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Peça sobre Dom Helder Camara vem ao Janeiro

Foto: Alecio Cezar

O Avesso do Claustro fecha o Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Alecio Cezar

A memória de Dom Helder Camara (1909-1999) está talhada no coração da dramaturgia de O Avesso do Claustro, espetáculo da Cia. do Tijolo. A peça encerra a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos versão 2017, no Recife, com sessões nos dias 28 e 29 do mês que vem, no Teatro de Santa Isabel. A encenação é construída enquanto missa profana e poema, celebração da utopia e da canção, na definição dos criadores.

Assisti ao Avesso do Claustro na quarta edição do MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, que ocorreu em setembro deste ano.  Escrevi uma crítica sobre a montagem para o site do Sesc, promotor do festival que pode ser acessado pelo link  DOM DA LIBERDADE .

É uma encenação urgente e necessária, calorosa e inteligente, que acolhe nossas fragilidades diante do mundo, que “traça paralelos da luta do Dom Helder durante o regime militar brasileiro e essa outra Idade Média que encaramos sem tantos eixos de sustentação”, como escrevi para o MIRADA. E incentiva a obstinar na justiça.

Dinho Lima Flor, que interpreta Dom Helder Camara, é pernambucano de Tacaimbó. Ele divide a direção do espetáculo com o mineiro de Belo Horizonte Rodrigo Mercadante. A vontade da Cia. do Tijolo de vir ao Recife com a peça era tanta que o grupo entrou para a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos em condições bem especiais, dividindo os custos. Os ingressos para as sessões de O Avesso do Claustro terão preços diferenciados para complementar as despesas. Serão R$ 60 e R$ 30.

O festival ocorre de 12 a 29 de janeiro e conta com um orçamento super reduzido: R$ 400 mil, contra cerca de R$ 900 do ano passado que já era apertado.

Dinho Lima Flor interpreta o bispo no espetáculo O avesso do Claustro. Foto: Alecio Cezar

Dinho Lima Flor interpreta Dom Helder Camara. Foto: Alecio Cezar

Rememorar a história do bispo vermelho nesses tempos incertos reforça o ânimo para a boa luta. A trupe paulistana de oito anos de existência leva para a cena a trajetória do cearense que se tornou arcebispo de Olinda e Recife.

Os episódios da vida e da militância do religioso católico progressista são narrados a partir de três personagens que tentam se conectar com ele: Rodrigo Mercadante faz um pesquisador que busca investigar as trilhas do bispo no Recife; uma paulistana interpretada por Lilian de Lima, que vive numa quitinete de 15 me perambula pelo centro de São Paulo de estação em estação dando socorro aos mais desvalidos e Karen Menatti assume o papel de uma cozinheira que está aos pés do Cristo Redentor e assiste o projeto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na construção do conjunto habitacional Cruzada São Sebastião no bairro carioca do Leblon.

Essas três figuras cheias de questionamentos e perplexidades diante da realidade brasileira dialogam com Camara em encontros inusitados quase 20 anos após sua morte. Elas ouvem de novo a voz do religioso, seus lampejos e sua lira de poeta. Nessas conversas, eles chegam a questionar o bispo.

A ação da moradora da maior metrópole da América Latina ao aportar na estação Santa Cecilia e se deparar com o aviso “Deus não existe”, abre para um debate sobre o uso indevido do nome de Deus na atualidade. O narrador questiona: “Como Deus não existe? Deus nunca esteve tão presente nos adesivos de carros, em declarações públicas e, até mesmo, nas reuniões na Câmara dos Deputados!”.

O mundo cada vez mais conservador, a mentalidade retrógrada pulverizada no cenário brasileiro foram motivações para o grupo erguer o espetáculo. A Cia. Do Tijolo quis fazer um contraponto ao papel político exercido atualmente pelas igrejas evangélicas. Dom Helder Camara é o personagem ideal: de ideologia alinhada à esquerda, que se projetou internacionalmente por suas ações de combate à miséria e discursos igualitários. A montagem dá uma resposta estética e política à atuação da chamada BBB do Congresso Nacional, a bancada da Bíblia, do Boi e da Bala.

Elenco de O Avesso do Claustro

Elenco de O Avesso do Claustro.  Foto: Alecio Cezar / Divulgação

Dom Herder Camara é um personagem de luta, das históricas lutas de resistência política durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Defensor da não-violência e de uma Igreja Católica voltada aos pobres, por sua militância pela defesa dos direitos humanos, o clérigo foi indicado quatro vezes ao prêmio Nobel da Paz. E por denunciar internacionalmente os crimes de tortura pelo regime militar no Brasil ele foi impedido pelo AI-5, a partir de 1986, de ter seu nome citado pela imprensa brasileira.

Já no início do espetáculo temos o batuque a evocar nossas raízes africanas. Na última cena, grandes bonecos carnavalescos representam Patativa do Assaré, Paulo Freire, Dom Hélder e García Lorca. Essas figuras já foram celebradas em outros espetáculos da Cia do Tijolo. O mestre da cultura popular Patativa do Assaré (1909-2002) foi protagonista da montagem Concerto de Ispinho e Fulô. A peça Ledores do Breu foi inspirada no texto Confissão de Caboclo, de Guimarães Rosa, e no pensamento e prática do educador Paulo Freire. Cantata para um bastidor de utopias tem por base num texto de Federico García Lorca: Mariana Pineda.

Os personagens de O Avesso do Claustro (interpretados por Lilian de Lima, Karen Menatti, Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante e Flávio Barollo, além dos músicos Aloísio Oliver, Maurício Damasceno, William Guedes e Leandro Goulart) ousam imaginar novos horizontes para esses tempos tenebrosos. No território profano, utópico e poético do teatro se cozinha o alimento da esperança e tonifica o espírito para a batalha.

SERVIÇO
O Avesso do Caustro, com a Cia. do Tijolo, dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos
Quando: 28 e 29 de janeiro de 2017
Onde: Teatro de Santa Isabel
Quanto: R$ 60 e R$ 30

Ficha técnica
O avesso do claustro
Dramaturgia: Cia. do Tijolo
Direção: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção Musical: William Guedes
Com: Lilian de Lima, Karen Menatti, Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante e Flávio Barollo
Orientação teórica: Frei Betto
Músicos: Maurício Damasceno,William Guedes, Clara Kok Martins, Eva Figueiredo e Leandro Goulart
Figurinista: Silvana Marcondes
Concepção e construção de cenário: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Assistentes e aderecistas: Alexandra Deitos e Isa Santos
Rede e bonecos de pano: Silvana Gorab
Bonecões: André Mello e Cleydson Catarina
Cenotécnica: Julio Dojcsar e Majó Sesan
Costureira: Atelier Judite de Lima e Cecília Santos
Desenho de luz: Aline Santini
Operadora de luz: Laiza Menegassi
Assistente de luz: Pati Morim
Operação de som: Emiliano Brescacin
Orientação cênica: Joana Levi e Fabiana Vasconcelos Barbosa
Orientação vocal: Fernanda Maia
Composição de trilha sonora original: Caique Botkay e Jonathan Silva
Produção executiva: Cris Raséc
Assistente de produção: Lucas Vedovoto
Designer gráfico: Fábio Viana
Fotos: Alécio Cezar

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Forró e poesia

Cante lá que eu canto cá abriu a V Mostra Capiba de Teatro. Foto: Rodrigo Moreira/ Divulgação

Festival de teatro é momento não só para aprimorar o olhar cênico, para ver montagens de diferentes estilos e lugares, para discutir dramaturgia, direção, elenco. É também uma celebração. Sendo assim, a V Mostra Capiba de Teatro começou muito bem. Ao som do forró e da poesia de Patativa do Assaré com o espetáculo Cante lá que eu canto cá, da Cia do Tijolo, de São Paulo.

O mesmo grupo foi o responsável por uma das melhores experiências que tive no teatro este ano. Em maio, eles vieram ao Recife dentro da programação do Palco Giratório, para apresentar Concerto de ispinho e fulô. Na realidade, Concerto… é a montagem resultante do show que eles apresentaram agora no Capiba.

As declamações da poesia de Patativa são entrecortadas por músicas de diferentes compositores cantadas ao vivo, como Qui nem jiló. “Se a gente lembra só por lembrar / Do amor que a gente um dia perdeu/ Saudade inté que assim é bom / Pro cabra se convencer/ Que é feliz sem saber/ Pois não sofreu / Porém, se a gente vive a sonhar/ Com alguém que se deseja rever/ Saudade intonce aí é ruim/ Eu tiro isso por mim/ Que vivo doido a sofrer”.

Na banda, um sanfoneiro de São Paulo (e não é que lá tem sanfoneiro do bom?) Aloísio Olivier, Jonathan Silva (violão) e Maurício Damasceno (percussão e bandolim). O elenco tem Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Fabiana Barbosa e Thaís Pimpão. A direção geral é de Rodrigo Mercadante.

As músicas servem ao propósito de criar correspondências temáticas e estilísticas com a obra de Patativa, poeta que nunca saiu do Ceará, mas conseguiu transformar os seus versos em espelhos de realidades muito maiores. E olhe que nem precisou de estudo para isso. A sabedoria popular não tem mesmo uma ligação direta com os bancos das escolas. Nem mesmo com os sentidos, já que Patativa era cego – mas enxergava como ninguém esse Sertão de meu Deus.

O show é o embrião de uma dramaturgia costurada com muita proeza em Concerto de ispinho e fulô, de uma interpretação que é viva, pulsante. As experiências, como a participação do público e as memórias dos artistas transformadas na dramaturgia, são apenas relances do que acontece na montagem.

Dá para perceber que o show não abarcou o mergulho que esses atores tinham dado na obra de Patativa do Assaré. O encantamento e, sobretudo, o diálogo que travaram com os versos do cearense ganharam a proporção devida em Concerto (que não foi apresentada no Capiba por falta de espaço). Cante lá que eu canto cá é só um pedacinho de bode assado quando a fome é grande; o cheiro de baião de dois na panela; o gostinho da primeira lapada de pinga.

Para quem quer mesmo se embriagar, o grupo apresenta Concerto de ispinho e fulô, se não me engano, em Triunfo e Arcoverde. Vou saber a agenda direitinho e digo a vocês.

Dinho Lima Flor como Patativa do Assaré

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Concerto poético

Dinho Lima e Flor

“Poeta, cantô de rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o Sertão que é meu.
Se aí você teve estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisá
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá”

A Rádio Caldeirão fez ontem, no Teatro Marco Camarotti, no bairro de Santo Amaro, uma conexão São Paulo -Recife – Assaré. E saiu levando nesse caminho a poesia, a experiência, as histórias, o lirismo que não têm região geográfica; que têm raiz, mas não amarras: tanto que podem ser transmitidos a partir do teatro. Foi isso que fez a Cia do Tijolo com o espetáculo Concerto de Ispinho e fulô, uma homenagem ao poeta cearense Patativa do Assaré. Transformou cena em poesia, dor e amor em cantoria, vivências pessoais em universais.

O objetivo aqui não era apresentar uma biografia, mas colocar o público em contato com uma obra, com o universo do Sertão, com a crítica social ferrenha feita por um homem que nunca deixou o seu lugar de origem. Para isso, elementos vão se cruzando.

Primeiro, decidiram pelo musical, o que parece inevitável quando, por exemplo, Karen Menati, uma das atrizes, começa a cantar lindamente. Depois, saíram reunindo peças como num quebra-cabeças: uma rádio que toca as músicas e celebra o poeta; um grupo de atores que saí de São Paulo em busca de um encontro com Patativa; a visão do estrangeiro na terra que não é sua; uma massacre de civis que não foi registrado nos livros de história; a celebração; a “sem-vergonhice” faceira e encantadora.

“Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do Sertão
Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem”

“Eu não posso lhe invejá
Nem você invejá eu,
O que Deus lhe deu por lá,
Aqui Deus também me deu.
Pois minha boa muié,
Me estima com munta fé,
Me abraça, beja e qué bem
E ninguém pode negá
Que das coisa naturá
Tem ela o que a sua tem”.

A montagem parece que mostra a que veio realmente, capturando de vez o público, a partir da viagem que o grupo de atores faz de São Paulo até Assaré – de carro, numa divertida solução cênica. Quando chegam, o primeiro impulso é colocar aquele homem num pedestal; quando percebem – e a montagem é sincera e acerta nisso -, que é muito mais fácil dialogar quando se olha de igual para igual. O embate entre os atores Dinho Lima Flor, que faz o Patativa, e Rodrigo Mercadante, o ator que queria conhecer o poeta, é um dos momentos mais bonitos e desafiantes do espetáculo. Quando a poesia modernista de Drummond, Bilac, conversa com a poesia simples, mas profunda, com métrica e rima, do Sertão cearense.

Espetáculo foi exibido no Teatro Marco Carmarotti, no Recife

A companhia consegue também, na própria encenação, dissolver a questão sobre se seriam capazes – já que vindos de vários lugares do país – de falar de uma coisa que não viveram. Percebe-se que era uma dúvida mesmo do grupo, que foi levada e resolvida em cena, durante o processo de montagem. Não precisavam ter vivido a seca que deixa o chão esturricado; aliás, o que é seca para cada um de nós? É dessa forma que teatro, invenção, a discussão sobre o fazer teatral, e vida real são costurados. É assim que uma das atrizes conta que é de Maringá; e que todos lá vivem na “zona”, já que não existe bairro, e sim, zona; que já fazia teatro quando morava lá e que participou de uma pesquisa para perguntar qual a programação cultural preferida na cidade. A resposta foi “churrasco”! Ou Dinho Lima Flor fala de Tacaimbó, no interior de Pernambuco, da sua praça… e convida todos a cantarem: “Só deixo o meu Cariri, no último pau de arara”.

“Repare que deferença
Iziste na vida nossa:
Inquanto eu tô na sentença,
Trabaiando em minha roça,
Você lá no seu descanso,
Fuma o seu cigarro mando,
Bem perfumado e sadio;
Já eu, aqui tive a sorte
De fumá cigarro forte
Feito de paia de mio.

Você, vaidoso e facêro,
Toda vez que qué fumá,
Tira do bôrso um isquêro
Do mais bonito metá.
Eu que não posso com isso,
Puxo por meu artifiço
Arranjado por aqui,
Feito de chifre de gado,
Cheio de argodão queimado,
Boa pedra e bom fuzí”.

A celebração ganha cheiro, gosto. Que pode ser de cachaça, cajuína ou café. Mas teatro sem conflito, não é teatro! E ainda faltava resgatar o massacre do Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, que vivia como uma espécie de Canudos, tendo a frente o beato José Lourenço, e foi aniquilado no governo de Getúlio Vargas, num ataque aéreo contra civis inocentes. Essas histórias vão se amalgamando à montagem, numa parede feita de vários tijolinhos que têm na perspicácia da direção de Rogério Tarifa, no talento de elenco e músicos, o seu cimento. Conseguindo levar ao palco poesia de maneira fluida, mas profunda; fazer rir as senhoras “coqueluxe”; ou cantar junto o poema e a canção.

Cenografia, iluminação e figurino compõem esse concerto de maneira acertada, às vezes numa balburdia completa; outras na ordem focada necessária ao embate de palavras. O elenco da montagem é formado por Dinho Lima Flor, Lílian de Lima, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti e Thaís Pimpão; já o grupo de músicos – numa trilha que tem Patativa, mas também Gonzagão, Jackson do Pandeiro e ainda composições próprias, numa seleção que privilegia sempre a poesia – é composto por Jonathan Silva, Aloísio Oliver e Maurício Damasceno.

“Aqui findo esta verdade
Toda cheia de razão:
Fique na sua cidade
Que eu fico no meu Sertão.
Já lhe mostrei um ispeio,
Já lhe dei grande conseio
Que você deve tomá.
Por favô, não mexa aqui,
Que eu também não mêxo aí,
Cante lá que eu canto cá”.

(Trechos de Cante lá, que eu canto cá, de Patativa do Assaré)

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