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“Para onde vamos?”, pergunta o Grupo Galpão

Personagens do espetáculo NÓS são transpassado por temas contemporâneos como racismo, violência e intolerância. Foto: Guto Muniz

Personagens da peça NÓS são transpassados por temas contemporâneos como racismo, violência e intolerância. Foto: Guto Muniz

Conviver é um exercício constante de humanidade, de escuta, de abraçamento, de indulgência, de envolvimento, de inclusão, de autoconhecimento. Essa fascinante tarefa de estar junto faz suas exigências para afastar a apatia, a brutalidade das relações, a indiferença. O espetáculo Nós, do grupo mineiro Galpão investe nas relações humanas e, portanto, políticas. E questiona os posicionamentos no mundo enquanto coletivo, enquanto indivíduos inquietos diante da realidade brasileiro. A peça faz duas apresentações no Teatro Luiz Mendonça, do Parque dona Lindu, em Boa viagem, dentro da programação do 18º Festival Recife do Teatro Nacional.

Um encontro entre sete pessoas numa mesa de cozinha. Elas preparam uma sopa, num ritual de celebração e despedida. Partilham esperanças e aflições. Mergulham em conversas cotidianas, com frases repetidas e assuntos cruzados a partir dos seus testemunhos: um garoto negro humilhado por policiais, de meninas sequestradas, de escolas públicas que foram fechadas. 

Questões da atualidade são encaradas pelo grupo como alteridade, o que é público ou privado, democracia em tempos de intolerância, violência, crise da esquerda, tragédia em Mariana (MG). A trupe também lançou mão de referências em obras contemporâneas, como Ódio à Democracia, ensaio do francês Jacques Rancière.

São ecos das vozes das ruas, com destaque para a forma como as coisas são ditas

São ecos das vozes das ruas, com destaque para a forma como as coisas são ditas

O texto escrito pelo encenador convidado Marcio Abreu, da Companhia Brasileira de Teatro, e pelo ator Eduardo Moreira foi construída a partir dos improvisos com o elenco. E surgem personagens indefinidos e performáticos. Além de Moreira, estão no elenco Antonio Edson, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia,Paulo André e atriz Teuda Bara.

Desse jogo entre personalidades diferentes o Galpão ergue uma sinfonia cênica, com  justaposição de sons, ritmos, corpos e de reflexões diferentes que ora se harmoniza, coabitam ou se chocam.

A trilha musical e os efeitos sonoros dirigidos por Felipe Storino funcionam como importante elemento dramatúrgico, que se sobressaem nas pausas, nas tensões, nos solos e nas interpretações musicais coletivas como na canção Balada do lado sem luz, de Gilberto Gil.

As dramaturgias estão carregadas de analogias e metáforas formando um complexo quadro de personagens e de discursos. As questões políticas estão abertas a variadas interpretações. Os poderes que vigiam traduzidos em comportamentos. Em determinado momento uma personagem é expulsa do grupo contra sua vontade. E isso pode ser lido como uma alusão ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff ou os confrontos de ordem da micropolítica.

Os elementos podem não estar em estreita relação entre si, como a leitura do poema Agradecimento, da polaca Wisława Szymborska (1923-2012). Cada espectador pode ser atravessado por sensações provocadas pelas partituras do elenco. E construir seus sentidos do espetáculo.

SERVIÇO

NÓS, do Grupo Galpão, dentro do 18º Festival Recife do Teatro Nacional
QUANDO Quarta e quinta-feiras, 23 e 24/11, às 20h30
ONDE Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu, em Boa Viagem, Recife
QUANTO R$ 10 a R$ 5
CLASSIFICAÇÃO 16 anos

FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO
Elenco
Antonio Edson
Chico Pelúcio
Eduardo Moreira
Júlio Maciel
Lydia Del Picchia
Paulo André
Teuda Bara
Equipe de criação
Direção: Marcio Abreu
Dramaturgia: Marcio Abreu e Eduardo Moreira
Cenografia: Play Arquitetura – Marcelo Alvarenga
Figurino: Paulo André
Iluminação: Nadja Naira
Trilha e Efeitos Sonoros: Felipe Storino
Assistência de Direção: Martim Dinis e Simone Ordones
Preparação musical e arranjos vocais/instrumentais: Ernani Maletta
Preparação vocal e direção de texto: Babaya
Colaboração artística: Nadja Naira e João Santos
Assistência de Figurino: Gilma Oliveira
Assistência de Cenografia: Thays Canuto
Cenotécnica e construção de objetos: Joaquim Pereira e Helvécio Izabel
Operação e assistência de luz: Rodrigo Marçal
Operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Cleo Magalhães
Confecção de figurino: Brenda Vaz
Técnica de Pilates: Waneska Torres
Fotos de divulgação: Guto Muniz
Fotos do programa: Fernando Lara, Gustavo Pessoa e Guto Muniz
Imagens escaneadas: Tibério França e Lápis Raro
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Lápis Raro
Design web: Laranjo Design (Igor Farah)
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Produção: Grupo Galpão

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Delicadas, e explosivas, relações familiares

Difíceis relações entre pais e filhos são abordadas na peça Esta criança. Fotos: Annelize Tozetto

Difíceis relações entre pais e filhos são abordadas na peça Esta criança. Fotos: Annelize Tozetto

É muito bom ver uma atriz consagrada se associar a uma companhia jovem e em plena ascensão para realizar um trabalho de fôlego, de pesquisa e de entrega. No caso, Renata Sorrah em parceria com Cia Brasileira de Teatro, grupo que já esteve no Recife com Vida, Oxigênio e Isso te interessa?. A parceria entre intérprete e trupe rendeu energia, troca e revitalização para as partes envolvidas.

Esta criança, um texto forte do dramaturgo francês Joel Pommerat, – que catalisa aspectos estranho e familiar – mete o dedo nas feridas das difíceis relações entre pais e filhos. E tem um pouco de tudo, o espectador pode até se identificar.

Marcio Abreu é responsável pela direção do espetáculo, com assistência de direção de Nadja Naira. No elenco, além de Ranata Sorrah estão Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha.

Esta Criança foi o grande vencedor da 25ª edição do Prêmio Shell de Teatro do Rio

Esta Criança foi o grande vencedor da 25ª edição do Prêmio Shell de Teatro do Rio

A peça é composta por 10 situações familiares que não têm ligações entre si. Mas todas convergem para o mesmo tema. As relações de parentesco que podem conter nitroglicerina pura. As variadas abordagens privilegiam aspectos constrangedores, engraçados, tristes e estranhos. Uma mulher quer doar seu pequeno bebê a um casal de seu prédio e o discurso levanta questões da alegria e surpresa da adoção e a tensão e as mil explicações para o abandono.

Uma jovem mulher grávida expõe suas projeções de felicidade, para mostrar aos seus próprios pais que ela pode ir além. Há um diálogo entre uma menininha que porta uma mochila vermelha e seu pai, ele sentado numa pequena cadeira e ela na grande. A garota rejeita o pai que tenta chantageá-la. Um homem explode numa refeição em família e diz que seu pai não é o seu espelho e que por trás de uma aparência tranquila existe um vulcão.

Ansiedade, medo, desejo de provar alguma coisa, desejo de ser alguma coisa. Esse mundo de projeções e lembranças é feito de humor e magia. Mãe, pai, filho, esses papéis que são trocados.

O espetáculo Esta criança foi o grande vencedor da 25ª edição do Prêmio Shell de Teatro do Rio. Teve cinco indicações e levou quatro troféus para casa: Renata Sorrah (melhor atriz), Marcio Abreu (melhor diretor), Nadja Naira (melhor iluminação) e Fernando Marés (melhor cenário).

A encenação percorre relações miúdas e cheias de significado para um homem comum. São fragmentos de alta-tensão. A intensidade que vai além das palavras. Os subterrâneos emocionais são invadidos. Há a virulência da palavra plena, com uma faca afiada.

O encenador conduz tudo com mão firme para extrair a delicadeza, esses pontos fracos marcados na pele e na memória. A cenografia de Fernando Marés e a iluminação de Nadja Naira afinam a proposta, a primeira distorcendo um pouco essa noção do real – que tem tudo a ver com as lembranças do que ocorreu para cada um, que podem estar mais próximas ou distantes do fato em si. A iluminação de Nadja Naira trabalha com os claros/escuros e salienta as sombras em belas imagens.

Renata Sorrah está plena como nesta cena do reconhecimento do corpo do fiho;

Renata Sorrah está plena na encenação, como nesta cena do reconhecimento do corpo do fiho

Um dos momentos mais fortes da peça é quando duas amigas vão ao IML para identificar um corpo, que suspeita-se ser filho de uma delas. Renata Sorrah e Giovana Soar trabalham o desequilíbrio entre felicidade, alívio, egoísmo e dor. A cena é emblemática do espetáculo. Talvez se o diretor Marcio Abreu diminuir um pouco a duração, ganhe em intensidade, força e impacto.

Renata Sorrah está plena, em toda sua capacidade de intérprete, linda no palco, como mãe ou como filha. Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha têm ótimas participações, garantindo a alta qualidade da encenação.

E nos papéis de pai ou mãe, “desejo e sina”, filho ou filha, alguns conseguem arrancar do outro “coração a fecha farpada” e “e sem medo do grito”, com o perdão pedido, dado, não dado, sonhado para tornar a vida mais bela.

* A jornalista Ivana Moura viajou a convite da produção do Festival de Teatro de Curitiba

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O elenco está nu, mas o destaque é da palavra

Isso te interessa?, da Cia Brasileira de Teatro. Fotos: Marcelo Lyra

A Companhia Brasileira de Teatro, do Paraná, apresentou no ano passado, dentro do Festival Recife do Teatro Nacional, três espetáculos: Vida, Oxigênio e Descartes com lentes. Na edição deste ano, a trupe voltou com Isso te interessa? em que os personagens são “pais, mães, filhos e cães”. Em 45 minutos a montagem evoca três gerações de uma mesma família. A concisão do texto e da encenação são marcas de Isso te interessa?.

Sob direção de Marcio Abreu, o texto da dramaturga francesa Noëlle Renaude (com tradução de Giovana Soar e Marcio Abreu) Bon, Saint-Cloud oscila entre narração e ação. As fronteiras são borradas, diluídas.

A história e o tempo recebem um tratamento bem peculiar. Noëlle Renaude escreve: “Meu pai, diz o pai, tinha, o pai fuma, do seu pai a obstinação que eu tenho do meu pai e que não, suspira o pai, consegui, o pai fuma, te transmitir, é uma pena, e o pai para e o pai fuma”. Personagem/narrador/ator dividem a mesma cena, na mesma frase. Tudo exibido: o tempo e o passar do tempo, as rubricas, os personagens, o ator.

Imagino a ginástica desse elenco formado por Ranieri Gonzalez e Giovana Soar, como pais, e Nadja Naira e Rodrigo Ferrarini, como filhos (e todos eles fazem o cachorro). E nada de especial ocorre, não há grandes acontecimentos nessa família comum. O que aparece são os cenas prosaicas de vidas ordinárias. O pai fuma, a mãe esquece, o pai deseja viajar ao balneário francês Saint-Cloud como se lá fora o paraíso na Terra, a família não vai; o filho faz vestibular, passa no vestibular, vai morar longe da família; a filha chora, ela tem dor de cabeça, ela não se entende com a mãe, a filha fica gravida de gêmeos; já mãe, a filha se separa, os gêmeos não entendem; os cachorros são fiéis; o pai morre, a filha morre, a mãe também quer morrer; o filho volta, o filho vira pai, ele passa a ter o tique de seu pai agora que é pai; o tempo passa, tudo mais ou menos se repete.

Os atores estão nus o tempo todo, mas sem nenhuma erotização do corpo. Mas existe uma afinação técnica no corpo do ator, nos seus gestos que exigem mais elegância. A cena é limpa. O fluxo poético é determinado pelo texto. O cenário, de Fernando Marés, com mesa, cadeiras, sofá, luminária, ganha inclinação de alguns objetos na passagem do tempo. A luz investe em claros escuros.

Alguns elementos de indumentária, como chapéu, tênis, sapato de salto, situam o crescimento/envelhecimento das gerações dessa família.

O que acho sensacional é o texto, como essa dramaturga exercita sua a construção. E as escolhas limpas do diretor, que permitem que as atuações se destaquem.

Cia Brasileira veio ao Recife pela primeira vez ano passado

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Espetáculo vencedor do Prêmio Bravo no Festival Recife

Isso te interessa?, da Cia Brasileira, será encenada no Festival Recife do Teatro Nacional. Foto: Alessandra Haro

Saiu até na coluna social. Tipo assim: espetáculo com atores nus vai provocar frisson no Recife. Tudo bem – toda nudez não é mesmo castigada; neste caso leva gente ao teatro. Como o que a gente quer é ver o teatro lotado, se for só por causa do elenco nu, tudo bem. Paciência! Mas é bom avisar logo que Isso te interessa?, da Companhia Brasileira de Teatro, vai muito além. A nudez, aliás, isso te interessa mesmo?

A montagem, que foi escolhida este mês o melhor espetáculo no 8º Prêmio BRAVO Bradesco Prime de Cultura 2012, está na grade do Festival Recife do Teatro Nacional, que será anunciada nesta terça-feira (13). Uma escolha coerente e acertada – já que ano passado o então curador Valmir Santos trouxe a companhia curitibana ao Recife pela primeira vez. Aqui eles apresentaram Vida, Oxigênio e o exercício cênico Descartes com lentes.

Isso te interessa? tem texto de uma dramaturga francesa contemporânea chamada Noëlle Renaud e direção de Márcio Abreu. O tema é bem simples e sempre difícil – as relações familiares. É a mesma temática, aliás, do novo espetáculo da Brasileira, que está em cartaz no CCBB do Rio e tem participação de Renata Sorrah: Esta criança. A peça tem texto de um autor que nunca foi montado no Brasil – o francês Joël Pommerat, que chegou às mãos de Renata por intermédio de Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil. Por coincidência, o grupo curitibano trabalhava o mesmo autor. Quem sabe algum produtor não se anima e traz essa montagem antes mesmo do festival 2013?!

Voltando à Isso te interessa?, temos uma colaboração especial da jornalista e mestranda em Artes Cênicas Luciana Romagnolli. Lu é curitibana, mora em BH e estuda a Cia Brasileira. Esse texto foi publicado originalmente no Questão de Crítica. Então, antes mesmo do espetáculo, a crítica:

A família sob a perspectiva do teatro
Por Luciana Romagnolli

A Companhia Brasileira de Teatro estreou em setembro de 2011, em Curitiba, Isso te interessa?, espetáculo que coloca em cena os atores Ranieri Gonzalez e Giovana Soar, como pais, e Nadja Naira e Rodrigo Ferrarini, como filhos, explicitando as difíceis relações no microcosmo familiar, em que uma viagem ao balneário francês de Saint Cloud é sempre aludida como esperança de felicidade. O texto da dramaturga francesa contemporânea Noëlle Renaud traz uma estrutura peculiar de falas intercaladas a rubricas dentro de uma mesma frase, que propõe aos atuantes um desafio constante de trânsito entre diferentes registros – desde a representação de personagem até a indicação direta das ações, com gradações de distanciamento. E esse entrar e sair dos personagens é intensificado pelo revezamento dos quatro atores no papel do cachorro da família, que observamos nos limites de um cenário em perspectiva.

O texto, portanto, se oferece como um problema para atores e diretor, no sentido de como trabalhar a elaboração de cenas e a movimentação corporal em resposta às indicações das rubricas. O diretor Marcio Abreu opta por deixar que a palavra predomine no palco, mas não expresse sozinha: uma série de estranhamentos determina luz, figurino e cenário. E não basta a ação verbal. O elenco, coeso, responde a determinações como “a mãe desarruma os cabelos” com gestos ora ilustrativos (obedientes), ora contraditórios (subvertendo o sugerido), de modo que se cria uma zona de tensão entre o que é dito e o que é visto. No acúmulo de camadas de sentido produzido por esse jogo dinâmico entre o dramático e o épico, a encenação é desdramatizada e, ao espectador, se solicita uma fruição crítica mais do que emocional.

Texto é de Noëlle Renaude e direção de Márcio Abreu. Foto: site Cia Brasileira

Ao mesmo tempo que a estrutura linguística se destaca a ponto de transcender a forma e tornar-se também conteúdo, projetando o teatro como tema para reflexão, a matriz familiar é que está no centro do universo temático. As relações entretecidas no lar são sintetizadas até que reste o esquematismo de três gerações de pais e filhos, condensando em menos de 50 minutos uma visão contundente das relações parentais. Esta é calcada menos nos afetos do que nas implicações de uma cadeia sucessiva, dentro da qual se assinalam os papéis intercambiáveis (filhos, afinal, se tornam pais); a herança de competências e comportamentos versus os desvios e diferenças que rompem expectativas dos pais quanto à continuidade de seus descendentes; a obstinação e a fraqueza como qualidades com as quais se identificar; a vaidade e a inveja entre mães e filhas; os incentivos desproporcionalmente distribuídos e suas consequências na autoestima dos filhos.

Coagulada em poucas frases e em cenas essenciais, a dramaturgia deixa muitas lacunas que demandam do público a saída da passividade para relacionar àquela família arquetípica sua vivência; e a perspectiva crítica sobre a dimensão humana apresentada em cena pede um tempo de decantação que se prolonga para além da duração do espetáculo, até que o tempo de intensidades condensadas elaborado no palco se concilie com o tempo pessoal do espectador.

Esse desnudamento praticado no campo das ideias é seguido pela exposição dos corpos nus do elenco. Fora meias e sapatos, signos restantes do contexto de civilidade, os atores não carregam outra vestimenta além da crueza da pele, sem preâmbulos, do início ao fim do espetáculo. Essa escolha radical se legitima pela impossibilidade de se pensar outro figurino igualmente incisivo, em sua quebra de um tabu familiar como a nudez, e que traz à superfície visível do espetáculo o estranhamento em relação àquele núcleo de pessoas. Não há margem para erotismo – nem subterfúgios: o que a nudez revela simplesmente é.

Aos atores, portanto, é solicitado que tensionem a atuação a essa situação-limite tanto no trato com a palavra quanto na entrega corpórea, notável sobretudo na dignidade com que se confiam à imitação da movimentação do cachorro – ironicamente, o personagem construído mais de acordo com um modelo real e o que mais suscita ternura no seio familiar, embora a visão dos atores em postura de quadrúpede, sem caracterização por maquiagem ou figurino, evidencie o caráter anti-ilusionista da montagem.

A explicitação do mecanismo teatral contamina outras esferas dramatúrgicas. O cenário contribui como propulsor de significados, com sua configuração como espaço de encenação demarcado em perspectiva, numa angulação sugestiva de uma forma de olhar tanto quanto de uma evolução progressiva que dialoga com a dinâmica familiar de cadeia de gerações que se ampliam. E com o detalhe de que, a seu tempo, objetos cênicos sofrem um entortamento pelas mãos dos atores ou sem causa aparente, caindo em perspectiva também.

Resta observar que, ao batizar o espetáculo com uma pergunta direta, a Companhia Brasileira explicita na camada mais evidente o desejo de cumplicidade na relação com o espectador, que vem constituindo sua teatrologia. Isso te interessa? não traduz Bon, Saint Cloud, o título original da peça de Noëlle Renaude, vertida do francês por Marcio Abreu sob orientação de Giovana Soar e rebatizada com uma frase colhida do meio do texto. O que essa escolha revela, para além da identificação entre gerações distintas, é o interesse do grupo curitibano por um nível de interpelação direta do espectador evidenciadora do espaço (aqui) e tempo (agora) da encenação e do pacto de atenção implícito.

Cia Brasileira veio ao festival pela primeira vez ano passado, um convite do então curador Valmir Santos

Essa cumplicidade se sustenta numa construção sutil e cumulativa, que envolve as diferentes camadas dramatúrgicas a tecer o espetáculo. É, por exemplo, uma das maneiras possíveis de se interpretar o apagão que demarca o início e o fim da encenação, destituindo o espectador de qualquer possibilidade de visão e, consequentemente, devolvendo-lhe a percepção do ser e do estar ali. Vale lembrar que, ainda que de modo diferente, a luz de Nadja Naira também propunha em Vida a escuridão como quebra da fronteira entre palco e plateia restituindo ambas ao mesmo cruzamento tempo-espacial. A cumplicidade vem também, enfim, dos olhares direcionados ao espectador, seja na entrada dos atores ou quando uma das atrizes toma o público como espelho, indagando na frontalidade com a plateia uma reação à sua aparência.

Além disso, a própria estrutura que traz as rubricas à superfície da fala, confundindo fala e ação, ativa a consciência e a cumplicidade do espectador (duas categorias vinculadas, afinal) de que está diante de um espetáculo teatral. Se, na diluição de fronteiras entre acontecimento teatral e vida social (com sua cota de representação, é claro) é sobretudo o ponto de vista do observador e do realizador o que ainda distingue um e outro, em Isso te interessa? o teatro é reiterado enquanto construção a partir da realidade, perspectiva de olhar e relação entre ator e espectador.

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Inquietações no teatro brasileiro

Oxigênio tem texto do russo Ivan Viripaev. Foto: Elenize Dezgeniski

Já em 2006, Valmir Santos escreveu: “a Companhia Brasileira de Teatro se afirma como umas das experiências cênicas mais consistentes do país. O projeto artístico trilha por narrativas de estranhamento e de delicadeza felizmente correspondidas com vitalidade pelo diretor, elenco e demais colaboradores”. Nessa época, Santos certamente nem imaginava que seria curador do Festival Recife do Teatro Nacional agora em 2011. A oportunidade chegou e aí a chance de trazer à capital pernambucana a companhia de maior destaque em Curitiba atualmente, com três espetáculos do seu repertório: Descartes com lentes, Vida e Oxigênio.

O primeiro que será apresentado (hoje e amanhã, às 21h, no Teatro Hermilo Borba Filho) é Oxigênio, de 2010. O texto é do dramaturgo russo Ivan Viripaev, até então inédito no Brasil. O espetáculo tem um crime como mola propulsora: um homem e sua amante são condenados pelo assassinato da esposa dele; mas, a partir daí, surgem discussões não só sobre sobre violência, mas também racionalidade, consumismo, terrorismo e, principalmente, o que nos é mesmo essencial. Em cena, Patrícia Kamis e Rodrigo Bolzan. A música é feita ao vivo por Gabriel Schwartz (que assina a trilha sonora) e Vadeco.

Das três peças que o grupo traz, talvez a mais aguardada seja Vida, também de 2010, que ganhou o Prêmio Bravo como melhor espetáculo do ano. O texto é inspirado na obra de Paulo Leminski – surgiu da convivência crítica e criativa com os ditos de um dos mais reproduzidos poetas paranaenses. Mas existem referências e citações também a Haroldo de Campos, Maiakovski, Jaymes Joyce, Beckett. Em Vida, os atores estão em cena com os seus próprios nomes. Ficção e realidade parecem se entrelaçar aos olhos do espectador: será que aquele texto é da Giovana Soar ou só da personagem? E assim acontece também com Nadja Naíra, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini. Os quatro fazem parte de uma banda que ensaia para a apresentação comemorativa do jubileu de uma cidade imaginária. É nesse espaço, a sala de ensaios, que surgem as relações e conflitos, mas sobretudo a tentativa de diálogo.

Vida ganhou o Prêmio Bravo de melhor espetáculo do ano

O criador da Companhia Brasileira de Teatro é o ator, dramaturgo e diretor Márcio Abreu, que assina a direção das peças e reuniu o grupo em 1999. Descartes com lentes é um trabalho feito quando a companhia já tinha 10 anos, em 2009. Foi um exercício cênico com um texto de Leminski escrito no fim da década de 1960 e considerado a semente de Catatau, uma de suas obras-primas. A atuação é de Nadja Naira.

Descartes com Lentes é um exercício cênico com um texto de Leminski

Companhia Brasileira no Festival Recife:

Oxigênio
Hoje e amanhã, às 21h, no Teatro Hermilo Borba Filho
Informações: (81) 3355-3318

Descartes com lentes
Segunda e terça, às 17h, no Teatro de Santa Isabel
Informações: (81) 3355-3323

Vida
Segunda e terça, às 21h, no Teatro de Santa Isabel
Informações: (81) 3355-3323

Ingressos: R$ 5

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