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Corpo estranho, lírico e político
Crítica do espetáculo E.L.A

E.L.A Foto: Guilherme Silva

E.L.A é primeiro solo da atriz cearense Jéssica Teixeira. Tem pouco a ver com o Ela (Her)¸ do diretor e roteirista Spike Jonze, que explora a relação de um homem que se apaixona pelo sistema operacional de uma máquina. O filme expõe a solidão contemporânea e novas configurações de relacionamento amoroso. Se pensarmos em esgotamento de modelos há sempre fios de conexão nas investigações artísticas atuais. Cito a obra cinematográfica por conta do nome da peça. O título do espetáculo remete à abreviatura de uma doença: Esclerose Lateral Amiotrófica – ELA.

Segundo informações em sites de saúde, trata-se da degeneração progressiva dos neurônios motores no cérebro e na medula espinhal. Isso quer dizer que esses neurônios não conseguem transmitir os impulsos nervosos de forma adequada. Essa degeneração provoca atrofia muscular, seguida de fraqueza muscular crescente. Também designada de Lou Gehrig, calcula-se que, no Brasil, 10 mil pessoas têm a doença.

Num mundo tão preconceituoso com os que não estão dentro de uma bolha hegemônica, vale destacar que Ela não atinge o raciocínio intelectual, a visão, a audição, o paladar, o olfato e o tato. E que, em grande parte dos casos, a esclerose lateral amiotrófica não afeta as funções sexual, intestinal e vesical.

O astrofísico britânico Stephen Hawking foi diagnosticado com a doença quando tinha 21 anos de idade. Mesmo sem poder movimentar o corpo ou falar durante a maior parte de sua vida, o cientista avançou em pesquisas na Física, com destaque para os trabalhos sobre as origens e estrutura do Universo, fundamentais para entender o papel dos buracos negros.

Atriz Jessica Teixeira. Foto: Carol Veras

Eu me tornei um ser indiscernível. Não pertenço a mim mesma”, registra uma fala do espetáculo. “Não queremos ver coisa alguma. Não queremos que as coisas nos vejam. Como Narciso, que recusa o espelho. Como Salomé, que decepa a própria cabeça”.

Ao tratar de assuntos relacionados diretamente ao corpo – beleza, saúde, política, feminilidade -, a artista envereda pela dinâmica da exclusão capitalista. É perversa e calculada essa eliminação de corpos que tem algumas miras prioritárias .

“Pudesse ser apenas um enigma. Mas não. O corpo faz problema. O corpo dá trabalho. Pode ser muitos. Pode ser, inclusive, o que não queremos. O corpo será sempre o que ele quiser? É social. É político. É tecnológico. É inconsciente. Pensamento. Desejo. Invisível. Invasor. O corpo se despedaça. É estrutura. É movimento. Mas, sobretudo, é estranho. Eu sou o outro e a outra. Teimo e re-existo. Ele se degenera e E.L.A se faz impossível”.

Texto de apresentação do espetáculo

Ao carregar episódios biográficos, a atriz traça em paralelo uma linha histórica desde o corpo da Grécia, encontrando as guerras mundiais e as ações mais recentes.

Jéssica fala sobre beleza, outras formas de beleza, jeitos de estar no mundo. Faz do seu corpo um ato político. Subverte lógicas. Convoca o protagonismo para si. Esquadrinha a ditadura do corpo bonito e funcional, aquele que não se encaixasse nessa régua seria exterminado.

A artista desafia a regra e assume sua diferença. A beleza da sua diferença exposta em cena para deslocar olhares contaminados. Jéssica convoca um olhar lírico para um lugar ético, onde os corpos importam em suas singularidades, sem hierarquizações de lutas contra as opressões.

O espetáculo não apresenta propriamente uma história. São fragmentos trançados por uma lógica de luta, em várias angulações e miragens. Com a utilização de vídeos e imagens em foto, a atriz cita, por exemplo, Josef Mengele – oficial alemão da Schutzstaffel (SS) e médico no campo de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial – que liderou os procedimentos científicos em pessoas que aparentassem algum caractere de deficiência física ou psíquica, adotando o método da eutanásia.

Em seguida, projeta robôs com camisas da seleção canarinha a defender nas ruas o indefensável. Triste Brasil.

Sabemos que as técnicas de extermínio foram sofisticadas e até mesmo legalizadas com manobras do Judiciário, Legislativo e Executivo. Os golpes na economia – previdência, direitos trabalhistas, direitos à saúde; redução de acesso a educação,cultura, futuro, comprometimento das reservas naturais e atentados contra o meio ambiente são mecanismos de aniquilamento de corpos indesejados.

 

E.L.A . Foto: Carol Veras

No escuro, uma voz com ligeiro sotaque cearense mergulha na subjetividade de autoimagem e autocrítica para construir uma narrativa. A voz quer que entendamos o corpo, suas dores, limites e prazeres. Que haja um diálogo honesto com outros corpos.

São alguns minutos. De repente, o espetáculo dirigido por Diego Landin, explode num clarão, um branco chocante que de imediato irrita e machuca os olhos de quem vê. Esse choque gera uma sensação de desconforto. Jéssica também sente desconforto quando seu corpo singular, estranho, com o tronco reduzido – esse registro diferente do convencional – chega antes dela para dizer um oi.

Entremeando dados sobre uma possível história dos impositores da beleza, a atriz assume pose de diva pop, desafiando as convenções do olhar atua como ciborgue e vai desconstruindo uma estética. A protagonista acende que é o mesmo patamar de opressão de que são vítimas mulheres, nordestinos, pretos, indígenas, quilombolas, indivíduos com algum tipo de deficiência, periféricos e LGBTs.

O teatro é uma máquina muito poderosa. E.L.A tem um figurino-síntese da peça, criativo, delicado e agressivo, de Yuri Yamamoto, do Grupo Bagaceira de Teatro, que também assina a direção de arte. A iluminação, de Fábio Oliveira, com videomapping, contracena com a atriz. E os músicos Fernando Catatau e Artur Guidugli estão na composição da música Dancing Barefoot.

A montagem mescla momentos de ataque combativos e outros mais líricos, de uma história geral do corpo, às especificidades da trajetória de Jéssica. A artista é muito generosa ao desenhar como os poderosos elegem seus alvos de destruição, das ameaças de manda-chuvas e políticos à saúde do povo.

Com arte, energia, vigor Jéssica celebra a vida. É testemunha de que a vida é extraordinária em muitos aspectos. E comenta quão valioso é estar presente, com a possibilidade de se reinventar e, com muita criatividade, ativar os sentidos.

Ficha Técnica
Elenco: Jéssica Teixeira
Direção: Diego Landin
Diretor de arte: Yuri Yamamoto
Diretor de videomapping: Pedro Henrique
Consultora dramatúrgica: Maria Vitória
Figurinista: Yuri Yamamoto e Isac Bento
Coreógrafa: Andréia Pires
Vocal coach: Priscila Ribeiro
Escultor: Kazane
Trilha Sonora: Diego Landin (Dancing Barefoot por Fernando Catatau e Artur Guidugli)
Cenotécnico: Marsuelo Sales
Iluminador: Fábio Oliveira
Videoclipe: Gustavo Portela
Música do videoclipe: Saúde Mecânica de Edgar
Textos: Jéssica Teixeira, Vera Carvalho e fragmentos de Eliane Robert Moraes e Paul Beatriz Preciado
Produção: Jéssica Teixeira
Realização: Catástrofe Produções

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Igual a carinho de “vó”

Interior, emocionante espetáculo do grupo Bagaceira de Teatro. Fotos:  Carol Veras

Interior, emocionante espetáculo do grupo Bagaceira de Teatro. Fotos: Carol Veras

X Festival de Teatro de Fortaleza

Cartola, para mim, sempre teve gosto de carinho de “vó”. Para quem não sabe, cartola é uma sobremesa feita com banana, manteiga, queijo do sertão (chamado também de queijo manteiga), açúcar cristal e canela. É Patrimônio Cultural Imaterial do Estado de Pernambuco (Lei 13.751, de abril de 2009). Pesquisadores atestam que a iguaria é originária das casas-grandes dos engenhos e que sua receita é fruto da “mistura de ingredientes, técnicas e hábitos culturais dos colonizadores portugueses, dos indígenas e dos escravos africanos”. O gosto da cartola e a sensação de conforto invadiram mente e corpo durante a apresentação do espetáculo Interior, do grupo Bagaceira. A ligação foi imediata quando o elenco distribuiu pequenos pedaços de bolo para a plateia.

O mais recente trabalho do bando cearense tem tudo a ver a com as melhores lembranças do convívio com avós, essas criaturas sempre amorosas. E eles usam chaves delicadas para incluir o público nessa empreitada.

A exibição de Interior, dentro da programação do X Festival de Teatro de Fortaleza, ocorreu no Sesc Senac Iracema, ontem. Hoje tem outra sessão no mesmo local, às 20h. O espaço de pé direito altíssimo se presta à mudança na configuração da plateia – a exemplo do que ocorria com o Teatro Armazém (ai que saudade desse espaço, Paula de Renor) ou como funciona o Teatro Hermilo Borba Filho, ambos no Recife.

Proximidade entre atores e público, como uma conversa ao pé de ouvido

Proximidade entre atores e público, como uma conversa ao pé de ouvido

A produção do Bagaceira utiliza três arquibancadas. Duas frente a frente, com uma distância de cerca de um metro entre elas. A terceira fica um pouco mais longe, transversal com as outras duas. A proximidade do elenco com o público faz parte da proposta de encenação e do “encontro”. O cenário borra limites entre ator e espectador, assim como ocorreu em A mão na face (que lança luz sobre duas criaturas da noite, uma cantora de cabaré e um travesti, que se deparam no camarim. Uma saindo de cena e outra se preparando para estrear; em que a plateia fica bem juntinho da cena). Mas, se A mão na face é bem urbano, Interior tem traços, digamos, bem rurais. O diretor coloca a plateia ainda mais perto em Interior, criando um clima de conversa de pé do ouvido, rapsódias com ternura e canto.

Em cena duas velhinhas, já mortas, que se recusam a serem enterradas. Uma é avó, a outra é neta. Primeiro chega uma e se aboleta no centro de uma arquibancada. Distribui pedaços de bolo e passa a falar de sua vitalidade, como escapou de vários sepultamentos. Sua netinha aparece depois. A segunda chega e se instala no outro poleiro, no meio da plateia. A memória partilhada entre elas é narrada de forma delicada, engraçada, com uma pertinência na nostalgia. São conversas cheias de calor humano e as atrizes compartilham esses pertencimentos para a plateia. Os diálogos estão recheados de dialeto cotidiano de um Brasil profundo (mas aqui as referências específicas são do Ceará).

São figuras centenárias, que andam curvadas pelo peso do tempo. Carregam histórias imemoriais, que saem desfiando. Utilizam máscaras para marcar os rostos encarquilhados.

Máscaras feitas de camisetas retorcidas

Máscaras feitas de camisetas retorcidas

Em um momento da peça, uma das personagens pede à plateia para escrever o nome e a cidade onde nasceu a avó. Ela explica que é para dobrar o papel e colocar numa pequena caixa. O espetáculo corre e a caixinha também. Lá para as tantas ela recupera a caixa e vai extrair as memórias do público. Já acompanhei outros espetáculos em que a assistência era convocada a participar com suas lembranças. É sempre muito precioso.

Comunhão com as emoções do público

Comunhão com as emoções do público

A pesquisa para erguer o espetáculo levou mais de um ano, de dois que conseguiram patrocínio da Petrobras para o projeto. Nessa incursão pelas cidades de dentro do Ceará eles colheram subsídios, elementos materiais e imateriais para construção da cena. As máscaras que envelhecem os intérpretes foram criadas a partir da caracterização do reisado, dos caretas e dos tremembés de Itarema (237 km de Fortaleza). Agricultores idosos inventam as alegorias e traçam figurinos a partir de camisas, coco e borracha.

De Beberibe (83,3 Km de Fortaleza) o grupo tomou emprestado duas músicas do grupo Acasos das Dramistas. Em Tauá (344,7 Km de Fortaleza) e Icó (358,1 Km de Fortaleza), a trupe fez intercâmbio com companhias teatrais. O ator francês Maurice Durozier (do Théâtre du Soleil) indicou a direção da figura da avó e as mais afetuosas perspectivas.

As duas velhas são defendidas em atuações excelentes das atrizes Tatiana Amorim e Samya de Lavor. Rafael Martins e Rogério Mesquita trabalham no apoio e na contrarregragem, assegurando o clima.

Atores Rogério Mesquita, Tatiana Amorim, Samya de Lavor e Rafael Martins. Foto: Diego Souza.

Atores Rogério Mesquita, Tatiana Amorim, Samya de Lavor e Rafael Martins. Foto: Diego Souza.

O texto de Rafael Martins e a direção de Yuri Yamamoto caminham pelas veredas da delicadeza. A aparência do trabalho é de muita simplicidade. Mas a força emotiva revela um processo sofisticado, em que o elenco recorre a fotografias antigas e canções que envolvem a plateia.

Yuri Yamamoto constrói categorias de significados. A primeira vista estão a poesia da velhice, e o susto diante da morte. E na plataforma das centenárias senhoras, cheias de humor que insistem em não sucumbir. Em torno disso há a película do tempo, um tempo estendido e ameno.

Mas existem outras camadas que podem ser apontadas. Uma delas é bizurada pelas personagens, que já foram artistas, vem de famílias de artistas e mostram isso através de fotografias antigas. Nesse jogo cênico, também entram as questões da arte que brota em qualquer lugar e resiste longe dos incentivos oficiais.

A arte pode brotar em qualquer parte

A arte pode brotar em qualquer parte

Um espetáculo singelo, tocante, suas personagens de velhas com suas rabecas e seus bolos de banana, que carregam sacos plásticos e brincam com a ignorância com relação a tecnologia, que implicam uma com a outra e fazem divertir com tanto sentimento bom.

SERVIÇO
Interior, espetáculo do Grupo Bagaceira de Teatro
Texto: Rafael Martins
Direção: Yuri Yamamoto
Elenco: Samya de Lavor, Tatiana Amorim, Rogério Mesquita e Rafael Martins

Quando: Hoje, às 20h, no SESC Senac Iracema (Rua Bóris, 90C, Praia de Iracema.
Fone: 85 3252-2215)
Quanto: Grátis
Outras informações: Facebook.com/Grupo Bagaceira de Teatro

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O que vi do FRTN – Parte I

Abertura do 15º Festival Recife do Teatro Nacional. Fotos: Victor Jucá/Divulgação e Pollyanna Diniz

A abertura

Não foi nada fácil colocar o Festival Recife do Teatro Nacional nas ruas este ano. Reconhecidamente foi um empenho pessoal de André Brasileiro, ator, diretor, produtor e também presidente da Fundação de Cultura Cidade do Recife, de Simone Figueiredo, atriz e produtora antes de tudo, e secretária de Cultura do Recife, e da equipe envolvida na produção. As dificuldades estavam estampadas – eles assumiram os cargos já no segundo trimestre do ano; a classe estava desmotivada, com raiva até, principalmente por conta dos descasos com os pagamentos de cachês; os teatros com muitos problemas de equipamentos. Um prefeito ‘muito difícil’, para ser gentil, que não teve nem a oportunidade de disputar a reeleição.

Então diante de todo esse cenário, fazer um festival que homenageia Marcus Siqueira (1940-1981), como disse Roberto Lúcio, gerente operacional de artes cênicas da Prefeitura do Recife, no catálogo da mostra, é um ato político. “(…) um ator e diretor teatral marcante, combativo, questionador, amante e defensor do teatro de grupo e do aspecto pedagógico da arte do teatro”.

É preciso mesmo contextualizar para entender a emoção de Simone Figueiredo na abertura do festival, no palco do teatro de Santa Isabel, casa que ela já dirigiu. Para entender o porquê da importância ainda maior da celebração, da reunião, de lotar o Santa Isabel logo na abertura. De ver as pessoas rindo e chorando. Vivendo o teatro.

Gonzagão – A lenda

Talvez tudo tenha a sua hora. E foram 15 anos de espera até que o diretor e dramaturgo pernambucano João Falcão pudesse participar do Festival Recife do Teatro Nacional. Ele disse que sentia uma pontinha de inveja dos amigos que diziam que tinham participado do festival, que iam participar do festival. Como é mesmo difícil santo de casa fazer milagre! No teatro então…santo de casa geralmente precisa se benzer bem muito! E foi lindo ver um Santa Isabel lotado aplaudindo João, em suspenso depois de uma apresentação que tomou os corpos e as emoções por inteiro. (Na realidade, foram duas sessões; como o grupo ainda está em cartaz no Rio, eles voltaram ainda na madrugada para apresentar o espetáculo lá no dia seguinte).

Gonzagão – A lenda tem o espírito da celebração, da homenagem. Como bem disse Ivana Moura, não há opções pelo risco. O caminho é muito estruturado, a partir das músicas, para que mesmo que você não tenha nenhuma relação com o mito Luiz Gonzaga, seja alcançado de alguma forma. Imagina então apresentar esse espetáculo aqui! São cerca de 50 músicas que vão alinhavando a tentativa de contar a história do Rei do Baião. Mas não há uma preocupação histórica, em seguir fatos cronológicos, ou ser verdadeiramente fiel. Fica muito claro desde o início; até pela opção dramatúrgica: é uma trupe teatral quem remonta a história de Gonzagão. Em várias cenas há um jogo rápido, eletrizante; é até difícil acompanhar, respirar, compreender todo o diálogo. A fala, o gesto, a música, a troca de papeis.

Gonzagão – A lenda. Foto: Pollyanna Diniz

É um espetáculo que se constrói a partir da força do grupo; não teria o mesmo impacto se as escolhas fossem pelos talentos individuais dos atores. E nisso João Falcão é craque, em formar um elenco que se complementa, que não briga em cena, que se acrescenta. Mas tenho que dizer quão foi bom ver Eduardo Rios, do Quadro de Cena, se superando, com um timing perfeito, levando a plateia junto com as suas histórias; e também conhecer o trabalho de outro pernambucano, petrolinense, Paulo de Melo. E, em se tratando de um musical, se há que se destacar alguém é a única mulher no elenco: que voz linda e forte tem Laila Garin.

Para completar, os figurinos de Kika Lopes são lindos, bem cuidados, um quê de pop-hippie-chic; e a iluminação de Renato Machado complementa a cena – muito bem marcada, entradas, saídas, trocas de personagens, tiradas e piadinhas, tudo no momento certo.

Uma montagem que começa sem muitas pretensões e que vai aos pouquinhos ganhando forma, invadindo qualquer espaço que o espectador, solícito ou não, tenha deixado entreaberto.

### Para quem perguntou, João Falcão disse que tem muita vontade de fazer uma temporada aqui com esse espetáculo; mas não há previsão. O grupo ainda está em cartaz no Rio e próximo ano vai para São Paulo.

Absurdo

Alguns espetáculos me lembram muito a minha mãe. Preciso dizer que embora ela goste de teatro, gosta mais de televisão porque acha que consegue perceber a expressão dos atores em todos os detalhes. Odeia espetáculo ‘cabeçudo’. Fiquei pensando que teria levado a surra que não tomei quando criança se tivesse feito minha mãe ir ao teatro ver Absurdo, da Cia Atores de Laura. Imaginei ela perguntando: “Pollyanna, o que é isso? Que história mais sem pé nem cabeça é essa?”. “Satisfeita, Yolanda?”. O espírito é esse!

Absurdo, da Cia Atores de Laura, do Rio de Janeiro. Foto: Pollyanna Diniz

Os Atores de Laura apostam nas ideias do Teatro do Absurdo; uma cena que seria cotidiana, mas descolada do real, as situações non sense, os diálogos aparentemente sem sentido. Talvez seja a dramaturgia que nem sempre consegue nos fazer caminhar pelo ilógico sem perder o interesse. Em alguns momentos, é chato mesmo.

A peça traz dois casais, que podem trocar de pares; eles dividem a mesma cena mesmo antes de se conhecerem e também, depois descobrimos, o mesmo filho. O jogo de aparências, o medo contemporâneo, o consumismo, a hipocrisia estão lá. Um cara que sai de casa há 20 anos tentando encontrar a sua “verdadeira” casa, os diálogos cujos textos dizem uma coisa, mas representam outra completamente diferente. Sob direção de Daniel Herz estão Ana Paula Secco, Anderson Mello, Luiz André Alvim, Marcio Fonseca e Verônica Reis. Todos muito bem em cena – não há desníveis ou queda nas atuações.

O cenário é a sala de uma casa e, mais especificamente, como elemento (des)agregador, a mesa; onde pode acontecer um velório, um jantar sem comunicação, o esconderijo eterno do filho. Para mostrar mesmo que ninguém é normal; que a fotografia pode até dar indícios, mas o teatro consegue ser muito mais efetivo na crítica do cotidiano.

A mão na face, do grupo Bagaceira, estreou no FRTN. Foto: Pollyanna Diniz

A mão na face

O cenário da nova montagem do Grupo Bagaceira, do Ceará, é o camarim de uma boate. A cantora decadente acaba de sair do palco e agora quem se prepara para entrar é um travesti. Enquanto estão ali conversam sobre a vida. O texto de Rafael Martins nos dá vários socos no estômago ao longo da encenação; mas é na oscilação entre a comédia e o drama que está a chave para a montagem. Démick Lopes (Gina) e Marta Aurélia (Mara) conseguem segurar muito bem esse jogo. Podem sair de um embate de palavras dolorido, cheio de significados, para sonoras gargalhadas.

É um texto sensível; que traz as incompletudes, as frustrações, a falta de amor, mas também a amizade, o carinho. No meio desses dois personagens está um homem que já morreu e que, ao que parece, era dividido pela cantora e pelo travesti. E com o tempo passando, até disso eles conseguem rir ou chorar.

A direção é de Yuri Yamamoto. A construção do cenário é muito interessante. Traz o espectador pra bem pertinho; como voyer de uma relação que pode ter muitas reviravoltas; mas onde as coisas não necessariamente esão explícitas. Há paredes, mesmo que imaginárias. São os espelhos que tentam revelar, mas só mostram os personagens já montados, o batom vermelho, a luz caindo aos poucos, a fumaça do cigarro no ar.

Demick Lopes faz um travesti e Marta Aurélia uma cantora

### No dia em que vi o espetáculo, a atriz Ceronha Pontes estava na plateia. O espetáculo, inclusive, foi dedicado a ela, que também é cearense. Talvez a presença de Ceronha tenha despertado em mim algo que é por demais óbvio. Como esse trabalho é próximo do coletivo Angu de Teatro! A temática, o tratamento, a estética. Impossível não pensar que aqueles personagens cairíam como luvas em Ceronha Pontes, Márcia Cruz, Arilson Lopes, Vavá Schön-Paulino. Deu ainda mais vontade de ver o projeto Abuso, que surgiu a partir do intercâmbio que as duas companhias fizeram através do edital do Itaú Cultural, ser levado aos palcos.

Matilde, la cambiadora de cuerpos

Não vou mentir que a primeira coisa que me veio à mente quando a história de Matilde, la cambiadora de cuerpos se estabeleceu no palco foi o blockbuster brasileiro E se eu fosse você?. É meio assim mesmo. Uma bandida paraguaia tem o poder de trocar de corpo com quem ela quiser. É só beijar a pessoa. E não é que o delegado resolve apostar na história louca que o homem com corpo de mulher sentado à sua frente conta? Daí para a história invadir as televisões, jornais e programas de rádio sensacionalistas é um pulo.

As atrizes Elaine Cardim e Tatiana de Lima se revezam nos papeis; é através do gestual que incorporam os personagens, além de contar com a ajuda, por exemplo, de sapatos dispostos na lateral do cenário. É na opção dramatúrgica por transformar a história numa crítica à imprensa que para mim está o erro da montagem. Pode até dar agilidade, permitir a utilização do vídeo, tornar a história mais engraçada. Mas cai nas armadilhas reducionistas, na opção pelos caminhos menos tortuosos, por um enredo que não nos surpreende. Apesar do talento das atrizes, que arrancam gargalhadas do público.

Matilde, la cambiadora de cuerpos. Foto: Victor Jucá/Divulgação

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“Quem mais sabe de mim é o espelho do meu camarim”

A prostituta e o travesti dividem o camarim, as frustrações e esperanças. Fotos: Ivana Moura

O espaço da peça é pra lá de intimista. Num pequeno retângulo, com dois espelhos em posições opostas, dois personagens se digladiam, se menosprezam, se elevam, se ancoram, se amam, devoram o coração um do outro. Em comum entre eles, um tal de Expedito que partiu dessa pra outra, melhor ou não. A prostituta veterana depois de abrir os shows da noite encontra um jovem travesti que se preparara para atuar. O espetáculo ocorre nesse intervalo, enquanto ela se despe, ele se veste.

E eles vão desmanchando os fios, relembrando ocasiões em que estiveram juntos. Essas figuras podem ser consideradas a escória da sociedade. Ali num camarim de um cabaré de periferia eles representam um para outro, mas quando mostram a verdadeira cara e as marcas que os infortúnios deixaram na alma e na carne/ossos/nervos eles falam do lugar de qualquer ser que tenha coragem de mergulhar dentro de si mesmo.

Mara, uma cantora desiludida com a arte, com seu talento e com a vida. E Gina, um travesti que sonha com o estrelato no exterior. Os atores Marta Aurélia e Demick Lopes envolvem o público nessas revelações de segredos, comentários bobos, filosofia barata, provocações eróticas e oscilações de humor.

Espetáculo é realizado numa estrutura bem próxima do público

O texto de Rafael Martins apesar dos diálogos crus tem doses de doçura. A temática é conhecida. E ninguém pensa que está inventando a roda. O embate entre esses dois seres derrotados está em toda parte. Alguns diálogos soam familiares e outros ou pedaços deles podem estar espalhados em peças de Plínio Marcos, num texto aqui ou acolá, nas conversas de submundo ou de outras trupes teatrais. Mas o que feito dessas palavras com seu encadeamento de frases.

Ficamos tão próximos dos atores que acompanhamos a respiração deles, o suor que cai, a pulsação. Ri pouco, e compartilhei a dor de ambos.

É uma montagem completamente diferente das outras coisas que já vi do Grupo Bagaceira de Teatro. É uma trupe que carrega um frescor no palco, que disposição para perseguir uma linguagem própria. E além de bons artistas eles são pessoas de bom caráter.

Yuri Yamamoto, o diretor da companhia, segue um caminho de ascensão, cada vez mais ousado, com mão segura para experimentar e quem achar ruim que faça outra melhor se for capaz. A parte dele é feita com competência ética.

Os atores Marta Aurélia e Demick Lopes nos papéis de Mara e Gina

Serviço

Com o Grupo Bagaceira de Teatro (CE)
Texto: Rafael Martins
Direção: Yuri Yamamoto
Elenco: Démick Lopes e Marta Aurélia

Quando: Até domingo, às 21h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Ingressos: R$ 10 e R$ 5 (meia)
Informações: 3355 3321

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O primeiro amor

Montagem participou do Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco

A trilha sonora e as imagens do espetáculo Tá Namorando! Tá Namorando! não saem da minha cabeça. A montagem do Grupo Bagaceira de Teatro, do Ceará, foi apresentada no Teatro Luiz Mendonça, do Parque Dona Lindu, dentro da programação do 8º Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco.

É impressionante como o grupo consegue traduzir os primeiros raios do desejo, a experiência inaugural do primeiro amor na infância. O medo, o receio da rejeição, aqueles gestos desengonçados, a pressão dos colegas, a inabilidade, a falta de domínio dos códigos amorosos. Isso é contado em quatro pequenas histórias de descobertas. Em seu trabalho de pesquisa experimental, a trupe explora de forma lúdica as diferenças do universo infantil de meninos e de meninas e as suas relações.

Montagem é do Grupo Bagaceira

O Grupo Bagaceira de Teatro produz praticamente um espetáculo por ano. São peças autorais com investimento na questão visual. Em Tá Namorando! Tá Namorando! , a trupe substitui o texto por gestos e onomatopeias, numa encenação imagética e divertida. E reflete sobre as pequenas tensões nas diferenças entre sexos na infância e as negociações de seus espaços.

O roteiro é de Yuri Yamamoto, que também interpreta os quatro garotos das histórias. Sua figura magra ajuda na visualização de um personagem de desenho. Samya de Lavor faz seu par romântico e traz a fortuna corporal de quem estudou dança. Para completar o elenco, Tatiana Amorim, que interpreta uma contrarregra que mostra uma dança tosca e engraçada imitando cenas de filmes, enquanto a dupla troca de roupa, além de outras pequenas intervenções.

O grupo também utiliza gravações de áudio feitas com crianças, que contam como foram seus primeiros namoricos. A iluminação competente cuida de expor e esconder pequenos segredos.

Peça fragmentada é composta por quatro histórias.

Elenco é formado por Yuri Yamamoto, Samya de Lavor e Tatiana Amorim

Espetáculo lúdico fala sobre o primeiro amor

O roteiro de ações para imitar desenhos animados ou stop emotion exploram expressões corporais repetitivas, mas numa velocidade muito mais lenta do que a possiblidade de aceleração do desenho e isso me pareceu uma crítica que eles fazem à limitação humana diante de outras artes que utilizam a tecnologia, como os animados. Cada um dos quadros da peça possui uma dinâmica corporal diferente. O jogo entre os atores também estabelece uma cumplicidade com a plateia.

Os figurinos também remetem para um futuro retrô. Quero dizer, a projeção de um futuro a partir de outro ponto do passado, o que torna a ficcionalização de um tempo que se amolda em projeções subjetivas do próprio espectador. Os óculos bizarros são marcantes.

Penso que a encenação de Tá Namorando! Tá Namorando! ganha outros sentidos pela dinâmica que pode estabelecer e pela proximidade com a plateia, num palco menor do que o do Teatro Luiz Mendonça. Talvez na próxima temporada no Recife, o grupo possa negociar um palco menor para contar essas histórias que só ganham com a cumplicidade do público.

Grupo Bagaceira é um grupo de teatro que experimenta linguagens

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