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Galpão de Espera expõe violência colonial contínua

Galpão de Espera tem texto de Allan da Rosa e direção de Ivy Souza. Foto: Noélia Nájera / Divulgação

São muitas armadilhas que a população preta está exposta no Brasil. Desde sempre. Como diz o dramaturgo Allan da Rosa o redemoinho é voraz, contamina tudo, do mental ao econômico. É uma disputa em todos os níveis para deixar essas violências normalizadas.

O espetáculo Galpão de Espera cumpre uma temporada relâmpago no Centro Cultural São Paulo. Só até 3 de abril. A peça busca retratar a violência colonial contínua em relação aos povos pretos. O texto é do escritor e dramaturgo Allan da Rosa, vencedor do Edital 6ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP, com direção de Ivy Souza.

Na trama ficcional Galpão de Espera, uma trabalhadora negra tem seu braço arrancado pelo cachorro do patrão em uma revista. A partir dessa ação, a peça investe em mostrar as estruturas históricas que geram os abismos sociais, que jogam muitos na situação de miséria, aniquilamento, desespero e da omissão do estado em relação aos povos pretos.

O autor problematiza as soluções individuais ou a oferta incessante de si mesmos como produtos na vitrine, deixando de lado, em suas palavras, “uma das maiores forças ancestrais que temos que é a solidariedade, além da coragem de lidar com nossa própria complexidade”.

galpão de espera. Foto: Noélia Nájera / Divulgação

Cinco personagens negras circulam em torno desse galpão misterioso: é uma agência de empregos, um lugar de trabalho ilegal ou uma senzala?  A diretora Ivy Souza aponta que a personagem principal dessa história é o galpão. A partir de onde e de quem faz a pergunta, o público é convidado a redirecionar o olhar em relação à peça e à estrutura do espaço.

Os diálogos dos três atos da peça expõem as fomes, os segredos e os labirintos de cada personagem na cena. São eles: Donilton (William Simplicio), o patrão, dono do cachorro, que dominou as regras capitalistas; Dona Caruncha (Mawusi Tuani), a anciã que é cuidadora de todos, terna e vingativa; Ascendina (Isamara Castilho), a jovem que lida com o novo corpo mutilado e quer ascender socialmente; Fu (Jojo Brow-nie Souza), que foi educada para o conforto mas vive na precariedade; Expedito (Filipe Roseno), ex-peão que negocia com qualquer moral para aprender as regras e golpes do jogo do dinheiro. 

Frente ao quadro da realidade brasileira, Allan da Rosa faz sua análise: “As artes negras hoje passam por um momento especial, diante de tanto assédio e da hipocrisia da sociedade brasileira. São solicitadas e produzidas pencas de obras previsíveis e maniqueístas em nome de uma suposta representatividade, guiada por pura mercadologia ou por ‘likes e seguidores’. Isso passa longe da profundidade de muitas questões ferventes cotidianas e de nossas habilidades ancestrais em lidar com contradições”.

A diretora Ivy Souza injetou perguntas que pulsam no espetáculo e se projetam para além dele: elas têm possibilidades de escolha? A partir de qual ética? Essas personagens estão no mesmo lugar de competição quando comparados com toda a sociedade? Conclui que nessa movimentação social as perguntas não podem ser as mesmas.

Galpão de Espera leva ao palco o desafio de tratar da violência. “A ameaça se apresenta diferentemente para cada tipo de corpo. Essa peça fala sobre rastros de barbaridade colonial, espiral e contínua, na manutenção das estruturas de poder”, avalia Ivy Souza.

FICHA TÉCNICA
Dramaturgia Allan da Rosa
Direção Ivy Souza
Assistência de Direção Clayton Nascimento 
Preparação de Elenco Lucas Brandão
Elenco: William Simplício, Mawusi Tulani, Filipe Roseno, Isamara Castilho, Jojo Brow-nie Souza, rodrigo de Odé
Direção de Produção Corpo Rastreado
Produção Executiva Gabs Ambròzia
Produção Ivy Souza
Foto e Vídeo Noelia Nájera
Criação de luz  Lucas Brandão
Trilha Sonora Cibele Appes
Assistência Trilha Sonora Paula Matta
Figurino Renan Soares
Cenógrafo Julio Dojcsar 
Operação de Som Alírio Assunção 
Montagem de Luz Dida Genofre
Operação de luz Dida Genofre e Lucas Brandão 
Assessoria de Imprensa Canal Aberto
Agradecimentos Mirella Façanha 

FICHA TÉCNICA Redes Sociais
Dramaturgia @darosaallan
Direção @ivysouz
Ass de Direção @clay.nascimento 
Prep. Elenco e Criação de luz @luca_s_brandao
Elenco
@will_simplis
@mawusi_tulani
@firoseno
@castilhosisa
@soudajojo
@supermente_black
 
Direção de Produção @corporastreado
Produção Executiva @gabsambrozia
Produção @ivysouz
Foto e Vídeo @noenajera_
Trilha Sonora @cibeleappes
Ass Trilha Sonora Paula Matta
Figurino @renansoares.br
Cenógrafo @julio.dojcsar 
Op Som @alirioassuncao
Montagem de luz @didagenofre
Op  Luz @didagenofre @luca_s_brandao
Assessoria Imprensa @canal_aberto
 
SERVIÇO
Galpão de Espera
Duração: 120min
Classificação: 16 anos
Onde: Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho (Rua Vergueiro, 1000, Vergueiro, São Paulo, SP)
Telefone: 3397-4000
Quando: Até 03/04, sexta e sábado, às 21h; Domingo, às 20h
Lotação: 224 lugares
R$30,00 | R$ 15,00 (meia)
Vendas na bilheteria com duas horas de antecedência
Será necessário apresentar o comprovante de vacinação da Covid-19, com no mínimo duas doses. 
 

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Falemos exaustivamente daquele (do nosso) tempo

 Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia. Foto:  Jennifer Glass

Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

Se a ignorância aprisiona as possibilidades do sujeito, o conhecimento é capaz de transformá-lo. Como já pregava Paulo Freire, a maneira mais efetiva de construir esse conhecimento talvez seja respeitando individualidades, levando-se em conta o que enxergamos do mundo ao nosso redor e as nossas potencialidades como seres em desenvolvimento. Sabedores disso, os atores do grupo Opovoempé, de São Paulo, propõem a experiência e a partilha no espetáculo Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia como forma de reconstituir o que foram os anos da Ditadura Militar no Brasil, tendo como elemento disparador da dramaturgia a batalha entre estudantes da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, no ano de 1968.

Quando entra no espaço cênico, uma instalação visual, o público logo se depara com um local repleto de informações e proposições; e, sendo assim, com a necessidade real de se fazer presente efetivamente na construção daquela experiência, baseada prioritariamente na informação. A responsabilidade é dividida entre todos que, de alguma forma, se percebem integrantes de um sistema que só funciona com a colaboração e a participação consciente: algo está sendo elaborado em conjunto, somos todos coautores de um processo que trata da apropriação da nossa própria história.

Notícias de jornais, documentos, livros e estudos estão disponíveis ao público

Notícias de jornais, documentos, livros e estudos estão disponíveis ao público

Nas várias mesas dispostas no Anexo do Centro Cultural São Paulo, na X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, jogos propunham a convivência e a discussão a partir de diferentes questões. Em determinada mesa, as pessoas debatiam como seria a sociedade ideal. O que de fato poderia caracterizar essa sociedade? Haveria a presença do Estado? O trabalho se faz necessário? Logo ali ao lado, no jogo de cartas, a proposta era elaborar construções de pensamentos a partir de determinadas palavras-chave. No jogo da memória, as imagens se sucedem em associações, em negociações semânticas. Enquanto uns jogavam, outros caminhavam pelo espaço, se demorando nos painéis com manchetes de jornais, nos livros, nas imagens, nos áudios disponíveis.

Através de depoimentos reais, os atores reconstroem o que foi o episódio da Rua Maria Antônia, quando estudantes de direita e de esquerda se enfrentaram com a conivência do poder estabelecido, causando muita destruição, pavor e morte. O prédio da antiga Faculdade de Filosofia da USP era considerado um reduto de resistência ao regime militar. Outras histórias se sucedem para fazer perceber o que de fato acontecia naqueles anos de repressão, como era comum que alguém desaparecesse, como alguém do alto escalão do Exército poderia estar sentado ao seu lado na sala de aula, como um professor, um catedrático, era espancado em plena luz do dia.

Opovoempé constrói um espetáculo de teatro documentário pleno de potência justamente porque se revela capaz de fazer refletir não só sobre os fatos históricos, mas aponta os indícios do quanto o passado ainda se configura como presente na sociedade brasileira. A nossa democracia impregnada por resquícios de um regime ditatorial. Somos capazes de pensar o nosso presente e as suas mazelas justamente a partir do empoderamento trazido pela consciência do que já passamos como coletividade. Nesse sentido, a montagem se faz ainda mais necessária quando percebemos, entre o público, a presença de muitos jovens, crianças até, que só ouviram falar da ditadura pelos livros de história, pelo professor do colégio.

Se vivemos novamente um momento de crise ideológica, se nos assustamos e nos sentimos perplexos quando o vizinho levanta a bandeira da volta da ditadura militar, o presente nos exige posicionamentos, exatamente como naqueles anos de repressão declarada, quando não havia a possibilidade de manter qualquer tentativa de imparcialidade. O trabalho do Opovoempé nos faz perceber o quanto ainda precisamos tratar de forma quase exaustiva de ditadura, dos nossos traumas, da nossa história. Talvez na experiência de contar e recontar e contar de novo, possamos de alguma forma nos libertar e construir novas perspectivas de presente.

O conflito entre estudantes foi contado através de depoimentos

O conflito entre estudantes foi contado através de depoimentos

Arqueologias do presente é um carimbo de quanto a arte é fundamental nesse processo de construção de memória coletiva. Cada vez que nos apropriamos dos acontecimentos do passado, estamos mais aptos a dialogar com as experiências do hoje, que não se revelam menos opressoras. Que liberdade queremos? A nossa realidade carece dessa capacidade de interpretação. Como lidar diariamente com os “Amarildos”? Com o fato de que grande parcela da população não tem o menor apreço pelos direitos humanos? Com o fato de que seu parente policial militar, na conversa na roda de amigos, diz que, sim, tortura bandido.

As memórias da ditadura precisam ser expostas, com urgência, como forma de resistência e luta contra uma política do esquecimento que não tem a menor intenção de nos empoderar. Na experiência artística circunscrita pelo tempo finito, em pouco mais de uma hora e meia de duração do espetáculo, encontramos, como um respiro, mesmo que doído, a possibilidade de convivência e de superação de realidades. Estamos tratando aqui de um teatro absolutamente necessário. O público impregnado nem aplaude, como se não coubesse o êxtase depois daquela partilha sensível. Vai saindo aos poucos… mas os resquícios permanecem em cada um. E isso não pode ser mensurado.

Ficha Técnica
Concepção, direção e dramaturgia: Cristiane Zuan Esteves
Atores criadores: Manuela Afonso, Ieltxu Martinez, Mariana Senne / Atriz convidada: Andrea Tedesco
Iluminação: Grissel Piguillem
Direção de arte: Vânia Medeiros
Direção de produção: Manuela Afonso e Anayan Moretto
Núcleo artístico opovoempé: Ana Luiza Leão, Cristiane Zuan Esteves, Manuela Afonso, Paula Possani

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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