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É urgente olhar para o Céu e para o mundo também

Olha pro Céu Meu Amor abriu a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Ivana Moura

Olha pro Céu Meu Amor abriu a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Ivana Moura

Olha pro Céu Meu Amor abriu a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Ivana Moura

Grupo Feira mantém encenação original de Vital Santos. Foto: Ivana Moura

Um clima amoroso marcou a abertura do 23º Janeiro de Grandes Espetáculos – Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco, na última quinta-feira (12/01), no Teatro de Santa Isabel. Casa lotada, os produtores deixaram os tradicionais discursos para depois de Olha pro Céu Meu Amor, peça de inauguração dessa edição, que segue até o dia 29 de janeiro, no Recife e em Caruaru.

Ao final da exibição, o homenageado de 2017, o artista sertaniense Sebastião Alves, radicado em Caruaru, foi celebrado com palavras e aplausos. Ganhou de presente um quadro com sua figura, pintado por Cleusson Vieira, e falou um pouco sobre sua trajetória. Contou que foi submetido a 15 cirurgias e venceu um câncer, contra o qual lutou por mais de dez anos. Lembrou de outros participantes do grupo que morreram e foram representados por fotos.

Salientando as parcerias e cumplicidades principalmente com os artistas pernambucanos, os produtores Paulo de Castro, Carla Valença e Paula de Renor, enfatizaram a dificuldade de fazer cultura neste momento difícil. É um discurso recorrente das últimas edições, mas que não transparece na extensão do programa. São 58 produções diferentes, entre teatro adulto, teatro para a infância, dança, circo, shows musicais e duas leituras dramatizadas.

Carla Valença, Paulo de Castro e Paula de Renor, produtores do Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Pollyanna Diniz

Carla Valença, Paulo de Castro e Paula de Renor, produtores do festival. Foto: Pollyanna Diniz

Todos os festivais brasileiros sofreram nos últimos anos com as crises políticas e econômicas que o país atravessa. Alguns reduziram programação para não abrir mão da qualidade (levando em conta o olhar curatorial de cada iniciativa). Sabemos que grande parte da produção cultural do país existe graças aos editais, que vêm recebendo cortes em todas as esferas. Mas também é momento de uma reflexão crítica. Alguns questionamentos do que é o Janeiro, de qual a sua relevância e seus propósitos precisam ser feitos, porque a vida é dinâmica, a cultura é dinâmica e a cidade do Recife é uma potência cultural. E as ideias de sustentação estética, política, filosófica de uma iniciativa desse porte, me parece, precisam ser repensadas.

Vivemos em tempos temerosos, é verdade. E nesse Brasil em que o ódio vai às ruas, em que a violência mostra suas garras, as pessoas temem por expor opiniões. E em Pernambuco tomar posicionamentos públicos quanto às políticas culturais, aos festivais, à cena na cidade está se tornando uma atitude rara. Por medo de boicote, pela dominância do individualismo (mesmo que sejam projetos de coletivo) sobre a coletividade, sobre o bem-comum. Há falta de humildades e arrogâncias de sobra que rechaçam a possibilidade de diálogos e a conjugação de mediocridades que matematicamente não podem resultar em excelências. Mas cada produtor, artista, espectador, cidadão tem capacidade de ponderar. Olhemos, pensemos, façamos a crítica e a auto-crítica para garantir o melhor possível da produção da cidade e do estado.

Recentemente, por exemplo, a produtora Paula de Renor idealizou e fez a curadoria da Mostra Acessível Rio das Olimpíadas juntando os universos das artes cênicas e da acessibilidade. Realizada em agosto na Paralimpíada Rio 2016, com programação gratuita, a Mostra reuniu trabalhos interpretados por artistas com deficiências físicas e cerebrais, além de workshop, visita tátil, tradução em libras, audiodescrição, mesa redonda e conversa com o público. Um programa bem definido nos seus propósitos.

Como outros festivais, o Janeiro padece da falta de políticas que assegurem sua continuidade, mesmo que os três produtores sejam contundentes ao dizer que é o melhor festival das artes cênicas de Pernambuco. Há controvérsia… E isso é bom. Mas estratégicas de sobrevivência dependem dos incentivos e financiamentos, principalmente públicos.

Como afirma o educador Paulo Freire, não existem territórios neutros.

Como afirma Paulo Freire, personagem de pa(IDEIA), não existem territórios neutros. Foto: Amanda Pietra.

De todo modo o Janeiro de Grades Espetáculos quis este ano fazer conexões com o Brasil da democracia atingida e do avanço do conservadorismo. E na sua programação constam peças que carregam um viés político: Olha para o Céu Meu Amor, A Mulher Monstro, pa(IDEIA) – Pedagogia da Libertação, h(EU)stória – o tempo em transe, Terror e Miséria no Terceiro Reich – O Delator e musical O Avesso do Claustro, por exemplo.

Mas, nesse panorama de luta, reafirmo a ausência do espetáculo Retomada, do Grupo Totem, uma das melhores encenações pernambucanas levantadas no ano passado. Porque este grupo é também símbolo de resistência e resiliência, por sua trajetória e principalmente pela maturidade da montagem, erguida a partir de pesquisa de rituais sagrados com os povos indígenas do Pernambuco (Pankararu, Xucuru e Kapinawá).

Homenagem a Sebá Alves, que ganha um quadro com sua figura. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Homenagem a Sebá Alves, que ganha um quadro com sua figura. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Voltando para o dia da abertura, os produtores apontaram Sebá Alves como símbolo da resistência cultural. Paula de Renor, a mais emocionada, reafirmou o compromisso do trio em prosseguir com o Janeiro e reforçou a gratidão com os parceiros de caminhada. Deixou transparecer nas palavras choradas a pressão de tocar o evento. Reconhecemos o esforço, a persistência, o trabalho, a dedicação, mas precisamos exercitar a análise e a reflexão que instiga.

A peça de Vital Santos

Olha pro Céu Meu Amor abriu a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Ivana Moura

Olha pro Céu Meu Amor abriu a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Ivana Moura

Há muitas maneiras de abraçar a peça Olha pro Céu, meu Amor, do saudoso Vital Santos com música de Josias Albuquerque, produção do Grupo Feira de Teatro Popular. Como um libelo que expõe os efeitos do capitalismo na vida de um cidadão brasileiro e o esmaga; um recorte do microcosmo de uma família pobre do interior do Nordeste com seus problemas cotidianos; um registro histórico da encenação de Vital, já que o arcabouço da encenação original pouco foi modificado.

O olhar de Vital Santos está carregado do protesto (direto ou indireto) das classes subalternas na sua lida diária. As cenas são impregnadas de um humor popular e de soluções engraçadas com frases provocativas das ruas ou da briga de vizinhos com pitadas de palavrões.

A peça traça um retrato típico do nordestino migrante, entre o esperto e o bocó. Não daquele que fez sucesso meteórico. Mas do outro que se deixou enredar pelos acontecimentos, que não pegou a força centrífuga para escapulir do destino trágico, que fracassou no seu intento de migrar. Ou o que se perdeu nos apelos da indústria cultural.

No final dos 1990 a música Chover (ou Invocação Para Um Dia Líquido), do Cordel do Fogo Encantado pedia: “Meu povo não vá simbora / Pela Itapemirim / Pois mesmo perto do fim / Nosso sertão tem melhora”. Sabemos que esse quadro mudou no período Lula/ Dilma com o avanço dos direitos sociais. Mas Olha pro Céu Meu Amor também é reavivado, ganha outros sentidos com os recentes acontecimentos do cenário político brasileiro, com o recuo das garantias dos trabalhadores e direitos do cidadão.

Cena de Olha pro Céu meu Amor. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Cena de Olha pro Céu meu Amor. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Na encenação, um compositor caruaruense segue para o Rio de Janeiro em busca do sonho de vencer na carreira na Cidade Maravilhosa, e que Roberto Carlos grave suas músicas; enfim em busca de liberdade econômica prestígio social e realização profissional e pessoal . Olha pro Céu Meu Amor foi lançada em 1983 e é baseada na vida de Sebá Alves, que nunca desistiu de ser artista, mas encarou muitas funções de operário durante a vida. Ele fundou e mantém em Caruaru o Teatro de Mamulengos Mamusebá e a Cia. Pernas pra Circular, além de muitos projetos de formação.

O personagem de Sebá, Bom Cabelo -inspirado em sua própria história -é submetido ao subemprego. A montagem tem uma estrutura de quadros que se alternam nas cenas do protagonista no Rio e outras com seus familiares que ficaram no Nordeste. A mãe, dona Guió, que tenta manter a ordem da família; o pai Jesus (famoso vendedor de passarinhos da região). Além dos outros filhos do casal, a menina Dó (Charlene Santos) com os hormônios gritando, resolve fugir com o namorado. Neneca, na dúvida entre ser padre ou assumir sua vocação de artista performático, e Lelé, que alimenta uma obsessão apaixonada pela galinha Du.

A encenação brinca com os estereótipos do pernambucano do interior, com suas roupas coloridas, vestidinhos de chita e lenços na cabeça; com uma prosódia carregada, símbolos da cultura da região e nos objetos de cena, ditos populares. A trilha sonora é potente poesia e de uma atualidade impressionante. A música é executada ao vivo por Jadilson Lourenço (também na direção musical), Felipe Gonçalves, João Vítor Lourenço (violões) e Carlinhos Aril (percussão).

Há desnível nas atuações, mas não compromete o conjunto. Sebastião Alves (o Sebá), defende o papel de Zequinha de Jesus há mais de 20 anos, criou uma cativante figura, entre a euforia e a melancolia desse migrante sonhador. Jô Albuquerque Cavalcanti faz o feirante e vendedor de gaiolas e pássaros chamado Jesus meio distante em seu mundo dos pequenos animais voadores. Adeilza Monteiro traça Mãe Guió cuidadosa com suas crias, preconceituosa com as dos outros e que tenta negociar o lugar de comando dentro da casa. Luzia Feitosa (Ceminha) faz a namorada conterrânea que Cabelo conheceu no Rio e tem um passado condenável pela mãe do protagonista. Walter Reis (Lelé) é o menino da galinha, que fez muita gente da plateia lembrar de sua infância. Gabriel Sá (Neneca) mostra as mudanças do pleiteante ao sacerdócio ao artista transformista.

Rafael Amâncio (Pernambuco), Ary Valença (Lula), Matheus Silva (Biu de Dora) e Gilmar Teixeira (Dr. Hércules) completam o elenco. Entre situações risíveis, pequenas alegrias, mostras de explorações e sofrimento, cada personagem recebe um marca mais evidente, como a perna manca do Dr. Hércules.

A peça se movimenta em blocos, em quadros dos cantos musicais, tenda do mamulengo, reunião em família, bastidores da fábrica, quarto da pensão, etc. E esses flashes compõem um painel poderoso. Mas como disse anteriormente os procedimentos cênicos foram articulados por Vital na década de 1980.

Iluminação guarda as marcas dos anos 1980. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Iluminação guarda as marcas dos anos 1980. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Essa poética guarda a força desse dramaturgo e diretor tão criativo e comprometido com o povo do Nordeste. Mas deixa brechas de que algumas coisas ficaram datadas e isso fica bem evidente na iluminação que cria focos blocados, mudanças repentinas para azuis e vermelhões e principalmente nas situações em que o ator Sebá (e outros) dá sua fala e o rosto do personagem fica no escuro. Problema que uma consultoria com a coordenadora técnica do Janeiro de Grandes Espetáculos, Luciana Raposo poderia (poderá) resolver e ampliar horizontes.

De todo modo, o que fica desse musical é o sentimento aguerrido do povo nordestino, seu linguajar rico e peculiar, suas soluções para a vida que ganham escalas de tragédia e comédia no palco.

FICHA TÉCNICA
Olha pro Céu meu Amor
Texto, direção, projeto de iluminação e cenografia: Vital Santos
Trilha sonora: Jadilson Lourenço
Coordenador de cena: Gabriel Sá
Figurinos: Iva Araújo
Confecção de figurinos: Sônnia Cursino
Confecção de cenário: Gilmar Teixeira
Montagem de palco e luz: Edu Oliveira, Marcelo Mota e Gilmar Teixeira
Execução de luz, assistente de produção e direção: Edu Oliveira
Sonoplastia: Marcelo Mota
Contrarregragem: Zi Rodrigues
Produção: Sebá Alves
Músicos: Jadilson Lourenço, Felipe Gonçalves, João Vítor Lourenço (violões) e Carlinhos Aril (percussão)
Elenco: Sebastião Alves (Sebá), Jô Albuquerque, Adeilza Monteiro, Luzia Feitosa, Charlene Santos, Gabriel Sá, Walter Reis, Rafael Amâncio, Ary Valença, Matheus Silva e Gilmar Teixeira

SERVIÇO
Onde: Teatro Rui Limeira Rosal (SESC Caruaru)
Quando: Dia 28 de janeiro de 2017 (Sábado), às 20h
Ingresso: R$: 10,00 (Inteira) e 5,00 (Meia)
Classificação etária: a partir dos 14 anos
Duração: 1h20

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Amor ao teatro através da crítica

Sábato Magaldi faleceu aos 89 anos. Foto: Bob Souza/colaboração para o blog

Sábato Magaldi faleceu aos 89 anos. Foto: Bob Souza/colaboração para o blog

Sábato Antonio Magaldi atestou que as qualidades fundamentais ao exercício da crítica seriam o amor ao teatro e a boa-fé. Isso é grande. O escritor, ensaísta, crítico, autor de livros de referência na área teatral, professor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 1995, ocupante da cadeira 24, que já foi de Manuel Bandeira, e antes de Sábato pertenceu ao escritor Cyro dos Anjos, tinha o teatro como profissão de fé. Ele pertencia à geração de críticos de teatro da qual também faziam parte Décio de Almeida Prado, Anatol Rosenfeld e Yan Michalski.

Magaldi morreu aos 89 anos, por volta das 23h desta quinta-feira (14), em São Paulo. Ele estava internado desde o dia 2 de julho no Hospital Samaritano com quadro de choque séptico e comprometimento pulmonar. Seu corpo foi cremado em cerimônia no Cemitério Memorial Parque Paulista, no Embu das Artes, na Grande São Paulo, nesta sexta-feira (15). A causa da morte foi insuficiência renal e comprometimento pulmonar. Suas cinzas ficarão no mausoléu da ABL, no Cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro.

Mineiro de Belo Horizonte (MG), Sábato nasceu em 9 de maio de 1927. Antes dos 20 anos de idade escreveu o primeiro artigo publicado no Brasil sobre uma peça de Jean Paul Sartre. Em 1948, aos 21 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro onde concluiu, no ano seguinte, o curso de Direito iniciado na Universidade de Minas Gerais.

Por coincidência, seu primeiro emprego foi como chefe de gabinete do Departamento de Assistência do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado, conduzido pelo escritor Cyro dos Anjos, que ele viria a suceder na cadeira na ABL décadas depois.

Crítico do Diário Carioca de 1950 a 1953, ele sucedeu Paulo Mendes Campos. Em 1952 foi estudar estética na Universidade de Sorbonne, em Paris, como bolsista do governo francês. Na volta, em 1953, foi convidado por Alfredo Mesquita para lecionar História do Teatro na Escola de Arte Dramática, fundada por Mesquita em 1948. Mudou-se para São Paulo e, no mesmo ano, passou a colaborar para o jornal O Estado de S.Paulo como redator e tornou-se, em 1956, titular da coluna de Teatro do Suplemento Literário, trabalhando ao lado de Décio de Almeida Prado, diretor do Suplemento. Quando o Jornal da Tarde foi fundado, em 1966, começou a escrever crítica para o periódico, até 1988. Na EAD criou, em 1962, a disciplina de História do Teatro Brasileiro. Nos jornais Estado e JT atuou como crítico teatral durante 32 anos.

Dizem as boas línguas que parte dos críticos executava o papel de divulgadores dos espetáculos, alguns recebendo gorjetas das companhias teatrais. Vale lembrar que, naquela época, a crítica tinha um papel preponderante para o sucesso ou fracasso de bilheteria das temporadas.

Magaldi. Foto: Edições Sesc/ Divulgação

Magaldi. Foto: Edições Sesc/ Divulgação

Magaldi é autor de Panorama do teatro brasileiro (1962 e 1997, ed. Perspectiva), Moderna dramaturgia brasileira (1998), Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações (1987, ed. Perspectiva), O texto no teatro (1989, ed. Perspectiva), Cem anos de teatro em São Paulo (2000, com Maria Thereza Vargas, ed. Senac), Depois do espetáculo (2003, ed. Perspectiva), Teatro da ruptura: Oswald de Andrade (2004, Global Editora), Teatro sempre (2006, ed. Perspectiva) e Amor ao teatro (2015, Edições Sesc), entre outros.

Foi um dos primeiros a reconhecer o talento de Nelson Rodrigues, nos anos 1950, quando a obra rodriguiana recebia ataques da crítica moralista e conservadora. Em 1980, a pedido de Nelson Rodrigues, de quem era amigo pessoal, organizou uma edição do teatro completo do dramaturgo. O crítico alinhou as 17 peças levando em conta os estilos e procedimentos dramáticos. As peças de Nelson Rodrigues passaram a ser categorizadas como psicológicas, míticas e tragédias cariocas.

Não era um crítico dono da verdade. O teor relativo de suas análises às vezes estava no próprio texto. Sobre a obra rodriguiana publicou uma autocritica em Dramaturgia e Encenações, revendo a apreciação publicada anteriormente no Panorama: “Formado na estética da sobriedade europeia, eu não admitia os extravasamentos, para mim de mau gosto. Hoje, estou convencido de que o melodramático dos textos rodriguianos corresponde à permanência de uma estética popular, que vai da oratória e da frase feita à chanchada. Sou obrigado a reconhecer que também nesse particular o dramaturgo revelava sua profunda brasilidade”.

Também reconheceu o engano quanto a Oswald de Andrade – o modernista foi tema de sua tese de Doutoramento pela Universidade de São Paulo, depois publicada em livro com o título Teatro da Ruptura: Oswald de Andrade. No seu Panorama do Teatro Brasileiro atestava que O Rei da Vela era impraticável de ser levado palco por suas características literárias.

Foi o primeiro secretário municipal de Cultura de São Paulo, quando o cargo foi criado na gestão do prefeito Olavo Setúbal (1975-1979).

Casado por 38 anos com a escritora catarinense Edla Van Steen, era pai de dois filhos. “Ele era casado com o teatro”, comentou Edla várias vezes, que o acompanhava a todos os espetáculos.

Sábayo tinha um olhar apurado para reconhecer talentos de diretores, dramaturgos e atores. Na década de 1960 apontou Plínio Marcos, Leilah Assunção José Vicente, Antônio Bivar e Consuelo de Castro como figuras que ajudaram na renovação da dramaturgia no Brasil. José Wilker, em começo de carreira, recebeu os elogios de Magaldi em O Arquiteto e o Imperador da Assíria (1970, direção de Ivan de Albuquerque,): “já aparece como ator completo, e dominando como poucos a expressão corporal. Dotado de espantosa agilidade, ele é bem o arquiteto de Arrabal, ser primitivo que reina sobre os elementos na ilha deserta”.

A geração de Sábato Magaldi apostou na crítica teatral como instrumento de reflexão a partir de sólida formação humanista. Ele gostava de afirmar que, se acertou em 10% do que escreveu, estava satisfeito.

Ano passado, lançou o livro Amor ao teatro, organizado por Edla Van Steen, reunindo 783 textos críticos, escritos para o Jornal da Tarde entre 1966 e 1988. São 1.224 páginas. Sábato foi crítico teatral desse jornal paulista por 22 anos.

No artigo Sobre a crítica (Teatro em foco. São Paulo: Perspectiva, 2008), Sábato apontava critérios que, a seu ver, deveriam nortear o crítico teatral. Entre elas: identificar a proposta do espetáculo e avaliar se ela foi concretizada a contento em todos os aspectos da encenação: o diretor, os intérpretes, o dramaturgo, o cenógrafo, o figurinista, iluminação, etc.

Clareza, objetividade e honestidade são preceitos básicos na sua visão. Isso acompanhado de um comportamento ético. O crítico não deveria se influenciar por amizades ou desafetos e, para ele, era imprescindível deixar a ranzinzice fora do teatro e longe da mente da hora de escrever. Também alertava que um comentário mais severo não precisa ser rude ou grosseiro. Enfim, uma prática intelectual que deveria ser exercida por pessoas capacitadas, como deveriam ser a profissão de políticos e outras funções públicas que exercem influência nos destinos do país.

Quando Amor ao Teatro foi lançado, o jornalista e crítico teatral Nelson de Sá, da Folha de S.Paulo, enviou para alguns blogs e sites perguntas sobre Sábato Magaldi, para reportagem que foi publicada no jornal paulistano. A seguir as perguntas e respostas do Satisfeita, Yolanda?, sobre esse intelectual que escrevia com elegância, acuidade analítica e generosidade.

Fotomontagem para o lançamento do livro Amor ao Teatro. Foto: Edições Sesc/Divulgação

Fotomontagem para o lançamento do livro Amor ao Teatro. Foto: Edições Sesc/Divulgação

Entrevista // Ivana Moura, sobre Sábato Magaldi

Sábato serviu de modelo para você em algo específico, na prática? Algum livro dele foi mais significativo? A influência dele sobre você, se houve, foi mais como crítico de jornal, como editor (de Nelson Rodrigues, por exemplo) ou como historiador do teatro?
Como sabemos o teatro é uma arte efêmera, cada sessão é única e nada será exatamente repetido. E se hoje é muito fácil conseguir vídeos, informações imediatas, há 20 ou 30 anos isso era muito complicado. Então os escritos de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi ganharam além da dimensão histórica, também uma formativa e informativa. Somos todos devedores a ambos. Para quem mora no Nordeste isso ficava mais evidente e esses textos se tornaram valiosos. Eles direcionaram o nosso olhar e colaboraram na construção da subjetividade e do gosto estético. É lógico que os escritos dos dois vinham impregnados pela ruptura do se fez no início do século 20. Estavam antenados com seu tempo. Absorveram uma nova onda de valores estéticos que chegaram aos palcos do país, a partir da década de 1940, na esteira da vinda dos diretores Zbgniev Ziembinski e Louis Jouvet (ambos aportaram no Brasil no final da década de 1930, fugidos da Guerra). Era uma nova forma de análise dos espetáculos, diferente da que se praticava até então. Comprometidos com a renovação teatral, eles lançaram sementes, com seus textos para diretores, atores e grupos, além de estudantes e futuros críticos. Primeiro, Décio, depois Sábato. Primeiro através dos jornais, que chegavam com atraso de um dia, depois dos livros. Eles foram críticos cúmplices, mas pautados por um determinado modelo. A maneira de pensar a cena ampliava o escopo desses profissionais da função de críticos jornalísticos para o papel de historiadores culturais. Todos os livros de Sábato são importantes para mim. Iniciação ao Teatro foi o livro dos primeiros passos. Panorama do Teatro Brasileiro foi fundamental (apesar de sempre achar que essa amplitude de brasileiro não abarcava a multiplicidade do que existia fora do eixo Rio-São Paulo). Aspectos da Dramaturgia Moderna foi livro de cabeceira durante algum tempo. O que mais admiro é o trabalho que ele desenvolveu sobre a obra de Nelson Rodrigues. Foi ele que lançou luz sobre a amplitude da obra do Nelson, dissecou questões, desafiou outras posições, e defendeu esses textos como poucos. É um valioso trabalho.

Sábato detalhou uma fórmula para a crítica teatral: Detectar a proposta da peça, julgar sua qualidade e salientar sutilezas, escrevendo com clareza, honestidade e conhecimento da história do teatro. À luz do que você mesma escreve, hoje, você ainda considera esses conselhos úteis? Alteraria alguma coisa? Priorizaria qual ou quais deles?
Os conselhos de Sábato são úteis, mas para analisar o teatro contemporâneo esse modelo é insuficiente. Todos os pontos da fórmula são válidos. Mas a profusão de significados e ressignificações exigem outras ousadias. Sábato Magaldi é o mais profícuo dos críticos, publicou mais livros sobre história do teatro brasileiro e ainda faz atualização de sua obra. Mas ele mesmo utilizava superlativos e adjetivos que são pouco convincentes para a feitura de uma crítica de espetáculo hoje.

Em suma, o que diferencia o que você faz no Satisfeita, Yolanda? do que ele fazia no JT?
Acho que os críticos de hoje podem até usar as bengalas das fórmulas da crítica moderna, essa que Sábato nos ensinou, mas têm que ampliar horizontes nas contextualizações desse mundo, em que mais ninguém é senhor absoluto de um julgamento estético da cena. Vivemos de incertezas, os riscos são grandes. E não temos nenhuma hegemonia, como ocorreu a vida inteira com o Sábato.

Sábato descrevia Décio de Almeida Prado como “mestre de todos os que o secundaram”, ele inclusive, Sábato. O que os escritos de Sábato têm de diferente em relação a Décio?
Décio de Almeida Prado sempre me pareceu o mais sóbrio, o mais equilibrado dos críticos brasileiros. E com um vocabulário com menos adjetivos. Aquele que nas suas análises criava hipóteses para defender. Seu livro Exercício findo me orientou durante muito tempo, como os jovens artistas plásticos a imitar os mestres nos trabalhos.

Sábato Magaldi sistematizou obra de Nelson Rodrigues. Foto: Carlos/Cedoc/ Funarte

Sábato Magaldi sistematizou obra de Nelson Rodrigues. Foto: Carlos/Cedoc/ Funarte

Depoimentos

“Com a morte do professor Sábato Magaldi fecha-se, ao menos em termos cronológicos (mas não de influência) o ciclo da crítica ao teatro moderno no Brasil. Os dois outros grandes críticos centrais dessa cena (no meu ponto de vista) foram Décio de Almeida Prado e Anatol Rosenfeld. A estes o teatro deve, além da atividade crítica e pedagógica propriamente ditas, a colaboração na construção de uma cena nova, a partir dos anos 40 do século passado. Foram eles os incentivadores e em certa medida os orientadores informais de toda uma geração de artistas, na época em que os sistemas estéticos ainda eram mais firmes e a crítica ainda podia fazer valorações categóricas a partir deles. Sábato Magaldi deixa também obras de referência na área da Historiografia e estudos pontuais ainda hoje indispensáveis, sobretudo em torno da dramaturgia. A compreensão das obras de Nelson Rodrigues e Jorge Andrade, por exemplo, não seria a mesma sem ele. Evoé, jovens críticos vivos! É bom não esquecer que quando se está procurando caminhos novos para o teatro e a crítica é com uma História deste tamanho que querendo ou não se está dialogando. Quem chamou para si a tarefa tem que honrar, do seu modo próprio e autônomo, essa geração.”
Kil Abreu, jornalista e crítico teatral

“Exemplo de grandeza humana e intelectual, a morte de Sábato Magaldi me deixa em completo desalento, sinto-me enlutado. Em 1982 me recebeu para fazer prova de ingresso no mestrado e, desde então, nos tornamos amigos; mais que amigos, tivemos uma relação de mestre-discípulo, sem nenhuma cartilha a ser seguida. Deixava-nos livres para pensar, duvidar. Ele “pegou-me pela mão” e, como um pai, foi muito afetivo. Com sua solidez de conhecimentos e sua tenacidade crítica, apresentou-me um “outro” teatro brasileiro, cheio de nuanças e ambiguidades. Suscitava o desejo permanente de estudarmos a História do Teatro Brasileiro. E, sob sua orientação, pude concluir minha dissertação de mestrado (1989) e a tese de doutorado (1991), sobre o Teatro de Amadores de Pernambuco, cujo resultado foi publicado pela CEPE e SESC Pernambuco, em 2011: TAP – SUA CENA & SUA SOMBRA: O Teatro de Amadores de Pernambuco (1941-1991), para cuja edição escreveu o prefácio. Sou extremamente grato a este homem de teatro, este homem singular, que foi movido pelo amor à docência e ao teatro. Um HOMEM como poucos”.
Antonio Cadengue, encenador

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Pela livre circulação de identidades complexas

Spiritus Mundi VS Aztec Ouroborus é o nome da performance do coletivo La Pocha Nostra. Foto: reprodução Facebook Tusp

Spiritus Mundi VS Aztec Ouroborus é o nome da performance do coletivo La Pocha Nostra. Foto: reprodução Facebook Tusp

No recém-inaugurado Centro Compartilhado de Criação, na Barra Funda, em São Paulo, as pessoas tomam um café, bebem uma cerveja, se reúnem em pequenos grupos de conversas animadas. Nada muito diferente dos minutos que antecedem qualquer espetáculo; mas esse não era o caso. Pouco antes do horário marcado, performers começaram a circular pelo espaço. Uma garota vestia calcinha de algodão e, por cima, outra com renda vermelha, além de um corpete na mesma cor. Cordas amarravam seu corpo. Nos braços, pernas e no bumbum, palavras ou frases sobre exploração sexual. Uma delas, por exemplo, relacionava a Fifa e o turismo sexual. Outra performer, de vestido preto elegante, tinha a cabeça presa por uma gaiola. E assim outros também andavam por ali, chegavam perto das pessoas, iniciavam um contato.

Quando o espaço para apresentações, um galpão bem grande, foi aberto, o público pode ter uma noção mais exata de como seriam os próximos minutos compartilhados com o coletivo La Pocha Nostra, criado no México, que começava a performance Spiritus Mundi VX Aztec Ouroborus. Isso foi no último dia 12 de dezembro, dentro da programação II Bienal Internacional de Teatro da USP.

A profusão de ações e imagens que se estabeleceu por todos os cantos, simultaneamente, faz com que, acreditem, seja difícil tentar descrever o que se passou ali, embora isso talvez seja bem importante para que quem não acompanhou a performance, possa tentar reproduzir mentalmente o que estou falando. Um homem deitado, com o corpo coberto por alguma coisa comestível, e o pênis encalacrado por um adereço prata; uma mulher que mostra os seios, mas, ao mesmo tempo, também tem pau. Figuras de índias, bailarinas, comunistas, “macho power”. A música alta variou muito – teve muita eletrônica, rock, samba e até Chico Sciense, além da projeção de imagens diversas, inclusive performances antigas do coletivo.

O público circulava livremente no espaço, podendo entrar e sair do galpão, pegar uma bebida, voltar; e, em certa medida, foi até convidado a interagir, mas de uma forma muito soft, sem nenhuma pressão ou agressividade – a não ser quando, já no final, os espectadores foram estimulados a atirar garrafas na parede, que estilhaçavam ao baterem em figuras de políticos, por exemplo, ou em números de homicídios de mulheres ou índios.

O Coletivo La Pocha Nostra, que tem integrantes espalhados por vários lugares do mundo, trabalhou alguns dias com performers em São Paulo. Essas pessoas ajudaram a compor as ações principais, fazendo uma certa “assistência” aos membros do coletivo. O que presenciamos, ou melhor, construímos juntos, performers e espectadores, aquela noite, foi uma performance diversa, rica, ampla em possibilidades de aproximação reflexiva. Uma espécie de instalação performática de corpos inteiramente presentes e disponíveis. Prontos para questionarem todos os padrões estabelecidos, desde aqueles que podem ser mais pessoais, que passam pela discussão de gênero, até os econômicos e sociais.

Performances questionaram e quebraram padrões

Performances questionaram e quebraram padrões

Embora a questão de gênero tenha sido uma das vertentes que permeou praticamente todas as performances, é interessante notar como, de fato, a discussão não é se alguém é homem, mulher, transgênero, travesti. A mulher de seios, moicano, cabelo no sovaco e pau está ali para levantar outras problematizações, que vão além do seu direito de existir. O seu direito de existir é inalienável e a personificação dele de forma tão natural mostra o quanto a nossa sociedade está atrasada no que se refere ao respeito, à garantia de liberdades e igualdades.

A colonização, o capitalismo, as migrações, o consumo, a corrupção, todas essas questões estão intrinsecamente ligadas às performances dos artistas que se colocam na cena como ativistas. Um lugar onde é impossível dissociar a arte e o político no sentido mais amplo do termo. Recentemente, durante o 1º Encontro sobre Curadoria em Artes Cênicas, realizado pela Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), em parceria com o Goethe Institut e o Observatório dos Festivais, discutiu-se um texto do curador independente e dramaturgo Florian Malzacher, no qual ele retomava a ideia do teatro político na Europa nos anos 1970 e 1980, afirmando que à época, embora o teatro fosse capaz de propor uma compreensão das questões que estavam sendo discutidas, geralmente essa representação se tornava muito mais uma representação das misérias e das realidades que desejava combater.

As possibilidades hoje estão muito mais amplas e complexas quando pensamos no que significa teatro político. E o trabalho do coletivo La Pocha Nostra amplia nossas percepções com relação a uma arte capaz de trazer à tona questões da realidade, ligadas ao consumo, ao capital, às opressões, mas subvertendo o caminho, sem linearidades e enxergando o espectador como suficientemente preparado para lidar com as idiossincrasias que possam surgir a partir do trabalho. Embora alguns textos lidos durante a performance ofereçam caminhos (muito bem-vindos, inclusive), chaves interpretativas para que o público possa perceber todas aquelas ações e signos, há uma compreensão por parte do grupo, atuando de uma maneira não-autoritária, da emancipação do espectador, para lembrar um conceito de Jacques Rancière.

Público assistiu à várias ações simultaneamente, como uma instalação

Público assistiu à várias ações simultaneamente, como uma instalação

Caminhando por esses trilhos e ainda seguindo o texto de Malzacher (que faz parte do livro Not just a mirror, looking for the political theater of today), podemos pensar exatamente na situação do público dentro do universo das performances, da arte política, do ativismo. O autor diz que o teatro político contemporâneo precisa evitar uma falsa participação do espectador, mas ao mesmo tempo reivindicar a sua participação. Pensando na performance do La Pocha Nostra, percebemos de fato como os caminhos são múltiplos. Não é preciso que o público suba no palco para participar de uma ação, nem ao menos que seja tocado fisicamente (não que isso não possa acontecer e ser bastante interessante), para que aquele trabalho possa reverberar e se mostrar extremamente potente em significados e simbologias e o público esteja de fato numa situação ativa. Precisamos somente de espectadores disponíveis para enveredar por espaços de trânsito, especialmente transgressores e capazes de despertar novos sentidos. Assim como dizia uma placa que circulou com a ajuda do público, um local de “livre circulação de identidades complexas”, como a arte e o teatro.

Ficha técnica:
Criação Coletiva de Guillermo Gómez-Peña, Michèle Ceballos, Saul Garcia Lopez, Daniel B., Dani d’Emilia.

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***A cobertura crítica da II Bienal Internacional de Teatro da USP é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente. A DocumentaCena realizou coberturas da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, da MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Em busca de um novo homem

Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou, do coletivo A Motosserra Perfumada. Foto: Jennifer Glass

Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou, do grupo A Motosserra Perfumada.Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

O peso da masculinidade imposta historicamente pode despedaçar os órgãos de um cabra. Diante de tanta pressão, o cara pode perder, junto com o paradigma tradicional de virilidade, seus pedaços pelo caminho. O prejuízo finde a identidade. Extravio ou privação de pernas, fígado, braços, pênis, olhos que foram arrebatados com força (ou astúcia). É de forma radical e poética que o grupo A motosserra perfumada trata dessas questões. O coletivo arrisca uma pesquisa nos limites entre o teatro a e performance. Na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, a trupe estreou o primeiro espetáculo. A montagem Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou é um experimento híbrido, à beira da exaustão física e spoken word, essa palavra falada que ganhou força na cultura Hip Hop nos últimos tempos.

Depois da apresentação no Centro Cultural São Paulo, a peça começa nesta semana uma temporada no Subterrâneo Theatro Municipal, espaço underground paulistano e a moçada garante que lá o espetáculo vai proporcionar uma experiência mais radical, com a inserção de conteúdos mais fortes. A produção recomenda que o público use calçados fechados. Os personagens quebram coisas como vidros e tijolos.

Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou tem texto e direção de Biagio Pecorelli, que está no elenco do programa e é autor do livro de poemas Vários Ovários, publicado pela editora independente Edith. A peça é de uma verborragia apaixonante e questionadora dos desejos e explora as contradições dessa crise do masculino.

As performances são exibidas num longo corredor formado por espectadores dos dois lados. No centro, nesse tapete imaginário, os atores atuam. Uma banda, de um dos lados desse corredor toca rock, derrama poesia, fantasias, fragmentos de vidas.

Matheus, um homem despedaçado que persegue o que perdeu na vida, é defendido por vários atores. Ele quer recuperar seus olhos, entre outras partes do corpo, para conseguir chorar. Nesse percurso imaginário ele bate à porta de ex-namoradas, de garotos (de ou sem programa) que encontrou pelo caminho para matar o tédio.

Entre fios de recordações, estilhaços de mágoas, um quebra-cabeças é erigido nessa cidade “onde os fracos não têm vez”. A cena traz as sujeiras de cacos, de restos de consumo, a fragilidade de um homem frente a virilidade solicitada do vale-tudo do capitalismo da selva de pedra. Seus personagens caminham com suas incertezas desafiando os discursos de verdade e de opressão.

Banda de rock participa do espetáculo

Banda de rock participa do espetáculo

Uma mulher com uma preleção fascista encarna em sua fala aspectos retrógados que ameaçam a democracia. Seu discurso se posiciona contra mulheres libertárias, contra o aborto, as relações homoafetivas, as várias etnias, e defende uma arte absolutamente mercantil. Ela parece ter surgido do nada, como as vozes que ecoam pelo país em suas posições atrasadas.

Esse corpo masculino que padece é exposto em suas partes em ganchos de frigoríficos dispostos no cenário. As demandas contemporâneas produzem fragilidades no campo subjetivo. As relações efêmeras, a situação caótica, essa vida fragmentada produz instabilidade em todos. Mas esse masculino abalado em sua identidade viril abre espaço para essa investigação em Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou. Os atributos de coragem e valentia, do super-herói provedor, cede lugar a um mundo de sentimentos na peça, onde a fragilidade permite reflexões sobre guerras e violações, acidentes, condutas e sociais, atitudes sexuais.

O espetáculo reforça que feminilidade e masculinidade são construções culturais que sobrevivem em um determinado contexto. As tensões e conflitos podem gerar o desamparo. Como diz um trecho do texto, essas figuras correm sem cinto de segurança, usam aditivos para dar mais sentido à vida, procuram o amor com poesia, mas sem uma suposta caretice. Depois de tudo isso, alguém pode botar o pé no freio e chamar para a real.

O personagem Matheus é defendido por vários atores

O personagem Matheus é defendido por vários atores

A Motosserra Perfumada é formada por Alex Bartelli (ator e produtor), Biagio Pecorelli (poeta e ator), Camilla Rios (atriz), Felipe Vasconcelos (artista visual e performer), Hugo Cabral (pesquisador, cenógrafo e figurista), Jonnata Doll (ator e músico), Júlio Castilho – “Feiticeiro Julião” (músico) e Paula Micchi (atriz). Em outubro de 2014 o grupo foi contemplado pelo edita “PROAC – Primeiras Obras”, promovido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, para a montagem do texto inédito de Biagio Pecorelli.

Espetáculo tem dramaturgia e direção de Biagio Pecorelli

Espetáculo tem dramaturgia e direção de Biagio Pecorelli

ATUALIZAÇÃO:
Infelizmente, a temporada do espetáculo foi cancelada. No último domingo (15), o local onde aconteceriam as apresentações, a passagem subterrânea da Rua Xavier de Toledo, no Anhangabaú, foi invadido por integrantes de um movimento de ocupação intitulado Coletivo Laboratório Compartilhado TM13. De acordo com o grupo A Motosserra Perfumada, que prestou queixa na delegacia, os cadeados do local foram arrombados, os camarins foram revirados, sumiram objetos cênicos, figurinos, dinheiro, além da bebida que estava estocada para ser vendida durante a temporada. O dinheiro da bilheteria e da venda da bebida serviria para manter as apresentações, já que o grupo não teve apoio para temporada.

Confira aqui a carta aberta do grupo A Motosserra Perfumada.

Ficha Técnica
Criação: A Motosserra Perfumada
Dramaturgia e direção: Biagio Pecorelli
Elenco: Alex Bartelli, Biagio Pecorelli, Camilla Rios, Felipe Vasconcellos, Bruno Caetano, Jonnata Doll e Paula Micchi
Banda ao vivo: Jonnata Doll, Feiticeiro Julião, Edson Van Gogh e Augusto Coaracy
Direção de arte e figurinos: Hugo Cabral
Desenho de luz: Marcelo Lazzaratto
Trilha composta: Jonnata Doll e Biagio Pecorelli
Ilustração: Mozart Fernandes
Adaptação e operação de luz: Marcela Katzin
Técnico de som: Bruno de Castro
Fotos de cena: Marcos Lobo
Vídeo de divulgação: Saulo Tomé
Direção de produção: Alex Bartelli
Produção executiva: Leandro Brasilio e Marie Auip (Sofá Amarelo Produção e Arte)
Produção geral: AzAyAh P&C

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Construção de sentidos e verdades

Fidel-Fidel. Conflicto en la prensa, do grupo argentino El Bachín Teatro. Foto: Jennifer Glass

Fidel-Fidel. Conflicto en la prensa, do grupo argentino El Bachín Teatro. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

O grupo El Bachín abraça o “fidelismo”. E é desse lugar que a trupe portenha arquiteta os enunciados para discutir a construção da subjetividade, tendo como ponto de ancoragem as articulações da mídia e suas versões de fatos em progressão descolada de veracidade. “Que é a verdade?, disse zombando Pilatos e não esperou pela resposta”, registrou Sir Francis Bacon em seu Ensaio sobre a Verdade. Séculos depois, Jean Baudrillard (entre outros teóricos), aplica outra voltagem à representação de realidades expostas e embaralhadas pelos meios de comunicação.

No espetáculo Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa o grupo argentino, que participou da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, investiga como o senso comum é erigido, produzido como fator da classe dominante. Então, averigua a relação do jornalismo, ou os mass mídia no sentido mais amplo, com a política, a verdade, o poder, e o simulacro de “giro linguístico”. Mas a peça também sinaliza que corre subterrâneo uma outra peleja cultural, em chave dialética, que busca construir outros sentidos.

A ação de Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa se passa na véspera do dia 1º de janeiro de 1959, na redação de um jornal argentino. Naquela noite, entre máquinas de escrever e notícias captadas em ondas curtas, telefonemas sobre questões pessoais e coletivas, cinco indivíduos convivem com a expectativa e a previsão do futuro. O dia irá amanhecer com o triunfo da Revolução Cubana.

As informações a conta-gotas que chegam ao jornal estabelecem uma crise na redação. Esse tal de Fidel Castro é o detonador de uma mudança que ocorrerá no mundo e uma metáfora. Manuel Santos Iñurrieta assina a direção e o texto. O grupo percorre um caminho de ideias não convencionais, argumentos com engajamento ético e militância política, mirando o “vale tudo” pós-moderno.

Os personagens adotam posições divergentes quanto ao que ocorre naquela desconhecida ilha do Caribe e exacerbam suas posições políticas, desde a manutenção do colonialismo às utopias de libertação. É um dia histórico, a noite anterior da tomada de poder, no Palácio de Moncada. O grupo de jornalistas espera com ansiedade por notícias; um deles faz aniversário, uma entra em trabalho de parto, outro busca prever o futuro com sua bola de cristal.

A ação da peça se passa na véspera do dia 1º de janeiro de 1959

A ação da peça se passa na véspera do dia 1º de janeiro de 1959

Esse procedimento de adivinhar o amanhã também faz um paralelo com os fenômenos como os “simulacros” – que se tornam mais sedutores ao espectador do que o próprio objeto reproduzido – e uma mutação que conduz o real ao hiper-real. E principalmente a manipulação dos meios de comunicação.

A redação se torna também a toca de resistência peronista. Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa exalta o jornalismo “militante” contra o cinismo dos que defendem o simulacro vazio de realidade. Eles advogam o lema “Jornalistas recusam a mentir”. No jogo dramático a obra adota uma postura um pouco extremista. Os personagens proferem a frase “periodista que miente que se quite la vida”. Verdades e mentiras se misturam nos jogos teatrais. A peça cita as figuras Rodolfo Walsh e Jorge Masetti, dois jornalistas argentinos que se envolveram diretamente no espírito revolucionário, fundaram a agência de notícias Prensa Latina e se tornaram referências para seus pares.

O tom farsesco adota a política como algo indissociável da atuação humana. Nos quinze anos de trajetória (2001-2015), o bando sofreu e lutou contra os processos sociais e culturais do pós-neoliberalismo na Argentina. Os atores da El Bachin – Manuel Santos, Carolina Guevara, Jerome Garcia, Julieta Grinspan, Marcos Peruyero e Federico Ramón fazem da política a poética do palco, apontando para as contradições do capitalismo.

A companhia trabalha a partir do dramaturgo alemão Berltod Brecht e seu teatro político. E em Fidel Fidel. Conflicto en la prensa hibrida com a pop teatralidade, realismo crítico, o expressionismo, o hiper-realismo, o absurdo, a história e a metateatralidade. Humor e ironia escorrem entre gestos e falas.

Personagens estão na expectativa da Revolução Cubana

Personagens estão na expectativa da Revolução Cubana

Os personagens elaborados a partir da caricatura, do grotesco, dos velhos cômicos, formam seres absurdos, acelerados, que parecem manipuláveis em seus gestos como os bonecos do teatro de mamulengo, figuras atravessadas pela teatralidade máxima. Com suas perucas pretas diferentes de cabelo, seus figurinos de tonalidade cinza, inclusive para o Papai Noel. A iluminação joga com o contraste, com a semiescuridão, promovendo recortes como ocorrem nas edições no jornalismo.

Entre diálogos disparatados, o grupo refaz as dobras da história e utiliza fontes de áudios conhecidos, fotos e gravações e vídeos, traçando ligações também com mundo em que vivemos. Nesses tempos chamados pós-utópico, a El Bachín revê as utopias. Se algumas falharam, como a utopia socialista de gerar sociedades justas e sem classes, parece que o grupo aponta para o que Paulo Freire chamou de utopias minimalistas, aquelas que realizam o “possível viável”.

Ficha técnica
Texto, encenação e direção geral: Manuel Santos Iñurrieta
Elenco: Manuel Santos Iñurrieta, Carolina Guevara, Jerome Garcia, Julieta Grinspan, Marcos Peruyero e Federico Ramón
Música original: Juliet Grinspan e Paul Grinspan
Arranjos e interpretação: Paul Grinspan
Figurino: Agustina Filipini
Perucas: Alejandra Maria Alonzo
Cenografia: Marcos Peruyero – o Bachin teatro
Iluminação: o teatro Bachin
Áudios e vídeos: Jerónimo García
Assistência técnica: Marina Garcia e Diego Maroevic
Fotografia: Nicholas F. Branco
Imprensa: Deborah Lachter

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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