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Brutalidade como espelho do real
Crítica do espetáculo Tom na Fazenda

Tom na Fazenda na temporada no Théatre Paris-Vilette. Foto: Reprodução do Facebook

Há 15 dias, mais ou menos, Tom “passeia” na minha cabeça. Vou à Biblioteca da Sorbonne Nouvelle (BSN) e ele está lá. Ao supermercado, e ele dá pitaco nas compras. Vou à Sukyo Mahikari (centro de treinamento e elevação espiritual) e ele me espera na porta (não quis subir para receber o okyome [energia positiva]). No Centre Pompidou, ele aplaudiu ao meu lado à performance de Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Ficou cabreiro na sequência com o debate e inquieto quando Maïra Aggi (artista-pesquisadora brasileira) deu “um chega para lá” no homem cis branco (sempre no comando) que não estava vertendo muito bem as palavras do português para o francês da artista, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu Raimunda Gomes da Silva (uma das inspirações de Altamira 2042), e tomou para si a tradução. Vimos juntos, Tom, a nota de cancelamento da sessão de La Mort de Danton afixada na porta da Comédie Française, num dia de greve. Da janela do quarto, viajamos com o vai e vem do metrô da linha 6.

Falei sobre você, Tom, com o Mateus Furlanetto, brasileiro que mora na Alemanha e é tão apaixonado por teatro quanto eu. Ele veio de Berlim só para te ver de novo e confirmar o seu apreço. 

Paris é linda, mas Macron não está facilitando! Tom concorda comigo, pois encontramos bibliotecas fechadas, muito lixo nas ruas e transportes públicos perturbados em razão dos movimentos sociais contra a reforma da aposentadoria, que o governo insiste e os trabalhadores não aceitam. O mês de março se foi. Admiramos, ou nem tanto, les giboulées de mars (chuva forte repentina, geralmente curta, muitas vezes acompanhada de granizo).

Mas Tom, o que eu posso dizer ainda sobre a peça? Nesses seis anos que o espetáculo Tom na Fazenda segue pulsando já colheu as melhores críticas no Brasil, no Canadá e agora em Paris. Já recebeu os mais efusivos aplausos.

Gustavo Rodrigues e Armando Babaioff: tour de force interpretativo. Foto: Victor Novaes / Divulgação

A temporada de Tom na Fazenda no Théâtre Paris-Vilette ficou lotada por três semanas e prorrogada em mais três apresentações até 5 de abril. É a primeira produção latino-americana que ocupa esse palco. A peça foi ovacionada todas as noites, uma atitude pouco comum do público  francês.

Até agora, a produção não conseguiu patrocínio. Mas também não havia como. A peça estreou em 2017, ano seguinte ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff; e os desdobramentos foram terríveis. Além da censura às artes (praticamente uma perseguição) cresceram ou se instalaram movimentos xenofóbicos, genocídio em comunidades pobres e indígenas, desmatamento desenfreado, repressão das expressões “pagãs”, perseguições religiosas, homofobia.

Como pontuou o encenador Rodrigo Portella (em texto do livro Tom na fazenda, que integra a Coleção Dramaturgia da Editora Cobogó, publicado também na revista eletrônica Questão de Crítica – QdC ) , o contexto expõe “uma expressiva onda conservadora a se espalhar pelo mundo como reação às liberdades conquistadas na virada do século”.

Ativo há seis anos, o espetáculo se apresenta como uma célula acesa de resistência diante do desmonte que a cultura no Brasil viveu nos últimos quatro anos, na gestão bolsonarista. Ousada, a na produção Investiu na internacionalização e, por conta própria, participou do off do Festival de Avignon do ano passado. Terminou a sessão com convites para temporadas em alguns teatros europeus.

A homofobia é manifestada de forma truculenta na peça. Foto: Victor Novaes / Divulgação

Qual o risco de se assumir publicamente homossexual, bissexual, transsexual, LGBTQIA+ no Brasil? Na França? No Irã? Afeganistão? Catar? Somália? Nigéria? Ou numa fazenda distante? Ou seja, qual o perigo de ser o que se é? Em alguns lugares do mundo é crime, punido com pena de morte por decapitação, forca ou apedrejamento. Vamos mirar no Brasil, um país em que não existem penas de morte em leis escritas, mas que é apontado como um território violento e com maior número de assassinatos de pessoas dissidentes da norma cis-hétero-normativa no planeta. Os dados do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQI+ (316, no dossiê de 2022) são alarmantes.

Em Tom na Fazenda, a homofobia é exercida de forma truculenta dentro da casa. A complexidade é traçada a partir da relação intima, quase familiar. Tom, do título, planejava prantear a memória do amante durante os ritos fúnebres na casa da família do falecido. Ao chegar, de imediato constata que é um desconhecido para a sogra Aghata (“ele nunca me falou de ti”) e uma ameaça para o que seu cunhado Francis considera honra.

Para evitar que sua mãe e a longínqua vizinhança do vilarejo saibam que o irmão mais novo da família era gay e mantinha um relacionamento amoroso com o forasteiro de roupas elegantes e hábitos finos, o rude Francis chantageia, ameaça e agride Tom, numa abordagem que faz uma mistura estranha de violência e sensualidade.

Numa pisada de guardião da heteronormatividade da família, Francis cometera no passado um crime contra um garoto de 16 anos que se dizia apaixonado por seu irmão gay. Ele é um único homem, mas não pode ser percebido como uma voz isolada. Ao tratar o tema da homofobia, a encenação fornece algumas chaves ao espectador para pensar sobre uma série de desrespeitos e violações contra o outro.

As atuações são um trunfo da montagem. Gustavo Rodrigues (Francis) e Soraya Ravenle (Aghata)… 

Armando Babaioff (Tom) e Camila Nhary (falsa namorada do morto). Foto: Victor Novaes

A história do espetáculo Tom na Fazenda se passa num ambiente deslocado do seu personagem-título. O dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo à época da estreia brasileira expõe suas razões para situar sua peça no meio rural. “Eu queria uma região em que as coisas acontecessem mais lentamente. Um lugar orgânico… Um espaço que portasse uma tensão, rodeado de julgamento. Essa fazenda desponta como um território onde todos os abusos e liberdades são possíveis”, acentuou Bouchard.

É um pressuposto da peça que os ambientes rurais são mais atrasados que os centros urbanos e as leis têm laços mais frágeis na punição de crimes. Essas informações pontilham o texto e um dos personagens avisa que seria bem fácil se livrar de um corpo junto ao “cemitério” de vacas, bois e outros animais.

O presente é insatisfatório, já atestava Ernst Bloch, filósofo alemão (1885 – 1977).  “Nem todos estão presentes no mesmo tempo presente”. A montagem situa essa recusa triste do tempo presente no chão brasileiro desses últimos quatro anos de Bolsonaro (o pior presidente que esse país já teve), em que se escorrega, em que crimes e desvios de conduta são encobertos por lama. A encenação realça um tempo ralentado, uma sensação de isolamento geográfico, com costumes e ideias conservadoras para marcar o local.

Traduzido, produzido e protagonizado pelo ator Armando Babaioff, que atua ao lado de Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary, com direção de Rodrigo Portella, a versão brasileira abre canais para leituras do Brasil no tempo histórico em que a peça foi gestada.

O não-direito ao luto aparece em meio a um teia de assuntos violentos. Foto: Victor Novaes / Divulgação

De um jovem homem foi roubado o direito à manifestação pública do luto por seu companheiro morto. Esse impedimento baseado na chantagem, ameaça e violência gera uma transformação no comportamento, perspectiva e visão de mundo do protagonista. Tom chega à fazenda vestindo um modelito de marca e termina a peça com roupas em farrapos e enlameadas.

Com uma dramaturgia engenhosa e ágil, a direção usa de dispositivos para valorizar o teatro, o jogo, o desenho coreográfico, as ações físicas, as não-respostas, as possibilidades de o espectador criar. Tom fala com o namorado morto (por WhatsApp), utiliza o discurso interior, ou conversa com os outros personagens e muitas vezes isso fica propositalmente embaralhado. Ou ainda executa ações que os outros personagens não enxergam – o gesto e o que está por trás do gesto.

Armando Babaioff imprime transformações fortes à personagem; Tom vai se revelando um ser mais frágil, por trás do bem-sucedido publicitário com tiques consumistas.

Agatha é tocante em sua dor, na ignorância ou fingimentos das coisas não-ditas. Agarrada em suas crenças, ela cita passagens da Bíblia. Quando se vê saturada com a cultura de mentiras, ela reconhece que o que lhe restou, entre os três homens da vida, foi o “pior”, o “bandido”.

A falsa namorada do irmão morto leva um frescor ao ambiente, mas desestabiliza a relação de “quase irmandade” entre os dois homens.

Dispositivos utilizados pela encenação permitem dúvidas sobre o que o protagonista fala ou age

A cenografia assinada por Aurora dos Campos utiliza poucos objetos. Uma lona preta coberta por barro – que, de quebra, produz sonoridades com a movimentação dos atores – sacos de areia, alguns baldes pretos. Na iluminação, Tomás Ribas investe numa lâmpada solitária pendurada no centro do palco, que reforça o clima de aridez. A trilha de Marcelo H. atiça tensões com suas paisagens sonoras.

Para expor os atos de barbárie, a encenação utiliza de uma ferocidade cênica, que funciona em níveis energéticos e físicos. As interpretações dos dois atores – Babaioff e Rodrigues – são viscerais. Um sadomasoquismo que desliza entre atração e repulsa. Um jogo ambíguo de masculinidade, em que a tensão sexual paira no ar e cola nos corpos.

Francis expõe um comportamento próximo do bestial, mas a direção ressalta a humanidade em nuances e gradações. Durante os dias que passa na fazenda e nas incontáveis lutas corporais com Francis, Tom coleciona hematomas e tem os pulsos machucados. Mas os dois homens também trocam confidências, trabalham na companhia um do outro, dançam juntos uma cumbia no curral e realizam o parto de um bezerro.

Para ser aceito, Tom passa por um gradual apagamento de si, incorporando valores que ele repudiava. Pode lembrar as mentes fragilizadas pelo deflúvio subjetivo desses tempos que correm. “Atenção… É preciso estar atento e forte!”

Por que Tom não foi embora após o funeral?; Por que ele “aceita” tanta violência?; e muitas outras perguntas vão para a plateia. Com o desfecho inesperado e a mutação do protagonista – que chega ao final com os clichês do rude – questiono se não há também o risco de induzir os efeitos de captura das subjetividades que se deseja combater? Ainda bem que não existe uma explicação única, que responda a tudo.

Público francês aplaude com entusiasmo, em temporada com ingressos esgotados. Foto: Reprodução

Tom, boa sorte na sua caminhada.

A agenda da peça:
Paris 9 de março a 5 de abril  – Théâtre Paris-Villette
Recife 15 e 16 de abril – Teatro do Parque
Natal 20 de abril – Teatro Riachuelo
Juiz de Fora 26 e 27 de abril – Teatro Paschoal Carlos Magno
Belo Horizonte 28 a 30 de abril – Cine Theatro Brasil Vallourec
São Paulo 5 de maio a 25 de junho  – Teatro Vivo

Tom na Fazenda (Tom à la ferme)
Texto: Michel Marc Bouchard 
Tradução: Armando Babaioff 
mise en scène: Rodrigo Portella 
Elenco: Armando Babaioff, Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary 
Cenografia: Aurora dos Campos 
Iluminação: Tomás Ribas 
Figurino costumes: Bruno Perlatto 
Música: Marcello H. 
Coreografia: Toni Rodrigues
Fotos: 
Victor Novaes ou Roberto Peixoto

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Prêmio Ariano Suassuna é prorrogado

O escritor, roteirista, redator e ator Cleyton Cabral e o escritor, professor e ator Raphael Gustavo conquistaram três prêmios cada um nas edições anteriores do concurso Ariano Suassuna de Dramaturgia

O 5º Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia está com inscrições abertas até 8 de maio. Seria até 28 de abril, mas foi prorrogado. Portanto, mais um prazo para autores pernambucanos ou residentes no estado, limite geográfico do concurso.  

O prêmio é um dos poucos concursos de dramaturgia no Brasil. Nesta edição, serão distribuídos até 10 prêmios de R$ 5.100, nas categorias Teatro Adulto e Teatro para Infância.

Neste ano, excepcionalmente, serão reservados quatro prêmios para a Categoria Teatro Adulto e três para a Categoria Teatro para Infância. Serão destinados dois prêmios para dramaturgias escritas por mulheres cis ou trans, independente. Será destinado um prêmio para o gênero teatro de animação, independente da classe de cadastro, que pode ser feita no site www.mapacultural.pe.gov.br/oportunidade/242/

Ano passado e nos anos anteriores, o valor do prêmio individualmente chegou a R$ 10 mil, para o primeiro colocado e R$ 7 mil, para o segundo. A mudança, segundo o assessor de Teatro e Ópera da Secretaria de Cultura de Pernambuco, José Neto Barbosa, é resultado do plano de contingenciamento, que é uma resolução do governo que corta gastos ou amplia ações que não sejam exatamente da saúde. “A ideia de democratizar o acesso aos recursos surgiu na Comissão Setorial de Teatro de Pernambuco, que é uma instância de diálogo entre governo e sociedade civil”.

Segundo Neto, a alteração é pontual e foi motivada para democratizar os recursos num momento tão delicado. A Comissão Setorial, que foi eleita na conferência de Cultura e é presidida por Paula de Renor – “acredita que não é o momento para reforçar qualquer teor meritocrático. O melhor é redistribuir os recursos alcançando mais artistas”

Dois dramaturgos têm se destacado nas quatro edições do Prêmio Ariano Suassuna de Dramaturgia, criado em 2015 pelo Governo do Pernambuco. O escritor, roteirista, redator e ator Cleyton Cabral e o escritor, professor e ator Raphael Gustavo.

Foto: Alex Ribeiro/ divulgação

ENTREVISTA // CLEYTON CABRAL

Cabral conquistou o primeiro lugar na categoria teatro adulto, com Talvez sim, talvez não (2016); segundo lugar também em teatro adulto, com Desculpe o atraso, eu não queria vir (2018) e primeiro lugar, em texto de teatro de animação, com Hélio, o balão que não consegue voar (2019). Ele é autor do livro de contos Planta baixa, lançado ano passado pela Editora Patuá, de São Paulo.

Alguns escritos de Cleyton já foram para a cena. Em 2010, os contos do seu blog inspiraram o espetáculo Para caber no teu sorriso, com direção de Rodrigo Cunha. Escritos do blog também renderam outros experimentos, como a leitura dramatizada Hoje quero falar de amor, sob direção de Rafael Almeida e cenas de um espetáculo do Coletivo Angu de Teatro (Projeto Abuso – Rumos Itaú Cultural).

O menino da gaiola foi encenado no Recife, sob direção de Samuel Santos em 2013. Em 2017,  o ator estreou seu primeiro monólogo, Solo de Guerra. E, no ano passado, a Cia. Paradóxos (SP) montou Desculpe o atraso, eu não queria vir, sob direção de Mário Goes e Fábio Mráz. Hélio, o balão que não consegue voar tem projeto de montagem por um grupo carioca.

Como você situa sua dramaturgia?
No teatro para a infância e juventude venho pesquisando temas tabus. No teatro adulto, temas como identidade, gênero, sexualidade e o próprio teatro atravessados de afeto têm me movido.

Existe algum segredo para conquistar tantos prêmios?
Acredito que seja pela temática, pela originalidade, não sei. Nunca peço os pareceres da comissão que avalia os textos.

Quem são seus mestres e / ou quais são suas referências na escrita dramatúrgica?
Luiz Felipe Botelho, Cícero Belmar, André Filho, Newton Moreno, Rafael Martins, Henrique Fontes, Grace Passô, Jô Bilac, Leonardo Moreira, Tiago Rodrigues.

O prêmio Ariano Suassuna cumpre seu papel? Qual é?
Olha, se a gente puder contar com o Prêmio Ariano Suassuna, já será um avanço. É o único prêmio voltado para dramaturgos no estado. É um incentivo para continuar escrevendo e ser reconhecido pelo trabalho.

Existe incentivo para a dramaturgia no Brasil?
Desconheço. Criar políticas culturais com um olhar para quem escreve para teatro seria um caminho interessante.

Tenho visto uma discussão nas redes sociais sobre a natureza do teatro. Se lives transmitidas pela internet são teatro ou não. O que você pensa sobre isso? O que é teatro?
Vou fazer a Glória Pires, prefiro não opinar. rs. Vamos lá: em meio à pandemia, nós artistas, nos vimos num beco sem saída. Não podemos lançar livros, encenar peças, abrir exposições etc. Inclusive, muitos de nós estamos disponibilizando nossos trabalhos para apreciação do público em casa. O isolamento é um momento de repensarmos nossas relações e, o fazer teatral, não fica de fora. A gente sabe que o teatro se dá pelo encontro do ator com o público dividindo o mesmo espaço, mas independente da área, vamos ter que encontrar novas soluções, modos de fazer, estratégias de sobrevivência.

Fala como você está enfrentando a quarentena? Está trabalhando em casa? Ou só nas suas criações?
Não tem sido fácil para uma pessoa superativa e inquieta como eu. Gosto de estar em movimento, transitando, flanando por aí. Imagine o tédio e a impaciência convivendo em 70m2? Ok, tenho um namorado parceiro, duas gatas lindas e “tempo de sobra”. Tempo para fazer o quê? O isolamento afetou diretamente meu único ganha-pão no momento, as oficinas que ministro de Escrita Criativa. Tinha uma turma fechada para o final de março e teve de ser cancelada. Sim. Tenho aproveitado esse “tempo de sobra” para ler e escrever. Nesse intervalo organizei dois livros inéditos (um de contos e um de poesia) e estou criando uma nova dramaturgia. Em paralelo, sigo na pós em Escrita Criativa da PUCRS/UNICAP, como aluno, em aulas por videoconferência.

Quais as estratégias de sobrevivência?
Como meus livros não estão em livrarias e ainda tenho umas dezenas deles em casa, estou divulgando nas minhas redes (@cleytoncabral) para entregas em todo o Brasil, via Correios. Também tenho pensado em fazer um projeto literário com financiamento coletivo, além de oferecer meus serviços de redator publicitário.

O que está fazendo para não endoidecer?
Regando as plantas, conversando com os bichos, cozinhando, tomando um vinhozinho, falando com os amigos.

Você tem medo da Covid-19? Numa escala de 1 a 10, quanto?
Quem não tem? Hahaha de 1 a 10? 11. E se eu já peguei esse vírus e não sei? Minha preocupação maior é minha mãe, que está com 74 anos.

Raphael Gustavo em sua casa em Vitória de Santo Antão. Foto: Ângelo Azuos

ENTREVISTA // RAPHAEL GUSTAVO

Raphael Gustavo brilhou em três edições do Ariano Suassuna. Em 2016, com Um Caso de Marias Ou de Maria Flor; O Gaioleiro, em 2017 e Conto de Passarinha, em 2019. Além dos Ariano Suassuna ganhou o Prêmio Mostev de dramaturgia adulta com Andarilhos da Poesia Pernambucana; Marcus Accioly de Poesia, com Encruzilhada e Manuel Bandeira de Poesia, com Havia um Pássaro.

Raphael Gustavo atesta a “extrema importância” das premiações como incentivo aos artistas que precisam de reconhecimento para produzir. “Muitos ainda estão invisíveis por falta de oportunidades”, pensa.

O núcleo pernambucano está montando o último vencedor do Ariano, Conto de Passarinha. O Gaioleiro é o projeto atual de seu grupo, A Cia Experimental de Teatro, e a Cia. Fiandeiros montou Um Caso de Marias Ou de Maria Flor.

Como você situa sua dramaturgia?
É bem difícil entender como eu faço isso. Cada texto vem por inspiração num tipo diferente de provocação. Uns surgem de minhas experiências familiares, outros da educacional com meus alunos, outros por ideias a partir do que leio e assisto. Mas, o mais forte é a defesa sobre temas ainda mal refletidos socialmente: A valorização da cultura popular, saúde mental, pedofilia, racismo, adoção, filosofias sobre o que é relacionamento…  E assim segue.

Quem são seus mestres e / ou quais são suas referências na escrita dramatúrgica?
Leio muitas coisas. Gosto das dramaturgias do César Leão, do Cleyton Cabral, do Samuel Santos. Fernanda Torres é uma inspiração de boa escrita também. De mestres, apenas os bons professores que me estimularam muito e me nortearam como eu poderia desenvolver uma boa escrita a partir do olhar da sensibilidade.O

O prêmio Ariano Suassuna cumpre seu papel?
O Prêmio Ariano Suassuna cumpre o seu papel muito bem, pois abre o edital contemplando todas as regiões e todos os artistas e escritores que queiram colocar suas obras na competição. A análise é por pseudônimos. Então a surpresa do mérito é legal.

Existe incentivo para a dramaturgia no Brasil?
Existe sim. Mas é pouco. Muito pouco. Sempre em editais competitivos. Isso é bom, mas limita muitas obras de obterem reconhecimento e recompensa pra custear esses autores. Precisamos de editais para literatura, fora de competições.

Existe uma discussão nas redes sociais sobre a natureza do teatro. Se lives transmitidas pela internet são teatro ou não. O que você pensa disso? O que é teatro?
Live de espetáculo não é Teatro! Ator odeia vídeo de espetáculo. Simples e pontual. Liberar gravações de peças no YouTube é desmerecedor. Chamem de recreação, contação de história, do que for. Mas a mídia do Teatro só existe para produção de material que faz sua divulgação. Teatro é ritual da presença. Do cheiro, do calor, da luz presencial, da energia. Se não podemos ir aos teatros nesses tempos, acho importante e válido que os atores demonstrem coisas para essas mídias. Mas não chamem de peça ou espetáculo. Muito menos, Teatro.

Fala como você está enfrentando a quarentena? Está trabalhando em casa? Ou só nas suas criações?
Estou enfrentando bem a quarentena. Moro só com meus gatos e faço meus próprios rituais de limpeza, comidas e cuidados. É mais saudável que dividir espaço. Em casa tenho trabalhado na produção de textos para minha página no Instagram @raphaelgustavo.writer e afinando dramaturgias, dando curso online, fazendo lives sobre arte e cuidados com a saúde mental e passando atividades para os meus alunos de Português e Teatro.

Quais as estratégias de sobrevivência?
Ficar em casa, higiene total e aumentar a imunidade com boa alimentação e exercícios físicos para liberar toxinas.

O que está fazendo para não endoidecer?
Interagindo com meus alunos e cuidando de minha casa. Isso tem sido essencial para eu me manter bem.

Você tem medo da Covid-19? Numa escala de 1 a 10, quanto?
Tenho medo sim. Escala 8.

O que é importante dizer agora, nestes tempos de isolamento social?
É importante dizer que o amor pelo próximo é a chave para S-o-b-r-e-v-i-v-e-r. É a partir disso que queremos nos cuidar e cuidar do outro. Desenvolver cura, alimentar os que precisam e escrever obras que os faça entender o quanto esse amor ainda precisa ser refletido e exercitado.

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Corpo estranho, lírico e político
Crítica do espetáculo E.L.A

E.L.A Foto: Guilherme Silva

E.L.A é primeiro solo da atriz cearense Jéssica Teixeira. Tem pouco a ver com o Ela (Her)¸ do diretor e roteirista Spike Jonze, que explora a relação de um homem que se apaixona pelo sistema operacional de uma máquina. O filme expõe a solidão contemporânea e novas configurações de relacionamento amoroso. Se pensarmos em esgotamento de modelos há sempre fios de conexão nas investigações artísticas atuais. Cito a obra cinematográfica por conta do nome da peça. O título do espetáculo remete à abreviatura de uma doença: Esclerose Lateral Amiotrófica – ELA.

Segundo informações em sites de saúde, trata-se da degeneração progressiva dos neurônios motores no cérebro e na medula espinhal. Isso quer dizer que esses neurônios não conseguem transmitir os impulsos nervosos de forma adequada. Essa degeneração provoca atrofia muscular, seguida de fraqueza muscular crescente. Também designada de Lou Gehrig, calcula-se que, no Brasil, 10 mil pessoas têm a doença.

Num mundo tão preconceituoso com os que não estão dentro de uma bolha hegemônica, vale destacar que Ela não atinge o raciocínio intelectual, a visão, a audição, o paladar, o olfato e o tato. E que, em grande parte dos casos, a esclerose lateral amiotrófica não afeta as funções sexual, intestinal e vesical.

O astrofísico britânico Stephen Hawking foi diagnosticado com a doença quando tinha 21 anos de idade. Mesmo sem poder movimentar o corpo ou falar durante a maior parte de sua vida, o cientista avançou em pesquisas na Física, com destaque para os trabalhos sobre as origens e estrutura do Universo, fundamentais para entender o papel dos buracos negros.

Atriz Jessica Teixeira. Foto: Carol Veras

Eu me tornei um ser indiscernível. Não pertenço a mim mesma”, registra uma fala do espetáculo. “Não queremos ver coisa alguma. Não queremos que as coisas nos vejam. Como Narciso, que recusa o espelho. Como Salomé, que decepa a própria cabeça”.

Ao tratar de assuntos relacionados diretamente ao corpo – beleza, saúde, política, feminilidade -, a artista envereda pela dinâmica da exclusão capitalista. É perversa e calculada essa eliminação de corpos que tem algumas miras prioritárias .

“Pudesse ser apenas um enigma. Mas não. O corpo faz problema. O corpo dá trabalho. Pode ser muitos. Pode ser, inclusive, o que não queremos. O corpo será sempre o que ele quiser? É social. É político. É tecnológico. É inconsciente. Pensamento. Desejo. Invisível. Invasor. O corpo se despedaça. É estrutura. É movimento. Mas, sobretudo, é estranho. Eu sou o outro e a outra. Teimo e re-existo. Ele se degenera e E.L.A se faz impossível”.

Texto de apresentação do espetáculo

Ao carregar episódios biográficos, a atriz traça em paralelo uma linha histórica desde o corpo da Grécia, encontrando as guerras mundiais e as ações mais recentes.

Jéssica fala sobre beleza, outras formas de beleza, jeitos de estar no mundo. Faz do seu corpo um ato político. Subverte lógicas. Convoca o protagonismo para si. Esquadrinha a ditadura do corpo bonito e funcional, aquele que não se encaixasse nessa régua seria exterminado.

A artista desafia a regra e assume sua diferença. A beleza da sua diferença exposta em cena para deslocar olhares contaminados. Jéssica convoca um olhar lírico para um lugar ético, onde os corpos importam em suas singularidades, sem hierarquizações de lutas contra as opressões.

O espetáculo não apresenta propriamente uma história. São fragmentos trançados por uma lógica de luta, em várias angulações e miragens. Com a utilização de vídeos e imagens em foto, a atriz cita, por exemplo, Josef Mengele – oficial alemão da Schutzstaffel (SS) e médico no campo de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial – que liderou os procedimentos científicos em pessoas que aparentassem algum caractere de deficiência física ou psíquica, adotando o método da eutanásia.

Em seguida, projeta robôs com camisas da seleção canarinha a defender nas ruas o indefensável. Triste Brasil.

Sabemos que as técnicas de extermínio foram sofisticadas e até mesmo legalizadas com manobras do Judiciário, Legislativo e Executivo. Os golpes na economia – previdência, direitos trabalhistas, direitos à saúde; redução de acesso a educação,cultura, futuro, comprometimento das reservas naturais e atentados contra o meio ambiente são mecanismos de aniquilamento de corpos indesejados.

 

E.L.A . Foto: Carol Veras

No escuro, uma voz com ligeiro sotaque cearense mergulha na subjetividade de autoimagem e autocrítica para construir uma narrativa. A voz quer que entendamos o corpo, suas dores, limites e prazeres. Que haja um diálogo honesto com outros corpos.

São alguns minutos. De repente, o espetáculo dirigido por Diego Landin, explode num clarão, um branco chocante que de imediato irrita e machuca os olhos de quem vê. Esse choque gera uma sensação de desconforto. Jéssica também sente desconforto quando seu corpo singular, estranho, com o tronco reduzido – esse registro diferente do convencional – chega antes dela para dizer um oi.

Entremeando dados sobre uma possível história dos impositores da beleza, a atriz assume pose de diva pop, desafiando as convenções do olhar atua como ciborgue e vai desconstruindo uma estética. A protagonista acende que é o mesmo patamar de opressão de que são vítimas mulheres, nordestinos, pretos, indígenas, quilombolas, indivíduos com algum tipo de deficiência, periféricos e LGBTs.

O teatro é uma máquina muito poderosa. E.L.A tem um figurino-síntese da peça, criativo, delicado e agressivo, de Yuri Yamamoto, do Grupo Bagaceira de Teatro, que também assina a direção de arte. A iluminação, de Fábio Oliveira, com videomapping, contracena com a atriz. E os músicos Fernando Catatau e Artur Guidugli estão na composição da música Dancing Barefoot.

A montagem mescla momentos de ataque combativos e outros mais líricos, de uma história geral do corpo, às especificidades da trajetória de Jéssica. A artista é muito generosa ao desenhar como os poderosos elegem seus alvos de destruição, das ameaças de manda-chuvas e políticos à saúde do povo.

Com arte, energia, vigor Jéssica celebra a vida. É testemunha de que a vida é extraordinária em muitos aspectos. E comenta quão valioso é estar presente, com a possibilidade de se reinventar e, com muita criatividade, ativar os sentidos.

Ficha Técnica
Elenco: Jéssica Teixeira
Direção: Diego Landin
Diretor de arte: Yuri Yamamoto
Diretor de videomapping: Pedro Henrique
Consultora dramatúrgica: Maria Vitória
Figurinista: Yuri Yamamoto e Isac Bento
Coreógrafa: Andréia Pires
Vocal coach: Priscila Ribeiro
Escultor: Kazane
Trilha Sonora: Diego Landin (Dancing Barefoot por Fernando Catatau e Artur Guidugli)
Cenotécnico: Marsuelo Sales
Iluminador: Fábio Oliveira
Videoclipe: Gustavo Portela
Música do videoclipe: Saúde Mecânica de Edgar
Textos: Jéssica Teixeira, Vera Carvalho e fragmentos de Eliane Robert Moraes e Paul Beatriz Preciado
Produção: Jéssica Teixeira
Realização: Catástrofe Produções

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Cadengue deixa um vazio imenso no teatro

Encenador pernambuco estava remontando espetáculo Em Nome do Desejo. Foto: Reprodução do Facebook

Encenador pernambuco estava remontando espetáculo Em Nome do Desejo. Foto: Reprodução do Facebook

Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.
                                                 Calderón de La Barca

Antonio Edson Cadengue, um dos mais intensos encenadores brasileiros, morreu na madrugada desta quarta-feira (1). De forma súbita. Assim, de repente, como a morte chega e arrebata quem está muito ocupado com sua arte. O diretor, escritor e professor Cadengue preparava a nova montagem de Em Nome do Desejo, a partir da obra de João Silvério Trevisan. No fim de semana exibiu o primeiro ensaio aberto para o dramaturgo e passearam pelas praias de Pernambuco. Parecia feliz em levar de volta aos palcos seu maior sucesso, da década de 1990.

O que é a vida?, pergunta Calderón. Sabemos pouco. Antonio Edson deixa um vazio imenso e isso não é força de expressão. É real. A paixão pelo teatro exalava por seus poros; os olhos brilhavam. E como todo amante defendia sua arte com toda a força. Discordava, brigava. Nunca foi uma unanimidade. Colecionou afetos e alguns desafetos. Viveu profundamente as emoções, que articulava para os palcos.

Cadengue faleceu às 3h30, aos 64 anos. Levou uma queda em casa. Coisa que pode acontecer a qualquer um. Um acidente doméstico. Foi internado na unidade médica do Hospital Hapvida, no Recife. Complicou e chegou a óbito. “Infarto agudo secundário a uma arteriosclerose coronariana, que levou a um edema agudo do pulmão” é o que diz o laudo oficial como causa da morte.

O Teatro Valdemar de Oliveira será o palco para as despedidas, a partir das 8h de quinta (2). É uma merecida homenagem, já que o pesquisador escreveu sua tese de doutorado sobre o Teatro de Amadores de Pernambuco – TAP, do qual o Teatro Valdemar de Oliveira é sede. No livro ele avalia cinco décadas da história do longevo grupo teatral recifense. O trabalho foi publicado em dois volumes pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe).

O sepultamento será no Cemitério de Santo Amaro, às 15h desta quinta-feira.

Antônio Cadengue nasceu em Lajedo, no Agreste de Pernambuco. Foi um dos fundadores da Companhia Práxis Dramática, nos anos 1970, e criou no início da década de 1990 a Companhia Teatro de Seraphim.

Montou clássicos, como Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare, muitas peças de Nelson Rodrigues – Toda Nudez Será Castigada, Senhora dos Afogados, Viúva, Porém Honesta e Doroteia e textos contemporâneos como os de Luís Reis: A filha do teatro, A morte do artista popular e Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade e de Aimar Labaki: Vestígios.

Mas qualquer palavra, essas palavras, tudo isso é muito pouco para falar de um artista tão brilhante, quer se goste ou não da arte que ele fazia. Ele deixa um vazio imenso. O teatro pernambucano está de luto.

Abaixo, um vídeo com um trecho da peça A Morte do Artista Popular, o merengue do Cadengue. Siga na luz.

 

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Amor ao teatro através da crítica

Sábato Magaldi faleceu aos 89 anos. Foto: Bob Souza/colaboração para o blog

Sábato Magaldi faleceu aos 89 anos. Foto: Bob Souza/colaboração para o blog

Sábato Antonio Magaldi atestou que as qualidades fundamentais ao exercício da crítica seriam o amor ao teatro e a boa-fé. Isso é grande. O escritor, ensaísta, crítico, autor de livros de referência na área teatral, professor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 1995, ocupante da cadeira 24, que já foi de Manuel Bandeira, e antes de Sábato pertenceu ao escritor Cyro dos Anjos, tinha o teatro como profissão de fé. Ele pertencia à geração de críticos de teatro da qual também faziam parte Décio de Almeida Prado, Anatol Rosenfeld e Yan Michalski.

Magaldi morreu aos 89 anos, por volta das 23h desta quinta-feira (14), em São Paulo. Ele estava internado desde o dia 2 de julho no Hospital Samaritano com quadro de choque séptico e comprometimento pulmonar. Seu corpo foi cremado em cerimônia no Cemitério Memorial Parque Paulista, no Embu das Artes, na Grande São Paulo, nesta sexta-feira (15). A causa da morte foi insuficiência renal e comprometimento pulmonar. Suas cinzas ficarão no mausoléu da ABL, no Cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro.

Mineiro de Belo Horizonte (MG), Sábato nasceu em 9 de maio de 1927. Antes dos 20 anos de idade escreveu o primeiro artigo publicado no Brasil sobre uma peça de Jean Paul Sartre. Em 1948, aos 21 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro onde concluiu, no ano seguinte, o curso de Direito iniciado na Universidade de Minas Gerais.

Por coincidência, seu primeiro emprego foi como chefe de gabinete do Departamento de Assistência do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado, conduzido pelo escritor Cyro dos Anjos, que ele viria a suceder na cadeira na ABL décadas depois.

Crítico do Diário Carioca de 1950 a 1953, ele sucedeu Paulo Mendes Campos. Em 1952 foi estudar estética na Universidade de Sorbonne, em Paris, como bolsista do governo francês. Na volta, em 1953, foi convidado por Alfredo Mesquita para lecionar História do Teatro na Escola de Arte Dramática, fundada por Mesquita em 1948. Mudou-se para São Paulo e, no mesmo ano, passou a colaborar para o jornal O Estado de S.Paulo como redator e tornou-se, em 1956, titular da coluna de Teatro do Suplemento Literário, trabalhando ao lado de Décio de Almeida Prado, diretor do Suplemento. Quando o Jornal da Tarde foi fundado, em 1966, começou a escrever crítica para o periódico, até 1988. Na EAD criou, em 1962, a disciplina de História do Teatro Brasileiro. Nos jornais Estado e JT atuou como crítico teatral durante 32 anos.

Dizem as boas línguas que parte dos críticos executava o papel de divulgadores dos espetáculos, alguns recebendo gorjetas das companhias teatrais. Vale lembrar que, naquela época, a crítica tinha um papel preponderante para o sucesso ou fracasso de bilheteria das temporadas.

Magaldi. Foto: Edições Sesc/ Divulgação

Magaldi. Foto: Edições Sesc/ Divulgação

Magaldi é autor de Panorama do teatro brasileiro (1962 e 1997, ed. Perspectiva), Moderna dramaturgia brasileira (1998), Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações (1987, ed. Perspectiva), O texto no teatro (1989, ed. Perspectiva), Cem anos de teatro em São Paulo (2000, com Maria Thereza Vargas, ed. Senac), Depois do espetáculo (2003, ed. Perspectiva), Teatro da ruptura: Oswald de Andrade (2004, Global Editora), Teatro sempre (2006, ed. Perspectiva) e Amor ao teatro (2015, Edições Sesc), entre outros.

Foi um dos primeiros a reconhecer o talento de Nelson Rodrigues, nos anos 1950, quando a obra rodriguiana recebia ataques da crítica moralista e conservadora. Em 1980, a pedido de Nelson Rodrigues, de quem era amigo pessoal, organizou uma edição do teatro completo do dramaturgo. O crítico alinhou as 17 peças levando em conta os estilos e procedimentos dramáticos. As peças de Nelson Rodrigues passaram a ser categorizadas como psicológicas, míticas e tragédias cariocas.

Não era um crítico dono da verdade. O teor relativo de suas análises às vezes estava no próprio texto. Sobre a obra rodriguiana publicou uma autocritica em Dramaturgia e Encenações, revendo a apreciação publicada anteriormente no Panorama: “Formado na estética da sobriedade europeia, eu não admitia os extravasamentos, para mim de mau gosto. Hoje, estou convencido de que o melodramático dos textos rodriguianos corresponde à permanência de uma estética popular, que vai da oratória e da frase feita à chanchada. Sou obrigado a reconhecer que também nesse particular o dramaturgo revelava sua profunda brasilidade”.

Também reconheceu o engano quanto a Oswald de Andrade – o modernista foi tema de sua tese de Doutoramento pela Universidade de São Paulo, depois publicada em livro com o título Teatro da Ruptura: Oswald de Andrade. No seu Panorama do Teatro Brasileiro atestava que O Rei da Vela era impraticável de ser levado palco por suas características literárias.

Foi o primeiro secretário municipal de Cultura de São Paulo, quando o cargo foi criado na gestão do prefeito Olavo Setúbal (1975-1979).

Casado por 38 anos com a escritora catarinense Edla Van Steen, era pai de dois filhos. “Ele era casado com o teatro”, comentou Edla várias vezes, que o acompanhava a todos os espetáculos.

Sábayo tinha um olhar apurado para reconhecer talentos de diretores, dramaturgos e atores. Na década de 1960 apontou Plínio Marcos, Leilah Assunção José Vicente, Antônio Bivar e Consuelo de Castro como figuras que ajudaram na renovação da dramaturgia no Brasil. José Wilker, em começo de carreira, recebeu os elogios de Magaldi em O Arquiteto e o Imperador da Assíria (1970, direção de Ivan de Albuquerque,): “já aparece como ator completo, e dominando como poucos a expressão corporal. Dotado de espantosa agilidade, ele é bem o arquiteto de Arrabal, ser primitivo que reina sobre os elementos na ilha deserta”.

A geração de Sábato Magaldi apostou na crítica teatral como instrumento de reflexão a partir de sólida formação humanista. Ele gostava de afirmar que, se acertou em 10% do que escreveu, estava satisfeito.

Ano passado, lançou o livro Amor ao teatro, organizado por Edla Van Steen, reunindo 783 textos críticos, escritos para o Jornal da Tarde entre 1966 e 1988. São 1.224 páginas. Sábato foi crítico teatral desse jornal paulista por 22 anos.

No artigo Sobre a crítica (Teatro em foco. São Paulo: Perspectiva, 2008), Sábato apontava critérios que, a seu ver, deveriam nortear o crítico teatral. Entre elas: identificar a proposta do espetáculo e avaliar se ela foi concretizada a contento em todos os aspectos da encenação: o diretor, os intérpretes, o dramaturgo, o cenógrafo, o figurinista, iluminação, etc.

Clareza, objetividade e honestidade são preceitos básicos na sua visão. Isso acompanhado de um comportamento ético. O crítico não deveria se influenciar por amizades ou desafetos e, para ele, era imprescindível deixar a ranzinzice fora do teatro e longe da mente da hora de escrever. Também alertava que um comentário mais severo não precisa ser rude ou grosseiro. Enfim, uma prática intelectual que deveria ser exercida por pessoas capacitadas, como deveriam ser a profissão de políticos e outras funções públicas que exercem influência nos destinos do país.

Quando Amor ao Teatro foi lançado, o jornalista e crítico teatral Nelson de Sá, da Folha de S.Paulo, enviou para alguns blogs e sites perguntas sobre Sábato Magaldi, para reportagem que foi publicada no jornal paulistano. A seguir as perguntas e respostas do Satisfeita, Yolanda?, sobre esse intelectual que escrevia com elegância, acuidade analítica e generosidade.

Fotomontagem para o lançamento do livro Amor ao Teatro. Foto: Edições Sesc/Divulgação

Fotomontagem para o lançamento do livro Amor ao Teatro. Foto: Edições Sesc/Divulgação

Entrevista // Ivana Moura, sobre Sábato Magaldi

Sábato serviu de modelo para você em algo específico, na prática? Algum livro dele foi mais significativo? A influência dele sobre você, se houve, foi mais como crítico de jornal, como editor (de Nelson Rodrigues, por exemplo) ou como historiador do teatro?
Como sabemos o teatro é uma arte efêmera, cada sessão é única e nada será exatamente repetido. E se hoje é muito fácil conseguir vídeos, informações imediatas, há 20 ou 30 anos isso era muito complicado. Então os escritos de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi ganharam além da dimensão histórica, também uma formativa e informativa. Somos todos devedores a ambos. Para quem mora no Nordeste isso ficava mais evidente e esses textos se tornaram valiosos. Eles direcionaram o nosso olhar e colaboraram na construção da subjetividade e do gosto estético. É lógico que os escritos dos dois vinham impregnados pela ruptura do se fez no início do século 20. Estavam antenados com seu tempo. Absorveram uma nova onda de valores estéticos que chegaram aos palcos do país, a partir da década de 1940, na esteira da vinda dos diretores Zbgniev Ziembinski e Louis Jouvet (ambos aportaram no Brasil no final da década de 1930, fugidos da Guerra). Era uma nova forma de análise dos espetáculos, diferente da que se praticava até então. Comprometidos com a renovação teatral, eles lançaram sementes, com seus textos para diretores, atores e grupos, além de estudantes e futuros críticos. Primeiro, Décio, depois Sábato. Primeiro através dos jornais, que chegavam com atraso de um dia, depois dos livros. Eles foram críticos cúmplices, mas pautados por um determinado modelo. A maneira de pensar a cena ampliava o escopo desses profissionais da função de críticos jornalísticos para o papel de historiadores culturais. Todos os livros de Sábato são importantes para mim. Iniciação ao Teatro foi o livro dos primeiros passos. Panorama do Teatro Brasileiro foi fundamental (apesar de sempre achar que essa amplitude de brasileiro não abarcava a multiplicidade do que existia fora do eixo Rio-São Paulo). Aspectos da Dramaturgia Moderna foi livro de cabeceira durante algum tempo. O que mais admiro é o trabalho que ele desenvolveu sobre a obra de Nelson Rodrigues. Foi ele que lançou luz sobre a amplitude da obra do Nelson, dissecou questões, desafiou outras posições, e defendeu esses textos como poucos. É um valioso trabalho.

Sábato detalhou uma fórmula para a crítica teatral: Detectar a proposta da peça, julgar sua qualidade e salientar sutilezas, escrevendo com clareza, honestidade e conhecimento da história do teatro. À luz do que você mesma escreve, hoje, você ainda considera esses conselhos úteis? Alteraria alguma coisa? Priorizaria qual ou quais deles?
Os conselhos de Sábato são úteis, mas para analisar o teatro contemporâneo esse modelo é insuficiente. Todos os pontos da fórmula são válidos. Mas a profusão de significados e ressignificações exigem outras ousadias. Sábato Magaldi é o mais profícuo dos críticos, publicou mais livros sobre história do teatro brasileiro e ainda faz atualização de sua obra. Mas ele mesmo utilizava superlativos e adjetivos que são pouco convincentes para a feitura de uma crítica de espetáculo hoje.

Em suma, o que diferencia o que você faz no Satisfeita, Yolanda? do que ele fazia no JT?
Acho que os críticos de hoje podem até usar as bengalas das fórmulas da crítica moderna, essa que Sábato nos ensinou, mas têm que ampliar horizontes nas contextualizações desse mundo, em que mais ninguém é senhor absoluto de um julgamento estético da cena. Vivemos de incertezas, os riscos são grandes. E não temos nenhuma hegemonia, como ocorreu a vida inteira com o Sábato.

Sábato descrevia Décio de Almeida Prado como “mestre de todos os que o secundaram”, ele inclusive, Sábato. O que os escritos de Sábato têm de diferente em relação a Décio?
Décio de Almeida Prado sempre me pareceu o mais sóbrio, o mais equilibrado dos críticos brasileiros. E com um vocabulário com menos adjetivos. Aquele que nas suas análises criava hipóteses para defender. Seu livro Exercício findo me orientou durante muito tempo, como os jovens artistas plásticos a imitar os mestres nos trabalhos.

Sábato Magaldi sistematizou obra de Nelson Rodrigues. Foto: Carlos/Cedoc/ Funarte

Sábato Magaldi sistematizou obra de Nelson Rodrigues. Foto: Carlos/Cedoc/ Funarte

Depoimentos

“Com a morte do professor Sábato Magaldi fecha-se, ao menos em termos cronológicos (mas não de influência) o ciclo da crítica ao teatro moderno no Brasil. Os dois outros grandes críticos centrais dessa cena (no meu ponto de vista) foram Décio de Almeida Prado e Anatol Rosenfeld. A estes o teatro deve, além da atividade crítica e pedagógica propriamente ditas, a colaboração na construção de uma cena nova, a partir dos anos 40 do século passado. Foram eles os incentivadores e em certa medida os orientadores informais de toda uma geração de artistas, na época em que os sistemas estéticos ainda eram mais firmes e a crítica ainda podia fazer valorações categóricas a partir deles. Sábato Magaldi deixa também obras de referência na área da Historiografia e estudos pontuais ainda hoje indispensáveis, sobretudo em torno da dramaturgia. A compreensão das obras de Nelson Rodrigues e Jorge Andrade, por exemplo, não seria a mesma sem ele. Evoé, jovens críticos vivos! É bom não esquecer que quando se está procurando caminhos novos para o teatro e a crítica é com uma História deste tamanho que querendo ou não se está dialogando. Quem chamou para si a tarefa tem que honrar, do seu modo próprio e autônomo, essa geração.”
Kil Abreu, jornalista e crítico teatral

“Exemplo de grandeza humana e intelectual, a morte de Sábato Magaldi me deixa em completo desalento, sinto-me enlutado. Em 1982 me recebeu para fazer prova de ingresso no mestrado e, desde então, nos tornamos amigos; mais que amigos, tivemos uma relação de mestre-discípulo, sem nenhuma cartilha a ser seguida. Deixava-nos livres para pensar, duvidar. Ele “pegou-me pela mão” e, como um pai, foi muito afetivo. Com sua solidez de conhecimentos e sua tenacidade crítica, apresentou-me um “outro” teatro brasileiro, cheio de nuanças e ambiguidades. Suscitava o desejo permanente de estudarmos a História do Teatro Brasileiro. E, sob sua orientação, pude concluir minha dissertação de mestrado (1989) e a tese de doutorado (1991), sobre o Teatro de Amadores de Pernambuco, cujo resultado foi publicado pela CEPE e SESC Pernambuco, em 2011: TAP – SUA CENA & SUA SOMBRA: O Teatro de Amadores de Pernambuco (1941-1991), para cuja edição escreveu o prefácio. Sou extremamente grato a este homem de teatro, este homem singular, que foi movido pelo amor à docência e ao teatro. Um HOMEM como poucos”.
Antonio Cadengue, encenador

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