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Começo, meio, começo
Crítica: Àwọn Irúgbin
Por Annelise Schwarcz*

Àwọn Irúgbin participou da programação do OFFRec, no FRTN 2025. Foto: Ricardo Maciel

Em 1989, Beatriz Nascimento – historiadora e intelectual brasileira –, lançou em parceria com Raquel Gerber o filme Ôrí. Enquanto historiadora, Beatriz observava como o negro é retratado na historiografia do Brasil apenas sob a ótica da escravidão. É no intuito de devolver a humanidade e a identidade negra roubada ao longo do processo da colonização que Beatriz se lança em sua pesquisa em torno da reconstrução dessa imagem. No filme Ôrí (1989), temos Beatriz – na qualidade de narradora e roteirista – compartilhando os frutos dessa pesquisa. O que estava em disputa com o resgate dos símbolos da cultura negra no país era a construção de uma identidade como instrumento de auto afirmação racial, intelectual e existencial. O filme retrata a organização dos movimentos negros brasileiros das décadas de 70 e 80, os barracões e as apresentações das escolas de samba, terreiros, encontros acadêmicos entre intelectuais negras/os, os bailes blacks e mais uma série de expressões artísticas afrodiaspóricas, manifestações religiosas e eventos em torno da construção de uma agenda negra. Todos esses registros visavam responder à questão “onde é quilombo hoje?” e oferecer um reflexo no qual a/o negra/o pudesse se reconhecer.

Beatriz Nascimento abriu caminhos para que muitas e muitos, após ela, seguissem somando na busca pela identidade negra, disputando a construção de imagens para além daquelas estigmatizantes que remetem ao colonialismo e que, ainda hoje, são disseminadas pelo racismo cordial à brasileira. O convite de Nascimento para escrever “uma história feita por mãos negras” (título de um de seus livros), encontrou reverberação e hoje assistimos a uma verdadeira proliferação de mãos negras tecendo histórias ou, para ficarmos com o termo de Conceição Evaristo, compondo um grande arquivo a partir de suas escrevivências: deixando o lugar de objeto dos discursos dominantes e assumindo a autoria de suas próprias narrativas. 

Àwọn Irúgbin, espetáculo apresentado no OFFRec 2025 compondo a programação do Festival Recife do Teatro Nacional, é mais uma realização comprometido com o resgate e valorização da cultura negra. Deixando evidente sua orientação pelas ideias de Beatriz Nascimento, o elenco – composto exclusivamente por jovens negras/os da periferia da Região Metropolitana do Recife – nos recebe dançando, como em um baile black, e nos convida a dançar também. Em seguida, cita as palavras da autora sergipana, presentes no filme Ôrí: “É preciso imagem para recuperar a identidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade”. 

A peça é resultado de uma residência de dois anos com o núcleo O Postinho, uma residência oferecida pelo grupo O Poste Soluções Luminosas. A Escola O Poste de Antropologia Teatral oferece uma formação que inclui atividades como “Tradições da Mata: Cavalo Marinho e Maracatu de Baque Solto na construção do ator”, com Andala Quituche; “O Corpo Ancestral – Práticas de Treinamento Ancestral do grupo O Poste Soluções Luminosas” e “Voz Criativa”, com Naná Sodré; “Tradição indígena como preparação para o corpo do ator”, com Iara Campos; “Poética Matricial dos Orixás e Encantados” e “A criação do figurino e acessibilidade em perspectiva acessível de retomada”, com Agrinez Melo; “O Performer Ancestral” e “Dramaturgia”, com Samuel Santos; “Capoeira no jogo do ator”, assinada por Gaby Conde, além de preparação de corpo, de voz, criação de figurinos, aulas de danças diaspóricas e aulas de história do teatro negro-africano.

Àwọn Irúgbin, que significa “sementes” em yorubá, consiste em um espetáculo composto por quatro cenas unidas pela temática da busca por uma referência na qual a/o negra/o possa se reconhecer, com dramaturgias distintas em cada cena desenvolvidas pelo próprio elenco. As diferentes potências e o fato de cada cena ser idealizada por um/a artista diferente resulta numa montagem de qualidade heterogênea, mas também é prova do incentivo à autonomia e à conquista da própria voz, por parte do grupo O Poste. Cada cena tem como pano de fundo as escrevivências de Cecília Chá, Larissa Lira, Sthe Vieira e Thallis Ítalo em diálogo com suas referências, como quem nos conta quem plantou as sementes para que eles pudessem colher os frutos como, por exemplo, Zumbi dos Palmares, João Cândido, Luiza Mahin, Luiz Gama, Conceição Evaristo, Leda Maria Martins, além da já mencionada Beatriz Nascimento. Todas essas figuras complexificam o quadro do que é ser negra/o e contribuem para o alargamento da história e da cultura afrodiaspórica no Brasil, superando narrativas de invisibilização e subalternidade. 

Larissa Lira dedica a sua cena à Elza Soares e relembra marcos do Brasil e da vida pessoal da cantora costurados pelas letras de suas músicas (“O meu país é meu lugar de fala”, trecho de o que se cala, e “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, trecho de A carne). Elza, que sofreu tentativas de feminicídio e agressões do seu ex-companheiro, é apresentada como signo de força e resistência a partir da contação de um sonho com búfalos e com a orixá Iansã. Como uma espécie de porta-bandeira – toda de verde brincando e girando com uma bandeira de cor verde sólida –, a jovem atriz busca mimetizar em sua dicção o timbre inconfundível da voz rasgada de Elza, demonstrando o tamanho de sua extensão vocal explorando dos sons mais graves aos agudos, privilegiando o experimento sonoro à transmissão do texto. 

Espetáculo é fruto de uma residência do núcleo O Postinho, projeto do grupo O Poste Soluções Luminosas. Foto: Ricardo Maciel

Na cena seguinte, Sthe Vieira interpreta uma afroindígena que não encontra figuras semelhantes a si mesma nas revistas, jornais, filmes e propagandas. Sua cena dá o tom da interseccionalidade entre as lutas das gentes negras e indígenas. Assim como na citação de Beatriz Nascimento que abre a peça, ela também está em busca de sua identidade e as imagens de mulheres na mídia a afastam da sua cultura, história e percepção de si. 

Sthe canta a música Me usa da Banda Magníficos e dá voz a uma narrativa muito familiar a muitos/as brasileiros/as: a da avó ou bisavó “pega no laço”. O eufemismo dessa expressão – que não é utilizada pela atriz – esconde que ser “pega no laço”, na verdade, significa ser levada contra sua vontade, sequestrada. Sthe, ao evitar a expressão popular, dá o tom da gravidade e nos faz estranhar o forró que nos é tão familiar quanto a expressão aqui citada: “Amor, me leva e faz de mim o que quiser. Me usa. Me abusa, pois o meu maior prazer é ser tua mulher”. Crescendo longe de suas referências, ela se volta à sua ancestralidade através da música: a personagem – que desde o início da cena veste um cocar – toca chocalho, canta ponto de caboclo e canta em uma das línguas originárias acompanhada pelas/os demais artistas do elenco, que estão tocando ao vivo alguns instrumentos do outro lado do palco do teatro Hermilo Borba Filho. 

Cecília Chá também manda um salve para as mais velhas em sua cena e homenageia as vovós. Talvez o momento mais emocionante da montagem seja o momento em que Cecília interpreta uma neta ao lado de sua avó vendo nuvens. A atriz consegue criar uma atmosfera na qual a vemos ali, junto com essa avó, apontando para o céu e reconhecendo pessoas nas nuvens: Bernadete Pinheiro, Sueli Carneiro, Nego Bispo, Conceição Evaristo e, de repente, a avó já não está mais ali. Isso não a impede de seguir conversando com a sua avó. Cecília nos transporta para uma sessão de Preto Velho num terreiro de umbanda. Ouvimos o ponto da Vovó Maria Redonda enquanto Cecília se transmuta na Preta Velha. A neta e a avó se encontram no mesmo corpo e nos lembram que não há fim: apenas começo, meio e começo. Ela(s) se agacha(m), risca(m) com pemba uma espiral no chão com algumas nuvens dentro e nos pede(m) para não esquecermos o formato das nuvens como quem pede para não esquecer dos que vieram antes de nós, pois assim como as nuvens, eles/as ainda nos acompanham. 

Àwọn Irúgbin reverbera ideias de Beatriz Nascimento. Foto: Ricardo Maciel

O palco está no meio, entre as duas arquibancadas, e o público está dividido por esse corredor onde se dão os atos. A montagem brinca com a extensão desse corredor, aproveitando que estamos olhando em determinada direção para aprontar a próxima cena na direção oposta. Thallis Ítalo surge dentro de uma bacia de água do lado oposto do palco enquanto nosso olhar ainda se despedia de Cecília. A cena de Thallis, diferentemente das demais, parece explorar um conflito interior. Seu personagem se chama Obelin e nasceu próximo às águas de Oxum, filho de mãe preta, mas por ser mais claro que sua mãe, ele não sabe que cor tem. Thallis aborda a questão da mestiçagem e do colorismo. A que coletividade pertence um filho claro de uma mãe de pele escura? Em busca de respostas, Obelin vaga pelas águas de rio e de mar. Como elemento cenográfico, Thallis lança mão de uma bacia com água e não economiza banhos ao longo de suas cenas, permitindo-se até mesmo dar eventuais banhos na plateia de tabela.

Sthe Lima interpreta Yemanjá, a rainha do mar, e Larissa Lira interpreta Oxum na cena de Thallis. As duas cantam em yorubá, enquanto Obelin segue em busca da resposta pela sua ancestralidade. É Vovô Dedé quem lhe pede para olhar para seu reflexo nas águas e, assim, Obelin se reconecta com suas raízes negras, remetendo mais uma vez à citação de Beatriz Nascimento: “A invisibilidade está na raiz da perda da identidade”.

A montagem, que não tem fim, “termina no meio” da mesma forma que começa: trazendo o público para dançar como em um baile black. O lema espiralar “começo, meio e começo” se configura em um dispositivo performativo e organiza a estrutura da montagem que, devido ao seu caráter episódico, poderia vir a ter no futuro, se for do desejo das/os envolvidas/os, mais cenas e artistas acoplados/as ao espetáculo multiplicando essas sementes. Me pergunto, apenas, se ao insistir em frases como “o negro é espiralar, o negro dança, o negro ginga” não acabamos por criar novos essencialismos acerca da identidade negra. Quero dizer: será que na busca pela identidade negra, ao invés de contribuir com o alargamento e complexificação do ser negra/o, não estamos incorrendo em novas clausuras ao afirmar que “o negro” – já começando pelo uso da palavra no singular e no masculino – é definido pelos atributos do que o seu corpo pode fazer? Não estamos mais uma vez reincidindo numa essencialização do que somos e/ou podemos ser ao investir nessa relação direta entre as gentes negras e o corpo? Podemos não ser ou não fazer o que dizem que fazemos? Creio que essa conversa talvez não caiba nesta crítica – o que não quer dizer que gostaria que ela terminasse aqui –, mas quero, desde já, lançar também algumas sementes. 

* A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife.

Ficha técnica:
Produção/direção: Núcleo O Poste Soluções Luminosas / Agrinez Melo
Elenco: Cecília Chá, Larissa Lira, Sthe Vieira e Thallis Ítalo
Preparação corporal/ancestral/voz: Naná Sodré e Darana Nagô
Preparação poética/figurino: Agrinez Melo
Assessoria dramatúrgica: Samuel Santos
Aulas de história do teatro negro-africano e performance Bantue: Jeff Vitorino e Matheus Amador
Assessoria de imprensa: Daniel Lima

Cena de Thallis Ítalo explora questão da mestiçagem e do colorismo. Foto: Ricardo Maciel

 

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Ter Exu como princípio: estranhar a cronologia
Crítica: HBLynda em TRANSito
Por Annelise Schwarcz*

HBLynda em TRANSito participou do OFFRec, na programação do FRTN. Foto: Ricardo Maciel/Palco Pernambuco

O que é ser homem? O que é ser mulher? A gente nasce mulher ou se torna? Como esses gêneros são construídos? Culturalmente? Biologicamente? É possível ser homem e mulher? É possível ser nenhum dos dois? O que acontece com quem recusa os quadros de reconhecimento impostos, ou seja, quem recusa ser enquadrado pelas categorias disponíveis? O que é ser não binário? O que significa ser ciborgue? A gente nasce ciborgue ou se torna? Essas são algumas questões que têm animado as discussões das teorias queer, um campo relativamente recente com menos de oito décadas de existência, e seus desdobramentos podem ser encontrados nas obras de autoras/es como Monique Wittig, Judith Butler, Donna Haraway, Paul B. Preciado e Jack Halberstam – apenas para citar alguns exemplos. Nos últimos anos, as teorias em torno dos modos de vida queer têm se popularizado e extrapolado o âmbito acadêmico, ganhando repercussão especialmente nas artes da cena e nas ruas.

HBLynda em TRANSito, espetáculo de HBLynda Moraes apresentado no OFFRec 2025 durante o 24º Festival Recife do Teatro Nacional, é mais uma montagem que se soma ao grande corpo de produções em torno da temática queer. A peça conta em primeira pessoa a vida de HBLynda Moraes – pessoa trans não binária – desde os primeiros confrontos, ainda na escola, com a não conformidade com a performance da masculinidade até o encontro com seu novo nome e identidade de gênero em trânsito. A dramaturgia segue de forma cronologicamente linear os marcos traumáticos e os prazeres da descoberta, costurados por danças aos orixás Exu, Ogum, Oxum e à Pombagira 7 Catacumbas. Com Exu, HBLynda abre os trabalhos, com Dona 7 Catacumbas dança os vivos e os mortos, com Ogum tem força para enfrentar as violências e vencer as batalhas, e com Oxum gesta um novo nome, uma nova forma de ser e estar no mundo.

Da direita para a esquerda, o cenário montado no teatro Hermilo Borba Filho é composto por quatro cadeiras ao centro, próximas a quatro lousas acopladas umas às outras e, ao lado delas, uma mesa com uma miniatura da Torre Eiffel e dois porta retratos sobre ela, um bambolê led no chão. Agora pensa numa peça generosa: logo na entrada você ganha shot de cachaça, tangerina, pompom de festa e ainda é recebida/e/o por arruda e alecrim macerados, espalhados pelo chão, perfumando o ambiente. A peça ainda conta com momentos interativos com o público como, por exemplo, distribuição de coxinhas e uma aula sobre gênero e performatividade, além de trilha sonora e sonoplastia ao vivo de Raphael Venos.

No entanto, em alguns momentos, tantos elementos sendo ofertados ao público resultam em um esvaziamento do sentido de alguns dispositivos. Por exemplo, ao distribuir as coxinhas durante o depoimento da mãe de HBLynda, os burburinhos das pessoas aceitando ou recusando, assim como a conversa em torno do quão gostoso estava o salgadinho compete com o volume do vídeo, prejudicando a compreensão do relato. Em outro momento, começa a tocar a música do Xou da Xuxa e somos convidadas/es/os a balançar nossos pompons azul e rosa que ganhamos na bilheteria ao adquirir os ingressos. O show é interrompido abruptamente quando HBLynda pede ajuda da plateia para revelar o sexo do bebê e brinca que nós, plateia majoritariamente cis, devemos adorar um chá de revelação. Depois, a cena se metamorfoseia em uma aula a partir da pergunta “quem sabe como o gênero é constituído?” e a breve cena em torno dos pompons, que estávamos carregando desde antes de entrar no teatro conosco, parece gratuita. 

Espetáculo leva à cena discussões da teoria queer que extrapolaram o ambiente acadêmico nos últimos anos. Foto: Ricardo Maciel/Palco Pernambuco

A dramaturgia é voltada para o público cis e busca oferecer letramento acerca de questões como sexo, gênero e transição. A performer explica que transicionar não é como “um botão do BBB, que você aperta para sair” e que, sobretudo para pessoas trans não binárias como ela, o gênero está em trânsito. Gênero em encruzilhada: muito ela para ser ele, muito ele para ser ela. Da mesma forma, a peça situa-se numa encruzilhada na qual, por vezes, supõe a ignorância de seu público e por isso aposta no didatismo, como quando questiona “quem sabe como o gênero é constituído?” e, ao receber como resposta o silêncio da plateia, HBLynda responde que o gênero é constituído socialmente e nos faz repetir em coro: “nem toda pessoa de pau é homem, nem toda pessoa de buceta é mulher”. Por outro lado, em outros momentos, aposta que termos como “enquadramento” de Judith Butler ou “corpo ciborgue”, conceito de Donna Haraway que se refere a um corpo composto por ficções políticas contraditórias, dispensam apresentações. 

HBLynda canta o desejo de “não ser quadrada” ou “ser enquadrada” nas normas sociais, nos quadros de reconhecimento disponíveis. A performer relembra a forma que crianças na escola, só de ver sua letra redonda e caprichada, começaram a expor sua feminilidade para ela mesma que, até então, vivia alheia a essas questões. Foram anos tentando disfarçar e se adequar, sobrevivendo às violências até que pudesse se encontrar. Um pouco antes de saudar Oxum e celebrar seu renascimento, HBLynda relembra o itan “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que lançou hoje”. Exu abre a apresentação, mas não (des)organiza a cronologia. A peça autobiográfica poderia se nutrir do princípio exusíaco – proferido pela própria performer e dramaturga – na construção da dramaturgia, reposicionando a convencional narrativa que parte da infância à vida adulta, quiçá revendo até os eventos traumáticos como pontos de referência. Se tudo é trânsito, a identidade e a memória se tornam ilhas de edição: o nascimento pode ter sido a morte dos pais, a aula pode acontecer sem interromper o show e o pedido para contar uma memória do passado, pode se tornar o convite para vislumbrar um futuro. 

*A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife

Ficha técnica:
HBLynda em TRANSito
Idealização, dramaturgia e atuação: HBlynda Morais
Direção artística/geral: Emmanuel Matheus
Produção executiva: Juliana Couto
Direção musical e músico: Raphael Venos
Preparação coreográfica/corporal: Aline Gomes
Iluminação: Cleison Ramos (Farol Atelier da Luz)
Figurino: Agrinez Melo
Confecção do figurino: Mariana Barbosa
Programação visual e monitoramento de redes: Bagasá / Emmanuel Matheus

Biografia é utilizada como material para elaboração da dramaturgia. Foto: Ricardo Maciel/Palco Pernambuco

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O que pode o teatro diante das
violências contra as mulheres?*
Crítica: Ella
Por Pollyanna Diniz*

Ella, espetáculo de Ana Oliveira, de Manaus, participou do FRTN. Foto: Marcos Pastich/PCR

Tarde de quinta-feira, 28 de novembro de 2025. Na página inicial do portal Globo.com, um dos principais sites jornalísticos do Brasil, entre as manchetes sobre política e os acontecimentos do país, duas notícias disputavam espaço no quadrante mais importante, o de maior visualização da página. As chamadas eram as seguintes: “Quantas calorias por dia devemos perder para emagrecer?” e “Qual o melhor tipo de cardio para emagrecer?”. Na noite anterior, a atriz e palhaça Ana Oliveira, de Manaus, apresentou o solo Ella, no Festival Recife do Teatro Nacional, no Teatro Hermilo Borba Filho, na programação do OFFRec. O espetáculo foi criado em 2014 e, ao longo de mais de dez anos, a sua temática – a violência de gênero e as opressões estéticas a que são submetidas as mulheres – não perdeu relevância. Apostaria que as mulheres da minha geração, de 40 e poucos anos, não verão essa discussão ser destronada. Talvez as nossas filhas, quem sabe, as nossas netas.

A palhaça Ella nos recebeu na porta da sala de espetáculos. Entramos no teatro e as arquibancadas do Hermilo estavam dispostas uma de frente para a outra; a cena se desenrola no corredor, entre as arquibancadas. No chão, vários recortes de revistas femininas com matérias que falavam basicamente de emagrecimento, exercícios físicos, procedimentos estéticos. No fundo do corredor, no meio, um varal, com o mesmo tipo de material, e uma televisão, que ficou exibindo basicamente vídeos de exercícios físicos.

Ana Oliveira é uma mulher jovem, branca, magra, de cabelos lisos. Mesmo que o checklist do padrão de beleza seja propositadamente inalcançável, se houvesse uma régua, ela estaria mais perto do que longe desse padrão. Ainda assim, vítima.

Naomi Wolf, autora de O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres, diz que “A beleza é um sistema monetário semelhante ao padrão ouro. Como qualquer sistema, ele é determinado pela política e, na era moderna, no mundo ocidental, consiste no último melhor conjunto de crenças a manter intacto o domínio masculino”. E que o mito da beleza “diz respeito às instituições masculinas e ao poder institucional dos homens”. Estamos falando do controle de corpos de mulheres, do neoliberalismo que lucra com isso, do quanto perdemos tempo, dinheiro e energia de vida – que poderiam ser empregados noutros objetivos – nesse enquadramento que faz com que os nossos corpos sejam encarados por nós mesmas como inimigos.

A discussão pode ser muito potente e disruptiva, mas a construção da palhaça Ella não sustenta ou instiga um aprofundamento do debate. Ella é uma palhaça alegre, ingênua, que nos faz rir com suas bobices, que quase não fala, balbucia poucas palavras, e se expressa por meio de seus gestos e ações.

Numa das revistas, encontra a receita de um picolé de alface – alface e gelo são então distribuídos para algumas pessoas da plateia; a disposição espacial do público faz com que todos vejam as reações uns dos outros diante da verdura e do gelo. Noutra ação nessa primeira parte do espetáculo, Ella decide fazer exercícios físicos. Num dos momentos mais interessantes e engraçados desta apresentação única da peça, a palhaça pediu ajuda a uma pessoa da plateia para ler na revista, ou inventar, quais exercícios ela deveria fazer.

Primeira parte do espetáculo é dedicada às opressões estéticas. Foto: Marcos Pastich/PCR

O pedido foi feito à Nínive Caldas, também atriz, que assumiu a brincadeira como carrasca, arrancando risadas da plateia. Se é pra ilustrar como o sistema é opressor, vamos fazer isso direito: Ella andou de joelhos de um lado para o outro do palco e terminou a cena perguntando se não havia ninguém mais boazinha para assumir a tarefa. O público se deleitou.

No segundo momento do espetáculo, Ella chama um homem da plateia para participar da cena. Brinca com a mulher que acompanhava o homem, pede autorização, diz que a partir daquele momento não haverá espaço para desistências. Nesse trecho, o que vemos é a palhaça tentando conquistar esse homem, numa construção idealizada do amor romântico. A participação do homem é longa e ele entrou na brincadeira: puxou a cadeira para que ela se sentasse na hora do jantar – e então ela se levanta quando ele vai se sentar, na repetição cômica da ação – comeu alface, dançou com a palhaça e simulou até um selinho.

Nessa elaboração proposta pelo espetáculo, é como se o primeiro passo para ser “bem-sucedida” na tarefa de conseguir um amor romântico fosse tentar atender ao padrão de beleza. A psicóloga Valeska Zanello, autora do livro A prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações propõe a metáfora da prateleira, explicitada pelo título do livro: seguindo a lógica de uma prateleira de supermercado, algumas mulheres têm mais chances de serem preteridas nas relações afetivas por suas características físicas. Ainda assim, independente de em qual lugar na prateleira nós estejamos, a lógica é a da opressão e da sujeição: “A prateleira elege os homens como avaliadores físicos e morais das mulheres. Então, não existe um lugar bom, existem os menos ruins. As mulheres vão envelhecer, engordar, e ainda vão estar sob o julgo de serem avaliadas e escolhidas por homens”, explica Valeska Zanello.

Na primeira cena, da opressão estética, mesmo que não haja aprofundamentos, a dramaturgia criada pelas revistas dispostas no cenário, pelo alface e pelo gelo distribuídos ao público, pelo exercício “extremo” proposto pela espectadora, leva o espectador a perceber a violência simbólica a que nós mulheres somos submetidas. Não é o caso da cena seguinte, que idealiza uma relação romântica, quase uma comédia romântica, uma cena “fofa”, “bonitinha”, sem nenhuma problematização sobre a importância do amor romântico na manutenção da subjugação das mulheres no patriarcado. Claro que essa dramaturgia depende muito da participação do homem escolhido na plateia e de como ele vai se comportar durante a interação. Mesmo que dependa do acaso dessa participação, a contradição se estabelece: ainda que o homem seja gentil, o que seria o aceitável, a questão está na busca por esse lugar de ser desejável e amada por um homem como objetivo principal da mulher.

Na terceira parte do espetáculo, há uma quebra brusca. Enquanto as outras duas cenas se desenrolam com tempo de respiro para que as ações aconteçam, a terceira é um corte seco. Quando o primeiro homem convidado pela palhaça volta ao seu lugar na plateia, um segundo homem se levanta e pede para dançar com ela. A dança – e os abusos – acontecem muito rapidamente. O homem usa a dança para tocar o corpo da palhaça, que se esquiva, até que a violência escala: um estupro é reproduzido, com o homem em cima da palhaça, simulando inclusive os movimentos sexuais. A cena é repugnante e acontece ali, muito próxima dos espectadores. O agressor em cena. As luzes, que já estavam baixas durante a violência, apagam completamente. O espetáculo termina assim.

Neste momento, a história perde o seu eixo: deixa de ser sobre essa palhaça, a pressão estética, a busca pelo amor romântico, e passa a ser sobre a violência sexual que foi cometida. E o teatro se transforma na praça pública de exibição da violência contra a mulher – como se a própria sociedade já não ostentasse essa violência suficientemente. A discussão sobre o tema é muito importante em todos os âmbitos da nossa sociedade, mas, como artistas, uma das perguntas que poderiam ser feitas é: como a arte pode colaborar no intuito de fortalecer o debate sem que as nossas obras se tornem espaços de reprodução simbólica de violência contra as mulheres? Como discutir violência sem cometer mais violência no ato de narrar?  Como a elaboração estética – na construção da dramaturgia, da cena e de todos os seus elementos – podem nos levar a ampliar perspectivas?

Última parte do espetáculo tem quebra brusca. Foto: Marcos Pastich/PCR

O teatro protagonizado pela palhaça Ella é o teatro do olho no olho, das pequenas plateias, da cumplicidade de quem acompanha um espetáculo acontecer muito próximo fisicamente. A violência da reprodução de uma cena de estupro tem uma dimensão muito diferente neste teatro do que na televisão ou no cinema, por exemplo.

Muito recentemente, a novela Dona de mim, da autora Rosane Svartman, exibida no horário das 19h, na Rede Globo, trouxe o enredo de um estupro. Foram capítulos dedicados especialmente à violência sofrida pela personagem Kami, interpretada pela atriz Giovanna Lancellotti. As cenas foram brutais – mas houve tempo para que aquela história se estabelecesse, para que a reverberação dessa violência fosse mostrada na vida da personagem, para que fossem mostradas cenas da ida à delegacia, da tentativa de identificação do estuprador, da importância do atendimento psicológico, dos julgamentos rápidos – que roupa ela estava usando?, do acolhimento dos amigos, da prisão do estuprador, de como a história dela foi marcada, mas não definida por essa violência na trama. Na televisão, nesse veículo de massa, dependendo da construção dramatúrgica, como aconteceu de modo forte e sensível nesse caso, exibir um estupro pode ter uma importância pedagógica imensa num país que registrou 227 estupros por dia em 2024, segundo dados do Ministério da Justiça.

Mas e o teatro? O que pode o teatro? O teatro pode muito, pode tudo aquilo que os artistas imaginarem e ainda mais. Reproduzir uma cena de estupro é fazer do teatro muito pouco. É restringi-lo. É subjugar mais uma vez a mulher. É perpetuar a lógica machista que se arvora dona dos nossos corpos. É injusto com o teatro, logo o teatro, esse lugar de reivindicar novas possibilidades, de inventar mundos, de elaborar a liberdade.  

*Quem quiser pensar mais sobre como contar histórias de violência tentando não reproduzir a sua lógica, indico o ensaio Vênus em dois atos, da escritora americana Saidiya Hartman, professora da Universidade Columbia, em Nova York, estudiosa da diáspora africana, autora de livros como Perder a mãe e Vidas rebeldes, belos experimentos.

*A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife

Ficha técnica:
Ella, da Cidade Flutuante Produções
Concepção cênica: Ana Oliveira
Palhaça: Ana Oliveira
Dramaturgista: Gabriel Mar
Produção: Igor Falcão e Efrain Mourão
Orientação: Prof. Luiz Davi Gonçalves

Trabalho é apresentado desde 2014. Foto: Marcos Pastich/PCR

 

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Teatro que reescreve a história
Crítica: Restinga de Canudos
Por Pollyanna Diniz*

Restinga de Canudos, da Cia do Tijolo, no Festival Recife do Teatro Nacional. Foto: Marcos Pastich

“Nordeste é uma ficção. Nordeste nunca houve! Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos. Não sou da nação dos condenados! Não sou do sertão dos ofendidos!”. No final da década de 1970, seis anos antes do fim da ditadura militar no Brasil, Belchior lançava Conheço o meu lugar. Um dos versos cita “Botas de sangue na roupa de Lorca”, em referência ao poeta e dramaturgo Federico García Lorca, assassinado por militares durante a guerra civil espanhola em 1936. Na noite de domingo de 23 de novembro de 2025, o ator e diretor Dinho Lima Flor, nascido em Tacaimbó, no Agreste pernambucano, morador da cidade de São Paulo há mais de 30 anos, emprestou sua voz à música de Belchior no Teatro Luiz Mendonça, no bairro de Boa Viagem, capital pernambucana.

Em poucos minutos, a apresentação única da peça Restinga de Canudos, da Cia do Tijolo, no Festival Recife do Teatro Nacional, que durou cerca de três horas, iria acabar, mas continuaria ressoando. Requerendo o direito à imaginação e à poesia. Entrelaçando o tempo da memória, do presente e de um futuro que quiçá possamos inventar. Revisando o passado como o conhecemos, como nos foi contado nos livros didáticos e nos jornais. Reivindicando o direito de enterrar corpos – e cabeças decapitadas – de brasileiros.

 A história, nos lembra o texto do espetáculo, está acontecendo agora e logo ali pertinho: é só voltar uma mãe, uma avó, uma bisavó. Nesse movimento, estamos de frente para pessoas pretas escravizadas no Brasil. Estamos diante da Lei de Terras, de 1850, que beneficiou latifundiários e impediu o acesso dos negros às terras. Vemos a comunidade de Belo Monte, liderada por Antônio Conselheiro, tomar forma em 1893, no Sertão da Bahia. As tentativas de massacre a partir de 1896 pelo Exército brasileiro do povo que se reuniu ali. O extermínio de 25 mil pessoas em dois anos, 1896 e 1897. O lançamento do livro Os Sertões, publicado cinco anos depois, que transformaria essa história – qual história mesmo? A partir de qual viés? – em literatura e tornaria seu autor, Euclides da Cunha, defensor da República e do progresso, imortal da Academia Brasileira de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Restinga de Canudos nos coloca hoje, de frente ao açude Cocorobó – como diz uma das músicas inéditas da trilha sonora – , que inundou Belo Monte em 1969, durante a ditadura civil-militar. No site do Departamento Nacional de Obras Contras as Secas, vinculado ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, a inundação de Canudos não é questionada: são apresentadas versões de especialistas que dizem que aquele seria o melhor lugar para a construção da barragem. Pelo contrário, há um tom de celebração do “movimento da vida, onde antes era seca, passou a ser fonte de água e subsistência para o povo sertanejo”. Não bastava exterminar a população de Belo Monte. Era preciso inundá-la, apagá-la, fazê-la desaparecer. E ainda usar para isso a relação entre a seca, que ajudou a construir a ideia que o Brasil possui de Nordeste, e a água, que chega graças à “benevolência” do Estado brasileiro.

A peça da Cia do Tijolo mergulha em Canudos e, ao fazer isso, mergulha dentro da gente – diz o texto se referindo à equipe que se dedicou a erguer o trabalho a partir de estudos e ensaios que levaram mais de um ano. Criada em 2008, com integrantes oriundos de grupos significativos da cena de São Paulo, especialmente o Ventoforte, a Cia do Tijolo é um coletivo de teatro de pesquisa que pode ser caracterizado pela verticalização das suas investigações, que perpassam a relação com a música, e que resultam em trabalhos cênicos que, geralmente, possuem tempo expandido. 

O espetáculo de estreia, de 2008, era sobre Patativa do Assaré e, desde então, se dedicaram a figuras históricas como Federico Garcia Lorca, Paulo Freire, Dom Helder Câmara, montaram a obra Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende e, agora, esquadrinharam a Guerra de Canudos. O primeiro trabalho de rua do grupo, estreado em 2022, Corteja Paulo Freire, foi apresentado no Parque Dona Lindu, no sábado, 22 de novembro, também dentro da programação do festival.

Em Restinga de Canudos, estavam em cena no Recife Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Maria Alencar, Jaque da Silva, Artur Mattar, Danilo Nonato, Vanessa Petroncari, Leandro Goulart e João Bertolai, além dos músicos Marcos Coin, Nanda Guedes e Ju Vieira. Alguns elementos são marcantes na construção cênica do espetáculo, como a música, inclusive com composições autorais de Jonathan Silva; e o cenário, que tem assinatura da companhia e de Douglas Vendramini, cujo principal elemento é o bambu, vários deles, movimentados pelo elenco a cada cena. 

O espetáculo começa celebrando a possibilidade de existência instaurada pelo arraial de Belo Monte. Antes de ser guerra, Canudos era festa, diz o texto. Mesa farta com promessa de manás: o cuscuz com leite foi compartilhado entre todos da plateia logo no início do espetáculo. De mala e cuia, forró de Flávio Leandro, famoso na voz de Flávio José, e agora na regravação do projeto Dominguinho, de João Gomes, Mestrinho e Jota.Pê, tocado e cantado pelo grupo, lembrou que nesse arraial sobra espaço para quem estiver disposto a chegar e a compartilhar. Onde come 1, comem 2, comem 3, se a lógica não é a neoliberal. As cenas partem da festa, mas podem se transformar em aulas das professoras de Belo Monte, em emboscadas no meio do Sertão, em encontros inéditos de personagens históricos.

Dinha Lima Flor interpreta Antônio Conselheiro. Foto: Marcos Pastich

Restinga de Canudos é teatro que reescreve a história. O espetáculo não se contenta com as versões oficiais: a intenção é escovar a história a contrapelo, como propõe Walter Benjamin, questionando a historiografia, se insurgindo contra as lógicas que decantaram e foram repetidas ao longo das décadas. Trata-se de instaurar um ambiente de exercício dialético, que propõe o questionamento e a tomada de posição ao espectador. O que fazer, por exemplo, com um capitão do Exército que assassinou, sem motivos, a sangue frio, um jovem preto? A violência da vingança seria capaz de aplacar o desejo por justiça?

Nesse processo de investigar a história, encontros se tornam possíveis graças à ficção. Duas professoras de Belo Monte – professoras em tempos de paz, combatentes e enfermeiras em tempos de guerra –, interpretadas por Karen Menatti e Maria Alencar, personagens  responsáveis por narrar a história, têm a chance de se encontrar e discutir com Euclides da Cunha, vivido por Rodrigo Mercadante, enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo em 1897 para cobrir a Guerra de Canudos. Foram dois meses de cobertura, textos publicados sob a categorização de “Diário de uma expedição”. Desse tempo, Euclides da Cunha esteve em Salvador por 23 dias, esperando autorização do Exército para seguir para a região do conflito. As duas atrizes e o ator que fazem a cena desse debate desceram do palco para que a discussão se desse na plateia, em meio aos espectadores.

O que se revela nessa conversa é a imagem de dois Brasis: o Norte do atraso e do messianismo (O Nordeste seria instituído em 1941, na primeira divisão regional do Brasil, e abrangia os estados de Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco) e o Sul do progresso e da civilização (o Sudeste só foi oficializado em 1970). O primeiro seria miscigenado, o outro, branco, mesmo que essa brancura não fosse necessariamente comprovada pela aparência física. São ideias e oposições de Brasis que o livro de Euclides da Cunha, mesmo que tenha assumido a barbárie da República em Belo Monte, ajudou a estruturar, assim como a própria ideia do que viria a ser o Nordeste.

Coletivo reconta a história do arraial de Belo Monte. Foto: Marcos Pastich

“O sertanejo é antes de tudo um forte”, trecho de Os Sertões que se tornou máxima, não diz tudo sobre a categorização de sertanejo que o autor propunha. É preciso ler o trecho inteiro, se deparar com o preconceito em relação aos “mestiços neurastênicos do Litoral”, e à aparência e postura do sertanejo, “Hércules quasímodo”. Para Euclides da Cunha, o progresso inevitável trazido pela República livraria o povo da loucura messiânica. As professoras propõem outra forma de organização social e discutem a validade desse progresso que esmaga as populações mais vulneráveis.

Em determinado momento, uma cisão na ficção se estabelece. A encenação é momentaneamente suspensa para abrir espaço ao ensino formal. Em cada apresentação, uma professora é convidada pela produção para subir ao palco e falar sobre Canudos. Aqui no Recife, a convidada foi a professora de literatura Renata Pimentel, que fez um percurso inspirador indo de Silvia Federici e da invenção do amor romântico que nos subjuga como mulheres ao patriarcado, passando pelas guerreiras de Tejucupapo, pela resistência à colonização, seja qual for a língua do colonizador, por Paulo Freire e por Antônio Bispo dos Santos que, inclusive, é citado no texto do espetáculo, na aproximação entre colonização e adestramento.

Depois desse momento, a encenação volta a se estruturar, numa operação difícil de retomada, que se potencializa graças a mais um encontro ficcional: Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha. Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante, em atuações sensíveis e tocantes. Mas é preciso falar das mulheres nesse espetáculo, de Karen Menatti, de sua voz e atuação lindas; da versatilidade, coragem e competência de Maria Alencar, substituta de Odília Nunes, pernambucana que não conseguiu participar desta apresentação. E de todos os ótimos atores que assumem papéis coadjuvantes, mas que são esteio nesse espetáculo que funciona como uma ciranda, tem cadência, tem respiro, tem profundidade, demanda tempo de existência. Jonathan Silva, músico e compositor das músicas inéditas do espetáculo, também não conseguiu estar no Recife e faz falta, mas o grupo contou com músicos ótimos que assumem a tarefa de transformar música em dramaturgia.

O espetáculo da Cia do Tijolo é um mergulho duro e lúcido na nossa história e, ao mesmo tempo, lúdico, poético, musical, inspirador. É emocionante acompanhar tanta gente no palco – atores e músicos – construindo, desconstruindo e reconstruindo o arraial de Belo Monte com os bambus manejados pelo elenco como se uma dança colaborativa se estabelecesse. É o teatro de grupo, de pesquisa, que resiste, que insiste, que faz sentido de existir. Sabe quando você vai ver uma peça e não entende muito bem o porquê aquelas pessoas estão dedicadas àquele projeto? Isso não acontece com a Cia do Tijolo: é um teatro de pertinência para o nosso tempo e é lindo de ver.

*A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife

Ficha técnica:

Restinga de Canudos, da Cia do Tijolo
Criação e dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção geral: Dinho Lima Flor
Elenco: Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Maria Alencar, Jaque da Silva, Artur Mattar, Danilo Nonato, Vanessa Petroncari, Leandro Goulart e João Bertolai
Músicos: Marcos Coin, Nanda Guedes e Ju Vieira
Movimento e corpo: Viviane Ferreira
Composições originais: Jonathan Silva
Direção musical: Cia. do Tijolo e William Guedes
Desenhos: Artur Mattar
Cenário: Cia. do Tijolo e Douglas Vendramini
Assistência de cenotécnica: Tati Garcez e Gonzalo Dorado
Figurino: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Iluminação: Cia. do Tijolo e Rafael Araújo
Som: Hugo Bispo
Direção de produção: Garcez Produções (Suelen Garcez)
Produção executiva: Suelen Garcez
Assistência de produção: Tati Garcez

A criação e a dramaturgia são de Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante. Foto: Marcos Pastich

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