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A reinvenção de Canudos para além do massacre
Crítica de Restinga de Canudos, da Cia do Tijolo

Rodrigo Mercadante (Euclides da Cunha), Odília Nunes e Dinho LIma Flor (Conselheiro). Fotos: Alécio Cezar / Divulgação

PRÓLOGO

A temporada de Restinga de Canudos foi curtíssima, de 14 de março a 27 de abril, no Sesc Belenzinho, em São Paulo. Temporada com ingressos totalmente esgotados. Ora, direis: “Mas é o tempo padrão do Sesc para as temporadas atualmente”. Foi curtíssima, repito. Então gestores de instituições, curadores, gente que decide quem vai existir nos palcos e nos festivais, pessoas de pequenos médios e grandes poderes da cena teatral brasileira por favor, por gentileza, programem Restinga de Canudos no seu domínio. A circulação deste espetáculo por diferentes regiões do país pode possibilitar que outros públicos estabeleçam suas próprias conexões com esta potente releitura de nossa história coletiva.

Agora que já insinuei o tom, digo que assisti ao espetáculo da Cia do Tijolo três vezes. Assistiria mais três se tivesse ficado mais um período em São Paulo. Essa trupe – que tem como núcleo aderente (só para fazer contraste com a ideia de núcleo duro) Dinho Lima Flor, pernambucano de Tacaimbó, o mineiro Rodrigo Mercadante e a paulista Karen Menatti faz uma das coisas que mais gosto nas artes cênicas. Pois, o teatro, tão generoso que é, ganha no corpo e no espírito desse bando muitas configurações. O processo para o grupo é precioso, tanto ou quanto o resultado final. E com isso a encenação recebe muitos contornos ao longo da temporada. Dinho Lima Flor acrescenta e tira coisas a partir do embate afetivo com o público.

Um espetáculo do Tijolo nunca é o mesmo na estreia e no final da temporada. Haverá quem ache isso ruim, quem tenha aquele pensamento preso de que essa arte viva — viva! — poderia ficar guardada, imutável, dentro de uma caixa (mesmo que seja uma caixa cênica). Portanto, e daí?

Restinga de Canudos. Foto: Alécio Cezar / Divulgação

Restinga de Canudos. Foto: Alécio Cezar / Divulgação

Em Guará Vermelha, peça anterior do Tijolo, a atriz pernambucana Odília Nunes insiste: “Aqui você tem tempo”. E o elenco entoa a música de Jonathan Silva para ninguém ter dúvidas: “Desacelera o passo, dance fora do compasso, bem devagarinho sem fazer estardalhaço”.

Esse é um dos marcadores da companhia tão paulista (pois sua sede é em sp) quanto mineira e nordestina e principalmente brasileira, de uma brasilidade ossobuco. O tempo se dilata em suas encenações. Mas eles são exigentes para que xs camaradxs se tornem presentes no tempo presente.

Público de uma das sessões de Restinga de Canudos

As professoras (Karen Menatti e Odília Nunes) lembram que em Canudos tinha escola, fato pouco conhecido

A professora Silvia Adoue participou da temporada comentando e criando pontes entre acontecimentos

No teatro contemporâneo brasileiro, poucas companhias têm demonstrado tanta persistência e coerência na investigação de nossa memória histórica quanto a Cia do Tijolo. Restinga de Canudos marca o ápice desse percurso investigativo, propondo uma radical inversão de perspectiva sobre um dos episódios mais traumáticos da formação republicana brasileira. A montagem emerge como uma escavação poética dos escombros submersos do Açude de Cocorobó, onde jazem sepultadas as ruínas físicas da comunidade de Canudos, mas sobretudo as vozes e histórias que a historiografia oficial e mesmo a literatura canônica silenciaram.

A montagem desloca o foco narrativo do já exaustivamente documentado massacre final para o que há de mais subversivo na história de Canudos: a vida cotidiana de uma comunidade que ousou existir segundo seus próprios termos, à margem das imposições do nascente estado republicano. Tal escolha cênica constitui um posicionamento ético-político deliberado, que reinterpreta a própria compreensão do movimento liderado por Antônio Conselheiro.

A dramaturgia construída por Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante opera uma delicada tessitura entre diferentes temporalidades. Ao eleger duas professoras (Karen Menatti, Odília Nunes) como fios condutores da narrativa, a peça estabelece uma ponte entre presente e passado, confrontando o público com uma pergunta inescapável: o que poderia nos ensinar hoje a experiência comunitária de Canudos, para além da narrativa do martírio?

Há uma evidente intenção benjaminiana nesta abordagem. Walter Benjamin, em suas teses Sobre o Conceito de História, propõe que arrancar a tradição do conformismo é tarefa das gerações presentes. Restinga de Canudos parece responder a este chamado, escovando a história a contrapelo para resgatar as potências revolucionárias que o discurso historiográfico dominante soterrou. A professora e pesquisadora Silvia Adoue (Unesp e Florestan Fernandes), que atuou durante a temporada como mediadora entre o público e os acontecimentos encenados, personifica essa consciência histórica que busca romper com a linearidade do tempo homogêneo e vazio da narrativa oficial.

A peça evita habilmente tanto a monumentalização do heroísmo de Conselheiro quanto a vitimização melodramática dos massacrados. Em vez disso, oferece uma composição coral onde ganham destaque as micropolíticas do cotidiano: as relações de trabalho, as práticas religiosas, a educação, as festas. Nesta perspectiva, Canudos emerge enquanto laboratório social interrompido pela violência de Estado, superando a noção de excepcionalidade condenada ao fracasso.

Os bambus da festa

Os bambus da guerra

Danilo Nonato, na cena em que tenta fugir dos tiros

Na direção de Dinho Lima Flor, observa-se uma notável economia de recursos a serviço de uma poderosa construção metafórica. O espaço cênico, concebido pela própria companhia em colaboração com Douglas Vendramini, transforma o palco em plataforma arqueológica onde objetos, corpos e memórias são desenterrados das águas do tempo.

A cenografia evita o caminho fácil da reconstituição histórica realista, optando por uma abstração que remete simultaneamente à aridez do sertão baiano e à liquidez da memória submergida. Os objetos cênicos possuem qualidade metamórfica, assumindo diferentes funções ao longo da narrativa: um mesmo elemento,  – como por exemplo os bambus – ora funciona como ferramenta de trabalho, ora uma arma, ora um objeto ritual. Esta pluralidade significativa material ecoa a própria proposta dramatúrgica de multiplicidade de perspectivas.

O trabalho corporal desenvolvido sob orientação de Viviane Ferreira requer particular atenção. O elenco demonstra impressionante versatilidade ao compor diferentes tipos sociais e animais sem recorrer a estereótipos, apresentando corpos marcados pelas experiências histórico-sociais específicas: o trabalho, a devoção, a resistência. O conjunto formado por Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai e Vanessa Petroncari entrega uma performance coletiva potente, onde Jaque e Danilo injetam uma energia juvenil vibrante às suas composições. Há uma corporalidade sertaneja peculiar sendo investigada aqui, que se manifesta tanto nos momentos de tensão dramática quanto nas sequências de celebração e ritos religiosos.

A iluminação desenhada coletivamente pela companhia e por Rafael Araújo é elemento crucial para a construção da temporalidade dilatada do espetáculo. O jogo entre claridade ofuscante – remetendo ao sol inclemente do sertão – e penumbra que evoca o fundo do açude articula diferentes planos narrativos, permitindo transições fluidas entre os tempos históricos.

Músicos do espetáculo

Jonathan Silva, autor das músicas originais

A musicalidade em Restinga de Canudos funciona como alicerce fundamental da construção dramatúrgica. Executadas ao vivo pelo quarteto de músicos-atores – Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva e Juh Vieira – as composições originais de Jonathan Silva resgatam elementos sonoros da tradição nordestina e os transformam através de um diálogo com referências atuais.

Os cantos coletivos assumem função reminiscente dos coros gregos, comentando a ação, amplificando tensões e estabelecendo o substrato mítico-religioso que permeia a experiência histórica de Canudos. O tratamento vocal explorando timbres rústicos e técnicas de canto popular confere autenticidade ao tecido sonoro do espetáculo.

Essa trato musical aponta para uma compreensão profunda do que Mikhail Bakhtin denominaria “cultura popular carnavalesca” – aquela dimensão das práticas culturais populares que, ao mesmo tempo que incorpora elementos religiosos e tradicionais, subverte-os em potência transformadora e criativa. A religiosidade de Canudos, longe de ser apresentada como obscurantismo ou alienação, aparece em sua dimensão libertadora e como base para sociabilidades alternativas.

Dinho Lima Flor

Rodrigo Mercadante ao centro 

É notável como Restinga de Canudos se inscreve no campo do teatro político contemporâneo sem incorrer nos vícios comuns do gênero – como o didatismo excessivamente simplificador ou a abstração formal desconectada da realidade social. A peça estabelece um diálogo produtivo com a tradição do teatro épico brechtiano, incorporando procedimentos de distanciamento crítico e historicização, mas o faz sem abdicar da potência afetiva e da intensidade dramática dos enfrentamentos encenados.

A opção por privilegiar o olhar das professoras como mediadoras da narrativa carrega a filiação do projeto à pedagogia crítica de Paulo Freire, referência explícita no percurso da Cia do Tijolo. Esta escolha permite estabelecer um campo de tensão produtivo entre memória e história, entre experiência vivida e conhecimento sistematizado. O espetáculo materializa o que Freire chamaria de “pedagogia da pergunta”, convocando o espectador não à absorção passiva de informações históricas, mas ao questionamento ativo de suas próprias concepções sobre o passado e o presente brasileiros.

Restinga de Canudos abraça a complexidade da contradição sem recorrer a simplificações maniqueístas. Não há, aqui, heróis imaculados ou vilões caricatos, mas seres humanos concretos enfrentando as tensões de seu tempo histórico.

Entre ruínas e utopias: a atualidade implacável de Canudos

Uma grande virtude de Restinga de Canudos é sua capacidade de fazer emergir, da aparente especificidade histórica do evento retratado, questões de contundente atualidade. Ao deslocar o foco do espetáculo do massacre final para a construção cotidiana da comunidade, a montagem permite que reconheçamos no experimento de Canudos não um episódio encerrado no passado, mas um laboratório social cujas lições permanecem vivas e urgentes.

A construção cênica da experiência educacional desenvolvida em Canudos, através das professoras que protagonizam a narrativa, estabelece conexões poderosas com debates contemporâneos sobre educação libertadora e descolonização do conhecimento. A comunidade de Belo Monte aparece, assim, como precursora de movimentos sociais atuais, antecipando em sua prática questões como a autogestão, a soberania alimentar e a resistência territorial.

Há uma sutil analogia entre o afogamento literal de Canudos sob as águas do açude – ato simbólico de apagamento da memória coletiva – e os processos contemporâneos de silenciamento e invisibilização das experiências populares de resistência. O espetáculo nos confronta com a persistente incapacidade da sociedade brasileira em reconhecer e valorizar as formas de organização social que emergem das classes populares, além da violência sistemática empregada para suprimi-las.

Restinga de Canudos deixa não o conforto da catarse, mas a inquietação produtiva de quem se depara com a permanência do passado no presente. O espetáculo realiza, dessa forma, o propósito nobre do teatro político: não oferecer conclusões definitivas, mas abalar convicções estabelecidas, provocar deslocamentos de perspectiva e estimular um novo olhar sobre realidades que julgávamos conhecer.

Na atual conjuntura brasileira, marcada por intensas disputas em torno da memória histórica e dos projetos de futuro, Restinga de Canudos emerge como uma intervenção necessária e corajosa. A Cia do Tijolo, com sua trajetória de investigação das matrizes populares da cultura brasileira, consolida-se como um dos coletivos teatrais mais relevantes e instigantes do cenário nacional. Seus espetáculos constituem verdadeiros acontecimentos de pensamento que ampliam as fronteiras do possível, tanto no campo artístico quanto no político.

Por fim, é preciso reconhecer que Restinga de Canudos realiza plenamente aquilo que Giorgio Agamben define como a tarefa do contemporâneo: fixar o olhar em seu tempo não para perceber suas luzes, mas para contemplar suas sombras; não para confirmar o já sabido, mas para revelar o que permanece obscurecido pela narrativa dominante. Nesse sentido, a montagem constitui um gesto político no presente – uma intervenção que, ao restituir vida às vozes submersas de Canudos, convida-nos a imaginar outras formas possíveis de comunidade e existência coletiva.

Tudo isso ainda diz muito pouco sobre a obra. Muito a refletir. Outros textos ficam para a próxima temporada. 

FICHA TÉCNICA

Criação e dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção geral: Dinho Lima Flor
Elenco: Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai, Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva, Juh Vieira
Atriz colaboradora: Vanessa Petroncari
Movimento e corpo: Viviane Ferreira
Composições originais: Jonathan Silva
Direção musical: Cia. do Tijolo e William Guedes
Desenhos: Artur Mattar
Cenário: Cia. do Tijolo e Douglas Vendramini
Assistência de cenotécnica: Tati Garcez e Gonzalo Dorado
Figurino: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Iluminação: Cia. do Tijolo e Rafael Araújo
Som: Hugo Bispo
Fotos: Alécio Cézar e Flávio Barollo
Design gráfico: Fábio Viana
Assessoria de imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Direção de produção: Garcez Produções (Suelen Garcez)
Produção executiva: Suelen Garcez
Assistência de produção: Tati Garcez

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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“Aqui você tem tempo”
Crítica de Guará Vermelha,
espetáculo da Companhia do Tijolo

 

Guará Vermelha é uma livre adaptação para o teatro do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende. Foto: Ivana Moura

Trabalhadores do espetáculo da Companhia do Tijolo. Foto: Ivana Moura

Alguém do elenco de Guará Vermelha, espetáculo da Companhia do Tijolo, escreve na lona, que serve de quadro e chão: “Aqui você tem tempo”. Que convite fascinante e irrecusável neste mundo capitalista, que nos rouba o sono e o desejo na sanha de consolidar no imaginário de que tempo é dinheiro. Não meus amigos. Tempo é muito mais que o vil metal. Danem-se as campanhas publicitárias e os donos das grandes fortunas que insistem nessa tecla. Tempo é vida que pulsa, feito a flor de Drummond que rasga o asfalto contrariando as regras. Tempo pode ser haicai ou poema épico e assim vai.

A trajetória do Tijolo tem dessas coisas de comungar. De partilhar as horas, de esticar o encontro numa troca de muitas bonitezas (mesmo ao apontar lados sombrios). Às vezes a trupe vai tão fundo nas humanidades que até dói. Mas investe no caminho da cura, devagarzinho. É uma aposta no caminho freiriano da educação como prática da liberdade, do aprendizado e formação do ser, da celebração coletiva, da atuação no mundo com arte no teatro.   

Na maioria das vezes, as montagens são longas, urdindo fabulações que parece aquela música do Gilberto Gil, Entra em beco e sai em beco, cuja personagem começa sentada numa pedra.

As pedras estão em toda parte em Guará Vermelha. No meio do caminho. Pedra bruta do cotidiano. No lombo do ajudante da construção civil iletrado, que conta histórias com a maestria de Sherazade (narradora dos contos de As Mil e Uma Noites). Na educação pela pedra de João Cabral. Na pedra que ensina à criatura da aridez geográfica e humana.  

Pedrinhas que simbolizam pessoas que passaram e seguiram. Elas se fazem presentes. Pedras que podem traçar as pistas do itinerário, mas os apressados transeuntes desmancham sem nem notar. Pedras que entram na constituição de casas, escolas e teatros.  

Cena de Guará Vermelha, com Thaís Pimpão no papel de Anginha ao centro. Foto Ivana Moura

Guará Vermelha, a peça, se ergue em livre adaptação do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende, que fala das necessidades afetivas, das fomes e carências dos que são achatados na pirâmide social e da epifania do encontro. São muitas coisas, muitas emoções da perspectiva dos oprimidos que a pedagoga, educadora popular (que colaborou com o professor Paulo Freire nas suas andanças pela educação) e escritora, Maria Valéria Rezende provoca e o Tijolo põe em cena.

O espetáculo tem direção de Dinho Lima Flor e um elenco grande, como gosta o Tijolo, de se ajuntar. Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes.

As personagens Irene e Rosálio,. Foto Ivana Moura

A atriz Karen Menatti e o ator Rodrigo Mercadante. Foto: Ivana Moura

O encontro de dois seres.. Foto: Ivana Moura

Irene (Karen Menatti) e Rosálio, (Rodrigo Mercadante) são os protagonistas, mas outras figuras acendem na cena – Anginha (Thaís Pimpão), João dos Ais (Jonathan Silva), Floripes (May Tuti), Beto do Fole (Nanda Guedes), Gaguinho de nome de pia Eustáquio (Odilia Nunes) e outros. O grupo faz também citações e homenagens: Conceição Evaristo, Ivone Gebara, Lourdes Barreto, Margarida Maria Alves, Abdias Nascimento, Antônio Candido, Nêgo Bispo, Paulo Freire. E muito mais.

“Das fomes e vontades do corpo há muitos jeitos de se cuidar porque, desde sempre, quase todo o viver é isso, mas agora, crescentemente, é uma fome da alma que aperreia Rosálio, lá dentro, fome de palavras, de sentimentos e de gentes, fome que é assim uma sozinhez inteira, um escuro no oco do peito, uma cegueira de olhos abertos e…”, começa o livro de Rezende.

A peça arde com festejo da re-união. Uma celebração à vida, com elenco e uma boneca gigante de Maria Rezende, a interação das atrizes e dos atores com público ofertando pedra ou pedrinha e discorrendo sobre a força real e simbólica do mineral.

Afeto, simpatia, amor, amizade se entrelaçam numa rede para tratar de consciência de classe, opressão, injustiças e lutas. “Para onde fugiu a humanidade?”, pergunta atônito Rosálio, filho de mãe solteira, o Nem Ninguém que depois é chamado de Curumim e, que conquista a existência civil com o nome na documentação de Rosálio da Conceição.  

Ele inventou esse nome para si mesmo. Um primeiro passo para erguer-se como protagonista de sua própria história. A trajetória da personagem é tão mirabolante – escravizado, mira de revólver, mineração, libertação com a doação de pepita de ouro da velha senhora, voo de avião, nuvens, a escravização do liberalismo econômico (“Comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu, comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu”) que parece história de trancoso das “comunidades narrativas” da tradição oral do Nordeste do Brasil.

Rosálio analfabeto carrega consigo uma pequena mala com alguns livros (“Os livros são objetos transcendentes / mas podemos amá-los do amor táctil”, canta Caetano).  Esses livros que cultiva são a fortuna de Rosálio, que correu o mundo motivado pela vontade de aprender a ler. (Isso é de chorar de alegria, num país que parte da população cultiva a bala como forma de intolerância). Rosálio não conseguiu o letramento nos lugares óbvios. Até se deparar com Irene.

Irene saiu do Norte. Em São Paulo vive/viveu da prostituição e pega/pegou Aids. No jogo de narrar e interpretar o grupo explica a diferença do HIV na década de 1980, com menos recursos de tratamento, mais desinformação e discriminação, para os dias atuais, quando a doença pode ser controlada, embora o preconceito seja um grande inimigo. Irene é uma prostituta que envelheceu com a doença, não consegue muitos clientes e tem que pagar para a mulher que cuida do seu filho.

No livro, existia um tal de Romualdo no passado de Irene. Mas a dramaturgia e a direção fizeram bem em diluir essa figura na cena.

A essência de Rosálio sintoniza com a essência de Irene. Mesma frequência de empatia com os seres viventes. Ele sentia a dor do corte no corpo quando arranjou um serviço de derrubar árvores. Um sagui e uma guará povoam a memória de cada uma dessas figuras como impulsionadores de compaixão.

A guará vermelha do título é uma ave de cor magnífica, bico fino, longo e levemente curvado para baixo. Pega essa pigmentação de plumagem rubra porque se nutre dos caranguejinhos vermelhos dos mangues. E é muito interessante saber que no cativeiro, com outras comidas, as plumas “desbotam”. Um paralelo com nós mesmos: somos também o que nos alimentamos no corpo, imaginário, espírito, utopias etc.

O público dança com os atores. Foto Ivana Moura

As andanças de Rosálio são incitadas por um desejo inquebrantável de aprender a ler. Irene também tem sua paixão pelas palavras, e guarda embaixo do colchão um caderno pensando em escrever histórias, um dia. Juntos, esses dois personagens forjam a “expansão do Universo” e adiam a chegada da morte. O entrosamento entre a atriz e o ator é de uma afinação profunda e isso é uma das riquezas do teatro de grupo, de anos trabalhando juntos, do conhecimento, entrega e respeito pelo outro.

Dessa troca de grupo são extraídos o humano, o onírico e o popular com delicadeza num jogo que conduz e envolve a plateia. A música, os arranjos musicais e as letras das músicas dialogam e coabitam os espaços cênicos produzindo texturas de forte apelo sensorial.

A cultura popular — com a literatura de cordel e as geniais oralidades – se entende muito bem com clássicos como Dom Quixote e As mil e uma noites, citados na peça. Palavras, frases, musicalidade da construção literária de Rezende se expressam perfeitamente pela boca e o corpo dos atores. 

O teatro, esse teatro, é uma forma de se posicionar contra as atrocidades do estado e da sociedade. Cria espaços para a reflexão crítica, como instrumento de transformação. A coerência estética do Tijolo faz sua práxis atenta às principais lutas políticas de seu tempo – contra a desigualdade social, o genocídio dos negros e dos indígenas, a opressão da classe trabalhadora, a violência contra a mulher e o feminicídio, o abuso de poder, a violência policial, a desvalorização de professores, a exploração, a homofobia, a transfobia, a lesbofobia, etc.

Na sua pesquisa estética continuada, a companhia enaltece a educação como prática da liberdade, da pedagogia anticolonialista, do aprendizado como estratégia de conscientização e realização de sonhos. O aprendizado da troca de afetos para iluminar o mundo.

Atriz Odília Nunes. Foto Ivana Moura

A encenação alterna presente, passado e futuro do passado em uma dinâmica bem elaborada, como ocorre também no livro. Narradores e personagens, os artistas utilizam técnicas épicas e dramáticas para obter escuta e acolhimento da plateia.

Os nomes dos capítulos do livro (cinzento e encarnado; verde e negro; ocre e rosa) estão estampados nos macacões do elenco. Em Alaranjado e verde vai pra cena um brincante que constrói um teatro no alto do morro e envolve toda a comunidade. Gaguinho narra essa história. Ou melhor Odília Nunes abraça e solta Gaguinho e fala também do seu projeto No Meu Terreiro Tem Arte, iniciativa linda realizada há alguns anos no Sertão do Pajeú, no sertão pernambucano, que promove intercâmbio cultural, residência artística, festivais como Chama Violeta e Palhaçada é Coisa Séria, no Sítio Minadouro.

A atuação de Odília é um farol, de um brilho vulcânico, com seu sotaque pernambucano e uma aterramento nas ancestralidades nordestinas. É um prazer vê-la em cena, a deslocar-se no palco, a acionar a ligeireza de raciocínio, o drible do jogo nas suas intervenções.

O elenco todo passa um compromisso com os princípios do Tijolo. Há algumas variações nas atuações. A inexperiência dos mais jovens está carregada de entusiasmo e acrobacias. Anginha de Thaís Pimpão é uma prostituta amargurada, revoltada e que não se importa se vai contagiar os parceiros com a doença. Mas há muita humanidade nesse ódio.

A cena melodramática, um trechinho de opereta cômico-popular do artista abandonado pela mulher amada tem um apelo de um hit chiclete. Com May Tuti (Floripes) e os músicos Jonathan Silva (João dos Ais) e Beto do Fole (Nanda Guedes), a cena utiliza-se da simplicidade e humor para fazer uma crítica ao patriarcado. 

É a palavra de Rezende que robustece a trilha de Rosálio e leva vigor para os últimos dias de Irene. Irene vive mais e melhor com as histórias que alimentam os dois. Irene ensina, Rosálio aprende, ele ensina, ela aprende.  Eles se alimentam de palavras e afetos. Eles se aceitam e não se julgam. Histórias de Brasis. Guará Vermelha defende que Irenes podem desejar sim viver de amor, mesmo que doam os “golpes dos pés do homem tarado”. O coração de Rosálio pode sim desejar contar histórias, ser um grande escritor.

A inclinação épico-dialético das narrações frenéticas com os pés no teatro contemporâneo, o arsenal  político-estético-pedagógico do teatro, o trabalho militante sem alienação do processo artístico desta peça do Tijolo projetam as questões e as contradições sociais como disparador do pensamento crítico.

Os pactos, a elaboração do diretor Dinho Lima Flor junto ao seu grupo apostam na chave brechtiana/ freiriana / rezendiana da diversão e do prazer do aprendizado. O desejo de modificar o mundo por uma vida mais digna está presente. Vida longa ao espetáculo. Viva o teatro!

Primeira temporada no Sesc Avenida Paulista. Foto: Ivana Moura

FICHA TÉCNICA

Direção geral Dinho Lima Flor
Elenco Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes
Direção musical William Guedes
Iluminadora Laiza Menegassi
Figurino Silvana Marcondes Cia do Tijolo
Cenário Andreas Guimarães Cia do Tijolo
Técnico de som Leandro Simões
Dramaturgia Fabiana Vasconcelos Cia do Tijolo
Concepção do projeto Dinho Lima Flor Rodrigo Mercadante Karen Menatti
Direção de produção Suelen Garcez
Assistente de produção Lucas Vedovoto
Fotos Alécio Cesar
Design gráfico Cia do Tijolo Fábio Viana
Espetáculo inspirado no livro O Voo da Guará Vermelha de Maria Valéria Rezende

Temporada
Sesc Avenida Paulista (Arte II (13º andar)
Duração: 170 minutos
Até 22/10
Sessões esgotadas

Temporada estendida até  05/11
Sessões de quarta a domingo
Ingressos https://www.sescsp.org.br/programacao/guara-vermelha/ ou nas bilheterias do Sesc

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Ledores no breu
Crítica
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#5

Ledores no Breu foi apresentado no Teatro Dona Amélia. Foto André Amorim / Divulgação

Participação do público em Ledores no Breu. Foto André Amorim / Divulgação

Dinho Lima Flor é um ator intenso, visceral. Sua atuação é marcada pela entrega, pela emoção e pela sintonia fina com a plateia. Rebento do teatro Ventoforte, do saudoso Ilo Krugli, ele se doa apaixonante enquanto intérprete. Sua Cia. do Tijolo foi tramada na convivência com Krugli. Essa trupe faz teatro contemporâneo alimentado pela seiva da cultura popular. Da melhor mistura de ethos e pathos, que conjuga o epos e a lírica, a depender do contexto.

Já no início a trupe paulistana seguiu os passos de Patativa do Assaré nos repentes, na poesia, na vida do artista cearense para erguer o belo trabalho Concerto de Ispinho e Fulô.

Além do lirismo, Cantata para um Bastidor de Utopias está carregada da porção política de libertação. Para falar dos anônimos em busca por justiça, a peça junta três eixos históricos: o enforcamento – em 1831 – de Mariana Pineda, jovem heroína que desafiou o autoritarismo do Rei Fernando VII bordando uma bandeira para os liberais; o assassinato de Federico García Lorca em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola; e a ditadura militar brasileira (1964-1985) e suas repercussões.

Com O Avesso do Claustro o grupo leva ao palco a trajetória de Dom Helder Camara (1909-1999), o Bispo Vermelho, “emblemática personagem nas históricas lutas de resistência política durante o regime militar e na aproximação da igreja católica com as demandas dos movimentos sociais”, como dizem os artistas do Tijolo, numa montagem que junta simbioticamente poesia, música e teatro.

Dinho Lima Flor em Ledores no Breu. Foto: André Amorim

Ledores no Breu participou da Aldeia do Velho Chico 2022. Foto: André Amorim / Divulgação

Ledores no Breu. Foto André Amorim /  Divulgação

Em Ledores no Breu – solo do pernambucano de Tacaimbó Dinho Lima Flor, sob direção de Rodrigo Mercadante – é o corpo do ator que conduz a plateia pela escuridão dos que não leem, uma espécie de cegueira para interpretar o mundo letrado e os feixes de luz que podem chegar com a alfabetização.

Paulo Freire, Patativa do Assaré, Frei Betto, Lêdo Ivo (com Os pobres na estação), Guimarães Rosa, Luis Fernando Veríssimo, Zé da Luz e mais recentemente Maria Valéria Rezende são convocades para a rede. E mais, sons e músicas de Cartola, Jackson do Pandeiro, Chico César, Manu Chao, Palavras, de Gonzaguinha e Samba da utopia, de Jonathan Silva (criado especialmente para a peça).

Canções, relatos, causos, episódios compõem essa teia dramatúrgica de descobertas emocionadas das letras – caso de Joaquim que compõe a primeira palavra, o nome da sua amada Nina, contada por Paulo Freire de sua experiência em sala de aula. E o lance da menina proibida pelo pai de estudar por ser mulher, que enfrenta a implacável ordem paterna e decide aprender a ler com a ajuda de uma amiga, com graveto na areia em vez de lápis e papel.

Ou a narrativa de Patativa do Assaré que diz que largou de ser “matador de passarinho”, que fazia por diversão como outros meninos da sua idade, e seguiu a imitar os cantos desses animais voadores.  

Como uma atuação ardente, Dinho Lima Flor passeia por vários estilos interpretativos, transita pela comicidade popular, vai ao exagero, testa a sutileza, comenta temas atuais, se avizinha do trágico. Muito habilmente cria seu jogo na relação com a plateia, assume a performance, convoca personagens, finge que encarna e sai. Cobra pelos índices de analfabetismo no Brasil em pleno século 21.

É uma exuberância de muitos teatros. Cumplicidade íntima com o público magnetizado na troca de afetos, danças e abraços carinhosos, materiais e simbólicos. Com a prosa/verso e o corpo desse ator, a palavra encanta.

O figurino branco vai sendo enodoado de carvão no decorrer da cena, o mesmo carvão que serve para escrever e provocar reações sensoriais. Carteiras escolares fazem parte da composição.  Rolos grandes de papel pardo são desenrolados para formar estradas e suportes para a escrita. A direção de Rodrigo Mercadante estimula ritmos, andamentos, revolucionando emoções do ator e agitando as sensibilidades do público.

Mulheres portam faixam com expressões como “Mais escolas e menos cadeias”, em um vídeo de manifestações.  Sabemos que o analfabetismo, o não letramento, é uma estratégia de subjugação dos governos não democráticos. Isso é um problema, diria até um crime, um confisco de direitos dos mais pobres – causa e consequência da falta de oportunidades; uma política de opressão, manutenção de privilégios muitas vezes associada a desvios de recursos.

Na Aldeia do Velho Chico, realizado em Petrolina no mês de agosto, no palco do Teatro Dona Amélia, do Sesc, com os espectadores também no tablado, magnetizados, a sessão não utilizou os recursos dos vídeos, mas eles fazem parte da obra.  

A palavra escrita com carvão em Ledores do Breu. Foto: André Amorim

Ledores no Breu – Foto André Amorim

Marcas de tirania – O iletrado

Deixei para analisar por derradeiro o eixo da peça que tem por texto Confissão de Caboclo, do poeta Zé da Luz.

Já escrevi outra crítica Ledores no Breu e segui o caminho da grandeza de Paulo Freire e da interpretação de Dinho Lima Flor, como faço até aqui. Mas tinha algo que me incomodava no espetáculo, que dessa vez ficou evidente.

Por não saber ler, um homem comete um crime contra sua companheira. Desde que foi publicado, o poema Confissão de Caboclo, de Zé da Luz, é reiteradamente lido / interpretado dessa forma. A ignorância aparece como a causadora da morte.

Mais além do analfabetismo que é apontado com o grande mal a ser combatido, o poema de Zé da Luz – um dos pilares do espetáculo – precisa de uma atualização crítica dentro da encenação.

A ignorância de uma determinada regra não é suficiente para inocentar quem a viola. As mulheres historicamente sofreram / sofrem opressões e violências de várias naturezas, em várias gradações.

É absolutamente insustentável que a cruel, odiosa e desumana tese de legítima defesa da honra tenha sido usada durante tanto tempo para proteger os homens acusados/autores de feminicídio. Foi sim usada como argumento por advogados que desdenharam os princípios da dignidade humana, da proteção à vida, da igualdade de gênero (que infelizmente ainda não existe em sua plenitude).

Muitos homens foram absorvidos com esse escudo após matar uma mulher, sob alegação do término ou traição em uma vinculação afetiva.

O poeta Severino de Andrade Silva, mais conhecido como Zé da Luz (1904 – 1965) foi um poeta popular paraibano, que publicava em forma de cordel. Escreveu entre outros Brasi Cabôco, A Cacimba, As Flô de Puxinanã, A Terra Caiu no Chão, Ai! Se Sêsse!…, Sertão em carne e osso.

Confissão de Caboclo encerra com a expressão “que crime não saber ler”, depois que o narrador descobre que Rosa Maria não o traiu, motivo que ele explica ao delegado de ter tirado a vida da mulher que ele diz que amava.

Alguns estudiosos apontam que o poema trata do analfabetismo como um crime social. É preciso mudar essa lente de leitura. Existe um crime de feminicídio. E o não letramento da personagem que mata não pode ser atenuante para o assassinato. Mulher não é objeto que pode ser descartada / assassinada quando não corresponde às expectativas.

No espetáculo Ledores no Breu o narrador confessa que matou Rosa Maria por suspeita que ela o traía com Chico Faria, seu antigo noivo. Não existe prova da traição. Apenas uma carta que o personagem-narrador não sabe decifrar. Por trás dessa carta é urdida a defesa dessa figura.

A personagem de Zé da Luz é apresentada como um homem bom, trabalhador e apaixonado por sua esposa.  

A questão que se apresenta é que o ator defende sua personagem como um homem que, que guiado por fortes emoções (“Cego de raiva e paixão”), assassina a mulher do poema com um facão. E isso é feito em camadas de envolvimento emocional com a plateia. Sua personagem é defendida com garra, recebendo os componentes mais humanizados, o que faz com que o feminicídio da ficção se torne um ato naturalizado dentro do contexto exposto.

Um feminicídio é um feminicídio. Falta essa dobra dentro do espetáculo. Pois todo o abraçamento em favor do autor da ação é narrado pelo ponto de vista do assassino. O espetáculo é composto de fragmentos e esse episódio da Confissão de caboclo está está dividido em dois momentos, entrecortados por outras situações e músicas.

Ledores no Breu é uma peça que estreou em 2014. Muitos avanços na esteira dos direitos da mulher ocorreram. E fica difícil receber o caboclo narrador apenas com o sofrimento que ele passa, sem fazer um giro de perspectiva desse pathos para a Rosa Maria assassinada. Algo de epos para problematizar a cena ou algum outro procedimento.

A cumplicidade amorosa, o envolvimento na peça não pode suplantar o fato de que uma mulher foi assassinada. Não existem motivos para uma mulher ser morta. E isso não está lá. A personagem marido não pode receber a indulgência da plateia enquanto o olhar para a mulher é de que essas coisas acontecem.

Então, creio que Ledores no Breu precisa de uma pequena revisão para honrar o que o grupo representa no cenário teatral e saudar os valores que são defendidos em seus espetáculos. O patriarcado continua ainda hoje, século 21, a naturalizar assassinatos de mulheres (cis e trans) feitos por homens rejeitados e desequilibrados, que encontram pretextos reais ou imaginários para suas terríveis atitudes. Mas não dá para deixar que arte comprometida com o humanismo faça romantização de um assassinato.

Não sei como isso poderá ser executado em cena. É contigo Mercadante. É contigo Lima Flor. É contigo Cia. do Tijolo. Romper com o que Paulo Freire chamou de “cultura do silêncio” e transformar os analfabetos em protagonistas de suas histórias é também expor a responsabilidade do relacionamento com o mundo ao redor.

 

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Crítica: Ledores do Breu

Dinho Lima Flor anda com personagens que sofrem com o analfabetismo. Foto: Divulgação

Dinho Lima Flor anda com personagens que sofrem com o analfabetismo. Foto: Divulgação

Quando assisti ao espetáculo Ledores do Breu em sessão na SP Escola de Teatro – Sede Roosevelt, o deputado que jurou de pés juntos que era inocente ainda não dormia no xilindró. Era útil ao sistema e havia autorizado há poucos dias a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. O golpista começava a mostrar suas unhonas de traíra, ao enviar cartas à presidenta com um chororó de que era um “vice decorativo”. A situação política no Brasil era tensa. Tudo piorou. Direitos confiscados. Ensino sucateado. Do Planalto ao Cais do Recife a educação sofre duros golpes, incluindo o indisfarçável cárcere privado de professores sob o desapreço de Geju.

O solo Ledores do Breu já é em si e por si de grande potência, mas ganha amplitude na contraluz da realidade, como um foco de resistência e de lucidez.

O educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) – que criou o método de alfabetização de adultos que leva seu nome – alertava que “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”.

Entram como fatores que dificultam o processo de alfabetização o desemprego e os seus males, jornadas longas e estressantes e a falta de incentivo e até mesmo questões sexistas. Como é exibido na peça, uma menina que é proibida de estudar pelo próprio pai por ter nascido mulher. Ignorância terrível, mas que a personagem não acata e dá o seu jeito de aprender.

Então, não sejamos tolos. Mas Freire também martelava que “Num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário”. E é nisso que pulsa Ledores do Breu.

Paulo Freire se junta a Patativa do Assaré, Zé da Luz, Jackson do Pandeiro, Lêdo Ivo, Guimarães Rosa, Luis Fernando Veríssimo, Cartola. Entre canções como Palavras, de Gonzaguinha, episódios, causos, relatos, a dramaturgia é costurada com afeto e cumplicidade da plateia. Seja na imitação dos passarinhos, nos abraços carinhosos e danças.

Dinho Lima Flor chega com sua atuação emotiva, por vezes barroca e experimenta vários estilos interpretativos, navegando inclusive pela comicidade popular. Sozinho em cena trafega por vários personagens, a expor situações extremas e cobrar responsabilidade de todos nós. Como pode, em pleno século 21 o Brasil ostentar um índice tão alto de analfabetismo nas suas mais variadas gradações? Uma pergunta que vejo como resposta uma tentativa de prosseguir com a opressão, com os privilégios de quem historicamente massacrou e desviou recursos e direitos dos mais pobres.

São muitos teatros que essa montagem Ledores do Breu leva para a cena. E esse ator generoso conduz o espectador a sentir a escuridão que cerca os que não sabem ler. É uma cegueira. Como a história do homem que matou a mulher que amava por não conseguir decifrar uma carta, narrado em Confissão de Caboclo, do poeta Zé da Luz.

A Cia. do Tijolo transborda política na sua poética. Desde Concerto de ispinho e fulô, a mostrar a grandeza de Patativa do Assaré. Passando por Cantata para um bastidor de utopias, com seus anônimos na peleja para subverter as injustiças. Até a montagem O Avesso do Claustro, em que resgata a trajetória de Dom Helder Camara (1909-1999), o Bispo Vermelho, com discursos igualitários, projetos de educação e iniciativas de combate à miséria, que esteve no Janeiro de Grandes Espetáculos deste ano.

O figurino branco vai sendo machado de carvão ao longo da peça. O carvão é usado para escrever em rolos imensos de papel e também como estrada e outros suportes. E nessa caminhada orquestrada que a direção de Rodrigo Mercadante vai indicando pulsações e andamentos, num jogo de sombra e luz, silêncio e som.

A imagem de mulheres expondo faixas com dizeres como “Mais escolas e menos cadeias” (de um vídeo de manifestações exposto na cena) indica que a ignorância, infelizmente, pode ser parte de uma engrenagem que a elite que odeia os diferentes faz questão de alimentar. Mas fiquemos com outra cena do espetáculo que enseja alguma esperança. A de um homem que ao escrever sua primeira palavra, um nome de mulher, se emociona e percebe como o mundo e o seu mundo podem ser ampliados.

Serviço:
Ledores do Breu – Cia do Tijolo (São Paulo-SP), no Circuito Nacional Palco Giratório.
Quando: Quarta (26/07), às 20h
Onde:Teatro Marco Camarotti (Sesc de Santo Amaro), Recife
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia entrada)

Ledores do Breu no 13º Festival Aldeia do Velho Chico
Quando: Segunda-feira (07/08), 20h30
Onde:Teatro Dona Amélia, Petrolina
Quanto: R$ 20 (Usuário), R$ 10

Ficha técnica
Atuação, cenário, figurino: Dinho Lima Flor
Direção: Rodrigo Mercadante
Assistente de direção: Thiago França
Dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Criação de luz: Milton Morales e Cia do Tijolo
Orientação corporal: Joana Levi
Produção: Cris Rasec e Cia do Tijolo
Produção e difusão: Thaís Teixeira – EmCartaz Empreendimentos Culturais
Registro: Bruta Flor Filmes
Câmeras registro: Bruna Lessa Cacá Bernardes e Mirrah Iañez

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Protagonismo da reflexão no Palco Giratório

Dinho Lima Flor em Ledores do Breu. Foto: Alécio Cézar/ Divulgação

Dinho Lima Flor em Ledores do Breu. Foto: Alécio Cézar/ Divulgação

O educador Paulo Freire (1921-1997) conecta as dramaturgias de PA(IDEIA) – pedagogia da libertação, do coletivo Grão Comum/ Gota Serena do Recife, e Ledores no Breu, da Cia do Tijolo, de São Paulo. Ambos os espetáculos integram a programação do projeto nacional Palco Giratório, que ocorre desta segunda-feira (24) até sexta (28) no Teatro Marco Camarotti, no Sesc Santo Amaro, no Recife. Além das peças, também estão agendados o Pensamento Giratório (troca de ideias sobre as duas montagens com os grupos), e um Seminário com pautas que versam sobre questões de gênero, sexualidade, dramaturgias, construção de narrativas, arte e ancestralidade.

O Palco Giratório Pernambuco, festival que acontecia geralmente no mês de maio, acabou em 2015 e não se fala mais nisso. Boca de siri. Um grande prejuízo para a recepção e produção artística do estado. Desde então, no Recife, esta é a maior ação do Palco nacional. A iniciativa do Sesc nacional é apontada como o maior projeto de circulação das artes cênicas no país e celebra 20 anos de atividades. E é realmente um fôlego chegar à cidade uma programação nesse formato, que amplifica a articulação do pensamento e a reflexão.

Daniel Barros e Júnior Aguiar atuam em Paideia

Daniel Barros e Júnior Aguiar atuam em Pa(ideia). Foto: Divulgação

Paulo Freire foi aquele filósofo e pedagogo que colocava em prática ideias como “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre” ou “Não há saber mais ou saber menos: Há saberes diferentes”. Que falta faz esse homem neste mundo de tanto obscurantismo.

PA(IDEIA) – pedagogia da libertação, a segunda da Trilogia Vermelha, investe cenicamente na prisão de Paulo Freire em 1964, além de falar do Brasil de hoje. A peça ganha ainda mais força com o desmonte de um sistema de educação que ocorre no país. Os atores Daniel Barros e Júnior Aguiar ressaltam essas contradições para provocar um diálogo reflexivo com a plateia.

Com atuação de Dinho Lima Flor e direção de Rodrigo Mercadante, Ledores no Breu costura histórias de leitores que se debatem na lama da compreensão e analfabetos ainda no século XXI. O pensamento e a prática do educador Paulo Freire e as obras do poeta Zé da Luz e do ficcionista Guimarães Rosa são matéria-prima do espetáculo. Ledores no Breu narra episódios como a do homem que matou o seu amor porque não sabia ler uma carta ou de outro que reelabora seu afeto a partir das letras do seu nome.

Em 20 anos do Palco Giratório é a primeira vez que um seminário desse porte entra no projeto. Arte e Ancestralidade – Povos Indígenas é a mesa de abertura. Outras discussões estão focadas em Negros e Quilombolas; Questões de Gênero e Sexualidade -Trans-Posições Artísticas: Diversidade Sexual e Representatividade Política com a mediação de Robéyonce, primeira advogada Trans de Pernambuco; Dramaturgias e a Construção de Narrativas; Gestão Cultural e Curadoria na Experiência do Sesc: Desafios e Oportunidades; Mapeando experiências e articulando sentidos: o trabalho de críticos e curadores dos festivais cênicos; e Acessibilidade, Mediação Cultural e Formação de Público.

Serviço:
Seminário 20 anos do Palco Giratório
Quando:De 24 a 28 de julho
Onde: Teatro Marco Camarotti

Ledores do Breu reflete sobre as repercussões do analfabetismo

Ledores do Breu reflete sobre as repercussões do analfabetismo. Foto: Divulgação

PROGRAMAÇÃO

Espetáculos:
Dia 25 – Espetáculo Pa(IDEIA) – pedagogia da libertação | 20h | R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia entrada)
Dia 26 – Ledores do Breu | 20h | R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia entrada)
Dia 27 – Pensamento Giratório | 20h – Acesso gratuito

Seminário:
Inscrição gratuita:www.sescpe.org.br
24/07
14h | mesa –Arte e Ancestralidade – Povos Indígenas
Zeca Ligiéro, Vânia Fialho, Guila Xucuru e Fred Nascimento (mediação)
19h | mesa –Arte e Ancestralidade – Negros e quilombolas
Fernanda Júlia, Samuel Santos, Lara Rodrigues, Maria Bianca (mediação)

25/07
14h |Questões de Gênero e Sexualidade –Trans-Posições Artísticas: Diversidade Sexual e Representatividade Política
Dodi Leal, Marcondes Lima, Robeyoncé (mediação)

26/07
14h |Dramaturgias e a construção de Narrativas:(Des)territorializando espaços e (Re)inventando dramaturgias
Rodrigo Dourado, Mônica Lira, Eliana Monteiro, Anamaria Sobral (mediação)

27/07
14h| mesa 01 – Gestão Cultural e Curadoria na Experiência do Sesc: Desafios e Oportunidades
Maria Carolina Fescina, André Santana, Rita Marize e Raphael Vianna
16h| mesa– Mapeando experiências e articulando sentidos: o trabalho de críticos e curadores dos festivais cênicos
Michelle Rolim, Fábio Pascoal, Nara Menezes e mediação de Pedro Vilela

28/07
14h |Acessibilidade / Mediação Cultural / Formação de Público
Felipe Arruda, Bernardo Klimsa, Emanuella de Jesus e Andreza Nóbrega (mediação).

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