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A fala de um mestre – Parte I

Eugenio Barba e Julia Varley no Teatro Apolo, no Bairro do Recife. Foto: Rodolfo Araújo

Eugenio Barba, o principal nome da antropologia teatral, autor de diversos títulos, diretor do Odin Teatret, esteve no Recife na semana passada pela primeira vez. Um lindo sorriso, simpático, simples, ele conversou com a imprensa no hotel em que estava hospedado – sempre, claro, acompanhado pelos olhares e palavras de sua esposa, a atriz Julia Varley.

No dia seguinte, na sexta-feira, no Teatro Apolo, Julia fez a demonstração de trabalho O eco do silêncio, que foi seguida por uma palestra de Barba. Disponível, depois ele respondeu inúmeras perguntas da plateia. De mansinho, falou coisas muito caras – que merecem ser registradas. E vamos fazer isso aqui no blog. Está aí a primeira parte da palestra de Eugenio Barba no Recife. A transcrição é de pouco mais de 15 minutos de fala. Ainda temos muito material (inclusive a entrevista para a imprensa), mas vamos divulgar aos pouquinhos, para que o tempo não se passe sem que registremos as palavras de um mestre. (Ah, antes de começar a palestra, ele pediu para que as pessoas levantassem e dissessem um texto como se estivessem acariciando o outro. Depois, todos sentaram e ele começou).

PALESTRA // EUGENIO BARBA

Vocês vieram aqui para escutar, para serem inspirados, pelo que Julia podia fazer, pelo que eu poderia contar. Para ver a maneira de como ser eficaz com o espectador. O que eu quero como ator? Como diretor? Quero que o meu ator seja eficaz em aguardar, provocar ressonância nos meus espectadores. Sei que os meus espectadores não são um público único. Cada um de vocês chegou aqui de diferentes lugares da cidade, de diferentes famílias, com uma história, uma biografia. Cada um chegou aqui com uma expectativa diferente. Cada um de vocês tem uma fome diferente de aprender, de compreender. Assim que, para mim, isso da unicidade do espectador foi um dos meus problemas como diretor. Como é possível que o ator possa dirigir-se a esse nível? A esse animal mitológico que está constituído de duzentos e cinquenta destinos humanos? Cada um possui saudades, nostalgias, ambições, feridas, vitórias. Isso do “como” poderia também chamar-se técnica, o que se aprende. E nos damos conta de que a primeira experiência que temos que enfrentar no nosso ofício é uma experiência de impotência. Porque cremos que se possa absorver um conhecimento. E esse conhecimento não se absorve. Apesar de que alguém pode ir a uma escola teatral, fazer cursos e seminários. Mas aí se dá conta que o resultado, que a conseqüência dessa relação didática, pedagógica, não é automática. Você tem a sensação de marchar no mesmo lugar todo tempo. Essa era a minha sensação quando eu fui à Escola Teatral de Varsóvia. Depois de um ano, tinha a consciência que não tinha aprendido nada, que estava perdendo o meu tempo. Que o que era para mim fundamental, era um ofício imaginário, que existia só na minha cabeça, nos meus sonhos ou nas minhas necessidades. Tudo que estava aprendendo, tudo que me ensinaram na escola, não funcionava.

A demonstração da Julia é um típico exemplo. Ela chegou a um grupo de teatro, o Odin e começou a fazer toda a aprendizagem, que no Odin se faz através de exercícios, de treinamento. Mas ela, ao contrário de ir adiante, de desenvolver suas capacidades sonoras, vocais, ela perdia a voz. Ela tinha que fazer todo o caminho solitário dentro do grupo para encontrar sua identidade. Que é muito diferente da identidade profissional, técnica, dos seus companheiros. Assim, quando começamos, a primeira pergunta é: como? Como poder encontrar um ambiente, uma pessoa, alguém que, na verdade, podemos chamar de mestre? Porque o mestre é só alguém que nasceu antes da gente e conhece um pouco mais. Como encontrar esse mestre que nos ajude a encontrar nosso caminho?

Mas, depois de alguns anos, quando já há certo costume em ser ator, em resolver suas dúvidas, seus problemas, quando já há adaptação ao ofício, à rotina, quando isso conquistou parte da gente, outra pergunta fica importante: porque estou fazendo tudo isso? Que coisa mais engraçada é que, às vezes, nem eu ganho o suficiente, tenho que ter outro emprego para poder fazer isso. E porque estou fazendo isso?

Quando começamos, no meu caso, eu manipulava, criava ilusões. Só depois de alguns anos me dei conta do porquê de ter escolhido o teatro. Mas no começo eu disfarçava tudo isso com um álibi, uma justificação solene e nobre: eu queria fazer teatro para poder mudar a sociedade. Era um período. Comecei nos anos 1950, do século, do milênio passado. Quando existia uma luta de classes, uma guerra fria. Quando todo tempo, de verdade, havia o medo de uma guerra atômica. Então a participação ativa dos cidadãos na Europa era muito, muito presente. Assim que o teatro foi também um dos fóruns, dos instrumentos, dos canais, que o jovem podia, ou imaginava poder, usar para lutar contra algo que ameaçava uma cultura humanística.

E isso foi o que, essa tensão dos anos 50 e 60, que se criou em todo planeta, que provocou a grande mudança das quais vocês, os mais jovens, são os filhos. 1968, apesar de que todo processo começou antes, é um ano em que toda a estrutura de pensamento, de comportamento, de expressão, a maneira de se vestir mudou. Não existia jeans! Imaginem o que significa hoje uma sociedade sem jeans! Hoje os professores de universidade também vão de jeans. Antes, o professor de universidade, você podia reconhecê-lo. Tinha quase um uniforme, extremamente solene. A maneira de cantar! Pensem em toda a expressão da juventude através dos grupos, dos Rolling Stones. E tudo isso na verdade mudou profundamente. Mas, em tudo isso, existia como uma bola de fogo incandescente, irracional, que não podia ser lógica, que era raiva e o desejo da juventude de não aceitar um mundo que o sufocava.

A reação dos que não estavam de acordo foi muito dura. Vocês, no continente de vocês, foram os primeiros a vivê-la. Em 1964, vocês sabem o que aconteceu no Brasil. O que aconteceu nos anos 1970 no Chile, Argentina, Uruguai. Assim que não foi só uma grande revolução de alegria, de hippies. Foi uma sacudida que provocou mortos. Muitos mortos. Mas hoje isso se conquistou: em parte, há essa possibilidade de exprimir-se livremente.

Foi durante toda essa luta que o porquê do teatro era muito claro. As pessoas sabiam que se criavam grupos pela primeira vez na história do teatro do Ocidente e do Oriente, se criou algo muito estranho. Antes, tinham as companhias onde os atores estavam contratados, um período curto, alguns meses, uma temporada, às vezes. Hoje se chama isso de projeto. Nesse tempo, tudo isso era profissional. No sentido que os atores viviam disso. Os atores tinham que chegar às salas para viver. Não existiam subsídios, não existiam Sesc, Ministério da Cultura, que pagavam os atores. Os atores haviam de inventar, no século 16, na Europa, uma estranha indústria, um estranho ofício, onde as pessoas pagavam e, ou de pé ou sentados, deveriam ser entretidos, uma diversão. Os atores e as atrizes também proporcionavam isso, representavam. Isso era o teatro. Tenho que lembrá-los sempre: nosso ofício nasce de um acordo, de uma convenção, entre espectadores e atores. “Eu pago”, diz o espectador. “E você tem que entreter-me. Não me aborrecer. É isso”. Essa é uma das faces do teatro. A outra é que as relações no nosso ofício, não duram muito.

Como explicava antes, o profissionalismo consistia em firmar um contrato de alguns meses e, depois, cada um partia. Por isso é importante lembrar, porque em 1968, surgiu uma geração que pensava em outras categorias. Pensava em categorias em que o grupo era como uma micro sociedade. Era como uma nova maneira de socializar. Indo de encontro aos princípios que existiam na sociedade lá fora. Assim que os grupos de teatro não eram só uma resistência à ditadura, contra um teatro burguês, contra uma maneira de ver a sociedade comandada pelos capitalistas. Era também uma maneira de viver. Pela única vez existiu nesse planeta uma geração que, de maneira consciente ou inconsciente, através dos grupos teatrais, imaginou que, através do teatro, o teatro tinha uma dupla, profunda função. Não só deixar que algo aconteça na mente, no intelecto, nos sentidos, na vivência dos espectadores. E que saindo do teatro cada espectador possa refletir, viver, estabelecer um diálogo com a sua história pessoal, e confrontá-la, enfrentá-la. Medi-la com o que se passava na história. Não só isso. Também era o teatro como um processo de mudança pessoal. Daqui surgem as grandes lições do Living Theatre, anarquista puro. Que, através de sua existência, do seu processo de trabalho, tenta dar vida a essas relações e a também proclamar isso no momento do espetáculo. Dessa visão, que é uma reação contra os limites imposto pela sociedade, na história.

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Talento para sobreviver na guerra

Merida Urquia apresenta Mãe coragem há 13 anos. Fotos e texto: Ivana Moura

(Texto de Ivana Moura!)

A guerra é um negócio lucrativo. Mãe Coragem sabe disso, embora só descubra o peso do sacrificio imposto quando perde seus maiores tesouros: seus filhos. Mas ela prossegue na guerra. A atriz e diretora cubana Merida Urquia fez algumas adaptações na obra de Bertolt Brecht no espetáculo solo que exibe ainda hoje às 19h, no Teatro Marco Camarotti, dentro do Palco Giratório. Além de limar uma série de personagens, ela investe sua carga nos malefícios da guerra em todos os tempos, inclusive hoje.

A atriz costuma dizer que teve três mestres na sua carreira: o italiano Eugenio Barba, o brasileiro Antunes Filho e os palcos. Com uma motivação física plena de consciência corporal, memória dos ensinamentos de Eugenio Barba, e uma presença cênica poderosa, que também teve a mão do mestre Antunes filho, Merida Urquia leva para o palco a fúria de quem precisa sobreviver. Ela está de mãos dadas com Mãe coragem há treze anos.

Última sessão do espetáculo será nesta sexta

A atriz se desdobra em Anna Fierling, mascate que segue o Exército Sueco na Guerra dos Trinta Anos, de 1618 a 1648, sua filha muda Katrin e a narradora.

O texto foi adaptado por Ricardo Muñoz, que criou com Merida o grupo Teatro A Cuestas, há 18 anos. Nas justaposições de cenas, ela aparece como a “hiena no campo de batalha”, que aprende muito pouco com tudo que acontece.

Uma das cenas mais bonitas de se ver é quando a filha Katrin denuncia o horror e, como não pode falar, bate seu tamborzinho, enquanto a cidade acovardada permance silenciada. As mudanças de papeis são feitas com força, a força intepretativa de uma atriz que se joga por inteiro nos personagens e os domina com cantos, silêncios, gestos desesperados e até mesmo cobranças à plateia como coresponsável por tudo que acontece no mundo.

Parece que no fundo ela insiste na tese de que a a guerra torna os homens piores e não melhores. Mãe coragem segue com sua carroça cada vez mais vazia. Entre a fartura do começo e a penúria do final, há um movimento para arrancar o espectador da zona de conforto, como o queria Brecht.

Atriz diz que teve três mestres: Eugenio Barba, Antunes Filhos e o palco

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