Arquivo mensais:maio 2013

Gabriela provoca pequenas explosões interiores

Último encontro entre Nelsinho e Luis Antônio

Último encontro entre Luis Antônio e Nelsinho

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

“I hope you don´t mind that I put down in words”

Não só em palavras. Em Luis Antonio – Gabriela, o diretor Nelson Baskerville levou ao palco uma profusão de imagens que vão compondo um quadro caótico. Lembra uma pintura de Pollock e o seu processo de feitura, o ritmo da action painting. Como se o pintor fosse uma extensão da sua arte, com as tintas gotejando, escorrendo, enquanto ele anda descalço pelo próprio quadro. É esse ritmo alucinante de work in progress, de camadas que vão se sobrepondo e de uma obra que não tem as arestas de “bem-acabada”, que está na montagem da Cia Munguzá de Teatro, apresentada em duas sessões dentro do festival Palco Giratório.

Não foi a primeira vez que o grupo esteve na cidade. Em 2011, Valmir Santos, que era curador do festival Recife do Teatro Nacional, trouxe o repertório do coletivo; e Luis Antonio – Gabriela foi apresentada no Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu. Definitivamente, não era o melhor espaço para a peça. Apesar de obviamente ocuparem toda a extensão daquele palco italiano enorme e do final ter tido um efeito lindo, com a vista da esplanada do parque, a montagem ficou distante do público. No Santa Isabel a encenação já me pareceu completamente diferente. E despertou uma multiplicidade de sentimentos difíceis de serem traduzidos, digeridos; é como algo que vai causando pequenas explosões interiores.

Para realizar a montagem, Baskerville revirou o baú das próprias memórias, de uma família desajustada, do falecimento da mãe no parto, das brigas entre o pai e a madrasta e, o mais importante, das histórias com um dos irmãos, oito anos mais velho, que desde cedo enfrentou problemas por causa da sua sexualidade e mais tarde se tornaria Gabriela.

 Verônica Gentilin que assina a dramaturgia e faz a figura do drietor

Verônica Gentilin assina a dramaturgia e interpreta a figura do diretor

Os elementos do jogo proposto pelo diretor ficam muito claros ao espectador. Os atores começam a peça se apresentando e dizendo quais personagens irão interpretar e como eles poderão ser identificados, seja por uma peruca ou por um lençol. E a ficção vai se misturando à realidade, já que a história é verídica, mas aqui contada segundo os recortes de alguns familiares e, principalmente, de Baskerville. Há inclusive uma opção, talvez uma necessidade, muito gritante na montagem de que a figura de Nelson esteja em cena. A imagem dele é projetada no telão e no meio da encenação há mais uma ruptura na estrutura dramática, quando o vídeo de uma reunião do diretor com os atores é projetado.

Seguindo ao pé da letra a cartilha do teatro contemporâneo, o discurso cênico é construído num território completamente híbrido, que traz performance, música, cinema, artes plásticas. Uma narrativa que é muito imagética e tocante – com resoluções simples, cenas de grande força e densidade são executadas. E isso faz com que o choque, a identificação, se dê não pela maneira como estão sendo mostradas em si, já que são recobertas por um cuidado artístico grande, mas pelo que realmente está sendo contado.

São imagens dispersas no palco, mas há a construção de um sentido muito claro; o que se quer, apesar do caos e da multiplicidade de signos e elementos, é contar uma história. Neste caminho, a qualidade dos atores é fundamental – o elenco mostra uma sintonia muito grande em cena, uma cumplicidade e se entrega com verdade ao jogo. Para contar uma história que se propaga, que não acaba quando as luzes apagam. Um pedido de desculpas que encontra eco e reverbera de diferentes maneiras não só no palco, mas na plateia.

Luis Antônio - Gabriela participa do circuito Palco Giratório nacional

Luis Antônio – Gabriela participa do circuito Palco Giratório nacional

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De guarda-chuvas e poesia no Centro da cidade

{pingos&pigmentos} , intervenção urbana realizada no Centro do Recife. Foto: Pollyanna Diniz

{pingos&pigmentos} , intervenção urbana realizada no Centro do Recife. Foto: Pollyanna Diniz

Pingos & Pigmentos

Pingos & Pigmentos

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

O filme O som ao redor , de Kleber Mendonça, foi a primeira imagem que me veio à memória quando atravessei a ponte Maurício de Nassau, passei pela Pracinha do Diario e pela Avenida Dantas Barreto, até chegar ao Pátio do Carmo, no Centro do Recife. As paisagens pareciam imagens estouradas e saturadas pelo sol do quase meio-dia – o céu de um azul forte; e me dei conta de que há muito não olhava o céu. E não ouvia o som ao redor – principalmente no Centro da cidade. A música do camelô, o cantor de música gospel que insistia em dizer que os CD´s e DVD´s estavam acabando, o vendedor da barraca de fruta. Na igreja, mesmo com o calor agoniante, os fieis cantavam e ouviam as palavras do padre.

Foi em meio a esse cenário que o Coletivo Construções Compartilhadas, de Salvador, propôs a intervenção urbana chamada {pingos&pigmentos}. De repente, guarda-chuvas rosa, cerca de 30 deles (eles fizeram uma oficina na cidade e a partir dela reuniram os performers) começaram a aparecer naquela paisagem. Primeiro de maneira quase displicente, espalhada, imperceptíveis aos olhares dos afazeres cotidianos. Em questão de instantes, a imagem ganha força. Aqueles que carregam os guarda-chuvas ficam lado a lado, interagem, se complementam.

Não tenho a menor intenção de querer dar conta das possibilidades da performance – neste caso, da intervenção urbana; “o que está em jogo nesse caso é o sentido, e não as formas das ações corporais; ou, em termos linguísticos, seus significados, não seus significantes. Expressão e conteúdo, categorias básicas de compreensão das performances, resultam estreitas para abarcar o vasto e desconhecido campo das manifestações corporais”, explica Jorge Glusberg no seu livro A arte da performance. “O que interessa primordialmente numa performance é o processo de trabalho, sua sequência, seus fatores constitutivos e sua relação com o produto artístico: tudo isso se fundindo numa manifestação final”, diz noutro trecho do livro.

{pingos&pigmentos} modificou não só a paisagem urbana – óbvio por demais que fosse assim. Construiu imagens plasticamente belas, principalmente na interação com os personagens da vida real e com a arquitetura do Centro da cidade. Noutra chave, foi interessante notar o quanto aquela aparição de guardas-chuvas alterou a rotação cotidiana daquele espaço. O espectador foi trazido para o tempo dos artistas, como se, de alguma forma, aqueles minutos não estivessem passando, como se a simples autopermissão para notar que havia algo de diferente já trouxesse consequências. E realmente traz. Despertar o olhar, a curiosidade. Fazer respirar e olhar ao redor. E nem vamos discutir o quanto isso altera o conceito de arte que as pessoas têm, passando pelas artes plásticas e por Duchamp.

Geralmente a primeira reação dos espectadores é querer saber porque aquelas pessoas estão com aqueles guarda-chuvas; porque andam em fila, param daquele jeito, sentam no chão, sobem na torre da igreja. Na sociedade do pensamento cartesiano, embora já tão fragmentado, as explicações contam muito. Seu João, mais conhecido como “Homem da cobra”, vende pomadas para aliviar a dor há mais de 20 naquele local. Quando puxei assunto, queria logo saber o que era aquela filmagem (ah, sim, ainda há uma relação complicada que se estabelece, já que equipes de imagens e fotografias sempre acompanham as performances). Assim como as mulheres da lojinha de produtos para cabelo e os dois homens que vendiam comida e disseram que por ali sempre acontecia alguma coisa estranha.

Também conversei com uma senhora que participava da performance. Eu era alguém que estava passando e tinha achado interessante, bonito, resolvi fotografar. “Ah, minha filha! Isso é para trazer poesia para o dia das pessoas. Essa não é a função de uma atriz?”, perguntou. Realmente não sei responder se essa é a função só da atriz. Deveria haver mais gente no mundo para nos trazer poesia. Se não poesia, ao menos um respiro, uma sombra. O aconchego de um guarda-chuva cor de rosa no sol do meio-dia.

*Texto extensivo ao projeto editorial do jornal Ponte Giratória, que circula impresso durante o 7º Festival Palco Giratório Recife, organizado pelo SESC PE. Outras informações no hotsite do festival.

Pingos & Pigmentos

Pingos & Pigmentos

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Imperdível Luis Antônio – Gabriela

Luis Antonio - Gabriela faz mais uma apresentação neste domingo, às 20h, no Teatro de Santa Isabel. Foto: Ivana Moura

Luis Antonio – Gabriela terá mais uma sessão neste domingo, às 20h, no Santa Isabel. Fotos: Ivana Moura

Aprendizado de estrela

Aprendizado de estrela

Reencontro com a irmã em Bilbao, na Espanha

Reencontro com a irmã em Bilbao, na Espanha

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

Muito já se falou da coragem do diretor Nelson Baskerville de expor parte da história de sua família e de sua apaixonada e traumática relação com seu irmão mais velho Luis Antônio (que se transformou em Gabriela). Como um documentário cênico, a narrativa apresenta conflitos dessa família paulista, muitos deles provocados pela intolerância do pai de ter um filho com diferente orientação sexual. (Parênteses: Mas isso, lá nas décadas de 1960/1970 não era assim tão fácil de ser discutido. O menino Luis Antônio apanhava para ser curado de sua homossexualidade). Como um espetáculo ousado, esse mosaico não linear expõe performances simultâneas de tirar o fôlego, num vai e vem eletrizante.

Precisaria de mais de dois olhos para acompanhar cada detalhe que se passa no palco. Essa montagem é diferente de tudo que já vi em seu conjunto. E tem uma verdade cênica seguindo as pegadas de Bertold Brecht. Os elementos juntos na encenação, naquela disposição, provocam incômodo, muito incômodo, comovem e inquietam, perturbam, tiram do eixo.

A história de Baskerville é forte. E por si só já é grande. Mas essa grandeza aumenta quando pensamos nos estilhaços que chegam a cada espectador, com mundo particular, não tão diferente, cheio de covardia e preconceito, de regras estúpidas de normalidades e anormalidades.

O espetáculo Luis Antônio – Gabriela toca nas fragilidades humanas, no medo e no amor que queremos sempre e nem sempre sabemos como dar.

Um espetáculo poético e cruel

Um espetáculo poético e cruel e cheio de humor

Nada é linear. O resumo pode ser assim: Luis Antônio nasceu em Santos/SP, em 1953. Primogênito de uma família de seis filhos. Viúvo, o pai se casa novamente, com uma mulher que tem três garotas. No Brasil, a ditadura militar fazia barbaridades com as pessoas, desde mortes e desaparecimentos até torturas. A tortura também ocorre na casa e Luis Antônio é quem mais sofre com os espancamentos do pai. O irmão Bolinho foi abusado por Bolota na infância. O clima na casa é sempre tenso. Quando o personagem que dá nome à peça resolve ir embora, gera um quase inconfessável alívio por parte de todos.

Ganhou as ruas. Prostituiu-se. Aplicou silicone. Já travestido de Gabriela, segue para Bilbao, na Espanha. Faz show. Vira estrela. Vítima da Aids e dependente de várias drogas, Gabriela morre em 2006, aos 53 anos.

Espetáculo da Companhia Munguzá de Teatro

Espetáculo da Companhia Munguzá de Teatro

Foram muitos anos, 20 talvez mais, para esse acerto de contas afetivo de Bolinho com Bolota. O protagonista é defendido com maestria pelo ator Marcos Felipe, e o irmão da figura central, por Verônica Gentilin. Ela inclusive assina o texto da montagem da Cia. Mungunzá de Teatro com Baskerville. Além deles, estão em cena Lucas Beda, Sandra Modesto, Day Porto e Virgínia Iglesias formando um grande time. Esse espírito coletivo de grupo permite uma confiabilidade, uma solidariedade entre seus integrantes, que faz a diferença.

A entrega é tão grande que os atores aprenderam a tocar instrumentos para a executar a trilha de Gustavo Sarzi. O elenco hipnotiza a plateia com sua atuação e manipula efeitos simples e eficazes, muitos feitos às vistas do público, como acender e apagar de lâmpadas, a cobertura dessas luzes com panos vermelhos, a filmagem e a troca de roupas.

O cenário aparentemente é caótico, são muitos objetos que apontam para significados e ressignificações. Um quebra-cabeça intrigante. No telão, além do que ocorre no palco são projetados imagens da infância e documentos da família. E tem até uma reunião entre o grupo teatral em que só aparece o diretor.

As telas do artista plástico Thiago Hattner “caem” do teto, na cena em que Gabriela e a irmã  visitam o Museu Guggenheim de Bilbao.

 É uma das muitas pequenas surpresas do espetáculo.

A barra era pesada naqueles anos e Luis Antônio pagou um preço alto por exercer sua liberdade, com a solidão, a distância (talvez a palavra mais certa seja rejeição) da família.

Virgínia Iglesias, atriz e produtora da Cia Mungunzá de Teatro

Virgínia Iglesias, atriz e produtora da Cia Mungunzá de Teatro

O mundo anda meio virado. É uma contradição. A palavra diversidade é falada com orgulho, os temas já não são tabus (no discurso), mas assumir a homossexualidade e exigir direitos de cidadão são batalhas ainda grandes, com o avanço de intolerância e de fundamentalismos de todas as ordens.

Gabriela morre. Mas isso não é motivo para autopiedade. A ironia, o sarcasmo, a crueldade, o humor estão lá, quando o protagonista diz “No Céu é tudo alma” e convida os habitantes do paraíso a praticar sexo.

O elenco canta Your Song do Elton John no final fechando o ritual de nascimento, vida e morte. Um espetáculo do poético ao cruel, com as erupções de vulcões pela estrada da existência.

Ator Marcos Felipe faz Luis Antônio - Gabriela

Ator Marcos Felipe faz Luis Antônio – Gabriela

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Alaíde é um travesti na dança de Otávio Bastos

Coreografia O Alfaiate de Livros, com Otávio Bastos. Fotos: Ivana Moura

Coreografia O Alfaiate de Livros, com Otávio Bastos. Fotos: Ivana Moura

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

O bailarino e coreógrafo pernambucano Otávio Bastos nasceu prematuro. Depois do ventre da mãe, ele foi alimentado na incubadora. A tecnologia no início da vida. E também agora. A máquina filmadora faz a mediação na criação do seu trabalho. Bastos assina a direção, interpretação e coreografia de duas peças que apresentou ontem no Palco Giratório, no Teatro Capiba: O Alfaiate de Livros e Vestido de Noiva.

Otávio Bastos aprendeu primeiro o frevo. Nascimento do Passo foi o seu mestre. Foi estudar dança contemporânea em Nova York. Conheceu uma chinesa, com quem fez uma parceria: um dueto, uma pesquisa de linguagem. Apresentou o resultado em São Paulo, onde morou por um tempo. E ainda guardou um gestual, passos e movimentos da cultura oriental. De volta ao Recife, ele mostrou o seu espetáculo O fio das miçangas, o entrelaçamento que faz entre a arte popular brasileira e a cultura urbana contemporânea.

Nas suas atuações há lugar para performances, vídeos, instalações, teatro e dança. Ele é rápido para criar. Levou um mês para erguer O Alfaiate de Livros e dois para Vestido de Noiva.

Peça Vestido de Noiva, em que Alaíde é um travesti

Peça Vestido de Noiva, em que Alaíde é um travesti

Cada apresentação dos espetáculos é única. E essa é uma das características da arte de Bastos. Ele opera o improviso, a partir da marcação de luz e som, dando total liberdade para costurar outros movimentos a cada sessão.

Na coreografia O Alfaiate de Livros o artista foi buscar inspiração nas memórias afetivas da infância e adolescência. Filho de bibliotecário encadernador de livros, o menino cresceu entre palavras e letras. E elas aparecem projetadas. Às vezes invadem a pele do bailarino ou seguem um movimento arredondado, na vídeo-cenografia assinada por Ormuzd Alves e iluminação de Cris Souto.

Em Vestido de Noiva, montado ano passado para participar dos eventos em homenagem ao centenário de Nelson Rodrigues, Otávio Bastos toma suas liberdades poéticas. Com linóleo branco e fundo idem, coberto por um tecido de renda, ele buscou o pseudônimo de Nelson, Suzana Flag, como ponto de referência para o mergulho.

O artista fez o recorte dos planos da mulher que foi atropelada e que desintegrada, aparece em três planos para o público: realidade, alucinação e memória. No caso de Bastos, ele caminha por labirintos de entre-lugar. Entre popular e contemporâneo, entre homem e mulher. Sua personagem é um travesti que foi atropelado e vivencia essas tensões entre a vida e a morte.

Os três momentos ganham pulsações diferentes. Da queda ao desaparecimento. A trilha sonora tem Erik Satie e GMZ (domínio público). A iluminação é de O Poste Soluções Luminosas. O figurino das duas peças é de Agrinez Diana.

São muito interessantes as propostas de Otávio Bastos. Sua força para descobrir e experimentar.

Coreógrafo e bailarino pesquisa cruzamentos entre as manifestações populares brasileiras, tecnologia e dança contemporânea

Bailarino pesquisa cruzamentos entre as manifestações populares, tecnologia e dança contemporânea

 

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