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A morte como escolha em duas peças de Milo Rau
Crítica dos espetáculos Grief and beauty e Familie

Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza), de 2021. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Princesa Isatu Hassan Bangura. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Staf Smans amparado por Arne de Tremerie. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

A morte “escolhida” pulsa no centro das duas primeiras peças da Trilogia da Vida Privada do dramaturgo e realizador suíço Milo Rau. A terceira do tríptico deve estrear em 2024. Assisti aos espetáculos Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza; 2021) e Familie(2020) no La Colline Théatre National, em Paris, nesse mês de fevereiro, com texto em suíço e legendas em inglês e francês simultaneamente.

Milo Rau foi o artista em foco da sexta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, em 2019, e apresentou no Brasil A Repetição. História(s) do Teatro (I), Cinco Peças Fáceis e Compaixão. Ele já disse que “É possível levar tudo ao palco” e que não é ele quem escandaliza. “Minhas produções que são relacionadas a fatos escandalosos”.

Grief and beauty e Familie são peças inspiradas em algum acontecimento da realidade. São espetáculos que não nos deixam indiferentes. Ainda fico refletindo se a intenção de Milo Rau não é mesmo chocar esse mundo contemporâneo já tão abarrotado de coisas de todo o tipo e imagens que se derramam de violência. Nem se Sontag poderia me acudir nessa questão. O fato é que dificilmente alguém sairá indiferente de uma dessas duas montagens da Trilogia da Vida Privada.

Ao entrar no teatro, uma tela estampa o rosto sorridente de Johanna B. Seus olhos vivazes dão as boas-vindas. Ela vai morrer / já morreu, alguns já sabem. Uma das atrizes dirá que a simpática mulher escolheu o momento de sua morte, um dia após seu aniversário de 85 anos. Na Bélgica ou na Suíça é possível fazer eutanásia legalmente e Grief and beauty projeta alguns momentos do último dia de sua vida, cercada por familiares e amigos queridos.

Johanna, nascida em 1936 em Roterdã, tinha uma doença incurável. Na sua casa, ela conversou por mais de quatro horas com o encenador suíço e seus assistentes. O encontro foi gravado. Entre outras coisas, Johanna deixou registrado: “a morte é um trabalho solitário”, mas que ela quis compartilhar com o público do diretor Milo Rau.

A cenografia da peça é de um apartamento hiper-realista, que enfileira banheiro, quarto com cama hospitalar, sala e cozinha. Os acessórios funcionam e são acionados em algum momento, como o rádio ou a cafeteira elétrica. Alguns dos objetos foram doados por Johanna, como o relógio de pêndulo.

Anne Deyglat e Staf Smans. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

O dispositivo da dramaturgia do cotidiano deixa transbordar o processo de criação. No início o elenco está sentado em um dos lados do palco. O espetáculo entrelaça as histórias supostamente verdadeiras de quatro atores amadores e profissionais, tendo como epicentro a morte. Arne de Tremerie, Anne Deyglat, Princesa Isatu Hassan Bangura e Staf Smans expõem suas questões. A Princesa Isatu faz a conexão com Johanna, elucidando seus desejos e confidências.

Do lado do jardim, a violoncelista Clémence Clarysse toca ao vivo as melodias que Johanna B. escolheu. O cinegrafista Moritz Von Dungern manipula sua câmera do lado do pátio, para projetar imagens da cena, que são alternadas com as do vídeo de Johanna.

Os depoimentos são entrecortados. Cada um conta a sua versão das experiências. Arne de Tremerie lembra do seu primeiro papel aos 8 anos, como Pequeno Príncipe. Ele diz que a mãe sofre de esclerose múltipla, o quanto foi impactado pela separação dos pais e como virou um exímio cuidador.

O homem velho Staf Smans, primogênito de sete irmãos e irmãs, cresceu na fazenda, perdeu irmã e mãe, foi pro exército, num baile encontrou uma mulher que nem o atraia tanto, casou com ela, celebraram 50 anos de casamento. Ele se tornou ator aos 40 anos, e não sabe como descrever a morte da filha aos 33 anos.

Anne Deyglat, a mulher de meia idade que cuida do velho, viveu um amor recíproco por um jovem de 24, com quem usufruiu da felicidade por 21 anos na Itália. Até que o rapaz avisa que está apaixonado por outra. O mundo desabou. Ela confessa gostar de estar perto dos animais e da natureza. Passou a acompanhar a vida noturna dos lobos por um site na internet. Em algum momento, ela traduz sua tristeza quando grita/uiva.

Princesa Isatu Hassan Bangura, que faz o papel de enfermeira, é de Serra Leoa, viveu no Senegal com seu pai, relata as desavenças familiares, as desconfianças da mãe, as ameaças do pai e a saudade de seu país, de cheiros e sabores.

O velho que adormece na frente da televisão e precisa da ajuda do jovem para um banho sentado, segue o mesmo percurso de Johanna. Ele tem câncer. O grupo toma champanhe antes da aplicação da injeção.

No vídeo de arquivo, Johanna se despede dos seus. O close-up expõe seu rosto luminoso e sereno. “Pode-se estar triste… mas nada de drama”, comenta. Ela diz que está pronta, que tem sono para recuperar, que não há nada de errado, que ela sempre quis sair sorrindo. O elenco avisa que o material é autêntico. Depois da picada Johanna para de respirar.

No palco, a morte é fictícia. O teatro some, com o cenário do apartamento suspenso e o jogo de luz e fumaça criando a ilusão de estrelas ou buracos cósmicos, com apenas vestígios do que existiu. Enquanto o velho passa a dançar em seus passos românticos. A musicista Clemência, acompanha o canto do jovem em um trecho de Lamento de Didon, de Purcell, uma peça apreciada por Johanna.

Não vejo beleza reconfortante em mostrar os últimos suspiros de uma mulher que escolheu a eutanásia. Mostrar esse ato de forma tão explicita é de uma radicalidade controversa. Mas Grief and beauty reafirma a mortalidade contra essa ilusão de ser imortal provocada pela pressa de viver. Johanna corajosamente fez as pazes com sua sepultura.

Mesmo com a autorização e desejo de partilha da homenageada da peça eu me pergunto se Milo Rau fez a melhor opção ao compartilhar esse momento tão singular. O cinema expõe gravada a agonia da morte. Mas o teatro? Que ocultou mortes para narrá-las? Ainda fico sob o impacto desse acontecimento! Assistir ao último suspiro de Johanna, depois da injeção, encarado de forma tão simples, como coisa banal, foi difícil.

Familie

 Familie tem no elenco os artistas Filip Peeters e An Miller (centro) e suas duas filhas Leonce e Louisa

Familie é inspirada num fato aparentemente inexplicável. Em 2007 em Coulogne, uma pequena cidade francesa ao norte perto de Calais, quatro pessoas da mesma família foram encontradas enforcadas na varanda de casa. Os Demeester (pai, mãe, filho e filha) deixaram apenas uma mensagem lacônica “On a trop déconné” (“Ficamos muito fora de controle”, mais traduzida como “Nós erramos muito, desculpe…”). O caso foi encerrado como suicídio coletivo, sem motivo conhecido.

Para representar esse episódio, Milo Rau reuniu no palco uma família da vida “real”: os artistas holandeses An Miller e Filip Peeters, e suas duas filhas adolescentes Leonce Peeters e Louisa Peeters, além dos dois cães.

O cenário de Familie enquadra mais ao fundo do palco uma casa com paredes de vidro, que expõem todos os cômodos (alusão que o núcleo não tem nada a esconder?). À frente, uma mesa, um caderno, uma luminária, duas cadeiras. Uma câmera lateral. Apenas a filha mais velha ocupa esse espaço-dispositivo da entrevista. Ela articula a história. No alto, uma grande tela.

A filha mais velha reflete sobre o suicídio coletivo

Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Os Peeters-Millers, o clã substituto dos Demeesters, recriam os últimos momentos dos suicidas. Milo Rau já disse que não há ficção, que os atores contam coisas de suas vidas. Há uma sequência em que cada um anuncia o que prefere, “eu amo…” isso e aquilo e tal. Não há nada de extraordinário nessa jornada.

Assim, o grupo representa momentos prosaicos, como a preparação do jantar ao vivo pelo marido/pai com cheiro de comida inundando o ambiente, o banho da mulher e a colagem das fotos dos momentos em comum no banheiro, o telefonema da mãe à matriarca, a refeição em conjunto, as confidências íntimas, o estudo de inglês das meninas com os cães ao colo. Coisas ocorrem simultaneamente e algumas cenas são transmitidas em detalhes pelo telão.

Antes do gesto fatal, o conjunto de ações é detalhadamente banal e monótono, enquanto o ato final é engendrado, exposto em paralelo com o trabalho investigativo realizado em torno dos Demeesters e os vídeos da viagem até a casa de Coulogne, imagens à beira-mar, escultura de Rodin. De vez em quando, os faróis dos carros que passam avisam de outras existências ao longe.

É complexa a tecedura que agrega os diferentes elementos: o que foi apurado dos fatos originários e os comentários feitos pelo grupo sobre isso, a criação/ficção dessa última noite na preparação dessa macabra cerimônia.

A representação utiliza uma espécie de reportagem (os atores foram visitar a casa dos franceses para fazer um levantamento para o espetáculo), drama teatral (a encenação das últimas horas dos suicidas) e a narrativa da adolescente mais velha filmada ao vivo, em closes, exibindo uma beleza cativante, mas fria, com o rosto minimizado de expressões e uma voz monótona e terna. Ela, que lidera o ato final, confessa que pensamentos suicidas povoaram sua cabeça, em estado de niilismo da idade.

A noite encenada é preenchida de pequenas coisas, da beleza gélida, de um repertório poderoso para instalar algumas emoções, com Bach, Haendel e Leonard Cohen. Ou ainda a cena do ritual de despedida com Air de Télaïre: Tristes apprêts, da ópera Castor et Pollux, de Jean-Philippe Rameau. Enquanto a trupe de atores alimenta a reprodução do gesto dos Demeester, a ação primeira se recobre de enigma.

Ao recriar / inventar a noite final, a cena se cerca de esvaziamentos de sentidos da vida. A vida espantada com sua própria razão em si mesma se arrasta nos intermináveis segundos em que a trupe de atores re-produz o ritual de enforcamento. Milo Rau faz o público ver até o último gesto.

Na sessão que assisti, algumas pessoas ficaram paralisadas na plateia após o término da peça por alguns minutos. Uma sensação de suspensão me atingiu, seguida de uma reflexão dolorida do que é a vida e as razões de existir.  Seguir a pensar na competência desse artista de conduzir / manipular os afetos de estar no mundo e propor porquês.

Grief and beauty
Concepção e mise en scène: Milo Rau
Assistente de direção: Katelijne Laevens
Elenco: Arne de Tremerie, Anne Deyglat, Staf Smans, Staf Smans e Johanna B. na tela
Dramaturgia: Carmen Hornbostel
Colaboração na dramaturgia e treinador: Peter Synaeve
Câmera: Moritz Von Dungern
Música ao vivo: Clémence Clarysse
Composição: Elia Rédiger
Cenografia: Barbara Vandendriessche
Iluminação: Dennis Diels

Familie
Concepção e mise en scène: Milo Rau
Elenco: An Miller, Filip Peeters, Leonce Peeters, Louisa Peeters 
Dramaturgia: Carmen Hornbostel 
Cenários: Anton Lukas 
Figurinos: Anton Lukas, Louisa Peeters 
Vídeo: Moritz von Dungern 
Arranjos musicais: Saskia Venegas Aernouts
Iluminação: Dennis Diels

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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