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“Para onde vamos?”, pergunta o Grupo Galpão

Personagens do espetáculo NÓS são transpassado por temas contemporâneos como racismo, violência e intolerância. Foto: Guto Muniz

Personagens da peça NÓS são transpassados por temas contemporâneos como racismo, violência e intolerância. Foto: Guto Muniz

Conviver é um exercício constante de humanidade, de escuta, de abraçamento, de indulgência, de envolvimento, de inclusão, de autoconhecimento. Essa fascinante tarefa de estar junto faz suas exigências para afastar a apatia, a brutalidade das relações, a indiferença. O espetáculo Nós, do grupo mineiro Galpão investe nas relações humanas e, portanto, políticas. E questiona os posicionamentos no mundo enquanto coletivo, enquanto indivíduos inquietos diante da realidade brasileiro. A peça faz duas apresentações no Teatro Luiz Mendonça, do Parque dona Lindu, em Boa viagem, dentro da programação do 18º Festival Recife do Teatro Nacional.

Um encontro entre sete pessoas numa mesa de cozinha. Elas preparam uma sopa, num ritual de celebração e despedida. Partilham esperanças e aflições. Mergulham em conversas cotidianas, com frases repetidas e assuntos cruzados a partir dos seus testemunhos: um garoto negro humilhado por policiais, de meninas sequestradas, de escolas públicas que foram fechadas. 

Questões da atualidade são encaradas pelo grupo como alteridade, o que é público ou privado, democracia em tempos de intolerância, violência, crise da esquerda, tragédia em Mariana (MG). A trupe também lançou mão de referências em obras contemporâneas, como Ódio à Democracia, ensaio do francês Jacques Rancière.

São ecos das vozes das ruas, com destaque para a forma como as coisas são ditas

São ecos das vozes das ruas, com destaque para a forma como as coisas são ditas

O texto escrito pelo encenador convidado Marcio Abreu, da Companhia Brasileira de Teatro, e pelo ator Eduardo Moreira foi construída a partir dos improvisos com o elenco. E surgem personagens indefinidos e performáticos. Além de Moreira, estão no elenco Antonio Edson, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia,Paulo André e atriz Teuda Bara.

Desse jogo entre personalidades diferentes o Galpão ergue uma sinfonia cênica, com  justaposição de sons, ritmos, corpos e de reflexões diferentes que ora se harmoniza, coabitam ou se chocam.

A trilha musical e os efeitos sonoros dirigidos por Felipe Storino funcionam como importante elemento dramatúrgico, que se sobressaem nas pausas, nas tensões, nos solos e nas interpretações musicais coletivas como na canção Balada do lado sem luz, de Gilberto Gil.

As dramaturgias estão carregadas de analogias e metáforas formando um complexo quadro de personagens e de discursos. As questões políticas estão abertas a variadas interpretações. Os poderes que vigiam traduzidos em comportamentos. Em determinado momento uma personagem é expulsa do grupo contra sua vontade. E isso pode ser lido como uma alusão ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff ou os confrontos de ordem da micropolítica.

Os elementos podem não estar em estreita relação entre si, como a leitura do poema Agradecimento, da polaca Wisława Szymborska (1923-2012). Cada espectador pode ser atravessado por sensações provocadas pelas partituras do elenco. E construir seus sentidos do espetáculo.

SERVIÇO

NÓS, do Grupo Galpão, dentro do 18º Festival Recife do Teatro Nacional
QUANDO Quarta e quinta-feiras, 23 e 24/11, às 20h30
ONDE Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu, em Boa Viagem, Recife
QUANTO R$ 10 a R$ 5
CLASSIFICAÇÃO 16 anos

FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO
Elenco
Antonio Edson
Chico Pelúcio
Eduardo Moreira
Júlio Maciel
Lydia Del Picchia
Paulo André
Teuda Bara
Equipe de criação
Direção: Marcio Abreu
Dramaturgia: Marcio Abreu e Eduardo Moreira
Cenografia: Play Arquitetura – Marcelo Alvarenga
Figurino: Paulo André
Iluminação: Nadja Naira
Trilha e Efeitos Sonoros: Felipe Storino
Assistência de Direção: Martim Dinis e Simone Ordones
Preparação musical e arranjos vocais/instrumentais: Ernani Maletta
Preparação vocal e direção de texto: Babaya
Colaboração artística: Nadja Naira e João Santos
Assistência de Figurino: Gilma Oliveira
Assistência de Cenografia: Thays Canuto
Cenotécnica e construção de objetos: Joaquim Pereira e Helvécio Izabel
Operação e assistência de luz: Rodrigo Marçal
Operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Cleo Magalhães
Confecção de figurino: Brenda Vaz
Técnica de Pilates: Waneska Torres
Fotos de divulgação: Guto Muniz
Fotos do programa: Fernando Lara, Gustavo Pessoa e Guto Muniz
Imagens escaneadas: Tibério França e Lápis Raro
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Lápis Raro
Design web: Laranjo Design (Igor Farah)
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Produção: Grupo Galpão

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Para que serve a consciência de Till

Inês Peixoto (centro) interpreta Till com graça e humor. Foto: Ivana Moura

Inês Peixoto (centro) interpreta Till com graça e humor. Foto: Ivana Moura

X Festival de Teatro de Fortaleza

Já fazia dias, semanas até, que não caia uma gota de chuva em Fortaleza. Mas ontem, durante a apresentação do espetáculo Till, a saga de um herói torto, choveu o suficiente para interromper por duas vezes a exibição do grupo Galpão. O que poderia ser um desastre transformou-se num detalhe de congraçamento entre palco e plateia. O público buscou se proteger do aguaceiro colocando cadeiras na cabeça ou fugindo para qualquer abrigo ali por perto. Aquilo parecia provocação de São Pedro, talvez para assegurar o interesse dos espectadores. A plateia ficou por ali, e quando a chuva cessou pediu com palmas ao elenco para que voltasse para concluir a sessão. Foram momentos de comunhão do teatro, em ato encarado pelos presentes como algo precioso. Bonito de ver.

Till, a saga de um herói torto, abriu ontem a 10ª edição Festival de Teatro de Fortaleza (Ceará), ao ar livre no Estoril, na praia de Iracema. É uma montagem do Galpão de tradição mambembe, popular, de rua, fincada na comédia com doses cavalares de reflexões sobre questões contemporâneas – da necessidade de se pensar sobre a exclusão dos que já nascem enjeitados, à vontade da ressurreição das utopias para um mundo melhor. A encenação é de 2009, com direção de Júlio Maciel, um dos integrantes do grupo mineiro; e já rodou o mundo. E isso traz a vivência do palco, mas também um desgaste do que poderíamos chamar do frescor do espetáculo. Talvez por isso, o fator surpresa do vento, da chuva, e principalmente da reação do público agregou valor de experiência única à exibição.

O texto de Luís Alberto de Abreu resgata Till Eulenspiegel da cultura popular da Idade Média. Essa figura do folclore alemão conserva parecença com Gargantua e Pantagruel, personagens de François Rabelais (1493-1553), na crítica aos pequenos poderes e na referência ao grotesco e ao escatológico, mas sem a radicalidade do autor francês. A cena em que o anão escafandrista é enfiado dentro da mãe do protagonista para arrancar o preguiçoso Till lá de dentro é “tempero Rabelais”, mas as ações na sequência são suavizadas e suas estripulias o aproximam de João Grilo, do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

O diabo é sempre sedutor, defendido por Chico Pelúcio

O diabo é sempre sedutor, defendido por Chico Pelúcio

Till nasce de uma aposta entre o Demônio e Deus. O Belzebu joga que o humano é criação falida e que bastaria tirar algumas de suas qualidades para a criatura cair em perdição. Till é a cobaia. O coitado já chega desprovido de qualquer inteligência útil e perde sua Consciência numa negociação com o Demônio.

Nessa peleja entre o Altíssimo e o Diabo, só o segundo aparece. Ele está vestido de vermelho e porta chifres que acendem. É defendido por Chico Pelúcio com graça e humor. Entra e sai do Inferno com estardalhaço e os efeitos de gelo seco.

As interpretações são propositalmente exageradas, para destacar o teor grotesco das personagens. Inês Peixoto interpreta esse presepeiro encantador, com desenvoltura explorando as facetas de tolo/esperto, poético mas com doses escatológicas.

Os três cegos que peregrinam em busca de Jerusalém. Foto: Ivana Moura

Os três cegos que peregrinam em busca de Jerusalém. Foto: Ivana Moura

Paralelamente ao percurso de Till, na sua luta pela sobrevivência e seus encontros com o diabo, também é mostrada a história de três cegos andarilhos (Alceu, Borromeu e Doroteu) que sonham em chegar a Jerusalém. O elenco trabalha com mais de uma chave interpretativa, incluindo a narração, com quebra da ilusão no interior da cena com a exposição da artesania teatral e da tradição do teatro épico.

O cenário, de Márcio Medina, traz alçapões de onde sai o diabo, deslizam Till ou emerge o anão escafandrista. Isso provoca efeitos que dão ritmo e agilidade na movimentação, que conquistam a plateia. Mas toda a estrutura está fincada na relação frontal.

Da competência do elenco já sabemos e do domínio da arte da representação. Os atores compõem figuras hilárias, grotescas, mas com algum toque de dignidade. O figurino esfarrapado é de impacto e robustece a ambiência da história, associada à maquiagem pesada.

Com humor, a peça investe na necessidade da utopia. E indica quão frágil e pequeno é esse humano formado de corpo, alma e consciência. A ação do trio de cegos capricha nas fissuradas relações humanas com suas disputas por poder, onde cabem dependência, ciúme, inveja e falsa bondade, entre outras coisitas.

Foi uma noite memorável. A saga foi tão bem recebida em Fortaleza que até o Diabo, que teoricamente perdeu a batalha para Deus e teve que devolver a Consciência de Till, conseguiu uma voluntária para subir ao palco e conhecer o seu cantinho quente.

Teuda Bara, Mãe de Till

Teuda Bara, Mãe de Till

FICHA TÉCNICA
Elenco

Antonio Edson (Borromeu / Povo / Anão)
Arildo de Barros (Parteira / Juiz / Camponês / Carrasco / Padre / Miserável)
Beto Franco (Parteira / Português / Padre / Camponês / Miserável)
Chico Pelúcio (Demônio / Camponês / Voz do Soldado)
Eduardo Moreira (Doroteu / Povo)
Inês Peixoto (Till)
Lydia Del Picchia (Parteira / Consciência / Cozinheira / Menino)
Simone Ordones (Alceu / Povo)
Teuda Bara (Mãe / Miserável)
Direção: Júlio Maciel
Texto: Luís Alberto de Abreu
Cenografia e Figurino: Márcio Medina
Direção musical – arranjos, adaptações e composições: Ernani Maletta
Preparação corporal para cena: Joaquim Elias
Iluminação: Alexandre Galvão, Wladimir Medeiros
Caracterização: Mona Magalhães
Adereços: Luiza Horta, Marney Heitmann, Raimundo Bento
Sonorização: Alexandre Galvão
Cenotécnica e contra-regragem: Helvécio Izabel
Assistente de figurino: Paulo André
Assistentes de cenografia: Poliana Espírito Santo, Amanda Gomes
Preparação vocal: Babaya
Técnica de Pilates: Waneska Carvalho
Construção do palco: Tecnometal
Ajudante de cenotécnica: Nilson Santos
Costureiras: Taires Scatolin, Idaléia Dias
Fotos: Guto Muniz / Casa da Foto
Projeto gráfico: Lápis Raro
Consultoria de planejamento: Romulo Avelar
Assessoria de planejamento: Ana Amélia Arantes
Assessoria de comunicação: Paula Senna
Estagiários de comunicação: Ana Alyce Ly e João Luis Santos
Consultoria de patrocínio: Mauro Maya
Assistente de produção: Anna Paula Paiva
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Patrocínio: Petrobras

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A labuta do Galpão

Grupo Galpão estreia Tio Vânia. Fotos: Pollyanna Diniz

“Tudo tem o seu tempo determinado. E há tempo para todo propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Tempo de matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar”. Os integrantes da família russa tema do espetáculo Tio Vânia (aos que vierem depois de nós), nova montagem do grupo Galpão que estreou na última sexta-feira, no Festival de Curitiba, parecem ter absorvido essas palavras “emprestadas” do livro bíblico de Eclesiastes. Embora o tempo que se sobressaia nesse caso seja o da labuta e, mais ainda, o da resignação advinda das possibilidades e escolhas feitas ao longo da vida.

O grupo Galpão, de Minas Gerais, completa 30 anos em 2012, mas nunca havia levado aos palcos um texto de Anton Tchékhov. Antes de Tio Vânia…, só tinham tido a experiência de mergulhar na obra do dramaturgo russo quando foram dirigidos por Enrique Diaz no processo de criação de As três irmãs, em 2008, que foi registrado pelo cineasta Eduardo Coutinho, e virou o documentário Moscou. Para uma companhia tão afeita às montagens de teatro de rua, às comédias, a fazer música nos próprios espetáculos, o soturno Tio Vânia… é um desafio.

Galpão se desafia ao montar texto psicológico

O enredo traz uma família que vive numa propriedade rural. Todos ali passaram anos trabalhando sem descanso, principalmente Vânia (Antonio Edson) e a sua sobrinha Sônia (Mariana Lima Muniz, atriz convidada pelo grupo para participar da montagem). Com a chegada do seu cunhado, o professor Serebriákov (Arildo de Barros), metido a intelectual, e da sua jovem esposa Helena (Fernanda Vianna), Vânia percebe que levou uma vida medíocre. Que os anos passaram. Sente-se frustrado e impotente. Helena desperta paixão tanto em Vânia quanto no médico Ástrov (Eduardo Moreira), esse último desejo do amor de Sônia. Ainda estão no elenco Teuda Bara e Paulo André.

Mariana Lima Muniz interpreta Sônia

Os próprios atores já tinham dito, durante entrevista, que montar a peça foi uma forma de revisitar as suas próprias vidas e carreiras. O papel do ator, a trajetória do grupo. A direção da montagem ficou sob a responsabilidade da também mineira Yara de Novaes, que tem mesmo um perfil de realizar um teatro mais psicológico (fez, por exemplo, Noites brancas, de Dostoiévski; e, durante um período em que morou no Recife e deu aulas na UFPE, montou A história do zoológico, de Edward Albee, em 2001). “Esses atores são todos operários do teatro, trabalhadores dedicados. E a peça é sobre trabalho”, dizia a diretora.

O tom de antiguidade e conflito foi alavancado pela cenografia da peça, um dos seus méritos. A concepção foi de Márcio Medina (que também é responsável pelo figurino), que trabalha com o grupo pela quarta vez. São imagens muito bonitas. Como que fotografias amareladas, em tom sépia. Logo no início, a família está reunida numa mesa de madeira, tendo ao fundo uma árvore seca e cinco grandes colunas. Elas são movimentadas pelos próprios atores nas transições de cena e podem tanto reprimir quanto aconchegar. A luz, pensada por Pedro Pederneiras, do grupo Corpo, e o figurino que não é datado, mas entende-se que é antigo, complementam a concepção do que é montar Tchékhov para o Galpão.

Protagonista ficou sob a responsabilidade de Antonio Edson

As atuações são, como pede o texto, mais contidas do que as habituais montagens do grupo, mas não perdem o vigor, a força. Sustentam um texto que fala de sonhos, ilusão, frustração, trabalho, desejo. Em cena, os atores mostram um ritmo que leva o espectador a digerir aos pouquinhos aquela dramaturgia. Claro que pode melhorar ainda mais no decorrer das apresentações, com o trato cotidiano no palco com a história e a encenação. Desafio pequeno para tantos talentos, lapidados em 29 anos de companhia. Menor ao menos do que foi fazer essa viagem ao passado, ao inconsciente do grupo, às “colunas” de sustentação (como aquelas que seguram a casa da família) desses atores, para enfrentar Tchékhov pela primeira vez.

Grupo disse que gostaria de participar do Festival Recife do Teatro Nacional

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