Ané das Pedras: Ritual Ancestral do Povo Kariri
Entre acolhimento e violência simbólica

 

Sob céu claro e ventos frios, a ancestralidade indígena atravessa a capital gaúcha com Ané das Pedras. Foto: Denis Gosch

Depois de alguns dias de chuva em Porto Alegre, neste sábado, 31 de maio, o céu estava claro, com temperaturas baixas e ventos frios que levaram muitas pessoas a usar casacos pesados e óculos escuros na Praça da Alfândega, no centro da cidade. Foi neste cenário que a artista indígena Bárbara Matias Kariri apresentou Ané das Pedras, uma performance ritual do repertório da Coletiva Flecha Lançada Arte (CE), com produção de Lara Alencar, que integra a programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre.

Na língua do povo Kariri, “Ané” representa o sonho, conceito que fundamenta esta performance singular. A obra estabelece um diálogo profundo com as pedras enquanto entidades ancestrais e encantadas, elementos centrais na cosmovisão desta nação indígena nordestina. “Essa prática ritual nos convida a confiar à pedra aquilo que buscamos, nossas necessidades mais íntimas, depositando nela nossos desejos e aspirações”, revela Bárbara.

Na tradição Kariri, as pedras transcendem sua materialidade aparente — são compreendidas como seres dotados de vida, ancestrais que oferecem proteção e força. “Em momentos de impossibilidade, minha avó sempre evocava a Santa Pedra”, recorda a artista. “Durante uma severa seca que assolou o Ceará, quando a fome se alastrou, meus ancestrais preparavam um caldo ritualístico com ervas e pedras. Após o preparo, retiravam as pedras, devolvendo-as respeitosamente à terra, e consumiam aquele líquido que lhes proporcionava sustento e vitalidade.”

O vasto território do Cariri, cercado por imponentes chapadas e formações rochosas, mantém uma relação simbiótica com estes elementos minerais. “As pedras não apenas nos circundam, mas caminham conosco, compartilham nossa existência, são seres vivos que integram nossa realidade”, enfatiza Bárbara. Esta perspectiva contrasta radicalmente com o pensamento ocidental, que frequentemente reduz as pedras a meros obstáculos a serem removidos do caminho, revelando cosmologias fundamentalmente distintas sobre nossa relação com o mundo mineral.

Entre a violência simbólica e o acolhimento: três encontros marcantes

A performance de Bárbara em Porto Alegre foi marcada por três episódios significativos que revelam diferentes formas de recepção ao seu trabalho e à sua identidade indígena.

O primeiro ocorreu quando uma mulher, ao ser abordada pela artista, respondeu friamente: “Você é tão jovem, vá procurar um trabalho”. Quando Bárbara tentou estabelecer um diálogo sobre a ancestralidade das pedras, a mulher declarou: “Eu não tenho essa coisa espiritual, eu sou materialista”. A artista ainda tentou explicar que a pedra é, de fato, material, mas a conexão espiritual viria do contato, ao que a mulher respondeu negativamente. O encontro terminou com um comentário sobre os dentes da artista, revelando um olhar exotizante.

O segundo episódio, considerado mais grave pela performer, envolveu uma senhora que insistentemente a chamava de “índia” (não de indígena) e oferecia dinheiro, balançando uma nota de 100 reais. “Como ela teve autorização, no meio de um monte de gente, para fazer essa provocação toda?”, questiona Bárbara, evidenciando o desconforto com a situação.

Contrastando com essas experiências, uma terceira mulher demonstrou genuíno interesse. Ao receber a pedra das mãos de Bárbara, ela não apenas se engajou na apresentação como também convidou duas amigas para participarem. “O trabalho também tem esse lugar do encontro que pode dar certo ou não, pode acontecer violência, mas também tem um lugar de identificação, de afeto e de muita força espiritual”, reflete a artista.

Público participa ativamente da performance. Foto: Denis Gosch

Os caminhos rituais do Ané das Pedras

A performance, que estreou em 2019 num festival no Crato (CE), tem circulado por festivais de teatro, performance e dança. O trabalho começa com Bárbara vestida com trajes tradicionais de palha, carregando um maracá e uma cuia com pedras. Ela caminha pelas ruas da cidade, criando encontros com as pessoas e convidando-as a participar do ritual final: o plantio das pedras.

“O percurso demora uns 22 minutos, porque não é sobre a distância, mas sobre os encontros”, diz. Ela busca ruas com grande fluxo de pessoas e vai se conectando pelo olhar, um desafio na sociedade contemporânea. O trajeto termina em uma árvore cuidadosamente escolhida, que precisa atender a requisitos técnicos específicos.

“Eu preciso de uma árvore que não tenha concreto debaixo e normalmente escolho uma que consiga receber um bom número de pessoas”, detalha Bárbara. Na apresentação em Porto Alegre, mais de 60 pessoas acompanharam o ritual até seu momento final.

Importante destacar que as pedras utilizadas são sempre do próprio local onde a performance acontece. “Eu trabalho com as pedras daquele determinado lugar que eu me encontro. Porque não adianta eu pensar só que o rio lá da minha comunidade é um ancestral. É importante que eu pense que o rio que está em São Paulo, os rios que estão em outros lugares também precisam ser protegidos”, explica.

Um ato de resistência indígena e reeducação de imaginários

TRabalho é uma forma de reexistência cultural Foto: Lara Alencar

Ané das Pedras vai além da apresentação artística, pois posiciona-se como uma forma de reexistência cultural e uma proposta de reeducação de imaginários. “A cosmovisão dos povos indígenas é uma visão de mundo muito mais anticolonial e contracolonial na sociedade capitalista que a gente vive”, defende Bárbara.

Levar para o espaço público e para as artes cênicas elementos sagrados da cultura Kariri é um ato político. “Trazer a pedra como algo importante num lugar em que o que é importante é o dinheiro, o que alguém deu valor. Trazer para o palco algo que é forte para a gente, que é importante para a gente, é também uma reeducação de imaginários”, assinala.

A exibição em Porto Alegre ganhou significado adicional após a crise climática que assolou o estado. “Para mim foi muito forte vir fazer o trabalho aqui depois dessa crise climática escancarada que o estado viveu e que todo mundo assistiu”, situa Bárbara, estabelecendo uma conexão entre seu trabalho com os elementos da natureza e as questões ambientais contemporâneas.

Uma conquista histórica no Palco Giratório

A circulação de Ané das Pedras pelo Palco Giratório do Sesc Brasil representa um marco importante tanto para a artista quanto para a visibilidade das artes indígenas no circuito nacional. “A gente é o segundo grupo do interior do Ceará a circular pelo Palco Giratório e eu acredito que a gente é o primeiro grupo indígena com um trabalho voltado para a memória indígena a circular nesse programa que tem tantos anos”, celebra.

A decisão política de permanecer no Cariri

Apesar do reconhecimento nacional e das oportunidades de circulação, Bárbara Matias mantém uma posição política clara: continuar vivendo no interior do Ceará. “Por muito tempo a gente viu as pessoas do Nordeste sendo obrigadas, em sua maioria por questões de trabalho, a se deslocar para os grandes centros. Eu reivindico continuar morando no interior do Ceará”, afirma.

Para a artista, essa escolha é também um exercício político. “Tem aeroporto, as pessoas sabem do meu trabalho, as redes sociais estão aí, tem um telefone que pode ligar, dá para atender o e-mail. Não precisamos nos deslocar do nosso território de origem”, argumenta.

Permanecer no Cariri significa manter proximidade com sua família e comunidade, elementos que alimentam sua produção artística. “Continuar morando lá é também uma forma de não perder alguma coisa que alimenta muito firmemente o meu trabalho”, conclui Bárbara, reafirmando seu compromisso com suas raízes e com a valorização do território nordestino como espaço legítimo de produção cultural contemporânea.

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Na ginga da resistência
Crítica do espetáculo Encruzilhada

Grupo de Caxias (RS), traduz em movimento a potência dos corpos periféricos, transformando o samba, a arquitetura das favelas e as referências a Exu em uma contundente manifestação artística decolonial. Foto: Paulo Pretz

O espetáculo de dança Encruzilhada leva a favela para a cena, espelhando-a como um labirinto de muitos cruzos. A peça coreográfica de Caxias (RS) dirigido por Assaury Hiroshi e Igor Cavalcanti Medina, foi exibida no domingo, 25/05, no CHC Santa Casa em Porto Alegre, como parte da programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

O corpo é essencialmente samba nessa Encruzilhada, carregando as marcas das diásporas, conjunções e controvérsias que formam o Brasil. Os intérpretes-criadores Ana Claudia Pereira, Assaury Hiroshi, Igor Cavalcanti Medina e Thiago Roque partem de uma perspectiva decolonial para construir um mosaico coreográfico que desafia hierarquias estéticas. A hibridização de linguagens – onde a dança de salão dialoga com a gestualidade das danças urbanas, enquanto fundamentos do balé clássico são desconstruídos e ressignificados pela ginga dos ritmos afro-brasileiros – está intrinsecamente ligada às experiências pessoais dos dançarinos, que contribuem com suas próprias bagagens de vida e técnicas diversas. Essa mistura de vocabulários de movimento sugere um posicionamento político que ecoa o conceito de encruzilhada como espaço de múltiplas convergências culturais e estéticas.

Nessa estrutura narrativa fragmentada, os corpos transitam entre estados de opressão e insurgência, desenhando no espaço uma cartografia dos afetos periféricos. Os artistas constroem uma dramaturgia corporal que oscila entre a exaustão e o soerguimento, materializada de forma emblemática na “sambada do chinelo”, sequência onde o dançarino Igor Cavalcanti Medina explora os limites físicos em uma metáfora potente da persistência das comunidades marginalizadas.

Os movimentos do elenco, ora contidos e sufocados, ora explosivos e catárticos, projetam as dinâmicas sociais das encruzilhadas urbanas, criando um discurso corporal que expõe tensões, fraturas e celebrações da vida suburbana. Os corpos narram histórias e são, eles mesmos, essas histórias em suas materialidades suadas, ofegantes e resilientes.

A pesquisa dessa montagem está sustentada por material teórico, estético e político. Foto: Paulo Pretz 

Encruzilhada incorpora o conceito teórico desenvolvido por Leda Maria Martins em Afrografias da Memória, onde a encruzilhada é apresentada como “instância simbólica e metonímica” que opera como um “lugar terceiro” de interseções, desvios e múltiplas possibilidades. Ao adotar este conceito já em seu título, o espetáculo assume uma postura que valoriza o entrelaçamento de linguagens e saberes.

Na montagem cênica, a encruzilhada manifesta-se como tema e como princípio estruturante que organiza a própria dramaturgia corporal. Como morada de Exu, “linguista-tradutor do mundo”, conforme elabora Luiz Rufino em Pedagogia das encruzilhadas, a peça explora os elementos arquitetônicos das comunidades periféricas inspirados no artistas visual e performático Hélio Oiticica (937 – 1980), transformando-os em dispositivos que ativam memórias corporais e espaciais que desafiam a linearidade das narrativas hegemônicas.

Oiticica, artista que conferiu status estético às comunidades periféricas, constitui referência fundamental nas pesquisas do grupo de Caxias. Suas criações revolucionárias como os Parangolés (1964-1968), capas coloridas que incorporam o movimento e o ritmo do samba; os Penetráveis (1960-1979), instalações labirínticas inspiradas na arquitetura espontânea das favelas; e a Tropicália (1967), ambiente que sintetizava elementos da cultura brasileira marginalizada, ecoam no espetáculo Encruzilhada através do bailado corporal dos artistas e na concepção espacial que evoca os dispositivos arquitetônicos e urbanísticos dos morros.

A incorporação da ginga, do samba e da arquitetura labiríntica inspirada nas favelas opera no espetáculo como concretização do conceito de encruzilhada enquanto “lugar radial de centramento e descentramento”, como define Leda Maria Martins. Os corpos em movimento no espaço cênico apresentam-se como veículos de uma forma de conhecimento alternativa, na qual o saber não se dá apenas pelo logos, mas pelo pathos, pela corporalidade e pela performance. Ao entrecruzar a estética de Oiticica com as tradições afro-brasileiras, o espetáculo Encruzilhada propõe novos modos de existência baseados na fluidez e na negociação de identidades, rompendo com as dicotomias impostas pela colonialidade.

Em primeiro plano Ana Claudia Pereira, no espetáculo Encruzilhada. Foto: Divulgação

Os dançarinos transitam entre precisão técnica e o gesto cotidiano, com alguma improvisação, criando uma linguagem corporal que recusa categorias fechadas. A incorporação de elementos rituais, particularmente nas sequências inspiradas nas corporalidades de Exu, adiciona camadas de significado que aproxima a performance de uma experiência ritual coletiva.

Como uma narrativa integrada às corporeidades em cena, a trilha sonora de Encruzilhada é executada ao vivo por Zeca Duarte, compositor e multiinstrumentista. Suas criações autorais tecem uma dramaturgia sonora que entrelaça as tradições do samba e do choro com referências contemporâneas, evocando a sofisticação harmônica de Baden Powell e a irreverência rítmica de Jorge Ben Jor. Esta musicalidade traduz sonoramente o conceito de encruzilhada, estabelecendo-se como ponto de confluência entre diversas correntes da música brasileira.

A parceria com o percussionista Marcelo Poleze Silva adiciona camadas de complexidade rítmica que dialogam diretamente com os corpos do elenco, estabelecendo uma integração entre movimento e som que remete às práticas comunitárias das rodas de samba. Os instrumentos de percussão, fundamentais nas tradições musicais afro-brasileiras, atuam como extensões dos corpos em cena.

O ambiente visual de Encruzilhada permite ligações entre presença física e espacialidade. O cenário, marcado por desenhos que evocam a estética do grafite urbano e por representações de entidades das religiões de matriz africana, transforma o palco em um portal entre mundos, enquanto o figurino, de aparência casual mas carregado de significados, destaca-se pela deliberada apropriação da camisa amarela da seleção brasileira – um ato político de resgate de um símbolo nacional sequestrado por discursos autoritários.

As vestes, adornadas com saudações a Exu e elementos gráficos que remetem às encruzilhadas, funcionam como uma segunda pele que amplifica o discurso corporal dos intérpretes. Complementando esta narrativa visual, a iluminação alterna momentos de penumbra opressiva e clarões de esperança, construindo atmosferas que reforçam a narrativa fragmentada e pulsante que emerge dos corpos em estado de resistência e celebração.

Nas sequências iniciais, a opção por manter determinadas zonas do palco em penumbra atua como comentário social sobre os mecanismos de invisibilização operados pelo sistema capitalista contemporâneo. Esta escuridão seletiva explicita visualmente as dinâmicas de exclusão que relegam determinados corpos e territórios às sombras do panorama social. Ao longo da performance, a luz adquire qualidades quase coreográficas, dançando junto aos intérpretes, ora revelando detalhes minuciosos, ora expandindo-se em feixes amplos que abraçam toda a cena.

Encruzilhada afirma-se como manifestação artística decolonial que, através da potência expressiva dos corpos, da riqueza musical e da dramaturgia fragmentada, desconstrói estruturas de dominação historicamente estabelecidas. O espetáculo questiona a lógica racista de produção de identidades enquanto busca formas alternativas de existência e resistência. Sua força reside na capacidade de transformar linguagens artísticas em posicionamento político, sem abrir mão da experiência estética estimulante e rica em nuances. Ao celebrar a complexidade da identidade brasileira através de seus encontros e desencontros, a obra convida o público a habitar poeticamente o labirinto de possibilidades que emerge quando nos permitimos existir nas encruzilhadas.

Ficha Técnica

Direção Geral e Artística: Assaury Hiroshi e Igor Cavalcanti Medina

Direção Musical e Composição: Zeca Duarte

Intérpretes Criadores: Ana Claudia Pereira, Assaury Hiroshi, Igor Cavalcanti Medina
Thiago Roque

Percussão: Marcelo Poleze Silva

Sonorização: Haik Yermia Khatchirian

Assistência de Palco: Kaynan Cousseau Ribeiro

Dramaturgia, iluminação e Figurino: Paula Giusto

Produção Cultural e Executiva : Uyara Camargo

 

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

 

 

 

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Primeira antologia póstuma do vampiro
Crítica de Daqui ninguém sai

Espetáculo do Teatro de Comédia do Paraná comemora centenário de Dalton Trevisan, que morreu em dezembro de 2024, aos 99 anos. Foto: Annelize Tozetto

 

Se fossem ambientados no Recife, os contos de Dalton Trevisan poderiam ter como cenário a Praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista. Imagino o contista morando em alguma casa antiga em Santo Amaro e saindo anônimo para colher histórias de personagens no bairro de São José. A Conde da Boa Vista talvez seja o equivalente à XV de Novembro em Curitiba. Será? Mas Recife tem outro ar. É fétida, dá pra sentir de pronto. O cheiro do mangue que se mistura ao calor escaldante. As cores estouradas. Os personagens suariam bicas, é verdade. No entanto, continuariam pervertidos, degenerados e escrotos. As mulheres ainda seriam agredidas por seus companheiros, homens bêbados, que batem sem dó, arrastam pelo cabelo, cospem na cara, tiram sangue, matam. Os pivetes na rua cheirando cola. As putas na praça.

Curitiba engana. Parece coisa fina, moderna. Trevisan descasca: “enjoadinha, narcisista, toda de acrílico para turista ver”. Fico pensando que nós, pernambucanos bairristas declarados que somos, só falamos mal do Recife entre os nossos. Não me venha ninguém dizer um ai da Veneza pernambucana – contém ironia – que vai ouvir poucas e boas. Dalton Trevisan teria produzido mais de 700 contos e, nessa trajetória, há uma dualidade transbordante relacionada à cidade – ódio declarado e amor que transpira. Curitiba é “província, cárcere, lar”. Foi nesta cidade que o autor viveu e morreu, em dezembro do ano passado, aos 99 anos, quando já aconteciam os ensaios de Daqui ninguém sai, obra assinada pelo Teatro de Comédia do Paraná (TCP). O espetáculo estreou no Teatro Guairinha, na Rua XV de Novembro, no Festival de Curitiba, nos dias 26 e 27 de março, em duas sessões lotadas. No dia 23 de maio, volta em cartaz de sexta a domingo, no mesmo teatro, cumprindo temporada até 15 de junho.

A direção é de Nena Inoue, que também é atriz e esteve na primeira peça que levou a obra de Trevisan ao teatro: Mistérios de Curitiba, com direção de Ademar Guerra, em 1990. Nena conta que foi a primeira vez que o público curitibano se viu representado no palco. Era de certa forma uma homenagem à cidade e aos curitibanos. Em 1992, Nena voltou a trabalhar com Guerra em O Vampiro e a Polaquinha, que ficou seis anos em cartaz, mas apresentando uma realidade mais crua e sórdida.

Em Daqui ninguém sai, havia a intenção de homenagear o centenário do autor, comemorado em junho deste ano. Para essa tarefa, Nena chamou o dramaturgo Henrique Fontes, potiguar, que escreveu e dirigiu Sobrevivente, peça em que a atriz atua com o filho, Pedro Inoue, e que estreou no Festival de Curitiba de 2023. Na nova montagem, Fontes assina dramaturgia e assistência de direção. Em cena, estão os atores Carol Mascarenhas, Fábyo Rolywe, Laís Cristina, Madu Forti, Paula Roque, Paulo Chierentini, Sidy Correa, Simone Spoladore, Trava da Fronteira, Val Salles, Wenry Bueno e Zeca Sales.

A peça, dividida em nove movimentos, um prólogo (o Movimento 0) e um epílogo, explicita em sua encenação a dificuldade do processo. No “Movimento 1 – Dalton”, os atores contam que houve uma seleção pública de elenco e que, a princípio, o trabalho seria uma ocupação num casarão abandonado no alto da XV. A ideia não foi adiante. Então, o que ficou foi uma encenação que incorpora o processo de trabalho à cena: é basicamente uma trupe de atores dramatizando contos de Dalton Trevisan num exercício de metateatro. Parece ter sido a saída possível. Não é inventiva, embora funcione ao propósito da peça.

Direção é de Nena Inoue e dramaturgia e assistência de direção são de Henrique Fontes. Foto: Annelize Tozetto

Espetáculo lida com a tensão de representar o que não podemos mais aceitar. Foto: Annelize Tozetto

Neste mesmo movimento, um questionamento expõe a dúvida que ronda obras de autores que carregam um realismo repugnante, como Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan: “Fazer uma peça sobre esse cara em 2025. Para quê?”, levanta um dos atores. Essa pergunta não é pouca coisa, nem tem resposta fácil ou direta. Na literatura, as palavras explicitam a violência, mas as imagens se materializam apenas na nossa cabeça. Não é fácil de ler, às vezes pode ser enojante, inclusive pela aparência de normalidade na desumanização dos personagens. No entanto, a linguagem nos desconcerta e nos preenche, o que o autor faz com as palavras, a forma como aquilo nos atinge, nos deixa com tesão ou com ânsia de vômito, ou as duas coisas, é fascinante. De qualquer modo, não tem materialidade. Mas levar ao palco? Como representar no teatro a forma como a mulher é tratada nos contos de Trevisan? Estupros, erotismo incestuoso, pedofilia? “Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder?”, escreve no conto O vampiro de Curitiba.

Lidar com essa tensão de representar o que não podemos mais aceitar como sociedade marca a experiência de montagem da obra de Trevisan em Daqui ninguém sai desde o início da encenação, inclusive pelas escolhas do que levar ao palco e do que ressaltar. O “Movimento 0 – Maria Bueno”, prólogo do espetáculo, é um número musical a partir do conto Maria Bueno. Nele, Trevisan conta a história real de Maria da Conceição Bueno, morta em 29 de janeiro de 1893, na provinciana Curitiba.

A mulher foi degolada por Ignácio José Diniz, que prestava serviço ao Exército. O homem não queria que Maria fosse a um baile. Na encenação, um dos versos ganha potência, cantado pelo coro: “Ninguém é dono de Maria”. Esse trecho ecoa e diz, simbolicamente, logo de início, que a obra pode ser lida de muitas maneiras. E isso é eficaz, evitando a repulsa do espectador à peça à primeira vista. Mais adiante, o anúncio da “inocência”: “no júri popular do anspeçada Inácio | o doutor brada retumbante | crime passional! defesa da honra! já livre sem culpa nem pena| à desvalida Maria quem defendeu? | ó vergonha! ó justiça indigna!”.

As escolhas da encenação vão sendo amparadas por um trabalho dramatúrgico que evidencia a realidade dos escritos de Trevisan, muito mais do que a sua suposta perversão. Tem menos pus. Não se trata de uma justificativa de montagem, porque a obra do contista diz por si do seu valor, não precisa disso, mas de uma estratégia dramatúrgica que propõe um recorte de leitura, alcançando de modo menos virulento os espectadores que não necessariamente tiveram contato prévio com a literatura dele. O texto da peça acentua que os jovens não conhecem o escritor e que nem em Curitiba o contista é, de fato, lido. Então a peça é esse passeio pela obra, tirando o acelerador da repugnância e propondo visadas que nos deixam com menos incômodo, porque é como se houvesse um contraponto. A mulher ainda é espancada, degolada, morta com tiro. A mãe ainda é estuprada pelo filho. Mas há modos e modos de nos apresentar a tudo isso.

 A frase “Todas as tristezas podem ser suportadas se você as transformar em história”, por exemplo, é dita no “Movimento 3 – Maria”. No “Movimento 5 – João e Maria”, o gozo feminino ganha primeiro plano, mesmo que isso custe a vida da mulher. Maria é debochada e diz que nunca teve prazer com João. É morta. E um dos atores pergunta: “Será que não teria outro fim para essa cena?”. Uma das atrizes contesta: “Dalton escrevia o fim real das coisas. Ele não mentia e segue atual”. No “Movimento 6 – Ministórias”, temos a história de um casal que decide se matar, mas o homem faz isso primeiro e a mulher desiste, porque a vida é boa. No “Movimento 9 – Cartas”, um dos atores reproduz a defesa de Trevisan: “Quem matou Maria não fui eu”.

Há uma curadoria afiada, numa tarefa dificílima de fazer essa primeira antologia póstuma de Dalton Trevisan e não no suporte do livro, no teatro. A dramaturgia da peça teve 27 versões. De acordo com o programa, são mais de 50 contos e trechos de cartas inéditas do autor levadas à cena. É um trabalho hercúleo, não só pela dimensão da obra de Dalton Trevisan, mas pelo fato de que o autor nunca permitiu que os seus textos fossem alterados no palco: todas as vírgulas de cada conto estão lá. É literatura levada ao teatro. Então o que os criadores fizeram, numa troca que se explicita bonita entre dramaturgia e direção, foi curar esses textos num universo gigantesco e montá-los como um quebra-cabeças que tenha sentido, alinhavando dramaturgicamente a cena com as interferências de textos criados para além da obra de Dalton. Nesse processo, o espetáculo se estende, fica longo, inclusive porque são 12 atores em cena e cada um deles têm o seu momento de maior protagonismo.

Elenco tem 12 atores. Foto: Annelize Tozetto

O elenco é todo muito competente na tarefa de materializar literatura. Uma das atrizes, Paula Roque, fala em Libras e é traduzida pelos colegas em cena, como poderia sempre acontecer. Como são muitos atores, é difícil fazer destaques, mas Simone Spoladore tem a densidade que o texto de Dalton Trevisan solicita a uma atriz. E há uma cena impagável, a que mais engaja o público, que transforma o erótico em humor com maestria, o “Movimento 7 – Noite da Paixão”, um encontro amoroso entre Nelsinho (Zeca Salles) e uma puta (Carol Mascarenhas). Eles se jogam com tanto prazer e liberdade que o gozo da puta – que com  Carol Mascarenhas é gostosa e não decrépita – é aplaudido durante a cena e a imagem do combalido Nelsinho, magricelo, exausto, joelhos colados vira um deleite.

Paula Roque fala em Libras na peça e os colegas fazem a tradução para o público. Foto: Annelize Tozetto

Simone Spoladore. Foto: Annelize Tozetto

Carol Mascarenhas e Zeca Salles. Foto: Annelize Tozetto

A imagem do combalido Nelsinho. Foto: Annelize Tozetto

Depois dos contos, há ainda um Movimento com trechos das cartas trocadas entre Dalton Trevisan e muitos intelectuais e artistas da época, como Ademar Guerra, que dirigiu sua obra no teatro em duas ocasiões, e o escritor Otto Lara Rezende. Sentados em cadeiras postas em meia lua na frente do palco, os atores contam sobre a extensão da correspondência – as que foram lidas foram escolhidas num acervo de mais de 600 cartas – e citam o nome de pessoas com quem ele se correspondeu. O espetáculo talvez prescindisse das cartas. E, novamente, o recurso de encenação não nos instiga a imaginação. Mas, como dito, trata-se de uma antologia que se pretende ampla.

Nesse movimento de antologia, há ainda um resgate simbólico: as ilustrações reproduzidas no telão no fundo do palco são de Poty Lazzarotto, ilustrador das obras do contista por décadas. Se os recursos de encenação não fossem pouco provocativos na forma, essas imagens poderiam explodir de alguma maneira para além da tela estática, expandindo a cenografia por meio das ilustrações.

Dalton Trevisan, pelo que se sabe, era afeito a antologias. Entre 1979 e 2013, organizou sete antologias de sua própria obra. Em 2023, lançou Antologia pessoal, pela Record, e, segundo o professor, tradutor e escritor curitibano Caetano Galindo, no podcast 451 MHZ – O podcast dos livros, da Quatro cinco um, logo depois desse lançamento, Trevisan teria feito outra antologia, que circulou de modo mais restrito, apenas em Curitiba.

É significativo que a primeira antologia desde a morte venha do teatro, espaço privilegiado que confere materialidade às palavras. “Só Curitiba pra ter um escritor apelidado de vampiro. Me dá uma coisa de identidade”, diz Simone Spoladore em cena. Esse vampiro, que “não se alimenta de sangue mas de sonhos, confissões, palavras ao vento”. “Já estou desaparecendo?”, pergunta o personagem Trevisan no epílogo. Não, vampiro. Não há adeus para vampiros. Nem redenção.

O espetáculo Daqui ninguém sai foi apresentado nos dias 26 e 27 de março de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha técnica:

Contos: Dalton Trevisan
Direção: Nena Inoue
Dramaturgia e assistência de direção: Henrique Fontes
Pesquisa literária: Fabiana Faversani
Elenco: Carol Mascarenhas, Fábyo Rolywer, Laís Cristina, Madu Forti, Paula Roque, Paulo Chierentini, Sidy Correa, Simone Spoladore, Trava da Fronteira, Val Salles, Wenry Bueno e Zeca Sales
Composição musical: Grace Torres e Lilian Nakahodo
Composição Maria Bueno: Grace Torres, Lilian Nakahodo e colaboração do elenco
Composição Balada das mocinhas do Passeio: Paulo Chierentini
Composição Perdido: Madu Forti e Zeca Sales
Preparação vocal: Babaya
Iluminação: Beto Bruel
Figurino: Verônica Julian
Cenografia: Carila Matzenbacher
Integração somática/Hatha Yoga: Carlos Cavalcante
Preparação coreográfica: Rapha Fernandes
Projeção mapeada: Ivan Soares
Tradução para Libras: PapO Traduções Artísticas e TAÉ Libras e Cultura
Intérpretes de Libras: Beatriz Reni, Elisa Maganhoto, Jamille de Jesus, Kelly Caobianco, Lais Guebur, Letícia Guebur, Nathan Sales, Ravena Abreu e Talita Grunhagen
Tradutores em cena: Talita Grünhagen e Jessica Nascimento
Assistente de figurino: Cristina Rosa
Assistente de iluminação: Anry Aider
Costureira: Doralice Peron
Cenotécnico: Fabiano Hoffmann
Produção geral: Diego Bertazzo
Assistente de produção: Guilherme Jaccon e Daniel Militão
Ilustrações: Poty Lazzarotto
Identidade visual: Marcos Minini
Fotos: Kraw Penas

Daqui ninguém sai. Foto: Annelize Tozetto

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Crônica da demora:
Artistas questionam pagamentos de cachês
e a política cultural no Recife

 Comunidade teatral do Recife aponta atrasos sistemáticos no pagamento de cachês. Imagem do espetáculo  Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife. Foto: Ivana Moura

Cena de Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recifena comunidade do Pilar. Foto: Ivana Moura

Em novembro de 2024, o espetáculo Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife se destacou na programação da Mostra OFF-REC, parte do 23º Festival Recife do Teatro Nacional, como uma das propostas artísticas de maior impacto e relevância. A obra, que mergulha nas narrativas, trajetórias e vivências negras que moldaram e continuam a pulsar no histórico bairro da capital pernambucana, foi amplamente reconhecida por sua qualidade artística e seu inegável valor cultural e social. Contudo, passados seis meses desde sua apresentação, o diretor e produtor Marconi Bispo viu-se na difícil posição de ter que recorrer às redes sociais para realizar uma cobrança pública do cachê acordado com seu grupo, um pagamento que, até então, não havia sido efetuado pela Prefeitura do Recife.

Marconi Bispo não escondeu sua frustração e o receio que acompanha a atitude de expor publicamente tal situação. Como artista e produtor negro, ele ponderou intensamente sobre as possíveis consequências e retaliações que poderiam advir dessa manifestação. Essa hesitação inicial sublinha a vulnerabilidade de artistas que dependem do poder público e temem ser preteridos em futuras seleções ou editais.

A escolha estratégica de utilizar as redes sociais como palco para o protesto carrega uma ironia particular, considerando que o prefeito João Campos é notadamente conhecido pelo uso intensivo e hábil dessas mesmas plataformas. Campos construiu grande parte de sua imagem pública e promove ativamente sua gestão através de vídeos curtos, informais e uma comunicação direta com seus mais de 2,9 milhões de seguidores. No entanto, as mesmas ferramentas digitais que servem para celebrar conquistas institucionais tornam-se, neste caso, instrumentos de protesto para artistas locais que dizem enfrentar o silêncio institucional.

Ao expor a situação do seu grupo nas redes sociais, Marconi Bispo rapidamente percebeu que os atrasos nos pagamentos não era um caso isolado, afetando uma gama diversificada de outros profissionais da cultura. Relatos semelhantes surgiram de pareceristas da prefeitura, essenciais na avaliação técnica e artística de projetos culturais submetidos a editais públicos, que também enfrentavam longos e imprevisíveis períodos sem remuneração pelos serviços prestados. Bispo destacou que essa realidade dolorosa é parte de um cenário recorrente no setor cultural, onde o silêncio muitas vezes predomina, impulsionado pelo medo de represálias que poderiam comprometer futuras oportunidades de trabalho e pela intrínseca dependência dos recursos públicos para a viabilização de projetos e a própria subsistência. A falta de pontualidade nos pagamentos não apenas causa dificuldades financeiras imediatas, mas também desestrutura o planejamento de artistas e produtores, impactando a continuidade de suas atividades e a saúde do ecossistema cultural como um todo.

Essa situação de inadimplência por parte do poder público é corroborada por outros artistas com vasta experiência, como Paulo de Pontes, veterano com mais de 40 anos de carreira no teatro e no cinema, que já havia utilizado suas plataformas digitais para chamar atenção para os pagamentos devidos tanto pela Prefeitura quanto pelo Governo do Estado. Pontes ressalta a frustração e a insegurança geradas pela falta de clareza nas respostas obtidas junto às secretarias responsáveis e a recorrente transferência de responsabilidade entre diferentes setores ou níveis de governo. Essa burocracia deixa os artistas sem saber quando receberão pelos serviços já executados, reforçando um problema sistêmico na gestão dos recursos destinados à cultura e minando a confiança dos profissionais no poder público como parceiro e fomentador.

Paula de Renor, produtora e atriz também com mais de 40 anos de experiência nos palcos e na luta por políticas culturais, aprofunda a análise sobre o significado desses atrasos. Para ela, se trata de um modus operandi enraizado e petrificado dentro de uma cultura política. “Estamos sempre esperando a liberação da Secretaria da Fazenda e esta Secretaria passa a ser para nós , um grande limbo, onde devemos nos conformar e esperar o dia em que chegaremos ao paraíso, dia do depósito do cachê!”. Segundo ela, “No capitalismo é possível aniquilar vidas e carreiras a partir de escolhas econômicas, e isso precisa acabar”, afirma categoricamente. Sua crítica vai além da denúncia pontual, apontando para um problema estrutural: “Não é possível que no século 21 ainda existam práticas que não priorizem os artistas, já que a imagem da cidade do Recife e do estado de Pernambuco é construída em cima da arte feita por esses profissionais.”

Humor na cobrança

Durante a espera de quase cinco meses pelo pagamento de sua participação no evento “Dia do Palhaço, da Palhaça, do Palhace”, realizado em dezembro de 2024 e promovido pela Secretaria de Cultura do Recife, a atriz e palhaça Ana Nogueira encontrou na arte do cordel uma forma potente de expressar sua indignação e frustração com a morosidade burocrática. Para muitos artistas, especialmente aqueles que atuam de forma independente, o cachê de eventos culturais é fundamental para sua subsistência, tornando a demora no pagamento não apenas um inconveniente, mas um sério problema financeiro.

Diante da ausência do cachê e após inúmeras tentativas infrutíferas de esclarecimento sobre o status do pagamento junto aos setores responsáveis da Secretaria, Ana transformou sua experiência de incerteza em poesia popular. Ela compôs dois cordéis que narram o drama da longa espera, a peregrinação em busca de informações e a falta de respostas claras por parte da gestão pública. O cordel, com sua estrutura narrativa e linguagem acessível, provou ser um veículo eficaz para dar voz à sua angústia e criticar a morosidade administrativa. Um dos trechos que melhor encapsula o sentimento de espera, a busca por informações e a perplexidade diante da falta de solução é:

A pergunta que não cala
Onde está o meu dinheiro
Já liguei pra todo mundo
Até para o financeiro
Ninguém sabe me dizer
Qual é o seu paradeiro.

A artista recebeu seu cachê no final de abril de 2025, quase cinco meses após a realização do evento em que se apresentou.

A burocracia como obstáculo

Paralelamente, o ator e diretor Marcondes Lima criticou atrasos em dois cachês distintos: um referente a uma apresentação do espetáculo-palestra Babau, Pancadaria e Morte realizada em julho de 2024, durante a Semana Hermilo, e outro pelo mesmo trabalho apresentado no OFF-REC em novembro do mesmo ano. “Se passaram 10 e 6 meses, respectivamente, e nada do pagamento”, afirma. Marcondes contesta a justificativa oficial que costuma responsabilizar os próprios artistas pela demora: “As justificativas responsabilizam sempre a nós artistas: os atrasos ocorrem porque não apresentamos documentações devidas, porque não agilizamos isso no prazo estipulado, etc. Mas isso não é verdade.”

A negativa de Marcondes se baseia na sua própria experiência, afirmando que, no caso do grupo Mão Molenga, toda a documentação foi providenciada e os empenhos estavam “supostamente” garantidos. Ele atribui a demora à transferência de contas de um ano administrativo para outro, um processo interno da Prefeitura que não deveria afetar os artistas. Além disso, ele aponta para uma diferença crucial entre os contratos de artistas locais e os de artistas de renome: enquanto os primeiros carecem de clareza quanto a prazos e condições de pagamento, os segundos costumam ter esses pontos especificados, garantindo maior segurança financeira. Essa discrepância, segundo ele, demonstra que a burocracia e a morosidade afetam, desproporcionalmente, os artistas da cidade.

Um aspecto especialmente perverso desse sistema foi destacado por Marcondes Lima: “Demorou tanto tempo para recebermos (na verdade ainda não recebemos) que para poder garantir o recebimento de um dos cachês precisávamos apresentar uma nova certidão negativa de taxa municipal porque a anterior expirou. Sem capital de giro para pagar para receber e dependendo do recebimento para pagar, pedimos emprestado e ainda estamos devendo.” Esta situação ilustra como o ciclo burocrático se retroalimenta, criando novas dificuldades para os artistas.

Espetáculo Babau e Dúdú e artistas Quiercles Santana, Brunna Martins, Paula de Renor, Marcondes Lima, Marconi Bipo e Fábio Caio. Reprodução da Internet

No caso do espetáculo Ọnà Dúdú, Marconi Bispo revela uma dimensão ainda mais preocupante do problema: “São 20 pessoas, em sua grande maioria negras e periféricas, que confiam a mim o seu trabalho e a regência de uma performance complexa que, mais uma vez, é solapada e destratada por uma secretaria de Cultura.” A última informação recebida pelos artistas foi: “O pagamento está em vias de acontecer, mas não conseguimos precisar a data”.

A artista Brunna Martins confessa profunda frustração ao falar dos persistentes e significativos atrasos nos repasses financeiros referentes a cachês e recursos provenientes do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC). A crítica central de Brunna reside no que ela aponta como contraste entre a inflexibilidade e o rigor com que a administração municipal exige o cumprimento de prazos e requisitos por parte dos proponentes culturais e a notória morosidade da própria gestão pública no processamento e efetivação dos pagamentos devidos. Esse descompasso operacional, como questão burocrática, compromete de forma drástica a sustentabilidade e a viabilidade financeira dos projetos culturais da cidade.

A situação expõe fragilidades na gestão dos mecanismos de fomento à cultura, como o SIC, que, apesar de sua importância para a dinamização do setor, tem sua eficácia minada pela imprevisibilidade e pela falta de pontualidade nos pagamentos. Brunna Martins reitera o apelo para que os gestores municipais percebam o impacto desses processos no planejamento futuro e na continuidade das atividades artísticas e culturais na capital pernambucana.

A disparidade no tratamento entre profissionais locais e externos é reforçada por Marcondes Lima, que questiona: “Não parece vergonhoso pagar 400 mil reais talvez um dia depois, na semana ou no mês seguinte a uma apresentação e demorar dez meses para pagar a outra cujo valor é 4 mil reais?” Marconi Bispo faz o mesmo questionamento: “Marco Nanini está passando por isso? Othon Bastos? A Armazém Cia de Teatro? Acho que não. Para esses, a gestão tem sempre bom coração.” Segundo os artistas, essa disparidade evidencia o que Paula de Renor chama de “escolhas econômicas” que podem aniquilar carreiras – uma política que prioriza o espetáculo midiático em detrimento da sustentabilidade do ecossistema cultural local.

Necessidade de discutir a política cultural

O encenador Quiercles conta pro Yolanda: “O Festival Recife do Teatro Nacional já me pagou. Mas isso foi semana passada. Foram quase seis meses esperando um dinheiro pouco e sem graça. É de uma falta de respeito ímpar”. Mesmo tendo recebido, ele evidencia o desgaste causado pela espera prolongada e o valor insuficiente. “Toda vez que tenho de trabalhar para a prefeitura, sinto que é um dinheiro que não vou ter tão cedo”, acrescenta, demonstrando como essa prática afeta a confiança dos artistas nas instituições públicas.

Quiercles também menciona outros projetos que aguardam recursos: “Kalash (peça teatral) está aguardando o SIC Recife para poder executar o projeto nas periferias da cidade. Ninguém sabe quando será pago”. Sua reflexão sobre a viabilidade da profissão é contundente: “Viver de teatro aqui não é fácil. Sem patrocínio ou com apoios dessa natureza, estamos fadados ao abismo. Manter hoje no Recife um grupo de teatro é uma aposta arriscada na corrente contrária de qualquer ordem capitalista. Insano mesmo”. O encenador ainda amplia a crítica para além dos atrasos nos pagamentos: “Tem muita bronca envolvida, inclusive a forma como são selecionados projetos nos editais”, concluindo com um desabafo que reflete o esgotamento: “Ando com uma vontade enorme de sumir da cena”.

Fábio Caio, do grupo Mão Molenga Teatro de Bonecos, nos falou do desconforto com o atraso dos cachês. “Em breve faremos aniversário do não pagamento”, pontuou o artista, referindo-se à apresentação na Semana Hermilo de julho de 2024. “Nos exigem uma infinidade de documentos e cumprimos rigorosamente com nossas obrigações, mas infelizmente essa reciprocidade não é prática da prefeitura,” desabafou.

Caio também mencionou o trabalho feito para o Festival Recife do Teatro Nacional, realizado em novembro, que, sem previsão de pagamento que o grupo tenha conhecimento, encontra-se na mesma situação. “É tanto desrespeito que decidi não mais trabalhar para a prefeitura”, afirmou com firmeza. Ele ainda lembrou que passou por situação semelhante com o espetáculo Hélio,  o Balão que Não Consegue Voar, mas que, neste caso, o pagamento já foi efetivado.

Ouvimos o conselheiro Oséas Borba Neto, que defende sua atuação ativa no âmbito do Conselho Municipal de Cultura, focando em questões cruciais como os recorrentes atrasos nos pagamentos devidos a artistas e produtores culturais, bem como as condições muitas vezes precárias dos equipamentos culturais sob gestão municipal.

Para ilustrar a urgência, o conselheiro disse que solicitou formalmente que o conselho dedique tempo para debater e propor melhorias substanciais tanto nas estruturas físicas quanto na gestão operacional de espaços vitais para a cultura da cidade, como teatros, galerias de arte e centros culturais. A Secretaria Municipal de Cultura, em resposta a essas demandas e à necessidade de um tratamento aprofundado dos temas, sugeriu a criação de uma comissão específica dentro do conselho para se debruçar sobre os problemas de pagamentos e infraestrutura. No entanto, até o momento, essa comissão não foi efetivamente constituída.

Embora não haja uma lei específica que proíba expressamente a realização de eventos sem empenho prévio, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Isso inclui a execução orçamentária, que deve ser alicerçada na existência de disponibilidade orçamentária e financeira, garantindo que recursos estejam previstos no orçamento e disponíveis no fluxo de caixa. Como já foi dito, na gestão cultural do Recife, entretanto, foi constatado que artistas e técnicos têm recebido seus cachês com atrasos significativos.

A centralidade da arte na construção da imagem do Recife e de Pernambuco, como destacado por Paula de Renor, contrasta com a precariedade enfrentada pelos artistas.

 As políticas públicas culturais, fundamentais para o fomento e a difusão da produção artística, frequentemente encontram barreiras significativas em sua execução, impactando diretamente a atuação dos profissionais do setor. Essas dificuldades administrativas, que se manifestam em processos burocráticos excessivamente complexos, morosos e, por vezes, pouco transparentes, criam um cenário de insegurança e imprevisibilidade para os artistas. Como resultado dessa ineficiência dos canais formais, a reivindicação de direitos básicos, como o pagamento de cachês por trabalhos já realizados, é frequentemente deslocada para plataformas informais, como as redes sociais, onde a pressão pública ou a busca por informações descentralizadas se tornam as vias principais.

Essa dependência de mecanismos informais, que expõe os artistas a situações de vulnerabilidade e desgasta a relação com as instituições, evidencia a necessidade urgente e imperativa de aperfeiçoar e modernizar os mecanismos institucionais de diálogo, gestão e pagamento na esfera cultural. Isso poderá criar processos que sejam funcionais e acessíveis, mas também transparentes, ágeis e baseados em fluxos claros e previsíveis, garantindo a segurança jurídica e financeira dos profissionais e permitindo que eles se concentrem em sua produção artística, em vez de lutar por seus direitos básicos.

Resposta da Prefeitura 

Enviamos uma solicitação formal à Prefeitura do Recife, buscando esclarecimentos sobre os motivos dos atrasos nos pagamentos dos cachês dos artistas. A Prefeitura enviou a seguinte nota:

“A Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura Cidade do Recife, informa que estão sendo tramitados e realizados todos os processos e pagamentos referentes aos festivais e ciclos culturais realizados a partir do segundo semestre de 2024. Somadas as quase 300 contratações realizadas para compor a programação dos festivais de Literatura, Dança, Teatro e da Mostra de Circo, somente 11 processos seguem pendentes, em função de questões documentais. O poder público municipal reafirma o compromisso e o esforço permanentes para garantir pagamentos cada vez mais céleres aos fazedores de cultura da cidade, de todas as linguagens e cadeias produtivas”.

 

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Teatro de Santa Isabel:
175 Anos de Palco,
Resistência e Memória

Tombado pelo IPHAN em 1949, o TSI é um 14 teatros-monumentos do país. Foto: Andréa Rêgo Barros / PCR

É impactante sua arquitetura neoclássica. Foto: Andréa Rêgo Barros / PCR

Lançamento de livro e apresentação do Grupo Magiluth na celebração de aniversário. Foto: Andréa Rêgo Barros

Em 2025, o Teatro de Santa Isabel completa 175 giros em sua espiral temporal, entrelaçando passado e presente no coração do Recife. Esse corpo arquitetônico respira memórias e performa histórias que se acumulam em camadas, como uma máquina do tempo em movimento, onde cada apresentação deixa seus rastros invisíveis. Inaugurado em 18 de maio de 1850, o edifício neoclássico é um organismo cultural que pulsa, absorve e reflete as vibrações sociais de quase dois séculos.

Concebido pelo Barão da Boa Vista e materializado pelo engenheiro francês Louis Léger Vauthier, suas paredes testemunharam momentos da história, desde os debates da Revolução Praieira até os discursos que culminaram na declaração de Joaquim Nabuco: “Aqui vencemos a causa da abolição”. O incêndio de 19 de setembro de 1869, que destruiu quase toda a estrutura do teatro, deixando apenas paredes laterais, alpendre e pórtico, não silenciou sua importância. Em 16 de dezembro de 1876, o teatro ressurgiu para continuar sua missão como palco da efervescência cultural pernambucana.

Desse palco, revoluções saltaram para as ruas. Suas colunas sustentam ideais de liberdade que permeiam gerações. Ao visitá-lo hoje, conectamo-nos diretamente com um capítulo fundamental da história cultural do Brasil, apreciando tanto sua relevância arquitetônica quanto sua contribuição para a formação da identidade pernambucana. Em um país que luta para não esquecer sua memória, esperamos que o Santa Isabel permaneça – resistente, vivo e necessário – como artéria pulsante da cultura que segue reinventando o futuro a partir das lições do passado.

Para a celebração de aniversário, o Santa Isabel recebe no domingo, dia 18 de maio, às 19h, o Grupo Magiluth com o espetáculo Estudo Nº 1: Morte e Vida, uma releitura do poema de João Cabral de Melo Neto. E nesta sexta-feira (16 de maio), às 19h, ocorre o lançamento do livro digital Ponto de Vista: crítica e cena pernambucana, pesquisa minuciosa do jornalista e historiador Leidson Ferraz, que faz uma palestra sobre os primórdios da crítica no Recife.

 

Estudo Nº 1: Morte e Vida

Uma reconfiguração contemporânea do clássico severino

Cena faz alusão à precarização do trabalho, e a Thiago Dias, trabalhador de aplicativo que morreu de exaustão Foto_Vitor Pessoa/ Divulgação

Essa cena do canavial, cruza Michael Jacson com maracatu rural, com Bruno Parmera. Foto_Vitor Pessoa

 

Crises climáticas e migrações são discutidas no espetáculo. Foto_Vitor Pessoa/ Divulgação

Como parte das celebrações de 175 anos, o Teatro de Santa Isabel recebe no domingo, 18 de maio, uma das mais instigantes produções do teatro pernambucano contemporâneo. Estudo Nº 1: Morte e Vida, do Magiluth, sob direção de Luiz Fernando Marques (Lubi) e assistência de Rodrigo Mercadante, propõe uma releitura radical do clássico Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Os ingressos  para o espetáculo são distribuídos na bilheteria do teatro, a partir das 18h.

A dramaturgia expandida torna-se um “manifesto-palestra” que entretece o texto original com narrativas urgentes do presente, preservando a força poética cabralina, amplificando-a nas discussões atuais, evidenciando como as questões de migração, precarização do trabalho e crise climática permanecem dolorosamente atuais.

Podemos pensar sobre episódios trágicos do mundo real, que, embora não estejam diretamente em cena, chegam por associação, como a brutalidade sofrida por Moïse Mugenyi Kabagambe – refugiado congolês no Brasil, assassinado em 2022 no Rio de Janeiro após cobrar salários atrasados. Ou em um dos  episódios centrais da encenação, que reflete a precarização do trabalho e o desprezo pela vida, a história de Thiago Dias – trabalhador nordestino que sucumbiu em 2020 por exaustão após jornadas extenuantes como entregador de aplicativo em São Paulo.

Essas tragédias estabelecem pontes temporais que apontam a persistência das desigualdades sociais, que vem muito antes da publicação de Morte e Vida Severina (1955).

A força do texto cabralino não fica aprisionada em uma redoma de contemplação, mas, ao contrário, é potencializada ao ecoar em narrativas urgentes do presente. Quando os atores alternam entre os versos e intervenções performativas que incorporam narrativas atuais, criam um campo dialógico onde passado e presente se interpenetram, expondo as estruturas de poder e as continuidades históricas da exploração no contexto das novas configurações das ordens mundiais.

A encenação rompe radicalmente com a ilusão teatral ao expor deliberadamente seus mecanismos de produção. Microfones, mesas técnicas à vista, projeções em painéis desnudos – todos estes elementos compõem um dispositivo metateatral que transforma o espetáculo em uma “oficina” visível de criação.

A estrutura espiral da montagem sobrepõe camadas temporais através de projeções que justapõem imagens de arquivo, recortes digitais e colagens visuais. Esta fragmentação sensorial reflete a própria natureza caótica da experiência contemporânea, criando uma malha de significados que desafia interpretações lineares. O título “Estudo” não é casual: carrega a natureza investigativa de um teatro que se propõe como pesquisa contínua e menos como produto acabado.

Um dos aspectos mais provocativos da montagem é seu questionamento da própria figura do “Severino”. Ao utilizar ferramentas de busca digital para expor representações estereotipadas do nordestino, o espetáculo desnaturaliza imagens cristalizadas no imaginário nacional. O personagem insiste em dizer que não é uma entidade fixa para mostrar-se como um conceito em constante movimento, atravessado por muitas vozes e experiências.

 

Primórdios da crítica teatral no Recife

Leidson Ferraz lança livro digital e faz palestra. Foto: Léo Mota. Capas do livro. Design: Claudio Lira.

Uma investigação sem precedentes sobre os primórdios da crítica teatral pernambucana será apresentada ao público nesta sexta-feira (16 de maio), às 19h, no Teatro de Santa Isabel. Fruto de meticuloso trabalho em vários periódicos dos séculos 19 e 20, o livro Ponto de Vista: crítica e cena pernambucana, de Leidson Ferraz, doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, inaugura as celebrações pelos 175 anos da casa de espetáculos. A obra desvenda o universo das primeiras publicações críticas sobre teatro na imprensa recifense, reconstruindo o panorama cultural da época através de documentos raros e análises. O acesso ao evento é gratuito.

Durante a palestra, o pesquisador compartilha curiosidades sobre os embates e polêmicas que marcaram a cena teatral pernambucana, desde os críticos anônimos que usavam pseudônimos como “O Kapla” e “O Sentinela” até a profissionalização da crítica no início do século 20. Entre os destaques da pesquisa está o momento de transição dos gêneros teatrais, quando as operetas e o teatro de revista substituíram o teatro romântico e realista, causando reações intensas como a ocorrida em 1869, quando apresentações de óperas-buffa provocaram tumultos no mesmo ano em que o teatro sofreria um devastador incêndio. A publicação, que contou com incentivo da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB/PE), já está disponível gratuitamente em formato digital no link Livro

 

Entrevista – Romildo Moreira – diretor do Teatro de Santa Isabel

Romildo Moreira. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Aproveitando o momento significativo das comemorações dos 175 anos do Teatro de Santa Isabel, realizamos uma entrevista com Romildo Moreira, atual diretor dessa casa histórica das artes pernambucanas. Com experiência na gestão cultural e conhecimento sobre o legado deste patrimônio, Moreira compartilha reflexões sobre os desafios de preservar e administrar um espaço que testemunhou importantes capítulos da história brasileira desde 1850.

– O Teatro de Santa Isabel é um verdadeiro patrimônio cultural e arquitetônico. Quais aspectos da história e da vocação do teatro o senhor destacaria como fundamentais para sua identidade?

Romildo Moreira – O Teatro Santa Isabel é um patrimônio cultural e arquitetônico, sim. Foi tombado pelo IPHAN em 1949, já ressaltando exatamente esse patrimônio com uma ênfase da cultura local, na cidade do Recife, e patrimônio nacional da arte e da cultura, como depois ele foi eleito a esta condição.

Ele participa dos 14 teatros-monumentos do país e hoje ele é considerado pelo próprio IPHAN como um dos teatros antigos do Brasil, um dos mais bem equipados e com programação permanente.

O tanto que a gente aqui fica recebendo solicitações de pauta o tempo inteiro e já está com a pauta para 2025, por exemplo, lotada até o dia 21 de dezembro. Ou seja, tanto a produção local quanto a produção nacional e até produções internacionais, quando vem para o Nordeste, pensa no Recife e no Teatro de Santa Isabel.

De fato, ele é almejado não só pela produção local, mas, como falei, nacional e internacional.

 – Considerando a importância histórica e a relevância na cena cultural do Recife, como o teatro se posiciona para cumprir seu papel frente aos desafios contemporâneos?

Romildo Moreira – Com relação aos desafios contemporâneos, mesmo o teatro sendo muito antigo, com 175 anos de existência, a gente não faz discriminação de espetáculos contemporâneos, de teatro, dança, circo, ópera etc., desde que não haja nenhum prejuízo físico ou moral para casa, a gente tem todo o prazer em receber essas produções aqui no palco do Teatro Santo Isabel. Isso tem ocorrido frequentemente. Inclusive, a nossa comemoração dos 175 anos do Teatro Santo Isabel é com o Grupo Magiluth, que tem um espetáculo muito contemporâneo, um espetáculo que não tem uma pegada cênica de antigamente, muito pelo contrário, é um espetáculo jovem, atemporal, contemporâneo etc.

Gostaria de entender melhor o que significa “prejuízo físico ou moral para casa”.

Romildo Moreira – Prejuízo físico é que danifique alguma coisa de palco, da plateia, das cadeiras, do gradil que é tombado etc. Então, prejuízo físico seria exatamente danificar algo que caracteriza o patrimônio. E prejuízo moral seria espetáculos de cenas explícitas, de pornografias, de sexo etc.

Só lembrando também que prejuízo moral também seria espetáculos pornográficos. A gente não teria esta condição de recebê-lo pela própria história e relevância do Teatro Santo Isabel.

 O mês de maio reserva uma programação especial para o aniversário do teatro.

Romildo Moreira – Para a celebração dos 175 anos, na programação oficial nossa aqui do Teatro de Santa Isabel, temos o lançamento do livro Ponto de Vista: Crítica e Cena Pernambucana, de Leidson Ferraz,  na sexta-feira, 16/05, (às 19h) e no domingo, 18/05, a apresentação gratuita de Estudo nº1: Morte e Vida, do grupo Magiluth, em comemoração ao aniversário

Quanto à Orquestra Sinfônica do Recife, os concertos (27/05 e 28/05, às 20h) fazem parte da programação mensal. Não está diretamente vinculado ao aniversário do teatro, mas também não deixa de ser uma oportunidade das pessoas estarem aqui nesta semana de comemoração desta data tão importante para um teatro que está permanentemente ativo. Não é verdade?

– O que motivou a escolha dessa programação especial?”

Romildo Moreira – Com relação ao que motivou essa programação que você chama de especial para o aniversário do teatro, é uma coisa muito simples. Primeiro, o lançamento do livro de Leidson Ferraz trata-se de teatro, e nada melhor do que lançar num teatro, como o Teatro de Santa Isabel, porque muita pesquisa ele fez aqui também, no nosso material. E na própria descrição do livro se fala muito no Teatro de Santa Isabel. E quanto ao Grupo Magiluth, a escolha do Grupo Magiluth é porque é um grupo local importantíssimo que faz apresentações aqui esporadicamente por outras questões, por falta de pauta etc., e pela qualidade do grupo, a qualidade dos espetáculos do grupo, inclusive trazendo uma peça baseada em João Cabral, do Melo Neto. Então a pernambucanidade do espetáculo tem tudo a ver também com a pernambucanidade do Teatro de Santa Isabel. Enfim, mas independente dessa coisa bairrista mesmo, é a qualidade artística que o grupo Magiluth tem nos seus espetáculos.

E esta é a razão mais forte que a gente encontra para dizer que este grupo vai entrar nesse aniversário do teatro tranquilamente.

– O teatro possui algum projeto de curadoria específico para contornar questões contemporâneas e potencializar o uso do espaço cultural? Como esse projeto tem influenciado a escolha e a execução dos eventos?”

Romildo Moreira – Bem, não existe uma curadoria para escolhas dos espetáculos a acontecer no Teatro de Santa Isabel. Existe um decreto de número 21-924, de 10 de maio de 2006, que normaliza as pautas que a gente pode oferecer, pode receber aqui. Então, não pode ter excesso de som, som até 95 decibéis, não pode ter abundância de água em cena, não pode ter fogo, não pode ter drone etc., coisas que possam pôr em risco o patrimônio cultural do Teatro de Santa Isabel. Então isso a gente leva em conta quando recebe as propostas de pauta se esse espetáculo pode ser apresentado aqui ou não. Quando não pode ser apresentado aqui, a gente explica o motivo e sugere uma outra casa de espetáculos. Normalmente, a produção local já sabe disso e não traz esse problema para a gente resolver, mas as produções de fora, quando ocorre, a gente explica e eles entendem completamente bem.

Quais são os critérios adotados para escolher as pautas e os eventos executados no teatro ao longo do ano? Há uma linha diretriz definida para a programação?

Gostaria de compreender com mais profundidade como funciona o processo de distribuição de pautas ao longo do ano no Teatro. Poderia descrever, de forma detalhada, o passo a passo desse procedimento? Por exemplo, se uma produtora local tem interesse em reservar uma pauta para maio de 2026, qual seria o período ideal para entrar em contato, e quais os documentos e informações necessários para formalizar a solicitação?

Romildo Moreira – Não há linha definida para a ocupação da pauta, o que há é a não aceitação de eventos artísticos e culturais que não tem perfil para o Teatro de Santa Isabel. Por exemplo: concurso de miss, eventos evangélicos, espetáculo pornográficos…

Se eu, como produtora cultural, precisar de uma pauta, como consigo? Quais os critérios? Não tem critérios?

Romildo Moreira – Se você precisar de uma pauta, é só encaminhar para o nosso e-mail a solicitação de pauta dizendo o que vai ser utilizado nessa pauta, qual é o espetáculo, se é teatro, dança, circo, ópera, como é que ele se porta, mandar fotos, mandar material em geral sobre a peça, para a gente saber o que é etc.

É isso. Se houver alguma impossibilidade de recebê-lo pela data, já é uma coisa óbvia, porque já está ocupado. Ou então porque o espetáculo não se porta dentro do que a gente já falou antes, se é pornográfico, se tem danos físicos ou morais para o teatro.

É isso, não tem outro critério, que a gente não vai fazer censura estética, entendeu?

Há variação também nos valores dos aluguéis e nas condições de contratação nesses casos, ou são uniformes para todos?

Romildo Moreira – O pagamento da pauta do Teatro de Santa Isabel tem uma diferença da produção local para a produção visitante. A produção local paga 10% da bilheteria bruta com o valor mínimo de R$ 2 mil por apresentação. A produção visitante paga 10% da bilheteria bruta com valor mínimo de R$4.000 por cada apresentação. Só isso que difere, é só o valor mesmo, porque a produção local tem esse abatimento de 50% do valor da pauta.

Por fim na questão das pautas, gostaria de saber se existem restrições específicas para espetáculos destinados ao público infantil ou juvenil e como essas particularidades influenciam a distribuição de pautas.

Romildo Moreira – Inclusive, no mês de julho, existe o Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco, da Metro Produções, e o Teatro de Santa Isabel também recebe esse festival. Então, nós temos o maior prazer também de apresentar espetáculo para criança, que é o público do futuro.

– O Teatro de Santa Isabel, com sua longa trajetória, sempre enfrentou desafios de manutenção e sustentabilidade. Quais estratégias e parcerias têm sido implementadas para garantir sua sobrevivência e modernização sem perder sua essência histórica?

Romildo Moreira – Quanto à manutenção e sustentabilidade, existe uma questão bem presente, como o teatro é da Prefeitura do Recife, a Prefeitura, através da Fundação de Cultura e da Secretaria de Cultura, faz a manutenção permanente através de empresas que são licitadas para tal. Então, a gente tem uma empresa que cuida da manutenção do ar-condicionado, outra que cuida da manutenção estrutural, enfim, e por aí vai. São empresas que permanentemente, como por exemplo os elevadores, têm um problema no elevador, então tem a empresa de manutenção do elevador  que vem e conserta na hora e por aí vai. Isso facilita, porque é um órgão público. Se fosse pela bilheteria do teatro, jamais isso ocorreria, porque a gente não teria disponibilidade financeira para tal. Mas, ao contrário, a gente mantém sempre essas questões em dia por conta dessas parcerias que são com a Fundação de Cultura e Secretaria de Cultura para a manutenção de empresas com esta obrigatoriedade.

– Quantos funcionários compõem a equipe que trabalha no teatro e quais têm sido os principais desafios enfrentados na gestão do espaço atualmente?

Romildo Moreira – 49 funcionários

– Qual tem sido o papel do investimento público no fortalecimento e na manutenção do teatro? De que forma esses recursos têm contribuído para a preservação e renovação do espaço?

Romildo Moreira – Reforçando. Acho importante também falar sobre a manutenção do teatro. Todo mês de fevereiro, anualmente, a gente não abre pautas, não abre para atividades artísticas, a gente faz uma manutenção de equipamento, de som, de luz, de toda parte estrutural do teatro, fazendo também alguns reparos de pintura, etc., para manter o teatro sempre bem quisto e bem visto pela sociedade.

– Como o cidadão, de todas as classes sociais, pode ter acesso ao teatro? Existem projetos ou estratégias que promovem a participação popular e a democratização do espaço?

Romildo Moreira – Quando se trata de sociedade, o teatro tem esse cuidado de não ser uma casa distante da população. Por isso que temos muitos espetáculos gratuitos.

A Orquestra Sinfônica do Recife faz quatro concertos aqui no teatro mensalmente, com sessões gratuitas. Além disso, o teatro tem um projeto chamado Santa Isabel em Cena, que tem duas vertentes. A primeira vertente é que, às terças-feiras, a gente recebe uma média de 300 jovens, entre alunos de escolas públicas, escolas privadas e de ONGs que trabalham com essa faixa etária. Essas pessoas vêm aqui para conhecer o teatro e assistem um espetáculo gratuitamente, um espetáculo local.

E a segunda versão desse Santa Isabel em Cena é que acontece aos domingos, uma vez por mês, um espetáculo direcionado mais à terceira idade, que é uma forma também de a gente trazer e manter este público. Na primeira versão é para os novos frequentadores do teatro, com essa juventude, e nessa segunda versão é para a manutenção desse povo que já acostumou vir ao teatro e assistir a um espetáculo, principalmente de música camerística. Enfim, de forma que a gente tem essa preocupação de um público sempre ampliado e renovado nas apresentações do Teatro de Santa Isabel.

Também temos tido o cuidado de negociar com as produções que vêm para cá, para o Teatro de Santa Isabel, de não fazerem preços muito altos, até mesmo porque o pagamento da pauta é muito pequeno, é 10% da bilheteria bruta, de forma que os ingressos aqui não são de preço tão volumosos exatamente para facilitar uma camada mais ampla de pessoas poderem assistir, já que os ingressos não são tão caros.

– Considerando a situação do entorno do teatro, com calçadas em péssimo estado, a presença de moradores de rua e mendicância, há alguma estratégia integrada ou parceria com órgãos públicos para revitalizar a área?

Romildo Moreira – Com relação a essa questão de moradores de rua, quando o teatro fecha, fica invadido, pessoas dormindo aí, a gente não tem como resolver isso aqui. A prefeitura passa toda quarta-feira aqui, oferece abrigo para essas pessoas, umas já foram, outras já tiveram a família inteira abrigada, mas tem gente que não quer. Então, rua é rua, a gente não tem como fazer. Isso não seria com a Secretaria de Cultura nem com a Fundação de Cultura, muito menos com o teatro. Mas a prefeitura, de um modo geral, tem tido uma ação permanente de fazer com que essas pessoas não agridam o espaço etc. Mas é bem complexo em função disso. Tem gente que não quer sair da rua, enfim. Quando chove, principalmente, eles vão para os lugares onde tem abrigo, como tem aqui no Teatro de Santa Isabel, nessa Dantas Barreto, na Guararapes, é o que mais se vê, como se vê também em outras capitais, Rio de Janeiro, São Paulo etc.

– Que mensagem o senhor deixaria para o público e a comunidade?

Romildo Moreira – A mensagem que deixo para o público e o mundo geral é que não temos aqui a preocupação de fazer censura estética com a utilização do teatro de Santa Isabel. Tanto espetáculo, teatro, dança, circo, ópera, música, enfim, temos só a preocupação prevista no decreto, como já falei anteriormente, porque é para a pluralidade de público mesmo.

Enquanto a gente recebe um espetáculo que requer mais um público jovem, o público jovem vem. Quando requer mais um público mais maduro, terceira idade, etc., esse público vem. E é importante saber que, quando eles vêm, eles veem um bom espetáculo aqui quer mais um público mais maduro, terceira idade etc., esse público vem.

E é importante saber que, quando eles vêm, eles veem um bom espetáculo aqui e ficam sempre aguardando novas oportunidades para retornar, porque o Teatro Santa Isabel é a casa do povo do Recife, e o povo do Recife é plural. E essa pluralidade também a gente mantém na programação exatamente para atender todos os desejos e necessidades de uma sociedade tão ampla como é a nossa.

 

 

 

 

 

 

 

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