Ayiti: o espetáculo da revolução

Ayiti, a montanha que assombra o mundo se desenvolve em um contexto de crescente questionamento às narrativas históricas hegemônicas. Foto: Marina Cavalcante / Divulgação

A Revolução Haitiana (1791-1804) foi uma insurreição que desafiou as bases ideológicas do colonialismo europeu e demonstrou a falência moral do sistema escravocrata. Contudo, permanece sistematicamente marginalizada nos currículos escolares das elites acadêmicas e dos Estados nacionais. Neste sábado, 2 de agosto, Marconi Bispo apresenta no Teatro Solo Gens, no Recife Antigo, a pré-estreia de Ayiti, a montanha que assombra o mundo. O espetáculo resgata essa memória silenciada e marca os 30 anos de carreira de desse artista,  uma voz coerente e lúcida do teatro político que fala a partir de Pernambuco e do Nordeste brasileiro.

O ator confronta diretamente o cânone historiográfico ocidental ao colocar em cena o que o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot definiu como “o evento impensável da modernidade” – uma revolução que a mentalidade colonial não conseguia nem mesmo conceber como possibilidade histórica. A montagem questiona por que uma revolução tão impactante permanece ausente dos sistemas educacionais globais.

Enquanto a Revolução Francesa (1789-1799) ocupa lugar central nos estudos históricos mundiais, poucos conhecem o movimento simultâneo que, nas Antilhas, superou em radicalidade os próprios jacobinos parisienses. Esta disparidade não é acidental: revela o caráter eurocêntrico da produção do conhecimento histórico.

A revolução haitiana foi mais radical porque os escravizados de Saint-Domingue (atual Haiti) levaram os ideais iluministas às suas consequências lógicas finais. Enquanto os revolucionários franceses mantiveram a escravidão nas colônias e excluíram mulheres e pobres dos direitos políticos, os insurgentes haitianos aboliram simultaneamente escravidão, colonialismo e hierarquias raciais. Entre 1791 e 1804, aproximadamente 500 mil africanos escravizados derrotaram militarmente França, Espanha e Inglaterra, expulsaram os colonizadores e fundaram a primeira república negra independente das Américas.

Pernambucano Marconi Bispo leva aos palcos a insurreição que apavorou impérios e inspirou liberdades. Foto: Inês Costa / Divulgação 

Michel-Rolph Trouillot, autor de Silencing the Past: Power and the Production of History (1995), argumenta que “a Revolução Haitiana é o acontecimento mais revolucionário na história das revoluções” precisamente porque representa uma ruptura ontológica – isto é, uma quebra fundamental na própria concepção de realidade – no pensamento ocidental. Trouillot, professor de antropologia na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, Estados Unidos) até sua morte em 2012, demonstra como essa revolução foi sistematicamente apagada por contradizer as bases ideológicas da supremacia branca – sistema de poder que estabelece a superioridade racial europeia como fundamento natural da organização social.

Sob a liderança de figuras extraordinárias como Toussaint Louverture (1743-1803) – ex-escravizado que se tornou autodidata em latim, francês, história militar e filosofia política –, Jean-Jacques Dessalines (1758-1806) – general que proclamou a independência haitiana e se tornou o primeiro governante do país livre –, e Henri Christophe (1767-1820) – que construiu fortalezas monumentais ainda hoje patrimônio da UNESCO –, os revolucionários haitianos derrotaram os exércitos de Napoleão Bonaparte e proclamaram a abolição total da escravidão 64 anos antes do Brasil.

O impacto global foi imediato e aterrorizante para as potências escravistas. Thomas Jefferson, terceiro presidente americano e proprietário de mais de 600 escravizados, conforme documenta a obra Master of the Mountain (2012) do historiador Henry Wiencek, impôs embargo comercial total ao Haiti e se recusou a reconhecer sua independência. A França, por sua vez, exigiu uma indenização de 150 milhões de francos (equivalente a cerca de 21 bilhões de dólares atuais) pela “perda de propriedade” – os próprios ex-escravizados –, dívida que estrangulou economicamente o país até 1947.

Por que essa revolução permanece ausente dos currículos escolares brasileiros e mundiais? A resposta encontra-se na própria natureza transformadora radical do episódio – sua capacidade de romper completamente com as estruturas de poder estabelecidas. Como explicar que africanos “primitivos” – segundo a ideologia colonial – derrotaram a “civilizada” Europa? Como justificar a manutenção da escravidão após escravizados demonstrarem sua capacidade revolucionária e organizativa?

Cyril Lionel Robert James (1901-1989), autor de The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution (1938), obra considerada pioneira nos estudos pós-coloniais, demonstra magistralmente como os revolucionários haitianos aplicaram os princípios da Revolução Francesa com uma coerência que os próprios franceses não tiveram. Enquanto Robespierre guilhotinava aristocratas mas mantinha a escravidão colonial, Toussaint abolia a escravidão e estabelecia igualdade racial absoluta.

A Perspectiva Decolonial de Marconi Bispo

Bispo tem 45 produções cênicas na trajetória. Foto: Leandro Lima / Divulgação

Dramaturgia entrelaça performance corporal, percussões de matriz africana, poesia oral e dança ritual. Foto: Lucas Emanuel / Divulgação

Ayiti, a montanha que assombra o mundo nasce de um contexto de crescente questionamento às narrativas históricas hegemônicas. Marconi Bispo constrói uma dramaturgia que entrelaça performance corporal, percussões de matriz africana, poesia oral e dança ritual, estruturando o espetáculo como o que a teórica Leda Maria Martins denomina “oralitura” – conceito que reconhece as tradições orais africanas como epistemologias legítimas, desenvolvido em obras como Afrografias da Memória (1997).

“Por que sabemos tão pouco sobre a revolução que fundou a primeira nação negra de ex-escravizados a derrotar invasores, expulsar colonizadores, abolir escravidão e proclamar soberania absoluta?”, questiona Bispo. A pergunta funciona como fio condutor dramatúrgico porque sua resposta revela os mecanismos de apagamento que ainda operam na contemporaneidade.

O artista estabelece conexões históricas concretas entre Haiti e Pernambuco através de uma metodologia que denomina “cartografia afroatlântica”. Ambos territórios compartilham heranças iorubás, experiências quilombolas e tradições de resistência que atravessaram o Atlântico. A Revolução Haitiana ecoou diretamente no Quilombo dos Palmares (século XVII, Serra da Barriga/AL), na Revolta dos Malês (1835, Salvador/BA) – insurreição de escravizados muçulmanos que planejavam tomar o poder na Bahia –, e na Cabanagem (1835-1840, Pará) – revolta popular que chegou a controlar a província paraense por quase um ano.

A Colaboração Acadêmica Internacional

A dramaturgia compartilhada com Kamai Freire adiciona rigor acadêmico internacional ao projeto. Freire, maestro e sacerdote de candomblé que desenvolve pesquisa doutoral sobre música e espiritualidade na Revolução Haitiana pela Universidade HfM Franz Liszt Weimar – instituição alemã especializada em música fundada em 1872 na cidade de Weimar –, traz perspectivas que conectam sonoridades africanas, liturgias haitianas e cosmogonias afro-brasileiras.

Esta colaboração interliga diferentes tradições acadêmicas e saberes ancestrais, criando uma obra que dialoga simultaneamente com a pesquisa universitária europeia, as tradições orais africanas e as experiências diaspóricas contemporâneas. No final de 2024, entre os meses de outubro e dezembro, o artista pernambucano desenvolveu uma residência artística no Porto, Portugal, viabilizada através de uma parceria institucional que envolveu a Circolando Cooperativa Cultural, Central Elétrica, Programa InResidence e Câmara Municipal do Porto. Esta imersão investigativa na cidade portuguesa aprofundou sua pesquisa sobre as reverberações atlânticas da insurreição haitiana e suas conexões com o imaginário colonial luso-brasileiro.

Três Décadas de Arte Política Consistente

Marconi Bispo completa 30 anos de carreira em 2025, consolidando três décadas de teatro político. Sua trajetória de 45 produções cênicas evidencia uma consistência artística construída sobre compromissos éticos com as questões raciais e territoriais. Ao longo dessas três décadas, o artista desenvolveu um conceito de transformação artística permanente baseado na constante renovação das formas estéticas como instrumento de mudança social – perspectiva que encontra eco na pedagogia teatral de Paulo Freire e nas propostas de democratização cultural de Augusto Boal.

Formado pela UFPE em 1999, Bispo desenvolveu uma metodologia que articula teatro brechtiano, ritualística afro-brasileira e pedagogia freiriana. Como sacerdote iniciado para Ìyémọjá e Ọbàlùfọ̀n (2004) e Ọrúnmìlà Bàbá Ifá (2023), sua criação artística funciona como canal de ancestralidade e ferramenta de cura coletiva – conceito fundamentado nos estudos de Muniz Sodré sobre a “ciência social afro-brasileira” (Pensar Nagô, 2017), que demonstra como as tradições iorubás operam processos terapêuticos comunitários.

A pré-estreia reúne importantes nomes da cultura pernambucana: Thulio Xambá e Beto Xambá, do Grupo Bongar, trazem percussões que conectam Recife às sonoridades da resistência haitiana. Os tambores desempenharam papel fundamental na comunicação entre insurgentes durante a revolução.

Brunna Martins, Kadydja Erlen e Arthur Canavarro integram um elenco que representa a diversidade geracional do teatro negro nordestino. Esta aliança materializa redes de solidariedade artística que espelham as próprias redes clandestinas que sustentaram a comunicação entre diferentes regiões de Saint-Domingue durante a revolução. 

SERVIÇO
🎭 ESPETÁCULO “AYITI, A MONTANHA QUE ASSOMBRA O MUNDO”
📅 2 de agosto (sábado) | ⏰ 19h
📍 Solo Gens – Rua do Apolo, 70, Recife Antigo
🎫 R$ 20 (meia) | R$ 40 (inteira)
📧 marconibispo77@gmail.com | 📱 @marconi.bispo

🔥 FICHA TÉCNICA
Concepção e Interpretação: Marconi Bispo
Dramaturgia: Marconi Bispo e Kamai Freire
Coordenação de Pesquisa: Kamai Freire
Audiovisual: Arthur Canavarro, Diego Amorim, Fernando Camaroti, Hassan Santos
Projeção e Iluminação: João Guilherme de Paula
Assessoria de Imprensa: Daniel Lima
Participações: Arthur Canavarro, Beto Xambá, Brunna Martins, Kadydja Erlen, Thulio Xambá

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A Baleia questiona preconceitos

José de Abreu carrega 120 quilos de espuma e silicone para interpretar um homem de 270 quilos que enfrenta os julgamentos de uma sociedade excludente. Foto Nil Canine / Divulgação

Rejeitado por uma sociedade que pune diferenças com exclusão, o protagonista do espetáculo A Baleia enfrenta preconceitos que transformaram amor em condenação. Quando José de Abreu se veste com 120 quilos de espuma, silicone e um sistema de refrigeração que lembra um colete à prova de balas, ele encarna muitas pessoas que a sociedade decide tornar invisíveis por não se encaixarem em padrões impostos.

Entre os dias 31 de julho e 3 de agosto, no Teatro Luiz Mendonça, em Recife, essa história sobre isolamento e rejeição ganha vida através de um ator que, aos 79 anos, decidiu encarar um dos papéis mais desafiadores fisicamente do teatro contemporâneo.

Na peça, essa figura pesava 180 quilos quando seu companheiro Alan se matou. Hoje pesa 270. Samuel D. Hunter, dramaturgo que criou esta história, entendeu algo que poucos captam: obesidade mórbida raramente é sobre comida. É sobre fome – fome de aceitação, de amor, de um lugar no mundo onde você seja aceito sem precisar se desculpar por existir.

O texto transforma o protagonista numa geografia emocional onde cada marca no corpo conta uma história de rejeição social. Cada respiração ofegante ecoa gritos de socorro ignorados por uma sociedade que prefere julgar a compreender. Luís Artur Nunes, que assina tradução e direção, trabalha com uma narrativa que expõe feridas abertas pelo preconceito através de um drama familiar.

Há algo de corajoso – e ligeiramente temerário – em José de Abreu encarar este papel. Durante duas horas por noite, o ator carrega um figurino que simula obesidade mórbida: próteses faciais que alteram sua fisionomia, camadas de neoprene e espuma que reconstroem sua silhueta, e um sistema de refrigeração para evitar desmaios. Carlos Alberto Nunes, figurinista da produção, criou uma engenharia corporal complexa.

Entre cenas, Abreu precisa de ajuda para se movimentar e de pausas constantes para hidratar-se. O ator transformou seu próprio corpo numa experiência temporária para entender as barreiras permanentes que a sociedade impõe a quem considera “diferente”.

A Polêmica da Representatividade

A escolha de José de Abreu gerou debates intensos nas redes sociais desde o anúncio da produção. O público se dividiu entre aqueles que elogiam a entrega técnica e o trabalho de transformação física, e uma maioria que questiona se o papel não deveria ter sido destinado a um ator com biotipo mais próximo do personagem.

Reações nas publicações de divulgação revelam uma discussão contemporânea sobre representatividade no teatro. Críticas à “fantasia de gordo” e acusações de “insensibilidade” se misturam aos ataques políticos que Abreu costuma receber por seus posicionamentos públicos, criando um ambiente de debate que extrapola questões artísticas.

Este embate espelha discussões globais sobre quem pode interpretar quais experiências em cena. Em 2025, a ideia de um ator magro simular obesidade através de próteses encontra resistência de grupos que defendem maior autenticidade na representação de corpos marginalizados pela gordofobia. A pergunta que permanece é: representação é ponte ou barreira entre realidades?

Gabriela Freire e José de Abreu em A Baleia. Foto Renato Mangolim Divulgação

A obra reflete questões brasileiras contemporâneas, onde pessoas LGBTQIA+ ainda são expulsas de casa, onde pessoas obesas sofrem discriminação médica sistemática, onde instituições religiosas pregam amor enquanto praticam exclusão. Chega ao Brasil num momento em que fundamentalismo religioso e intolerância crescem como epidemias sociais.

O protagonista perdeu Alan para o suicídio depois que a igreja da família os rejeitou. No Brasil de 2024, essa história se repete diariamente. Segundo dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o país lidera assassinatos de pessoas trans no mundo. A gordofobia, por sua vez, afeta pessoas em todas as esferas sociais, mas políticas públicas de combate à discriminação permanecem insuficientes.

Hunter construiu uma narrativa que dialoga diretamente com realidades de exclusão social contemporâneas.

O título evoca Herman Melville e sua criatura oceânica, símbolo de forças incontroláveis e obsessões humanas. Na obra de Hunter, a baleia representa tudo aquilo que a sociedade considera “grande demais” para aceitar – corpos, amores, dores, necessidades. Seu protagonista é uma baleia humana: imponente, incompreendido, vítima de uma sociedade que teme aquilo que não consegue categorizar.

Cada pessoa carrega aspectos de si que aprendeu a esconder porque o mundo decidiu que são inaceitáveis. Para alguns, é o tamanho do corpo. Para outros, a orientação sexual. Para muitos, simplesmente a experiência de existir numa sociedade que cobra perfeição mas oferece apenas julgamento e exclusão.

Luisa Thiré, Gabriela Freire, Eduardo Speroni e Alice Borges estão no elenco – cada um representando uma faceta das relações humanas que se tornam complexas quando atravessadas pelo preconceito.

O Teatro e Seus Reflexos
Durante 100 minutos, José de Abreu nos força a encarar aspectos perturbadores sobre exclusão social. Seu personagem representa todos aqueles que a sociedade prefere ignorar: pessoas obesas, homossexuais, enlutados, todos que não se encaixam em padrões estabelecidos por uma sociedade gordofóbica e intolerante. Sua solidão espelha a solidão de milhões que vivem à margem do que consideramos “normal”.

O espetáculo opera como diagnóstico de uma época onde conexões virtuais substituíram abraços reais e onde julgamentos se tornaram mais rápidos que compaixão. Cada personagem que entra no apartamento claustrofóbico carrega seus próprios preconceitos e limitações, criando um microcosmo das relações sociais contemporâneas marcadas pela discriminação.

Hunter questiona nossa capacidade de enxergar além das aparências impostas pelo preconceito, de oferecer amor incondicional, de aceitar diferenças sem transformá-las em motivos de exclusão. A luta por reconexão familiar carrega a busca humana por pertencimento em uma sociedade que insiste em marginalizar.

Talvez a maior ironia seja esta: enquanto discutimos quem pode representar este personagem em cena, quantos como ele permanecem invisíveis em nossa sociedade, esperando apenas que alguém os veja além dos preconceitos que carregamos?

SERVIÇO

A Baleia
Teatro Luiz Mendonça – Recife
31/07 e 01, 02, 03/08
Qui/Sex: 20h | Sáb/Dom: 18h
Duração: 1h40
Ingressos: Sympla e bilheteria

FICHA TÉCNICA

Texto: Samuel D. Hunter
Tradução e Direção: Luís Artur Nunes
Elenco: José de Abreu, Luisa Thiré, Gabriela Freire, Eduardo Speroni e Alice Borges (participação especial)
Cenário: Bia Junqueira
Figurino: Carlos Alberto Nunes
Iluminação: Maneco Quinderé
Trilha Sonora: Federico Puppi
Visagismo: Mona Magalhães
Preparação Corporal: Jacyan Castilho
Preparação Vocal: Jane Celeste
Assistente de Direção: Claudio Benevenga
Direção de Produção: Alessandra Reis
Produção Executiva: Cristina Leite

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Um Leão de Prata
para Carolina Bianchi
e a internacionalização do teatro brasileiro

 

Carolina Bianchi mostra a força de uma trajetória construída na persistência. Foto Mayra Azzi./ @may_azzi

Bienal de Dança de Veneza, Em 19 de julho de 2025 Carolina Bianchi recebeu o Leão de Prata no prestigioso Salão das Colunas de Ca’ Giustinian. Foto: Andrea Avezzù / Official photographer of the Venice Biennale

Coreógrafa norte-americana Twyla Tharp (D) revolucionou a dança do século XX;, enquanto Bianchi  forja novas linguagens para o século XXI. Foto: Andrea Avezzù / Official photographer of the Venice Biennale

“Extraordinária artista, diretora, escritora e criadora de imagens que frequentemente utiliza seu corpo como elemento central de seu trabalho, desenvolvendo experiências profundamente pessoais, viscerais e coreográficas que nos atravessam e interpelam”. Foi assim que Wayne McGregor, diretor artístico da Bienal de Dança de Veneza, definiu Carolina Bianchi ao entregar-lhe o Leão de Prata em 19 de julho de 2025, durante a cerimônia realizada no prestigioso Salão das Colunas de Ca’ Giustinian.

As palavras de McGregor capturam a essência de um trabalho que transforma vulnerabilidade em potência criativa, estabelecendo Carolina como uma das vozes mais intransigentes da performance contemporânea mundial. O reconhecimento veneziano posiciona a artista brasileira entre os nomes que estão redefinindo as fronteiras entre teatro, dança e arte corporal.

A premiação de Carolina ocorreu no mesmo evento em que a lendária coreógrafa norte-americana Twyla Tharp foi agraciada com o Leão de Ouro pelo conjunto de sua carreira. McGregor exaltou Tharp destacando que “suas contribuições revolucionárias para a ecologia global da dança são incomparáveis em seu trabalho, que combina rigor e ludicidade, disciplina clássica e técnica de balé, misturando gêneros com facilidade audaciosa e expandindo nossa compreensão das capacidades desta ferramenta extraordinária que todos possuímos: o corpo humano”.

A simultaneidade dos prêmios cria um diálogo geracional fascinante: de um lado, Tharp, que revolucionou a dança do século XX; do outro, Carolina, que forja novas linguagens para o século XXI. Ambas utilizam o corpo como território de investigação, mas Carolina adiciona uma dimensão política e autobiográfica que ressignifica completamente a tradição da performance feminina.

O festival veneziano, que se estendeu de 17 de julho a 2 de agosto de 2025, ratificou assim a relevância internacional de uma geração de artistas que redefinem os limites da arte corporal. Conforme destacado por McGregor, os premiados “recebem um prêmio financeiro para apoiar seu próximo grande projeto” – suporte material que pode ser decisivo para que Carolina continue desenvolvendo uma arte que exige recursos consideráveis e tempo de maturação.

Avignon 2023: O Momento de Inflexão Internacional

A Noiva e o Boa Noite Cinderela estreou no Festival de Avignon de 2023. Foto @christophe.raynauddelage

O Festival de Avignon de 2023 marcou definitivamente a inserção de Carolina Bianchi no circuito artístico europeu. A Noiva e o Boa Noite Cinderela, primeiro capítulo da Trilogia Cadela Força, causou profundo impacto em públicos e críticos, estabelecendo uma nova referência para a performance contemporânea feminina.

Como testemunha direta daquele momento histórico – estive presente em Avignon cobrindo o festival para o site Satisfeita, Yolanda? -, posso afirmar que o espetáculo criou uma reverberação única no ambiente artístico francês. A obra, que investiga a violência sexual através do próprio corpo da artista em estado de inconsciência farmacológica, investiu numa linguagem inédita que dialoga com pioneiras como Marina Abramović e Gina Pane, estabelecendo territórios completamente novos de investigação cênica.

Leia AQUI a crítica do espetáculo A Noiva e o Boa Noite Cinderela, que estreou em Avignon, publicado em 23 de julho de 2023, escrito por Ivana Moura.

Confira AQUI a entrevista feita por Ivana Moura durante o festival de Avignon 2023 com Carolina Bianchi e postado em 24 de julho de 2023.

O sucesso francês abriu as portas do circuito europeu, levando a obra aos principais festivais do continente e culminando com o Prix du Syndicat de la Critique, que elegeu a montagem A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Cadela Força – Capítulo I como Melhor Estreia Internacional da temporada 2023/24 da França.

Longe de ser um fenômeno súbito, o reconhecimento internacional da dramaturga e performer gaúcha reflete mais de uma década de trabalho árduo e investigação artística que começou em Porto Alegre, passou pelos palcos alternativos de São Paulo e encontrou na Europa o terreno fértil para florescer plenamente.

A Irmandade (The Brotherhood)
Teatro como confissão e investigação

Segundo capítulo da Trilogia Cadela Força investiga os mecanismos da masculinidade tóxica. Foto Mayra Azzi

Mesmo sendo uma ode ao teatro, The Brotherhood questiona também as origens históricas da misoginia no próprio teatro. Foto: Mayra Azzi / Dvivulgação

Em maio de 2025, nos palcos do Kunstenfestivaldesarts em Bruxelas, Carolina Bianchi apresentou A Irmandade (The Brotherhood), segundo capítulo da Trilogia Cadela Força. A obra, posteriormente apresentada em Viena, Amsterdã em Barcelona e em Veneza, volta-se para os mecanismos da masculinidade tóxica.

O espetáculo dialoga diretamente com o conceito de “fraternidade” desenvolvido pela antropóloga argentina Rita Segato em sua obra La Guerra contra las Mujeres (2016). Para Segato, a “fraternidade” ou “corporação masculina” representa um sistema de pactos entre homens que opera como estrutura fundamental do patriarcado. Segundo a pesquisadora, essa irmandade masculina funciona através de “lealdades horizontais” que unem os homens independentemente de outras diferenças sociais, criando um front comum para manter o controle sobre as mulheres e perpetuar a violência de gênero.

Para compreender a dimensão e o impacto desta encenação que aprofunda a investigação iniciada com A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Cadela Força – Capítulo I , selecionei quatro críticas de veículos especializados de diferentes países: Theaterkrant (Holanda), Revista Rialta (Espanha), Libération (França) e Sceneweb.fr (França). Foram escolhas aleatórias, a partir do que tive acesso na internet. Juntas, essas análises revelam como A Irmandade se estabeleceu como um marco desestabilizador no teatro europeu contemporâneo, questionando as estruturas de poder masculino tanto na sociedade quanto nas artes.

A Anatomia da Fraternidade Masculina

Os homens têm liberdade…Foto: Mayra Azzi / Dvivulgação

“O purgatório de sua jornada dantesca” – assim Karin Veraart, do Theaterkrant holandês, contextualiza A Irmandade, onde Carolina “examina diversas expressões de masculinidade, ‘virilidade’, inclusive em relação à arte, e também como um sistema de linguagem perpetua o patriarcado”. Uma cena em particular impressiona Veraart: “a fraternidade de rituais como iniciações, trotes, homenagens e brincadeiras compartilhadas. Aqui, os oito homens da companhia têm liberdade: eles dançam, brincam e gesticulam com uma vingança, irritantemente identificável, quase impossível de assistir”.

Em outro aprofundamento, Martha Luisa Hernández Cadenas, da Revista Rialta espanhola, observa que “Bianchi apresenta a fraternidade como um pacto intransigente; é praticamente o presente que ‘protegerá’ cada criança ao longo da vida”. Para Cadenas, a obra expõe “a performatividade do masculino como irmandade, o fascínio pelos gênios, a mentira, a violência e o estupro”, criando uma investigação que vai além da denúncia para questionar as estruturas fundacionais da cultura patriarcal.

“Como é possível que olhemos e escutemos com tanta admiração e deferência aqueles que eles chamam de ‘mestres’?” A pergunta de Nadja Pobel, do Sceneweb.fr francês, identifica o cerne mais perturbador de A Irmandade: o desmonte da adoração aos “grandes mestres” da história teatral. Pobel destaca como Carolina “coloca em cena com força a aniquilação das mulheres pelos homens, qualquer que seja o grau de predação (…) em nome da arte”.

Anne Diatkine, do Libération, descreve uma cena emblemática onde Carolina “brande um imenso pênis fúcsia que coloca entre as pernas e se masturba com gritos altos, durante a transmissão de um arquivo de rádio de um grande mestre particularmente confuso”. A crítica observa o “constrangimento não pela cena de masturbação, mas por seu paralelo com as palavras de Kantor”, revelando como a obra expõe a obscenidade oculta na veneração acrítica dos “gênios” masculinos.

Duas “cenas-chave” identificadas pela crítica espanhola Cadenas aprofundam essa análise: a entrevista com um diretor fictício alemão e o painel de intelectuais. No diálogo com o diretor de sucesso, emergem “os relacionamentos abusivos com as atrizes de seu elenco, a exploração do corpo feminino e a omissão de créditos que as mulheres merecem”. O arquétipo criado por Carolina é “tão fiel que parece real”, funcionando como uma síntese devastadora dos mecanismos de poder no teatro contemporâneo.

O que torna A Irmandade particularmente desestabilizadora é a honestidade brutal de Carolina em expor seus próprios paradoxos. Pobel elogia essa dimensão: “como ela pôde amar tanto Jan Fabre? Como ela pode lidar, agora, com o fato de ser parte integrante dessa irmandade teatral da qual recebe ‘recompensas’?” Esta autocrítica impede que o trabalho se torne “banal” ou um simples “acerto de contas”, elevando-o a uma reflexão mais complexa sobre cumplicidade e resistência.

Veraart observa que Carolina “indica que certamente não está isenta de pecados. São as contradições, os conflitos, as consequências que ela quer expor e questionar”. A artista não se posiciona como vítima pura, mas como alguém que reconhece estar inserida nas mesmas estruturas que critica, criando uma camada de complexidade que desafia tanto o público quanto a própria artista.

Essa radicalidade intransigente coloca Carolina em uma linhagem específica do teatro europeu contemporâneo, próxima a artistas como Angélica Liddell. Como a performer catalã, Carolina desenvolve uma proposta radical e excessiva que pode polarizar reações: ou cativar completamente, ou ser rejeitada sem meio-termo.

A Dramaturgia da Violência Histórica

Carolina Bianchi expõe uma genealogia da violência contra as mulheres que atravessa séculos. Foto: Mayra Azzi 

A Irmandade constrói uma genealogia da violência contra as mulheres que atravessa séculos. Cadenas destaca como Carolina evoca “Ana Mendieta, Sylvia Plath, Gisèle Pélicot, Perséfone e, especialmente, Sarah Kane”, criando não “um catálogo, mas tecendo, sem gritos ou fúria, com força e clareza, uma história da violência de uns contra os outros”.

A crítica espanhola conecta o trabalho de Carolina com casos contemporâneos devastadores: “Ana Mendieta caiu do 34º andar do apartamento que dividia com seu parceiro, o também artista Carl Andre, que foi absolvido da acusação de feminicídio e desfrutou da cumplicidade da comunidade artística”. Esses casos históricos e contemporâneos se entrelaçam na dramaturgia de Carolina, revelando a continuidade da violência patriarcal através dos tempos.

Todas as críticas destacam a dimensão acadêmica rigorosa do trabalho. Veraart observa que Carolina “documentou meticulosamente sua pesquisa; na primeira parte de Irmandade, ela carrega seu livro de 500 páginas pelo palco”. Pobel complementa: “O pensamento predomina sobre as ações. As palavras constituem a estrutura fundamental deste capítulo, amplamente apoiadas por sua pesquisa acadêmica”.

Diatkine descreve a cena onde “sete garotos (…) engolirão suas palavras, sua tese de 500 páginas rasgada”, criando uma metáfora poderosa sobre como o conhecimento produzido por mulheres é sistematicamente desvalorizado e destruído pelos homens que detêm o poder de legitimação acadêmica e artística.

As quatro críticas convergem ao descrever o impacto visceral da obra. Veraart define “A Irmandade” como “dolorosa, mas é assim que deveria ser: uma catarse”. Diatkine fala de um “monólogo denso e proteico de três horas e quarenta minutos” que “produz uma sensação de pavor”. Pobel conclui que se trata de “um espetáculo intenso que deixará marcas duradouras”.

Cadenas oferece uma síntese poética do impacto: A Irmandade está repleta de vozes, flashes, horas no chuveiro, suicídios em sua vingança prematura, balbucios, mulheres anônimas em fitas de vídeo onde são violentamente penetradas (…) Bianchi transforma sua dor em linguagem; ele não apenas a autotematizou, mas também construiu seu próprio artifício”.

LINKS DAS CRÍTICAS
Theaterkrant – Holanda – Crítica de Karin Veraart Theaterkrant
Revista Rialta – Espanha Crítica Martha Luisa Hernández Cadenas Rialta
Libération – França – Crítica Anne Diatkine Libération
Sceneweb.fr – França – Crítica Nadja Pobel –Sceneweb.fr

Entretanto, A Irmandade desenvolve uma camada reflexiva inesperada que transforma o trabalho numa verdadeira carta de amor ao próprio teatro. Ao dissecar os mecanismos de poder masculino inscritos na arte teatral, a obra simultaneamente se volta para dentro, questionando o teatro como instituição e celebrando-o como possibilidade transformadora. Em seu perfil no Instagram, Carolina revelou essa dimensão metateatral do trabalho, definindo-o como uma “declaração sensual, confusa, sombria, perversa e totalmente complexa” ao teatro.

Esta dimensão amorosa do espetáculo emerge da própria metodologia de investigação da artista, que não se limita a denunciar estruturas opressivas, mas busca compreender como a arte pode simultaneamente reproduzir e subverter essas mesmas estruturas. O teatro torna-se, assim, objeto de desejo e crítica, paixão e resistência, revelando a complexidade de uma artista que ama profundamente aquilo que também precisa destruir para reconstruir.

O Coletivo Cara de Cavalo: Dez Anos de Resistência Criativa

Coletivo Cara de Cavalo desenvolveu uma pesquisa consistente na cena paulistana. Foto: Mayra Azzi  

A história de Carolina Bianchi está intimamente conectada ao coletivo Cara de Cavalo, que completa dez anos em 2025. Durante uma década, o grupo desenvolveu uma pesquisa consistente na cena independente paulistana, enfrentando as limitações estruturais e financeiras que caracterizam a produção cultural brasileira.

Em post recente no Instagram, Carolina celebrou essa trajetória: “Cara de Cavalo completa 10 anos este ano. Comemoro e continuo a trabalhar duro com este grupo de pessoas que admiro profundamente.” A reflexão da artista sobre o prêmio veneziano também revela sua consciência sobre a dimensão coletiva do trabalho: “Na semana passada tivemos um Leão de Prata na Bienal de Veneza – que alegria violenta! Sinto-me profundamente honrada e sinto-me inegavelmente pequena.”

Em 2017, durante o Festival TREMA! no Recife, Carolina já demonstrava a radicalidade de sua pesquisa artística em Utopyas For Every Day Life, uma instalação performática de três horas realizada em parceria com Flávia Pinheiro. O trabalho, que questionava as fronteiras entre vida e arte, utilizava o corpo como arma de combate contra o machismo e a violência de gênero numa sociedade heteronormativa. Durante 180 minutos ininterruptos, as artistas exploravam estados de resistência e criação, permitindo ao público movimentar-se livremente pelo espaço e participar da experiência. Em minha crítica, destaquei como a dupla “gritava com o suor dos poros contra o machismo” e “avançava em pernadas para forjar nos deslocamentos a relevância da produção feminina”, antecipando questões que se tornariam centrais na Trilogia Cadela Força.

Lobo, que estreou em São Paulo em 2019, já sinalizava a potência investigativa do grupo. Na peça, Carolina dividia o palco com 16 homens em sequências performáticas intensas que combinavam corrida, queda, sexo e poesia de Emily Dickinson.

A mudança de Carolina para Amsterdã em 2020, para cursar mestrado, criou uma dinâmica transnacional que hoje permite ao grupo operar simultaneamente entre Brasil e Europa, mantendo suas raízes enquanto explora novas possibilidades de criação e circulação. Fundamental nesse processo tem sido o trabalho de produção de Carla Estefan e da Metro Gestão Cultural, responsáveis pela viabilização da complexa logística internacional que permite ao coletivo manter sua presença em festivais e palcos europeus.

O reconhecimento de Carolina Bianchi em Veneza integra um movimento crescente de artistas brasileiros que conquistam espaço no circuito internacional através da especificidade de suas pesquisas. Não se trata de um fenômeno massivo, mas de trajetórias individuais (ou de companhias) que, somadas, começam a desenhar novas possibilidades para a arte cênica nacional em contexto global.

Ficha Técnica

A Irmandade – Trilogia Cadela Força – Capítulo II
Concepção, textos e direção: Carolina Bianchi
Elenco: Chico Lima, Flow Kountouriotis, José Artur, Kai Wido Meyer, Lucas Delfino, Rafael Limongelli, Rodrigo Andreolli, Tomás Decina, Carolina Bianchi
Colaboradora de dramaturgia e pesquisa: Carolina Mendonça
Diálogo teórico e dramatúrgico: Silvia Bottiroli
Tradução para o inglês: Marina Matheus
Tradução para o francês: Thomas Resendes
Direção técnica, criação sonora e música original: Miguel Caldas
Assistente de direção: Murilo Basso
Cenografia: Carolina Bianchi, Luisa Callegari
Direção de arte e figurinos: Luisa Callegari
Iluminação: Jo Rios
Vídeos e projeções: Montserrat Fonseca Llach
Ressurreição coreográfica do prólogo e assessoria de movimento: Jimena Pérez Salerno
Câmera ao vivo e apoio artístico: Larissa Ballarotti
Estagiária: Fernanda Libman
Direção de palco e apoio à produção: AnaCris Medina
Direção de Produção, Gerência de Tournee e Comunicação: Carla Estefan
Produção: Metro Gestão Cultural; Carolina Bianchi Y Cara de Cavalo
Coprodução: KVS Koninklijke Vlaamse Schouwburg -Brussels, Theater Utrecht, La Villette –Paris, Festival d’Automne à Paris, Comédie de Genève, Internationales Sommer Festival Kampnagel, Les Célestins –Théâtre de Lyon, Kunstenfestivaldesarts, Wiener Festwochen, Holland Festival, Frascati Producties HAU Hebbel am Ufer -Berlin, and Maillon, Théâtre de Strasbourg – Scène européenne.

Agenda de Apresentações

Volkstheater, Viena – Wiener Festwochen
1 e 2 de junho de 2025

Holland Festival, Amsterdã
18 a 20 de junho de 2025

GREC, Barcelona
11 e 12 de julho de 2025

Bienal de Dança de Veneza
18 a 20 de julho de 2025

Kampnagel Sommerfestival, Hamburgo
14 a 16 de agosto de 2025

HAU, Berlim
30 de outubro e 1º de novembro de 2025

Les Célestins, Teatro Lyon
6 a 8 de novembro de 2025

Maillon, Teatro de Estrasburgo
13 a 15 de novembro de 2025

La Villette – Festival de Outono em Paris
19 a 30 de novembro de 2025

Comédie de Genève
22 a 25 de abril de 2026

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Escuta pública para discutir
o Festival Recife do Teatro Nacional

 

Sinapse Darwin, da Casa de Zoé, esteve na programação do 23º FRTN. Foto: Marcos Pastich/PCR

Evento acontece terça-feira (29), às 18h30, no Teatro do Parque

A Secretaria de Cultura do Recife convocou uma escuta pública para construir coletivamente a 24ª edição do Festival Recife do Teatro Nacional (FRTN), que acontecerá em novembro. Na próxima terça-feira (29/07), às 18h30, artistas, produtores e demais profissionais da cena teatral recifense são chamados para se reunir na sala da Banda Sinfônica do Teatro do Parque para contribuir com a programação do festival.

“O Festival Recife do Teatro Nacional sobe aos palcos da cidade em novembro. Mas, nos bastidores, a programação já começou. E todos os cênicos da cidade estão convidados a se engajar na produção da próxima edição do festival”, destaca a convocatória oficial.

A iniciativa busca que o festival consiga “apresentar e representar esperanças e necessidades da eloquente cena recifense”, mas enfrenta um desafio que tem se repetido: a baixa participação da classe artística nestes momentos de construção coletiva.

Embora seja comum ouvir reclamações e sugestões da classe teatral recifense nas redes sociais e nas mesas de bares da cidade, a presença física nas escutas públicas tem sido decepcionante. Em 2023, apenas 20 pessoas compareceram. Em 2024, o número caiu para 15 participantes – um quórum que preocupa os organizadores, especialmente considerando que o Recife possui uma cena teatral vibrante e numerosa.

“A hora da grita é essa, mas elas preferem as redes sociais e as mesas dos bares”, observa um integrante da organização, refletindo sobre a contradição entre as críticas virtuais e a ausência nos espaços formais de discussão.

Principais pontos críticos apontados na última avaliação pública 

O encontro de terça-feira ganha ainda mais relevância diante das questões levantadas na avaliação pública da 23ª edição, realizada em dezembro de 2024. Durante três horas de discussão na mesma sala da Banda Sinfônica, artistas, produtores e a avaliadora contratada Giovana Soar debateram os acertos e problemas enfrentados pelo festival.

Infraestrutura e equipe técnica: A avaliação revelou o esgotamento das equipes técnicas dos teatros, especialmente no Centro Apolo-Hermilo. Nathalie Revoredo, iluminadora com 11 anos de experiência no local, alertou: “Temos espaços exaustos e um corpo exausto não consegue realizar muito.” O atraso de uma hora e meia na apresentação de Mulheres de Nínive exemplificou os limites da infraestrutura atual.

Comunicação e divulgação: A avaliadora Giovana Soar identificou a comunicação como “um dos pontos mais delicados”, destacando a necessidade de melhorar a divulgação para alcançar públicos mais amplos. O programa do festival só foi distribuído na segunda semana do evento, comprometendo a estratégia de comunicação.

Ocupação dos teatros: Houve esvaziamento em algumas sessões, especialmente no OFF REC e espetáculos locais da mostra principal, contrastando com a lotação em apresentações com nomes consagrados como Marco Nanini e Othon Bastos.

Democratização do acesso: Foram levantadas questões sobre como atrair o público que compareceu à festa dos 20 anos do Grupo Magiluth (cerca de 2 mil pessoas) para dentro dos teatros durante o festival.

A questão dos pagamentos

Paralelamente aos debates artísticos, a cena teatral recifense tem enfrentado uma crise de confiança relacionada aos atrasos sistemáticos nos pagamentos de cachês por parte da Prefeitura do Recife.

Marconi Bispo, diretor do espetáculo Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife (destaque do OFF REC 2024), recorreu às redes sociais para cobrar publicamente o pagamento pela participação da peça que envolvia 20 artistas, seis meses após a apresentação.

Não é um caso isolado. Outros artistas também recorreram às redes sociais para fazer cobranças públicas de cachês em atraso, evidenciando um problema que afeta diversos profissionais da cena cultural recifense.

Desafios estruturais e propostas 

A precarização dos espaços teatrais foi outro tema central dos debates. Augusta Ferraz, com 51 anos de dedicação ao teatro recifense, lamenta a situação de equipamentos como o Teatro Barreto Júnior, considerado um “subteatro” na vida cotidiana dos profissionais, e espaços fechados como o Teatro Valdemar de Oliveira (fechado desde 2020 e atingido por incêndio em fevereiro de 2024).

Inês Franco Maia questionou se a cadeia produtiva do teatro em Recife realmente valoriza a cultura local, criticando a tendência de valorizar mais os trabalhos externos: “O Magiluth só conseguiu reconhecimento local após ser legitimado fora de Recife.”

Durante a avaliação, emergiram diversas propostas para fortalecer o festival e a cena teatral local: planejamento antecipado das contratações técnicas e logísticas, melhor distribuição de horários para evitar sobreposições entre espetáculos, parcerias estratégicas com secretarias de Saúde, Educação e Cidadania para formar novos públicos, expansão do “Palco da Aurora” (onde Sinapse Darwin, da Casa de Zoé foi apresentado) para outras áreas da cidade, criação de espaços de encontro e diálogo após os espetáculos e revitalização do Teatro do Sítio da Trindade.

Diante deste cenário complexo, que mistura conquistas artísticas com desafios estruturais e de gestão, a escuta pública de terça-feira representa uma oportunidade crucial para que a classe teatral recifense contribua efetivamente com a construção coletiva da próxima edição do festival.

Milu Megale, secretária de Cultura do Recife, André Brasileiro, coordenador do FRTN, e Alexandre Sampaio, coordenador de produção, estarão presentes para ouvir as demandas e propostas da categoria. A 24ª edição está marcada para 19 a 30 de novembro de 2025.

Serviço

Escuta pública do Festival Recife do Teatro Nacional
Quando: Terça-feira (29/07), às 18h30
Onde: Sala da Banda Sinfônica – Teatro do Parque
Entrada: Gratuita

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Vamos ao teatro Recife!

O primeiro ato de Édipo REC é pra dançar até o pé inchar. Foto: Camila Macedo

Caliuga, da Cia. de Teatro Negro Macacada. Foto: Divulgação

Circo Godot, com Asaías Rodrigues e Charles de Lima. Foto: Divulgação

Dan Stulbach em O Mercador de Veneza. Foto Ronaldo Gutierrez. Foto: Divulgação

Fico feliz quando tem opções teatrais nesta cidade de pontes, rios e lama. Mangue que resiste e pulsa cultura apesar das dificuldades, Recife oferece neste fim de semana uma programação teatral diversificada que comprova como os artistas locais seguem criando, mesmo diante da escassez de espaços e investimentos. É uma alegria rara ver tantas opções simultâneas numa cidade onde a produção teatral enfrenta desafios constantes de infraestrutura e financiamento.

A programação deste fim de semana oferece um caleidoscópio de linguagens que vai do experimental ao infantil, passando por clássicos reinventados e comédias que espelham nossas neuroses contemporâneas. É uma demonstração de que, quando há oportunidade, a criatividade pernambucana floresce com força total.

O teatro experimental ganha destaque com Édipo REC, do Grupo Magiluth, que redefine a tragédia clássica em chave contemporânea no Teatro Luiz Mendonça. Vinte anos de investigação cênica culminam nesta montagem que articula teatro, performance, música e cinema com projeções ao vivo, transformando o mito sofocliano em reflexão vertiginosa sobre identidade, poder e representação na era digital. A direção de Luiz Fernando Marques (Lubi) materializa um dispositivo cênico que dissolve hierarquias tradicionais entre palco e plateia, enquanto a dramaturgia de Giordano Castro opera em estratos temporais simultâneos, criando conexões inesperadas entre neuroses antigas e contemporâneas.

No mesmo território experimental, Caliuga, da Cia. de Teatro Negro Macacada, mergulha nas intersecções entre identidade racial e mercado de trabalho no Teatro Joaquim Cardozo. Luiz Apolinário assina dramaturgia e direção que transformam a jornada da protagonista em espelho das contradições sociais brasileiras, explorando como a busca por trabalho se converte em luta contra destinos impostos. A trilha sonora de César Seco e Raul Vaubruma subverte expectativas ao empregar instrumentos infantis para abordar temáticas adultas, criando paisagem sonora que oscila entre nostalgia da infância perdida e dureza da realidade laboral.

A comédia física encontra sua expressão mais refinada em Circo Godot, no Teatro Hermilo Borba Filho. A Companhia Circo Godot de Teatro, com mais de uma década de pesquisa, entrelaça teatro físico, circo e crítica social através da dupla Gatropo e Tropino – versões livres dos personagens beckettianos Pozzo e Lucky. Asaías Rodrigues e Charles de Lima constroem vagabundos que perambulam oferecendo entretenimento, mas carregam em sua dinâmica relacional uma crítica feroz às estruturas de poder. A direção de Quiercles Santana solicita participação ativa da plateia, transformando cada apresentação em experiência única.

O teatro clássico reinventado se faz presente com O Mercador de Veneza, na CAIXA Cultural, onde Dan Stulbach entrega um Shylock magistral que suscita com maestria todos os temas complexos da obra shakespeariana: antissemitismo, intolerância religiosa, ganância, justiça versus misericórdia. A direção de Daniela Stirbulov desloca o foco narrativo para construir Shylock como protagonista, transformando o agiota judeu de vilão em centro moral da história. A transposição temporal para os anos 1990 dialoga com o capitalismo emergente retratado por Shakespeare, criando pontes entre a Veneza renascentista e nossa sociedade neoliberal.

Wilson de Santos em A Novica Mais Rebelde. Foto: João Caldas

Não! com Adriana Birolli.

Hélio o balão que não consegue voar Foto Ricardo Maciel

Histórias do Meu Povo, no Espaço O Poste, onde Roma Julia. Reprodução da internet

As comédias contemporâneas ganham força com A Noviça Mais Rebelde, onde Wilson de Santos celebra 16 anos ininterruptos de um fenômeno teatral que desafia regras de longevidade artística. Irmã Maria José surge como personagem que concilia vocação religiosa com memórias mundanas, criando identificação imediata através de contradições humanas universais. No Teatro Santa Isabel, NÃO! transforma em comédia a tragédia cotidiana de quem vive dizendo sim quando o coração grita não. Adriana Birolli enfrenta a incapacidade crônica de recusar convites numa terapia cênica que pode ser a diversão do público.

A programação infantil se destaca com duas produções do 21º Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco. Hélio, o Balão que Não Consegue Voar utiliza formas animadas para abordar poeticamente o Transtorno do Espectro Autista, lembrando que a verdadeira magia está em encontrar caminhos próprios. Os 3 Super Porquinhos adapta o conto tradicional inserindo questões sobre paz mundial e preservação ambiental, dialogando simultaneamente com crianças e adultos.

A diversidade se completa com Histórias do Meu Povo, no Espaço O Poste, onde Roma Julia conduz experiência que celebra culturas afro-indígenas através de contos africanos, narrativas indígenas e itãs de orixás. O projeto inclui acessibilidade sensorial com aromas de folhas e café, transformando o espaço em “jardim de memórias” onde tradição oral encontra contemporaneidade.

Yerma Atemporal. Foto: Divulgação

No interior, Yerma Atemporal se apresenta em Caruaru – uma produção recifense em circulação estadual que revisita a obra de Lorca em chave contemporânea, e O Massacre de Angico – A Morte de Lampião, uma encenação ao ar livre em Serra Talhada que recria um dos momentos mais emblemáticos da história do cangaço. Teatro acontecendo também fora da capital.

PROGRAMAÇÃO
TEATRO EXPERIMENTAL
🎭 Édipo REC
Grupo Magiluth
📍 Teatro Luiz Mendonça – Parque Dona Lindu
📅 25 e 26 de julho, às 20h
🎟️ R$ 30 a R$ 120
Produção: Grupo Magiluth

🌙 Caliuga
Cia. de Teatro Negro Macacada
📍 Teatro Joaquim Cardozo (UFPE)
📅 25-26/07, às 19h30
🎟️ Inteira R$ 20 | Meia R$ 10
Produção: Cia. de Teatro Negro Macacada

🎪 Circo Godot
Companhia Circo Godot de Teatro
📍 Teatro Hermilo Borba Filho
📅 25, às 20h e 26/07, às 17h
🎟️ Sympla e bilheteria do teatro
Produção: Circo Godot de Teatro

CLÁSSICOS REINVENTADOS
⚔️ O Mercador de Veneza
Kavaná Produções e Baccan Produções
📍 CAIXA Cultural
📅 24/07-02/08, 20h
🎟️ R$ 30 e 15
Produção: Kavaná Produções e Baccan Produções

COMÉDIAS CONTEMPORÂNEAS
🙏 A Noviça Mais Rebelde
Teatro do Riso e Roberto Costa Produções
📍 Teatro do Parque
📅 25/07, 20h e 27/07, 19h
🎟️ R$ 60 a R$ 120
Produção: Teatro do Riso e Roberto Costa Produções

🚫 NÃO!
📍 Teatro de Santa Isabel
📅 25/07, 20h, 26/07, 19h e 27/07, 18h
🎟️ R$ 40 a R$ 140
Produção: Casona Produções

TEATRO INFANTIL
🎈 Hélio, o Balão que Não Consegue Voar
21º Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco
📍 Teatro do Parque
📅 26/07, 16h30
🎟️ R$ 30 a R$ 60
Produção: Métron Produções

🐷 Os 3 Super Porquinhos
📍 Teatro do Parque
📅 27/07, 16h30
🎟️ R$ 40 a R$ 80
Produção: Roberto Costa Produções

NARRATIVAS ANCESTRAIS
📚 Histórias do Meu Povo
Roma Julia
📍 Espaço O Poste
📅 26/07, 16h
🎟️ Entrada gratuita
Produção: Projeto independente com apoio Funarte

INTERIOR DO ESTADO
🎭 Yerma Atemporal
Projeto de Simone Figueiredo
📍 Teatro Rui Limeira Rosal, Caruaru
📅 25/07, às 19h
Produção: Circulação estadual

⚔️ O Massacre de Angico – A Morte de Lampião
📍 Estação do Metrô, Serra Talhada
📅 25 a 27, 20h
Produção: Projeto regional

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