Arquivo da tag: Rodrigo Mercadante

A reinvenção de Canudos para além do massacre
Crítica de Restinga de Canudos, da Cia do Tijolo

Rodrigo Mercadante (Euclides da Cunha), Odília Nunes e Dinho LIma Flor (Conselheiro). Fotos: Alécio Cezar / Divulgação

PRÓLOGO

A temporada de Restinga de Canudos foi curtíssima, de 14 de março a 27 de abril, no Sesc Belenzinho, em São Paulo. Temporada com ingressos totalmente esgotados. Ora, direis: “Mas é o tempo padrão do Sesc para as temporadas atualmente”. Foi curtíssima, repito. Então gestores de instituições, curadores, gente que decide quem vai existir nos palcos e nos festivais, pessoas de pequenos médios e grandes poderes da cena teatral brasileira por favor, por gentileza, programem Restinga de Canudos no seu domínio. A circulação deste espetáculo por diferentes regiões do país pode possibilitar que outros públicos estabeleçam suas próprias conexões com esta potente releitura de nossa história coletiva.

Agora que já insinuei o tom, digo que assisti ao espetáculo da Cia do Tijolo três vezes. Assistiria mais três se tivesse ficado mais um período em São Paulo. Essa trupe – que tem como núcleo aderente (só para fazer contraste com a ideia de núcleo duro) Dinho Lima Flor, pernambucano de Tacaimbó, o mineiro Rodrigo Mercadante e a paulista Karen Menatti faz uma das coisas que mais gosto nas artes cênicas. Pois, o teatro, tão generoso que é, ganha no corpo e no espírito desse bando muitas configurações. O processo para o grupo é precioso, tanto ou quanto o resultado final. E com isso a encenação recebe muitos contornos ao longo da temporada. Dinho Lima Flor acrescenta e tira coisas a partir do embate afetivo com o público.

Um espetáculo do Tijolo nunca é o mesmo na estreia e no final da temporada. Haverá quem ache isso ruim, quem tenha aquele pensamento preso de que essa arte viva — viva! — poderia ficar guardada, imutável, dentro de uma caixa (mesmo que seja uma caixa cênica). Portanto, e daí?

Restinga de Canudos. Foto: Alécio Cezar / Divulgação

Restinga de Canudos. Foto: Alécio Cezar / Divulgação

Em Guará Vermelha, peça anterior do Tijolo, a atriz pernambucana Odília Nunes insiste: “Aqui você tem tempo”. E o elenco entoa a música de Jonathan Silva para ninguém ter dúvidas: “Desacelera o passo, dance fora do compasso, bem devagarinho sem fazer estardalhaço”.

Esse é um dos marcadores da companhia tão paulista (pois sua sede é em sp) quanto mineira e nordestina e principalmente brasileira, de uma brasilidade ossobuco. O tempo se dilata em suas encenações. Mas eles são exigentes para que xs camaradxs se tornem presentes no tempo presente.

Público de uma das sessões de Restinga de Canudos

As professoras (Karen Menatti e Odília Nunes) lembram que em Canudos tinha escola, fato pouco conhecido

A professora Silvia Adoue participou da temporada comentando e criando pontes entre acontecimentos

No teatro contemporâneo brasileiro, poucas companhias têm demonstrado tanta persistência e coerência na investigação de nossa memória histórica quanto a Cia do Tijolo. Restinga de Canudos marca o ápice desse percurso investigativo, propondo uma radical inversão de perspectiva sobre um dos episódios mais traumáticos da formação republicana brasileira. A montagem emerge como uma escavação poética dos escombros submersos do Açude de Cocorobó, onde jazem sepultadas as ruínas físicas da comunidade de Canudos, mas sobretudo as vozes e histórias que a historiografia oficial e mesmo a literatura canônica silenciaram.

A montagem desloca o foco narrativo do já exaustivamente documentado massacre final para o que há de mais subversivo na história de Canudos: a vida cotidiana de uma comunidade que ousou existir segundo seus próprios termos, à margem das imposições do nascente estado republicano. Tal escolha cênica constitui um posicionamento ético-político deliberado, que reinterpreta a própria compreensão do movimento liderado por Antônio Conselheiro.

A dramaturgia construída por Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante opera uma delicada tessitura entre diferentes temporalidades. Ao eleger duas professoras (Karen Menatti, Odília Nunes) como fios condutores da narrativa, a peça estabelece uma ponte entre presente e passado, confrontando o público com uma pergunta inescapável: o que poderia nos ensinar hoje a experiência comunitária de Canudos, para além da narrativa do martírio?

Há uma evidente intenção benjaminiana nesta abordagem. Walter Benjamin, em suas teses Sobre o Conceito de História, propõe que arrancar a tradição do conformismo é tarefa das gerações presentes. Restinga de Canudos parece responder a este chamado, escovando a história a contrapelo para resgatar as potências revolucionárias que o discurso historiográfico dominante soterrou. A professora e pesquisadora Silvia Adoue (Unesp e Florestan Fernandes), que atuou durante a temporada como mediadora entre o público e os acontecimentos encenados, personifica essa consciência histórica que busca romper com a linearidade do tempo homogêneo e vazio da narrativa oficial.

A peça evita habilmente tanto a monumentalização do heroísmo de Conselheiro quanto a vitimização melodramática dos massacrados. Em vez disso, oferece uma composição coral onde ganham destaque as micropolíticas do cotidiano: as relações de trabalho, as práticas religiosas, a educação, as festas. Nesta perspectiva, Canudos emerge enquanto laboratório social interrompido pela violência de Estado, superando a noção de excepcionalidade condenada ao fracasso.

Os bambus da festa

Os bambus da guerra

Danilo Nonato, na cena em que tenta fugir dos tiros

Na direção de Dinho Lima Flor, observa-se uma notável economia de recursos a serviço de uma poderosa construção metafórica. O espaço cênico, concebido pela própria companhia em colaboração com Douglas Vendramini, transforma o palco em plataforma arqueológica onde objetos, corpos e memórias são desenterrados das águas do tempo.

A cenografia evita o caminho fácil da reconstituição histórica realista, optando por uma abstração que remete simultaneamente à aridez do sertão baiano e à liquidez da memória submergida. Os objetos cênicos possuem qualidade metamórfica, assumindo diferentes funções ao longo da narrativa: um mesmo elemento,  – como por exemplo os bambus – ora funciona como ferramenta de trabalho, ora uma arma, ora um objeto ritual. Esta pluralidade significativa material ecoa a própria proposta dramatúrgica de multiplicidade de perspectivas.

O trabalho corporal desenvolvido sob orientação de Viviane Ferreira requer particular atenção. O elenco demonstra impressionante versatilidade ao compor diferentes tipos sociais e animais sem recorrer a estereótipos, apresentando corpos marcados pelas experiências histórico-sociais específicas: o trabalho, a devoção, a resistência. O conjunto formado por Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai e Vanessa Petroncari entrega uma performance coletiva potente, onde Jaque e Danilo injetam uma energia juvenil vibrante às suas composições. Há uma corporalidade sertaneja peculiar sendo investigada aqui, que se manifesta tanto nos momentos de tensão dramática quanto nas sequências de celebração e ritos religiosos.

A iluminação desenhada coletivamente pela companhia e por Rafael Araújo é elemento crucial para a construção da temporalidade dilatada do espetáculo. O jogo entre claridade ofuscante – remetendo ao sol inclemente do sertão – e penumbra que evoca o fundo do açude articula diferentes planos narrativos, permitindo transições fluidas entre os tempos históricos.

Músicos do espetáculo

Jonathan Silva, autor das músicas originais

A musicalidade em Restinga de Canudos funciona como alicerce fundamental da construção dramatúrgica. Executadas ao vivo pelo quarteto de músicos-atores – Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva e Juh Vieira – as composições originais de Jonathan Silva resgatam elementos sonoros da tradição nordestina e os transformam através de um diálogo com referências atuais.

Os cantos coletivos assumem função reminiscente dos coros gregos, comentando a ação, amplificando tensões e estabelecendo o substrato mítico-religioso que permeia a experiência histórica de Canudos. O tratamento vocal explorando timbres rústicos e técnicas de canto popular confere autenticidade ao tecido sonoro do espetáculo.

Essa trato musical aponta para uma compreensão profunda do que Mikhail Bakhtin denominaria “cultura popular carnavalesca” – aquela dimensão das práticas culturais populares que, ao mesmo tempo que incorpora elementos religiosos e tradicionais, subverte-os em potência transformadora e criativa. A religiosidade de Canudos, longe de ser apresentada como obscurantismo ou alienação, aparece em sua dimensão libertadora e como base para sociabilidades alternativas.

Dinho Lima Flor

Rodrigo Mercadante ao centro 

É notável como Restinga de Canudos se inscreve no campo do teatro político contemporâneo sem incorrer nos vícios comuns do gênero – como o didatismo excessivamente simplificador ou a abstração formal desconectada da realidade social. A peça estabelece um diálogo produtivo com a tradição do teatro épico brechtiano, incorporando procedimentos de distanciamento crítico e historicização, mas o faz sem abdicar da potência afetiva e da intensidade dramática dos enfrentamentos encenados.

A opção por privilegiar o olhar das professoras como mediadoras da narrativa carrega a filiação do projeto à pedagogia crítica de Paulo Freire, referência explícita no percurso da Cia do Tijolo. Esta escolha permite estabelecer um campo de tensão produtivo entre memória e história, entre experiência vivida e conhecimento sistematizado. O espetáculo materializa o que Freire chamaria de “pedagogia da pergunta”, convocando o espectador não à absorção passiva de informações históricas, mas ao questionamento ativo de suas próprias concepções sobre o passado e o presente brasileiros.

Restinga de Canudos abraça a complexidade da contradição sem recorrer a simplificações maniqueístas. Não há, aqui, heróis imaculados ou vilões caricatos, mas seres humanos concretos enfrentando as tensões de seu tempo histórico.

Entre ruínas e utopias: a atualidade implacável de Canudos

Uma grande virtude de Restinga de Canudos é sua capacidade de fazer emergir, da aparente especificidade histórica do evento retratado, questões de contundente atualidade. Ao deslocar o foco do espetáculo do massacre final para a construção cotidiana da comunidade, a montagem permite que reconheçamos no experimento de Canudos não um episódio encerrado no passado, mas um laboratório social cujas lições permanecem vivas e urgentes.

A construção cênica da experiência educacional desenvolvida em Canudos, através das professoras que protagonizam a narrativa, estabelece conexões poderosas com debates contemporâneos sobre educação libertadora e descolonização do conhecimento. A comunidade de Belo Monte aparece, assim, como precursora de movimentos sociais atuais, antecipando em sua prática questões como a autogestão, a soberania alimentar e a resistência territorial.

Há uma sutil analogia entre o afogamento literal de Canudos sob as águas do açude – ato simbólico de apagamento da memória coletiva – e os processos contemporâneos de silenciamento e invisibilização das experiências populares de resistência. O espetáculo nos confronta com a persistente incapacidade da sociedade brasileira em reconhecer e valorizar as formas de organização social que emergem das classes populares, além da violência sistemática empregada para suprimi-las.

Restinga de Canudos deixa não o conforto da catarse, mas a inquietação produtiva de quem se depara com a permanência do passado no presente. O espetáculo realiza, dessa forma, o propósito nobre do teatro político: não oferecer conclusões definitivas, mas abalar convicções estabelecidas, provocar deslocamentos de perspectiva e estimular um novo olhar sobre realidades que julgávamos conhecer.

Na atual conjuntura brasileira, marcada por intensas disputas em torno da memória histórica e dos projetos de futuro, Restinga de Canudos emerge como uma intervenção necessária e corajosa. A Cia do Tijolo, com sua trajetória de investigação das matrizes populares da cultura brasileira, consolida-se como um dos coletivos teatrais mais relevantes e instigantes do cenário nacional. Seus espetáculos constituem verdadeiros acontecimentos de pensamento que ampliam as fronteiras do possível, tanto no campo artístico quanto no político.

Por fim, é preciso reconhecer que Restinga de Canudos realiza plenamente aquilo que Giorgio Agamben define como a tarefa do contemporâneo: fixar o olhar em seu tempo não para perceber suas luzes, mas para contemplar suas sombras; não para confirmar o já sabido, mas para revelar o que permanece obscurecido pela narrativa dominante. Nesse sentido, a montagem constitui um gesto político no presente – uma intervenção que, ao restituir vida às vozes submersas de Canudos, convida-nos a imaginar outras formas possíveis de comunidade e existência coletiva.

Tudo isso ainda diz muito pouco sobre a obra. Muito a refletir. Outros textos ficam para a próxima temporada. 

FICHA TÉCNICA

Criação e dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção geral: Dinho Lima Flor
Elenco: Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai, Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva, Juh Vieira
Atriz colaboradora: Vanessa Petroncari
Movimento e corpo: Viviane Ferreira
Composições originais: Jonathan Silva
Direção musical: Cia. do Tijolo e William Guedes
Desenhos: Artur Mattar
Cenário: Cia. do Tijolo e Douglas Vendramini
Assistência de cenotécnica: Tati Garcez e Gonzalo Dorado
Figurino: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Iluminação: Cia. do Tijolo e Rafael Araújo
Som: Hugo Bispo
Fotos: Alécio Cézar e Flávio Barollo
Design gráfico: Fábio Viana
Assessoria de imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Direção de produção: Garcez Produções (Suelen Garcez)
Produção executiva: Suelen Garcez
Assistência de produção: Tati Garcez

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Você está me ouvindo?
Isso é um estrondo estético-político
Crítica: Pai contra mãe

Aysha Nascimento e Flávio Rodrigues em cena de Pai contra mãe ou Você está me ouvindo? Foto: Marcelle Cerutti / Divulgação

Nem todos compreendem em profundidade palavras como atroz e impiedoso quando se referem ao arcabouço do racismo entranhado na sociedade brasileira. E não é uma questão de cognição. (Ou é???) De todo modo, o entendimento não atravessou o corpo (da branquitude). Por isso é preciso dizer de novo, mostrar, para ver se desperta alguma sensibilidade adormecida. Você está me ouvindo?

Os adjetivos são tentativas de nomear o inominável. “…Cruel, desumano e aterrorizante é a herança escravocrata materializada na miséria e nas desigualdades raciais e sociais que vivemos e convivemos até os dias atuais. Uma espécie de necropolítica (Mbembe, 2018) cotidiana acaba por decidir quem sobreviverá ou não”, escreve Jé Oliveira, diretor e dramaturgo do espetáculo Pai contra mãe ou Você está me ouvindo?, no programa da peça.

Nem todos sentem na própria pele as feridas abertas que o sistema racista, patriarcal e misógino continua a infligir diariamente em nossa existência coletiva. O Coletivo Negro, com maestria, destrincha brechtianamente esse rosário de violências sistêmicas na peça livremente inspirada no conto de Machado de Assis, Pai contra mãe, escrito em 1906 – uma obra que, mesmo após mais de um século, continua a ecoar verdades, pois as engrenagens opressoras permanecem erguidas, sustentando os alicerces de nossa coletividade fraturada. 

No conto Pai contra Mãe, Cândido Neves, o Candinho, um homem branco e “livre”, mas desempregado e afundado em dívidas, sobrevive de favor com sua esposa grávida, Clara, na casa de Tia Mônica. Pressionado pelo proprietário que exige o pagamento do aluguel atrasado e pela tia, que sugere entregar o recém-nascido à roda dos enjeitados caso não obtenha recursos, ele se sente encurralado. Em seu desespero, Candinho se torna “capitão do mato avulso” e recorre à captura de uma escravizada fugitiva em troca da recompensa oferecida.

 Já na versão cênica do Coletivo Negro, essa subjugação ganha contornos contemporâneos e mais complexos: Osvaldo, homem negro recém-empregado como vigilante de supermercado, persegue Zaíra da Conceição, mulher negra retinta, após um alerta do sistema de monitoramento que a acusa falsamente de furto. Ele a conduz à força para um reservado do estabelecimento – uma espécie de senzala particular – onde a pressiona violentamente durante o interrogatório, provocando o aborto. 

O espetáculo expõe brilhantemente a perspectiva interseccional de camadas sobrepostas de opressão: Osvaldo, mesmo sendo negro, exerce poder institucional sobre Zaíra, porém permanece subjugado pelo sistema capitalista neoliberal que o emprega precariamente. Esse intrincamento demonstra como raça, classe e gênero se entrelaçam, criando hierarquias mesmo entre os historicamente oprimidos – mas reservando às mulheres negras o lugar mais vulnerável dessa estratificação social.

O supermercado como cenário teatral estabelece um paralelo significativo entre a escravidão histórica e as estruturas do capitalismo tardio. Enquanto no conto machadiano, a perseguição a Arminda ocorre abertamente nas ruas coloniais, o espaço comercial funciona de forma mais sutil, porém igualmente eficaz. As câmeras de vigilância, protocolos de segurança e monitoramento constante substituem as correntes físicas do passado, mantendo, contudo, sua função essencial: limitar a autonomia e explorar o trabalho sob uma aparência de normalidade e ordem social estabelecida. O que evidencia como práticas opressivas se adaptam e se revestem de novas formas ao longo do tempo.

A maternidade interrompida permanece como elemento central em ambas narrativas, mas com potências distintas. Se no conto original o aborto de Arminda é narrado friamente com efeito calculadamente cortante, na peça teatral este fato torna-se nevrálgico para o desfecho que projeta-se como um “se liga, mano”.

Thiago Sonho, Lua Bernardo e Maurício Pazz: músicos que tocam na peça. Foto: Marcelle Cerutti / Divulgação

Criadas especificamente para o espetáculo, as composições musicais operam como pontes temporais que conectam passado ao presente. Na tessitura cênica elaborada por Jé Oliveira, a dimensão musical estabelece-se como uma dramaturgia sonora, onde letras e melodias constituem uma poética  própria da encenação, amplificando questões cruciais sobre ancestralidade e resistência.

A proposta musical posiciona-se como elemento estruturante da narrativa épica, executada pelo trio formado por Lua Bernardo (baixo acústico e elétrico, sopros e voz), Maurício Pazz (bandolim, violão, guitarra, cavaco e voz) e Thiago Sonho (percussão, bateria, samplers e voz). Assinadas por Oliveira em parceria com Jonathan Silva – responsável pelas melodias – , as composições articulam uma linguagem que atravessa tempos históricos distintos, costurando o Brasil colonial ao contemporâneo através de estruturas rítmicas que funcionam como arquivo vivo da memória afrodiaspórica.

Entre tradições percussivas de matriz africana e experimentações sonoras contemporâneas, entre jogos vocais que remetem aos cantos de trabalho e harmonizações que dialogam com o jazz e a música experimental, a paisagem sonora da montagem reforça o que o texto aponta: a persistência dos sistemas de opressão sob novas máscaras.

A música em Pai contra Mãe ou Você está me Ouvindo? reivindica escuta e desestabiliza certezas – elementos fundamentais para uma obra que, longe de oferecer respostas consoladoras, insiste em formular as perguntas perturbadoras que a sociedade brasileira continua a evitar. Particularmente emblemática é a composição Quem manda no mundo não muda, concretizando sonoramente o argumento central da montagem.

Flávio Rodrigues como narrador: Machado de Assis. Foto: Marcelle Cerutti / Divulgação

A vocalização de Flávio Rodrigues como narrador — um Machado de Assis materializado e retinto — provocou-me um impacto desconcertante logo nas primeiras cenas. O ator inicia sua atuação pelo caminho do estranhamento e do deboche calculado, uma escolha que potencializa os aspectos mais incômodos do texto machadiano. Seu trabalho vocal evolui gradativamente, transformando o distanciamento irônico em uma contundente crítica social, num movimento que espelha a própria estratégia narrativa da peça. A decisão de representar o autor como um homem negro retinto funciona como dispositivo cênico que robustece a identidade racial do escritor, frequentemente embranquecida pela historiografia tradicional.

Jé Oliveira demonstra notável maturidade ao orquestrar os diversos elementos cênicos em uma narrativa coesa e impactante. O adensamento de sua poética como encenador (Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens; Gota d’Água {Preta}) manifesta-se na precisão com que articula música, atuação, cenografia e projeções, criando um todo integrado onde cada componente amplifica o efeito dos demais. Ao provocar questionamentos complexos, Oliveira confirma profunda compreensão do teatro como espaço de reflexão política. Com habilidade singular, o diretor equilibra momentos de densidade com necessários respiros poéticos, conduzindo o público por uma experiência teatral marcante.

Um dos aspectos mais contundentes da encenação é a coragem de apresentar racismo e classe como sistemas de opressão interdependentes. A montagem não romantiza a negritude nem reduz as complexas relações raciais brasileiras a esquemas simplistas. Ao contrário, escava as contradições internas das desigualdades racializadas.

Com agudeza crítica, a encenação expõe a fragmentação interna da comunidade negra mencionada por Oliveira, explorando como determinados indivíduos não se reconhecem como negros ou negam a existência do racismo. Mais que isso, a obra desnuda os mecanismos de dominação que estrategicamente posicionam negros contra negros, mulheres contra mulheres ou pobres contra pobres, transformando potenciais aliados em adversários. Essas engrenagens conseguem  fragmentar grupos que, unidos, poderiam desafiar os poderes opressivas.

Elenco: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues e Raphael Garcia

A cenografia concebida por Flávio Rodrigues traduz materialmente as metáforas sobre o corpo negro na sociedade brasileira. O uso do plástico como elemento central aparece potente em sua polissemia: ora sugere o mar que trouxe os escravizados, ora se transforma em envoltório que cobre corpos assassinados, ora sufoca como as estruturas opressivas que limitam a respiração social. Este material barato e descartável, funciona como alegoria para a objetificação histórica dos corpos negros no Brasil.

As projeções ampliam a potência do cenário, estabelecendo conexões imagéticas entre o passado colonial e o presente neoliberal. Esta camada sobreposta aos elementos físicos cria profundidades que enriquecem simultaneamente a experiência estética e o impacto político do espetáculo, evidenciando continuidades históricas através de uma linguagem iconográfica contemporânea.

A atuação do elenco constitui um dos pilares de força da montagem. Aysha Nascimento, como a mãe escravizada, constrói uma presença cênica que oscila entre a fragilidade imposta pela pressão social e a força interior de quem resiste. Seu corpo comunica tanto quanto suas palavras, numa performance física intensa que materializa o sofrimento e a resistência.

Raphael Garcia, interpretando o pai endividado, navega com precisão pelos territórios moralmente ambíguos de seu personagem, evitando tanto a demonização simplista quanto a absolvição fácil.

Já Flávio Rodrigues, como narrador-Machado, estabelece um vínculo direto com a plateia que ora convida à cumplicidade, ora provoca desconforto necessário.

Os três atores demonstram notável cumplicidade cênica, que dá sustentação às complexas camadas do espetáculo.

Pai contra Mãe ou Você está me Ouvindo? chega como um manifesto estético-político que ressignifica a obra original de Machado de Assis à luz das urgências contemporâneas. No desfecho da obra, o Coletivo articula uma mensagem direta de conscientização, convocando especialmente a comunidade negra a fortalecer seus laços de resistência coletiva. O recado para os “manos se ligarem” evidencia a persistência de uma lógica perversa: nas disputas por sobrevivência e dignidade, quem está em posição de desvantagem estrutural inevitavelmente arca com o preço mais alto. Então, o peso das crises econômicas, da violência estatal e das injustiças sociais recai desproporcionalmente sobre a população negra e periférica.

 

Pai Contra Mãe Ou Você Está Me Ouvindo?

Ficha Técnica

Idealização, Concepção, Dramaturgia e Direção Geral: Jé Oliveira
Assistência de Direção: Rodrigo Mercadante
Atuação: Aysha Nascimento / Flávio Rodrigues / Raphael Garcia
Direção de Movimento e Coreografia: Aysha Nascimento
Direção Musical: Guilherme Kastrup e Jé Oliveira

Banda:
Baixo Acústico e Elétrico, Sopros e Voz: Lua Bernardo
Bandolim, Violão, Guitarra, Cavaco e Voz: Maurício Pazz
Percussão, Bateria, Samplers e Voz: Thiago Sonho
Composições Originais: Jé Oliveira e Jonathan Silva
Melodias: Jonathan Silva
Arranjos: Guilherme Kastrup, Jé Oliveira, Lua Bernardo, Maurício Pazz e Thiago Sonho
Preparação de canto: William Guedes

Videografia: Bianca Turner
Light Designer: Matheus Brant
Assistência e Operação de Luz: Aline Sayuri
Figurinos: Eder Lopes
Costureira: Nininha Lopes
Cenografia: Flávio Rodrigues
Cenotécnico: Wanderley Wagner
Serralheiro: Mauricio Batista
Engenharia de Som: Tomé de Souza
Contrarregras: China, Billy e Flávio Serafin
Fotos: Marcelle Cerutti
Identidade Visual: Murilo Thaveira
Participação em Vídeo: Lilian Regina e Sidney Santiago Kuanza
Estudos teóricos e oficinas: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Jé Oliveira e Raphael Garcia
Produção Executiva: Catarina Milani
Assistência de Produção: Éder Lopes
Produção Geral: Gira Pro Sol Produções – Jé Oliveira

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

“Aqui você tem tempo”
Crítica de Guará Vermelha,
espetáculo da Companhia do Tijolo

 

Guará Vermelha é uma livre adaptação para o teatro do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende. Foto: Ivana Moura

Trabalhadores do espetáculo da Companhia do Tijolo. Foto: Ivana Moura

Alguém do elenco de Guará Vermelha, espetáculo da Companhia do Tijolo, escreve na lona, que serve de quadro e chão: “Aqui você tem tempo”. Que convite fascinante e irrecusável neste mundo capitalista, que nos rouba o sono e o desejo na sanha de consolidar no imaginário de que tempo é dinheiro. Não meus amigos. Tempo é muito mais que o vil metal. Danem-se as campanhas publicitárias e os donos das grandes fortunas que insistem nessa tecla. Tempo é vida que pulsa, feito a flor de Drummond que rasga o asfalto contrariando as regras. Tempo pode ser haicai ou poema épico e assim vai.

A trajetória do Tijolo tem dessas coisas de comungar. De partilhar as horas, de esticar o encontro numa troca de muitas bonitezas (mesmo ao apontar lados sombrios). Às vezes a trupe vai tão fundo nas humanidades que até dói. Mas investe no caminho da cura, devagarzinho. É uma aposta no caminho freiriano da educação como prática da liberdade, do aprendizado e formação do ser, da celebração coletiva, da atuação no mundo com arte no teatro.   

Na maioria das vezes, as montagens são longas, urdindo fabulações que parece aquela música do Gilberto Gil, Entra em beco e sai em beco, cuja personagem começa sentada numa pedra.

As pedras estão em toda parte em Guará Vermelha. No meio do caminho. Pedra bruta do cotidiano. No lombo do ajudante da construção civil iletrado, que conta histórias com a maestria de Sherazade (narradora dos contos de As Mil e Uma Noites). Na educação pela pedra de João Cabral. Na pedra que ensina à criatura da aridez geográfica e humana.  

Pedrinhas que simbolizam pessoas que passaram e seguiram. Elas se fazem presentes. Pedras que podem traçar as pistas do itinerário, mas os apressados transeuntes desmancham sem nem notar. Pedras que entram na constituição de casas, escolas e teatros.  

Cena de Guará Vermelha, com Thaís Pimpão no papel de Anginha ao centro. Foto Ivana Moura

Guará Vermelha, a peça, se ergue em livre adaptação do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende, que fala das necessidades afetivas, das fomes e carências dos que são achatados na pirâmide social e da epifania do encontro. São muitas coisas, muitas emoções da perspectiva dos oprimidos que a pedagoga, educadora popular (que colaborou com o professor Paulo Freire nas suas andanças pela educação) e escritora, Maria Valéria Rezende provoca e o Tijolo põe em cena.

O espetáculo tem direção de Dinho Lima Flor e um elenco grande, como gosta o Tijolo, de se ajuntar. Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes.

As personagens Irene e Rosálio,. Foto Ivana Moura

A atriz Karen Menatti e o ator Rodrigo Mercadante. Foto: Ivana Moura

O encontro de dois seres.. Foto: Ivana Moura

Irene (Karen Menatti) e Rosálio, (Rodrigo Mercadante) são os protagonistas, mas outras figuras acendem na cena – Anginha (Thaís Pimpão), João dos Ais (Jonathan Silva), Floripes (May Tuti), Beto do Fole (Nanda Guedes), Gaguinho de nome de pia Eustáquio (Odilia Nunes) e outros. O grupo faz também citações e homenagens: Conceição Evaristo, Ivone Gebara, Lourdes Barreto, Margarida Maria Alves, Abdias Nascimento, Antônio Candido, Nêgo Bispo, Paulo Freire. E muito mais.

“Das fomes e vontades do corpo há muitos jeitos de se cuidar porque, desde sempre, quase todo o viver é isso, mas agora, crescentemente, é uma fome da alma que aperreia Rosálio, lá dentro, fome de palavras, de sentimentos e de gentes, fome que é assim uma sozinhez inteira, um escuro no oco do peito, uma cegueira de olhos abertos e…”, começa o livro de Rezende.

A peça arde com festejo da re-união. Uma celebração à vida, com elenco e uma boneca gigante de Maria Rezende, a interação das atrizes e dos atores com público ofertando pedra ou pedrinha e discorrendo sobre a força real e simbólica do mineral.

Afeto, simpatia, amor, amizade se entrelaçam numa rede para tratar de consciência de classe, opressão, injustiças e lutas. “Para onde fugiu a humanidade?”, pergunta atônito Rosálio, filho de mãe solteira, o Nem Ninguém que depois é chamado de Curumim e, que conquista a existência civil com o nome na documentação de Rosálio da Conceição.  

Ele inventou esse nome para si mesmo. Um primeiro passo para erguer-se como protagonista de sua própria história. A trajetória da personagem é tão mirabolante – escravizado, mira de revólver, mineração, libertação com a doação de pepita de ouro da velha senhora, voo de avião, nuvens, a escravização do liberalismo econômico (“Comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu, comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu”) que parece história de trancoso das “comunidades narrativas” da tradição oral do Nordeste do Brasil.

Rosálio analfabeto carrega consigo uma pequena mala com alguns livros (“Os livros são objetos transcendentes / mas podemos amá-los do amor táctil”, canta Caetano).  Esses livros que cultiva são a fortuna de Rosálio, que correu o mundo motivado pela vontade de aprender a ler. (Isso é de chorar de alegria, num país que parte da população cultiva a bala como forma de intolerância). Rosálio não conseguiu o letramento nos lugares óbvios. Até se deparar com Irene.

Irene saiu do Norte. Em São Paulo vive/viveu da prostituição e pega/pegou Aids. No jogo de narrar e interpretar o grupo explica a diferença do HIV na década de 1980, com menos recursos de tratamento, mais desinformação e discriminação, para os dias atuais, quando a doença pode ser controlada, embora o preconceito seja um grande inimigo. Irene é uma prostituta que envelheceu com a doença, não consegue muitos clientes e tem que pagar para a mulher que cuida do seu filho.

No livro, existia um tal de Romualdo no passado de Irene. Mas a dramaturgia e a direção fizeram bem em diluir essa figura na cena.

A essência de Rosálio sintoniza com a essência de Irene. Mesma frequência de empatia com os seres viventes. Ele sentia a dor do corte no corpo quando arranjou um serviço de derrubar árvores. Um sagui e uma guará povoam a memória de cada uma dessas figuras como impulsionadores de compaixão.

A guará vermelha do título é uma ave de cor magnífica, bico fino, longo e levemente curvado para baixo. Pega essa pigmentação de plumagem rubra porque se nutre dos caranguejinhos vermelhos dos mangues. E é muito interessante saber que no cativeiro, com outras comidas, as plumas “desbotam”. Um paralelo com nós mesmos: somos também o que nos alimentamos no corpo, imaginário, espírito, utopias etc.

O público dança com os atores. Foto Ivana Moura

As andanças de Rosálio são incitadas por um desejo inquebrantável de aprender a ler. Irene também tem sua paixão pelas palavras, e guarda embaixo do colchão um caderno pensando em escrever histórias, um dia. Juntos, esses dois personagens forjam a “expansão do Universo” e adiam a chegada da morte. O entrosamento entre a atriz e o ator é de uma afinação profunda e isso é uma das riquezas do teatro de grupo, de anos trabalhando juntos, do conhecimento, entrega e respeito pelo outro.

Dessa troca de grupo são extraídos o humano, o onírico e o popular com delicadeza num jogo que conduz e envolve a plateia. A música, os arranjos musicais e as letras das músicas dialogam e coabitam os espaços cênicos produzindo texturas de forte apelo sensorial.

A cultura popular — com a literatura de cordel e as geniais oralidades – se entende muito bem com clássicos como Dom Quixote e As mil e uma noites, citados na peça. Palavras, frases, musicalidade da construção literária de Rezende se expressam perfeitamente pela boca e o corpo dos atores. 

O teatro, esse teatro, é uma forma de se posicionar contra as atrocidades do estado e da sociedade. Cria espaços para a reflexão crítica, como instrumento de transformação. A coerência estética do Tijolo faz sua práxis atenta às principais lutas políticas de seu tempo – contra a desigualdade social, o genocídio dos negros e dos indígenas, a opressão da classe trabalhadora, a violência contra a mulher e o feminicídio, o abuso de poder, a violência policial, a desvalorização de professores, a exploração, a homofobia, a transfobia, a lesbofobia, etc.

Na sua pesquisa estética continuada, a companhia enaltece a educação como prática da liberdade, da pedagogia anticolonialista, do aprendizado como estratégia de conscientização e realização de sonhos. O aprendizado da troca de afetos para iluminar o mundo.

Atriz Odília Nunes. Foto Ivana Moura

A encenação alterna presente, passado e futuro do passado em uma dinâmica bem elaborada, como ocorre também no livro. Narradores e personagens, os artistas utilizam técnicas épicas e dramáticas para obter escuta e acolhimento da plateia.

Os nomes dos capítulos do livro (cinzento e encarnado; verde e negro; ocre e rosa) estão estampados nos macacões do elenco. Em Alaranjado e verde vai pra cena um brincante que constrói um teatro no alto do morro e envolve toda a comunidade. Gaguinho narra essa história. Ou melhor Odília Nunes abraça e solta Gaguinho e fala também do seu projeto No Meu Terreiro Tem Arte, iniciativa linda realizada há alguns anos no Sertão do Pajeú, no sertão pernambucano, que promove intercâmbio cultural, residência artística, festivais como Chama Violeta e Palhaçada é Coisa Séria, no Sítio Minadouro.

A atuação de Odília é um farol, de um brilho vulcânico, com seu sotaque pernambucano e uma aterramento nas ancestralidades nordestinas. É um prazer vê-la em cena, a deslocar-se no palco, a acionar a ligeireza de raciocínio, o drible do jogo nas suas intervenções.

O elenco todo passa um compromisso com os princípios do Tijolo. Há algumas variações nas atuações. A inexperiência dos mais jovens está carregada de entusiasmo e acrobacias. Anginha de Thaís Pimpão é uma prostituta amargurada, revoltada e que não se importa se vai contagiar os parceiros com a doença. Mas há muita humanidade nesse ódio.

A cena melodramática, um trechinho de opereta cômico-popular do artista abandonado pela mulher amada tem um apelo de um hit chiclete. Com May Tuti (Floripes) e os músicos Jonathan Silva (João dos Ais) e Beto do Fole (Nanda Guedes), a cena utiliza-se da simplicidade e humor para fazer uma crítica ao patriarcado. 

É a palavra de Rezende que robustece a trilha de Rosálio e leva vigor para os últimos dias de Irene. Irene vive mais e melhor com as histórias que alimentam os dois. Irene ensina, Rosálio aprende, ele ensina, ela aprende.  Eles se alimentam de palavras e afetos. Eles se aceitam e não se julgam. Histórias de Brasis. Guará Vermelha defende que Irenes podem desejar sim viver de amor, mesmo que doam os “golpes dos pés do homem tarado”. O coração de Rosálio pode sim desejar contar histórias, ser um grande escritor.

A inclinação épico-dialético das narrações frenéticas com os pés no teatro contemporâneo, o arsenal  político-estético-pedagógico do teatro, o trabalho militante sem alienação do processo artístico desta peça do Tijolo projetam as questões e as contradições sociais como disparador do pensamento crítico.

Os pactos, a elaboração do diretor Dinho Lima Flor junto ao seu grupo apostam na chave brechtiana/ freiriana / rezendiana da diversão e do prazer do aprendizado. O desejo de modificar o mundo por uma vida mais digna está presente. Vida longa ao espetáculo. Viva o teatro!

Primeira temporada no Sesc Avenida Paulista. Foto: Ivana Moura

FICHA TÉCNICA

Direção geral Dinho Lima Flor
Elenco Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes
Direção musical William Guedes
Iluminadora Laiza Menegassi
Figurino Silvana Marcondes Cia do Tijolo
Cenário Andreas Guimarães Cia do Tijolo
Técnico de som Leandro Simões
Dramaturgia Fabiana Vasconcelos Cia do Tijolo
Concepção do projeto Dinho Lima Flor Rodrigo Mercadante Karen Menatti
Direção de produção Suelen Garcez
Assistente de produção Lucas Vedovoto
Fotos Alécio Cesar
Design gráfico Cia do Tijolo Fábio Viana
Espetáculo inspirado no livro O Voo da Guará Vermelha de Maria Valéria Rezende

Temporada
Sesc Avenida Paulista (Arte II (13º andar)
Duração: 170 minutos
Até 22/10
Sessões esgotadas

Temporada estendida até  05/11
Sessões de quarta a domingo
Ingressos https://www.sescsp.org.br/programacao/guara-vermelha/ ou nas bilheterias do Sesc

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Ledores no breu
Crítica
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#5

Ledores no Breu foi apresentado no Teatro Dona Amélia. Foto André Amorim / Divulgação

Participação do público em Ledores no Breu. Foto André Amorim / Divulgação

Dinho Lima Flor é um ator intenso, visceral. Sua atuação é marcada pela entrega, pela emoção e pela sintonia fina com a plateia. Rebento do teatro Ventoforte, do saudoso Ilo Krugli, ele se doa apaixonante enquanto intérprete. Sua Cia. do Tijolo foi tramada na convivência com Krugli. Essa trupe faz teatro contemporâneo alimentado pela seiva da cultura popular. Da melhor mistura de ethos e pathos, que conjuga o epos e a lírica, a depender do contexto.

Já no início a trupe paulistana seguiu os passos de Patativa do Assaré nos repentes, na poesia, na vida do artista cearense para erguer o belo trabalho Concerto de Ispinho e Fulô.

Além do lirismo, Cantata para um Bastidor de Utopias está carregada da porção política de libertação. Para falar dos anônimos em busca por justiça, a peça junta três eixos históricos: o enforcamento – em 1831 – de Mariana Pineda, jovem heroína que desafiou o autoritarismo do Rei Fernando VII bordando uma bandeira para os liberais; o assassinato de Federico García Lorca em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola; e a ditadura militar brasileira (1964-1985) e suas repercussões.

Com O Avesso do Claustro o grupo leva ao palco a trajetória de Dom Helder Camara (1909-1999), o Bispo Vermelho, “emblemática personagem nas históricas lutas de resistência política durante o regime militar e na aproximação da igreja católica com as demandas dos movimentos sociais”, como dizem os artistas do Tijolo, numa montagem que junta simbioticamente poesia, música e teatro.

Dinho Lima Flor em Ledores no Breu. Foto: André Amorim

Ledores no Breu participou da Aldeia do Velho Chico 2022. Foto: André Amorim / Divulgação

Ledores no Breu. Foto André Amorim /  Divulgação

Em Ledores no Breu – solo do pernambucano de Tacaimbó Dinho Lima Flor, sob direção de Rodrigo Mercadante – é o corpo do ator que conduz a plateia pela escuridão dos que não leem, uma espécie de cegueira para interpretar o mundo letrado e os feixes de luz que podem chegar com a alfabetização.

Paulo Freire, Patativa do Assaré, Frei Betto, Lêdo Ivo (com Os pobres na estação), Guimarães Rosa, Luis Fernando Veríssimo, Zé da Luz e mais recentemente Maria Valéria Rezende são convocades para a rede. E mais, sons e músicas de Cartola, Jackson do Pandeiro, Chico César, Manu Chao, Palavras, de Gonzaguinha e Samba da utopia, de Jonathan Silva (criado especialmente para a peça).

Canções, relatos, causos, episódios compõem essa teia dramatúrgica de descobertas emocionadas das letras – caso de Joaquim que compõe a primeira palavra, o nome da sua amada Nina, contada por Paulo Freire de sua experiência em sala de aula. E o lance da menina proibida pelo pai de estudar por ser mulher, que enfrenta a implacável ordem paterna e decide aprender a ler com a ajuda de uma amiga, com graveto na areia em vez de lápis e papel.

Ou a narrativa de Patativa do Assaré que diz que largou de ser “matador de passarinho”, que fazia por diversão como outros meninos da sua idade, e seguiu a imitar os cantos desses animais voadores.  

Como uma atuação ardente, Dinho Lima Flor passeia por vários estilos interpretativos, transita pela comicidade popular, vai ao exagero, testa a sutileza, comenta temas atuais, se avizinha do trágico. Muito habilmente cria seu jogo na relação com a plateia, assume a performance, convoca personagens, finge que encarna e sai. Cobra pelos índices de analfabetismo no Brasil em pleno século 21.

É uma exuberância de muitos teatros. Cumplicidade íntima com o público magnetizado na troca de afetos, danças e abraços carinhosos, materiais e simbólicos. Com a prosa/verso e o corpo desse ator, a palavra encanta.

O figurino branco vai sendo enodoado de carvão no decorrer da cena, o mesmo carvão que serve para escrever e provocar reações sensoriais. Carteiras escolares fazem parte da composição.  Rolos grandes de papel pardo são desenrolados para formar estradas e suportes para a escrita. A direção de Rodrigo Mercadante estimula ritmos, andamentos, revolucionando emoções do ator e agitando as sensibilidades do público.

Mulheres portam faixam com expressões como “Mais escolas e menos cadeias”, em um vídeo de manifestações.  Sabemos que o analfabetismo, o não letramento, é uma estratégia de subjugação dos governos não democráticos. Isso é um problema, diria até um crime, um confisco de direitos dos mais pobres – causa e consequência da falta de oportunidades; uma política de opressão, manutenção de privilégios muitas vezes associada a desvios de recursos.

Na Aldeia do Velho Chico, realizado em Petrolina no mês de agosto, no palco do Teatro Dona Amélia, do Sesc, com os espectadores também no tablado, magnetizados, a sessão não utilizou os recursos dos vídeos, mas eles fazem parte da obra.  

A palavra escrita com carvão em Ledores do Breu. Foto: André Amorim

Ledores no Breu – Foto André Amorim

Marcas de tirania – O iletrado

Deixei para analisar por derradeiro o eixo da peça que tem por texto Confissão de Caboclo, do poeta Zé da Luz.

Já escrevi outra crítica Ledores no Breu e segui o caminho da grandeza de Paulo Freire e da interpretação de Dinho Lima Flor, como faço até aqui. Mas tinha algo que me incomodava no espetáculo, que dessa vez ficou evidente.

Por não saber ler, um homem comete um crime contra sua companheira. Desde que foi publicado, o poema Confissão de Caboclo, de Zé da Luz, é reiteradamente lido / interpretado dessa forma. A ignorância aparece como a causadora da morte.

Mais além do analfabetismo que é apontado com o grande mal a ser combatido, o poema de Zé da Luz – um dos pilares do espetáculo – precisa de uma atualização crítica dentro da encenação.

A ignorância de uma determinada regra não é suficiente para inocentar quem a viola. As mulheres historicamente sofreram / sofrem opressões e violências de várias naturezas, em várias gradações.

É absolutamente insustentável que a cruel, odiosa e desumana tese de legítima defesa da honra tenha sido usada durante tanto tempo para proteger os homens acusados/autores de feminicídio. Foi sim usada como argumento por advogados que desdenharam os princípios da dignidade humana, da proteção à vida, da igualdade de gênero (que infelizmente ainda não existe em sua plenitude).

Muitos homens foram absorvidos com esse escudo após matar uma mulher, sob alegação do término ou traição em uma vinculação afetiva.

O poeta Severino de Andrade Silva, mais conhecido como Zé da Luz (1904 – 1965) foi um poeta popular paraibano, que publicava em forma de cordel. Escreveu entre outros Brasi Cabôco, A Cacimba, As Flô de Puxinanã, A Terra Caiu no Chão, Ai! Se Sêsse!…, Sertão em carne e osso.

Confissão de Caboclo encerra com a expressão “que crime não saber ler”, depois que o narrador descobre que Rosa Maria não o traiu, motivo que ele explica ao delegado de ter tirado a vida da mulher que ele diz que amava.

Alguns estudiosos apontam que o poema trata do analfabetismo como um crime social. É preciso mudar essa lente de leitura. Existe um crime de feminicídio. E o não letramento da personagem que mata não pode ser atenuante para o assassinato. Mulher não é objeto que pode ser descartada / assassinada quando não corresponde às expectativas.

No espetáculo Ledores no Breu o narrador confessa que matou Rosa Maria por suspeita que ela o traía com Chico Faria, seu antigo noivo. Não existe prova da traição. Apenas uma carta que o personagem-narrador não sabe decifrar. Por trás dessa carta é urdida a defesa dessa figura.

A personagem de Zé da Luz é apresentada como um homem bom, trabalhador e apaixonado por sua esposa.  

A questão que se apresenta é que o ator defende sua personagem como um homem que, que guiado por fortes emoções (“Cego de raiva e paixão”), assassina a mulher do poema com um facão. E isso é feito em camadas de envolvimento emocional com a plateia. Sua personagem é defendida com garra, recebendo os componentes mais humanizados, o que faz com que o feminicídio da ficção se torne um ato naturalizado dentro do contexto exposto.

Um feminicídio é um feminicídio. Falta essa dobra dentro do espetáculo. Pois todo o abraçamento em favor do autor da ação é narrado pelo ponto de vista do assassino. O espetáculo é composto de fragmentos e esse episódio da Confissão de caboclo está está dividido em dois momentos, entrecortados por outras situações e músicas.

Ledores no Breu é uma peça que estreou em 2014. Muitos avanços na esteira dos direitos da mulher ocorreram. E fica difícil receber o caboclo narrador apenas com o sofrimento que ele passa, sem fazer um giro de perspectiva desse pathos para a Rosa Maria assassinada. Algo de epos para problematizar a cena ou algum outro procedimento.

A cumplicidade amorosa, o envolvimento na peça não pode suplantar o fato de que uma mulher foi assassinada. Não existem motivos para uma mulher ser morta. E isso não está lá. A personagem marido não pode receber a indulgência da plateia enquanto o olhar para a mulher é de que essas coisas acontecem.

Então, creio que Ledores no Breu precisa de uma pequena revisão para honrar o que o grupo representa no cenário teatral e saudar os valores que são defendidos em seus espetáculos. O patriarcado continua ainda hoje, século 21, a naturalizar assassinatos de mulheres (cis e trans) feitos por homens rejeitados e desequilibrados, que encontram pretextos reais ou imaginários para suas terríveis atitudes. Mas não dá para deixar que arte comprometida com o humanismo faça romantização de um assassinato.

Não sei como isso poderá ser executado em cena. É contigo Mercadante. É contigo Lima Flor. É contigo Cia. do Tijolo. Romper com o que Paulo Freire chamou de “cultura do silêncio” e transformar os analfabetos em protagonistas de suas histórias é também expor a responsabilidade do relacionamento com o mundo ao redor.

 

Postado com as tags: , , , , , ,

Olé, olé, olá, Severino, Severino
Critica do espetáculo Estudo Nº1: Morte e Vida,
do Grupo Magiluth

Estudo-N°1- Morte e Vida. Foto: Vitor Pessoa  / Divulgação

Estudo-N°1- Morte e Vida. Mário Sergio e Parmera, Erivaldo no chão. Fotos: Vitor Pessoa  / Divulgação

A montagem do Grupo Magiluth, com direção de Luiz Fernando Marques, o Lubi, explora muitas camadas. 

Giordano Castro, em primeiro plano na peça-palestra

Busco dialogar com o Estudo Nº1: Morte e Vida, espetáculo do pernambucano Grupo Magiluth. Esse desejo de interlocução traça um movimento contrário ao predomínio de intolerância, condenações e cancelamentos desses tempos. Minha vontade é sintonizar com as possibilidades de trocas, perseguindo delicadezas e ludicidade, mesmo para tratar de concretos de durezas, de barbarismos. Esperançando ampliar o círculo. Esse texto que me atravessa, é passado pelo rio Capibaribe, imagino que por outros rios: Tietê, Sena, Tejo, até o Riacho do Ipiranga (onde, conta a História oficial, foi gritada a independência do Brasil) e carrega muito da hidrografia soterrada. É um ensaio ansioso, repleto de incômodos, como o que sinto há semanas no braço direito de tendinite e outras dores de viver mais difíceis de traduzir.

O Grupo Magiluth – com seus atores Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral, Lucas Torres e Pedro Wagner – é uma trupe de homens, rapazes, meninos que fazem arte, que performam, que jogam cenicamente, posicionados (e movendo-se) de lugares para problematizar as masculinidades, o patriarcado, as questões estruturais que escamam de seus corpos, descontruindo. Observo esse universo, não o capto em sua plenitude movente, não só por ser mulher, mas por toda experiência interseccional de identidade. Somos subjetividades não totalmente decifráveis. E a arte faz um mergulho em águas profundas, oferece e desfaz os sentidos em sequência, em paralelo ou de maneira aleatória.

Os artistas do Magiluth, seu diretor Luiz Fernando Marques, o Lubi, e o assistente de direção e diretor musical Rodrigo Mercadante, essa turma toda cria, de modo arbitrário, os recursos expressivos a partir da peça-poema Morte e Vida Severina – Um Auto de Natal, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) para compor um caleidoscópio das ruínas contemporâneas.

A palavra arbitrariedade vem determinada para falar de escolhas que não seguem réguas, testa outras possibilidades. Tem a ver com impacto da sonoridade da língua no corpo, na caixa preta, nas distorções de vozes da tecnologia digital. Convoca materialidade e seu oposto. Saussure sussurrando. Imagem acústica, representação da palavra. A partir das pontes do Recife desafia regras para desestabilizar certezas – de ideias, de soberanias, das cenas.

Percebo o trabalho do Magiluth erguido feito um ensaio como estimou o filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão Theodor W. Adorno: um jogo aberto de linhas temáticas que se cruzam a partir da ideia de migração, que expõe tensões e contradições do real. Tudo isso encarado de frente, sem o impulso de sublimação. Perguntas e provocações são expostas, num caldeirão que ferve naquele território.

E agora me vem fortemente a imagem da intensa Elis Regina (1945 – 1982), uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, cantando Aprendendo a jogar, uma música de Guilherme Arantes. [Dig dig dig dig dig dagá ah ah Dig dig dig dig dig dagá ah ah (…) Vivendo e aprendendo a jogar … / Nem sempre ganhando / Nem sempre perdendo / Mas, aprendendo a jogar (…) Água mole em pedra dura / Mais vale que dois voando (…)]. No show Saudade do Brasil, de 1980, Elis usava uma camiseta preta, com a imagem da bandeira do Brasil ao centro, escrito “Elis Regina”, no lugar de “ordem e progresso”. Como acontece com frequência nos regimes autoritários, a Ditadura Militar proibiu a intérprete de usar o figurino, numa demonstração feérica de Censura. Eita danou-se. Estou fazendo a minha dramaturgia. Tem vídeo na internet da cantora, que morreu há 40 anos num 19 de janeiro.

Parmera em primeiro plano e Má´rio Sergio ao fundo

Ao se arriscar, Estudo Nº1: Morte e Vida rejeita as formas bem-acabadas, dá um passo além em alguma direção, mas reaproveita antropofagicamente outros processos / estratégias de montagens anteriores da trupe e os atritos do real. O contato com o objeto disparador – a peça-poema de João Cabral – ganha diversas tessituras, amarrações, entradas, desenvolvendo uma rede que aponta para outras ressonâncias, ampliando alcances da obra cabralina.

Dito de outro jeito, a peça é uma transpiração de vitalidade cênica de artistas que sobreviveram / sobrevivem “agarrados a caixas de isopor” neste país afundado em tantas desgraças. É grito por dignidade, que segue de mãos dadas com poemas de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina e outros como O Rio (ou Relação da Viagem que faz o Capibaribe de Sua Nascente À Cidade do Recife) e O Cão Sem Plumas. É forte nos nexos com o real – de que somos muitos Severinos –, da uberização dos trabalhadores às consequências palpáveis do Antropoceno, essas ações destrutivas cometidas contra o planeta Terra.

O abraço com João Cabral é fato e ficção. Está no tom crítico nos vínculos aos problemas sociais, no mergulho no contexto humano e geográfico do Nordeste brasileiro, que espelha em estilhaços outros nordestes do mundo. As palavras que ressaltam o cotidiano de quem se vira com o mínimo compõem quadros inspirados e inspiradores. O inabalável trabalho artesanal cabralino é destacado pelo Magiluth em idas e vindas de significâncias. A abdicação do sentimentalismo lírico é valorizada pelo grupo.

A experiência de assistir ao espetáculo está plena de pequenos abalos sísmicos e da constatação no que se transformou o humano, do alto de sua arrogância. E vem numa construção de imagens de intensa plasticidade, sejam elas para os olhos, ouvidos ou outros sentidos.

Foto: Vitor Pessoa  / Divulgação

Publicado em 1955, Morte e Vida Severina é um poema de gênero lírico que traça o percurso de Severino, um migrante nordestino que sai do Serra da Costela, (local fictício, mas com características idênticas ao sertão pernambucano) em busca de uma vida menos “Severina” no Recife capital. Na seca região “magra e ossuda” onde a personagem morava, morre-se de “morte Severina”: “que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte; de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte Severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)”.

Sabemos que migrações existem desde sempre. Nas melhores hipóteses, por curiosidade, pela aventura, pela descoberta. Há outras, não tão prazenteiras. Situações de seca ou alterações climáticas graves e ausência de políticas públicas de enfrentamento dessas situações, a exclusão social e a falta de condições para a sobrevivência. As migrações, que são também movimentos, revelam múltiplas “geometrias do poder”. A montagem do Magiluth obliqua que as mobilidades dos sujeitos contemporâneos são desiguais e faz cintilar palavras como injustiça, miséria, fome, política, violência, fronteiras materiais e simbólicas, poder, uberização.

Pensado em fragmentos, que reflete de maneira multifacetada um painel de forma espiralar (salve Leda Maria Martins),– do cruzamento de ciclos do passado, presente e futuro – esse Ensaio nº 1 desmantela a obviedade do que se pode se entender como Severino, Morte e Vida, Nordeste, nordestino, artista nordestino, João Cabral de Melo Neto. De novo o farol de Adorno: para o filósofo o ensaio se situa na fronteira entre a filosofia e a arte. Rigor e representação não-idêntica, revelando na porosidade as contradições.

Em estudo publicado em 1950, que pensava a pintura de Joan Miró, João Cabral já disse que desaprender é fundamental, sair do automatismo da tradição. Quebrar com procedimentos e hierarquias de valor na arte e na vida. Desaprendo frente à cena do Magiluth.

No campo do poema, João Cabral traça uma constelação de elementos heterogêneos. Ao estudar a obra do poeta pernambucano, o filósofo Benedito Nunes detecta que nesta máquina do mundo, que é o poema, Melo Neto trabalha à maneira de um tear que tece num sentido e destece noutro os fios de diversas tramas complicadas. Em O dorso do tigre (1969) Nunes aponta que Cabral fabrica e destrói, agrega e desagrega, mediante operações diferentes, as várias peças da realidade social e humana. Enxergo essas ações cabralinas no palco.

Acompanhemos o curso do rio, o discurso-rio do Marigluth.

Os microfones, as projeções, o Magiluth joga com a ideia de peça-palestra

A bandeira de Kiribati e as mãos levantadas num pedido de socorro em referência a outro espetáculo do grupo

Na peça são explorados quatro marcos estilísticos: Metateatro, Épico, Documental e pós-contemporâneo, em acúmulos e partículas. Nessa dança estética, a correnteza traz memória de outras obras magiluthianas: Viúva, porém honesta; O ano que sonhamos perigosamente; Dinamarca; Aquilo que meu olhar guardou para você; 1 Torto. São muitas camadas, numa polifonia que aponta para dentro, como a cena do modo de viver hygge (um bem-estar tão acolhedor dos privilegiados) ou o foco de luz, uma reivindicação de Mário Sergio em outra encenação que agora chega tranquilo.

A polifonia aponta para Kiribati (ou Quiribati), na real um arquipélago no Pacífico Central, com quase 120.000 habitantes. Assinala também os Severinos-Thiagos, Severinos-Galos, Severinas-Pretas. Dos rios que correm dentro de cada um de nós. De Kiribati, já em 1989, um relatório da ONU alertou, que esse seria o primeiro país a ser devorado, em decorrência da elevação do nível dos mares, ou seja pela mudança climática. Existem outras correspondências com o Severino saído da seca, como a escassez de água potável.

Um humor carregado da gozação pernambucana (irônico, sagaz, malicioso, diria autoimune, cruel, que manga inclusive de nossa impotência; talvez Roger de Renor possa traduzir melhor essa especificidade de humor), abarca o palco, em fluxos, mirando efeitos variados: gerar reflexões e críticas sociais, produzir jogos num cruzamento dos procedimentos cênicos das peças contemporâneas, desafiar qualquer método absolutista.

Quando navega nas águas épicas traça um paralelo ente a palavra fome como necessidade de comer e o estado de morrer de fome, defendido como um assassinato. O tom mais político lembra da montagem de Morte e Vida Severina, pelo TUCA, em 1965, que ganhou prêmio no festival de Nancy, na França. Esquadrinha que os privilégios de hoje são consequência da usurpação de antes.

Punk rock, hardcore, sabe onde é que faz?
Lá no alto José do Pinho. É do caralho!
Tem Devotos, 3° Mundo que botam pra fuder
Todo sentimento obtido em seu viver…

Quando chegar ao Recife essa cena deve explodir. O cenário é… Em 1988, Cannibal, Neilton e Celo Brown, formaram a banda de punk rock e hard-core Devotos do Ódio (tempos depois o ódio do nome foi suprimido), no Alto José do Pinho, bairro da zona norte do Recife. A atuação do grupo foi fundamental para a mudança do perfil do morro. Com a assinatura de contrato com a Gravadora BMG, e o lançamento do disco Agora tá valendo, de 1997, a banda chega ao sucesso. Mais de 20 anos depois, o Grupo Magiluth constata que os direitos e lucros desse disco estão reservados à gravadora Sony Music, que em 2004 comprou a BMG. O Magiluth assinala: “Nem tudo o que o trabalhador produz a ele pertence.”

É tudo muito engenhoso. A trupe convoca Marx, sem citar o Karl, expõe os paradoxos e contradições do capitalismo com os jogos do próprio teatro. Somos atingidos, alguns de nós, pela ave-bala. O ouro-azul do jeans vem problematizar a noção de independência econômica, de autonomia financeira.

O polo industrial de jeans, em Toritama, é uma espécie de China com um carnaval no meio. Esse ouro-azul está na roupa dos rapazes, e está repleto dos questionamentos levantados pelo documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, de Marcelo Gomes. O filme não é uma apologia ao empreendedorismo, ou não somente, nem um réquiem saudosista de uma Toritama mais rural. Seus produtores de jeans batem no peito com orgulho que são “donos do próprio tempo”, mesmo trabalhando 12 horas ou mais por dia. É… são muitas dobras.

Em uma potência assombrosa, o ouro-azul se congrega com os entregadores de aplicativo, entre eles Thiago Dias, que trabalhava 12 horas por dia e morreu durante uma entrega aos 33 anos, vítima de AVC. Fato que se conecta com as Ligas Camponesas e os assassinatos de seus líderes.

Essa cena do canavial, que cruza Michael Jackson com maracatu rural, vale muitas teses

Michael Jackson do Canavial, um vídeo que pode ser encontrado no Youtube, fornece rico material da cultura que se movimenta, sem abandonar totalmente a tradição, mas utilizando as possiblidades do presente. O Magiluth confronta o caboclo de lança com o vídeo, em que a voz do astro do pop anima o trabalhador rural a seguir seus passos na dança. Ele canta que “Billie Jean is not my lover”, ela é apenas uma garota e o menino não é seu filho. Mais uma questão das mulheres não reconhecidas, e essa e uma problemática muito complexa, que apenas pontuo.

O Estudo Nº1: Morte e Vida utiliza as tecnologias, as projeções, justaposições. Quebras de fronteiras se alimentam das práticas teatrais, subverte, testa combinações. É interessante saber que numa entrevista 1998, João Cabral disse que “gostaria de ter sido cineasta”. Sua composição poética aproxima-se das teorias da montagem do cineasta Eisenstein ou do teatrólogo Bertolt Brecht.

O Magiluth expõe dados de pesquisa da internet sobre refugiados e migrantes que tentam fugir de guerras e tentar asilo oficial em países europeus. Em botes e em embarcações superlotadas e sem as mínimos condições de segurança, esses humanos arriscam as próprias vidas (muitos barcos afundaram) sem nenhuma garantia de asilo oficial. Para outros, a travessia é um negócio altamente lucrativo, que pode render por embarcação US$ 1 milhão. São muitos tentáculos do capitalismo, em que a vida importa pouco. Ponte com Brecht.

Deslocamento é uma questão discutida na peça

Em uma cena, depois de anunciar que Kiribati sumiu do mapa, afundou e de já ter citado um trecho do poema O Rio (Para os bichos e rios / nascer já é caminhar), Giordano propõe um jogo a Mário Sergio e Parmera. Os dois, como representantes das duas maiores potências, terão que chegar a um acordo para salvar o mundo. É um diálogo surreal, em que nenhuma parte cede, e a conversa vai ficando cada vez mais insana, com proposta de matar populações inteiras de uma determinada região. Em um jogo de afrontamento direto, o coletivo expõe o esfacelamento da ética, as engrenagens de manutenção de poder e a guerra como saída para o impasse defendida sempre pelos capitalistas.

Todos os dias temos notícias de demonstrações de desumanidades. Em 24 de janeiro o congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, foi assassinado a pauladas por um grupo de homens, na barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Moïse teria ido cobrar o pagamento de diárias atrasadas no quiosque em trabalhava por comissão. No dia 19 de janeiro, o fotógrafo suíço René Robert morreu aos 84 anos de hipotermia, após longa exposição ao frio intenso. Ele desmaiou em uma rua de Paris e ficou sem ajuda por nove horas. Esses dois fatos não são citados na cena do Magiluth. Mas ecoa no ar como espirito desse tempo, sim. 

A humanidade está doente, não há dúvidas. Intolerância, racismo e xenofobia são sintomas dessa deterioração.

Mas apesar de todo esse quadro difícil, Estudo Nº1: Morte e Vida aponta para / e aposta na vida. No seu desejo de convívio, o grupo convoca o espectador a atuar no jogo cênico no entusiasmado grito dos grevistas. Severino está sinalizando alguma saída. Olé, olé, olá, Severino, Severino.

Depois de tantas palavras, o espetáculo prossegue reverberando de afetos.

 

* Assisti ao espetáculo Estudo Nº1: Morte e Vida na estreia, dia 28 de janeiro e no domingo, dia 30 de janeiro.
** Nessas duas sessões, o diretor-assistente/ diretor musical Rodrigo Mercadante substituiu Lucas, que estava positivado com Covid-19 naquela semana. 

Ficha técnica:
Criação e realização: Grupo Magiluth
Direção: Luiz Fernando Marques
Assistente de direção e direção musical: Rodrigo Mercadante
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sergio Cabral
Produção: Grupo Magiluth e Amanda Dias Leite
Produção local: Roberto Brandão

Estudo Nº 1: Morte e Vida, com o grupo Magiluth
Quando: De 28 de janeiro a 6 de março de 2022, sextas e sábados às 21h, domingos, às 18h
Onde: Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga – São Paulo SP)
Quanto: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)
Classificação indicativa: 16 anos

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,