idade da Pedra.” Tirei uma foto da página para não esquecer, mas não tenho a referência bibliográfica.

Acima, dei ênfase ao fato de que se tratam de narrativas “pretensamente” históricas porque a premissa básica da escrita da história é o compromisso com a verdade. Só que não em países que sofreram processos ditatoriais. Nesses casos, a história, bem como parte significativa do jornalismo, serve para criar ficções de acordo com interesses específicos. O trabalho do grupo Opovoempé me aprece apresentar a ideia da construção deliberada de discursos mentirosos ao oferecer essas evidências para o espectador encontrar de uma forma que prescinde de qualquer estratégia de convencimento.

Depois de um tempo em que os espectadores estão no espetáculo como se estivessem em uma exposição ou em uma sala de jogos, um dos atores inicia um jogo em que os espectadores respondem a perguntas ao se deslocar no espaço, de acordo com o grupo a que pertencem. Por exemplo: o ator propõe que quem nasceu antes de 1964 deve ficar no ponto X e quem nasceu depois, no outro X. Assim, com algum humor, vai se apresentando uma espécie de cartografia da formação do público. Com esse movimento, os espectadores trocam olhares, riem, às vezes aplaudem o outro grupo ou o reprimem em tom de brincadeira. Os atores administram o tempo das propostas com tranquilidade e com isso o público vai se adequando ao tempo de permanecer, que também é o tempo de escutar. Até que parte do elenco começa a narrar os fatos da Batalha da Maria Antônia. Eles estão com fones de ouvido e falam na medida em que escutam depoimentos gravados. A preparação do ritmo interno do espectador me parece bem eficaz, embora tenha ficado com a impressão de que o público, no dia da apresentação que eu vi, estava excessivamente tímido para a proposta da peça.

O espaço cênico é formado por mesas, painéis, paredes e um espaço vazio, com o número 68 no centro

O espaço cênico é formado por mesas, painéis, paredes e um espaço vazio, com o número 68 no centro

Os criadores de Arqueologias do presente se propõem um risco real quando optam por fazer a temperatura do espetáculo depender bastante do público de cada dia. Para o bem ou para o mal das apresentações isoladamente, é interessante que a poética do espetáculo tenha essa dimensão de risco e essa abertura concreta para o trajeto de pensamento que o espectador vai percorrer.

De qualquer modo, penso que a forma como a peça lida com o espectador é exemplar do desejo de convívio e partilha que o trabalho propõe. Até nos momentos em que um ou outro ator faz uma pergunta diretamente para um espectador, o tom é de conversa, não de interrogatório nem de desafio. A relação é sempre horizontal. Mesmo quando eles tomam a palavra para dar os depoimentos, a fala é entre iguais, sem pretensão de autoridade.

Vejo duas formas documentais distintas na peça. A primeira é composta pelos objetos, por coisas materiais, por imagens e textos impressos. A outra é feita de vozes, depoimentos falados, entonações, expressões físicas do corpo, pessoas reais. É como se a peça nos convidasse a escutar a história de outra maneira, convocando uma humanidade, um corpo a corpo para esse processo.

Em determinado momento, um dos atores perguntava qual era o X da questão, indagando o porquê das coisas estarem como estão. Talvez seja possível responder que há um vício tautológico geral de dizer que as coisas estão assim porque sempre foram assim. E o que vemos com essa e outras peças que buscam formas singulares de lidar com a história é, primeiramente, o obvio: que o país em que vivemos agora é o resultado do projeto de cinco décadas atrás. Mas a peça também sugere que a força da memória pode ser a de entender que se as estruturas que (ainda) cultivam a violência e a ignorância são uma construção, também podemos acreditar na sua desconstrução e trabalhar por ela.

Temperatura do espetáculo depende bastante do público

Temperatura do espetáculo depende bastante do público

*Crítica escrita por Daniele Avila Small – Questão de Crítica/DocumentaCena**
**A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Falemos exaustivamente daquele (do nosso) tempo

 Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia. Foto:  Jennifer Glass

Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

Se a ignorância aprisiona as possibilidades do sujeito, o conhecimento é capaz de transformá-lo. Como já pregava Paulo Freire, a maneira mais efetiva de construir esse conhecimento talvez seja respeitando individualidades, levando-se em conta o que enxergamos do mundo ao nosso redor e as nossas potencialidades como seres em desenvolvimento. Sabedores disso, os atores do grupo Opovoempé, de São Paulo, propõem a experiência e a partilha no espetáculo Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia como forma de reconstituir o que foram os anos da Ditadura Militar no Brasil, tendo como elemento disparador da dramaturgia a batalha entre estudantes da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, no ano de 1968.

Quando entra no espaço cênico, uma instalação visual, o público logo se depara com um local repleto de informações e proposições; e, sendo assim, com a necessidade real de se fazer presente efetivamente na construção daquela experiência, baseada prioritariamente na informação. A responsabilidade é dividida entre todos que, de alguma forma, se percebem integrantes de um sistema que só funciona com a colaboração e a participação consciente: algo está sendo elaborado em conjunto, somos todos coautores de um processo que trata da apropriação da nossa própria história.

Notícias de jornais, documentos, livros e estudos estão disponíveis ao público

Notícias de jornais, documentos, livros e estudos estão disponíveis ao público

Nas várias mesas dispostas no Anexo do Centro Cultural São Paulo, na X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, jogos propunham a convivência e a discussão a partir de diferentes questões. Em determinada mesa, as pessoas debatiam como seria a sociedade ideal. O que de fato poderia caracterizar essa sociedade? Haveria a presença do Estado? O trabalho se faz necessário? Logo ali ao lado, no jogo de cartas, a proposta era elaborar construções de pensamentos a partir de determinadas palavras-chave. No jogo da memória, as imagens se sucedem em associações, em negociações semânticas. Enquanto uns jogavam, outros caminhavam pelo espaço, se demorando nos painéis com manchetes de jornais, nos livros, nas imagens, nos áudios disponíveis.

Através de depoimentos reais, os atores reconstroem o que foi o episódio da Rua Maria Antônia, quando estudantes de direita e de esquerda se enfrentaram com a conivência do poder estabelecido, causando muita destruição, pavor e morte. O prédio da antiga Faculdade de Filosofia da USP era considerado um reduto de resistência ao regime militar. Outras histórias se sucedem para fazer perceber o que de fato acontecia naqueles anos de repressão, como era comum que alguém desaparecesse, como alguém do alto escalão do Exército poderia estar sentado ao seu lado na sala de aula, como um professor, um catedrático, era espancado em plena luz do dia.

Opovoempé constrói um espetáculo de teatro documentário pleno de potência justamente porque se revela capaz de fazer refletir não só sobre os fatos históricos, mas aponta os indícios do quanto o passado ainda se configura como presente na sociedade brasileira. A nossa democracia impregnada por resquícios de um regime ditatorial. Somos capazes de pensar o nosso presente e as suas mazelas justamente a partir do empoderamento trazido pela consciência do que já passamos como coletividade. Nesse sentido, a montagem se faz ainda mais necessária quando percebemos, entre o público, a presença de muitos jovens, crianças até, que só ouviram falar da ditadura pelos livros de história, pelo professor do colégio.

Se vivemos novamente um momento de crise ideológica, se nos assustamos e nos sentimos perplexos quando o vizinho levanta a bandeira da volta da ditadura militar, o presente nos exige posicionamentos, exatamente como naqueles anos de repressão declarada, quando não havia a possibilidade de manter qualquer tentativa de imparcialidade. O trabalho do Opovoempé nos faz perceber o quanto ainda precisamos tratar de forma quase exaustiva de ditadura, dos nossos traumas, da nossa história. Talvez na experiência de contar e recontar e contar de novo, possamos de alguma forma nos libertar e construir novas perspectivas de presente.

O conflito entre estudantes foi contado através de depoimentos

O conflito entre estudantes foi contado através de depoimentos

Arqueologias do presente é um carimbo de quanto a arte é fundamental nesse processo de construção de memória coletiva. Cada vez que nos apropriamos dos acontecimentos do passado, estamos mais aptos a dialogar com as experiências do hoje, que não se revelam menos opressoras. Que liberdade queremos? A nossa realidade carece dessa capacidade de interpretação. Como lidar diariamente com os “Amarildos”? Com o fato de que grande parcela da população não tem o menor apreço pelos direitos humanos? Com o fato de que seu parente policial militar, na conversa na roda de amigos, diz que, sim, tortura bandido.

As memórias da ditadura precisam ser expostas, com urgência, como forma de resistência e luta contra uma política do esquecimento que não tem a menor intenção de nos empoderar. Na experiência artística circunscrita pelo tempo finito, em pouco mais de uma hora e meia de duração do espetáculo, encontramos, como um respiro, mesmo que doído, a possibilidade de convivência e de superação de realidades. Estamos tratando aqui de um teatro absolutamente necessário. O público impregnado nem aplaude, como se não coubesse o êxtase depois daquela partilha sensível. Vai saindo aos poucos… mas os resquícios permanecem em cada um. E isso não pode ser mensurado.

Ficha Técnica
Concepção, direção e dramaturgia: Cristiane Zuan Esteves
Atores criadores: Manuela Afonso, Ieltxu Martinez, Mariana Senne / Atriz convidada: Andrea Tedesco
Iluminação: Grissel Piguillem
Direção de arte: Vânia Medeiros
Direção de produção: Manuela Afonso e Anayan Moretto
Núcleo artístico opovoempé: Ana Luiza Leão, Cristiane Zuan Esteves, Manuela Afonso, Paula Possani

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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