Arquivo da tag: crítica

Corpo estranho, lírico e político
Crítica do espetáculo E.L.A

E.L.A Foto: Guilherme Silva

E.L.A é primeiro solo da atriz cearense Jéssica Teixeira. Tem pouco a ver com o Ela (Her)¸ do diretor e roteirista Spike Jonze, que explora a relação de um homem que se apaixona pelo sistema operacional de uma máquina. O filme expõe a solidão contemporânea e novas configurações de relacionamento amoroso. Se pensarmos em esgotamento de modelos há sempre fios de conexão nas investigações artísticas atuais. Cito a obra cinematográfica por conta do nome da peça. O título do espetáculo remete à abreviatura de uma doença: Esclerose Lateral Amiotrófica – ELA.

Segundo informações em sites de saúde, trata-se da degeneração progressiva dos neurônios motores no cérebro e na medula espinhal. Isso quer dizer que esses neurônios não conseguem transmitir os impulsos nervosos de forma adequada. Essa degeneração provoca atrofia muscular, seguida de fraqueza muscular crescente. Também designada de Lou Gehrig, calcula-se que, no Brasil, 10 mil pessoas têm a doença.

Num mundo tão preconceituoso com os que não estão dentro de uma bolha hegemônica, vale destacar que Ela não atinge o raciocínio intelectual, a visão, a audição, o paladar, o olfato e o tato. E que, em grande parte dos casos, a esclerose lateral amiotrófica não afeta as funções sexual, intestinal e vesical.

O astrofísico britânico Stephen Hawking foi diagnosticado com a doença quando tinha 21 anos de idade. Mesmo sem poder movimentar o corpo ou falar durante a maior parte de sua vida, o cientista avançou em pesquisas na Física, com destaque para os trabalhos sobre as origens e estrutura do Universo, fundamentais para entender o papel dos buracos negros.

Atriz Jessica Teixeira. Foto: Carol Veras

Eu me tornei um ser indiscernível. Não pertenço a mim mesma”, registra uma fala do espetáculo. “Não queremos ver coisa alguma. Não queremos que as coisas nos vejam. Como Narciso, que recusa o espelho. Como Salomé, que decepa a própria cabeça”.

Ao tratar de assuntos relacionados diretamente ao corpo – beleza, saúde, política, feminilidade -, a artista envereda pela dinâmica da exclusão capitalista. É perversa e calculada essa eliminação de corpos que tem algumas miras prioritárias .

“Pudesse ser apenas um enigma. Mas não. O corpo faz problema. O corpo dá trabalho. Pode ser muitos. Pode ser, inclusive, o que não queremos. O corpo será sempre o que ele quiser? É social. É político. É tecnológico. É inconsciente. Pensamento. Desejo. Invisível. Invasor. O corpo se despedaça. É estrutura. É movimento. Mas, sobretudo, é estranho. Eu sou o outro e a outra. Teimo e re-existo. Ele se degenera e E.L.A se faz impossível”.

Texto de apresentação do espetáculo

Ao carregar episódios biográficos, a atriz traça em paralelo uma linha histórica desde o corpo da Grécia, encontrando as guerras mundiais e as ações mais recentes.

Jéssica fala sobre beleza, outras formas de beleza, jeitos de estar no mundo. Faz do seu corpo um ato político. Subverte lógicas. Convoca o protagonismo para si. Esquadrinha a ditadura do corpo bonito e funcional, aquele que não se encaixasse nessa régua seria exterminado.

A artista desafia a regra e assume sua diferença. A beleza da sua diferença exposta em cena para deslocar olhares contaminados. Jéssica convoca um olhar lírico para um lugar ético, onde os corpos importam em suas singularidades, sem hierarquizações de lutas contra as opressões.

O espetáculo não apresenta propriamente uma história. São fragmentos trançados por uma lógica de luta, em várias angulações e miragens. Com a utilização de vídeos e imagens em foto, a atriz cita, por exemplo, Josef Mengele – oficial alemão da Schutzstaffel (SS) e médico no campo de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial – que liderou os procedimentos científicos em pessoas que aparentassem algum caractere de deficiência física ou psíquica, adotando o método da eutanásia.

Em seguida, projeta robôs com camisas da seleção canarinha a defender nas ruas o indefensável. Triste Brasil.

Sabemos que as técnicas de extermínio foram sofisticadas e até mesmo legalizadas com manobras do Judiciário, Legislativo e Executivo. Os golpes na economia – previdência, direitos trabalhistas, direitos à saúde; redução de acesso a educação,cultura, futuro, comprometimento das reservas naturais e atentados contra o meio ambiente são mecanismos de aniquilamento de corpos indesejados.

 

E.L.A . Foto: Carol Veras

No escuro, uma voz com ligeiro sotaque cearense mergulha na subjetividade de autoimagem e autocrítica para construir uma narrativa. A voz quer que entendamos o corpo, suas dores, limites e prazeres. Que haja um diálogo honesto com outros corpos.

São alguns minutos. De repente, o espetáculo dirigido por Diego Landin, explode num clarão, um branco chocante que de imediato irrita e machuca os olhos de quem vê. Esse choque gera uma sensação de desconforto. Jéssica também sente desconforto quando seu corpo singular, estranho, com o tronco reduzido – esse registro diferente do convencional – chega antes dela para dizer um oi.

Entremeando dados sobre uma possível história dos impositores da beleza, a atriz assume pose de diva pop, desafiando as convenções do olhar atua como ciborgue e vai desconstruindo uma estética. A protagonista acende que é o mesmo patamar de opressão de que são vítimas mulheres, nordestinos, pretos, indígenas, quilombolas, indivíduos com algum tipo de deficiência, periféricos e LGBTs.

O teatro é uma máquina muito poderosa. E.L.A tem um figurino-síntese da peça, criativo, delicado e agressivo, de Yuri Yamamoto, do Grupo Bagaceira de Teatro, que também assina a direção de arte. A iluminação, de Fábio Oliveira, com videomapping, contracena com a atriz. E os músicos Fernando Catatau e Artur Guidugli estão na composição da música Dancing Barefoot.

A montagem mescla momentos de ataque combativos e outros mais líricos, de uma história geral do corpo, às especificidades da trajetória de Jéssica. A artista é muito generosa ao desenhar como os poderosos elegem seus alvos de destruição, das ameaças de manda-chuvas e políticos à saúde do povo.

Com arte, energia, vigor Jéssica celebra a vida. É testemunha de que a vida é extraordinária em muitos aspectos. E comenta quão valioso é estar presente, com a possibilidade de se reinventar e, com muita criatividade, ativar os sentidos.

Ficha Técnica
Elenco: Jéssica Teixeira
Direção: Diego Landin
Diretor de arte: Yuri Yamamoto
Diretor de videomapping: Pedro Henrique
Consultora dramatúrgica: Maria Vitória
Figurinista: Yuri Yamamoto e Isac Bento
Coreógrafa: Andréia Pires
Vocal coach: Priscila Ribeiro
Escultor: Kazane
Trilha Sonora: Diego Landin (Dancing Barefoot por Fernando Catatau e Artur Guidugli)
Cenotécnico: Marsuelo Sales
Iluminador: Fábio Oliveira
Videoclipe: Gustavo Portela
Música do videoclipe: Saúde Mecânica de Edgar
Textos: Jéssica Teixeira, Vera Carvalho e fragmentos de Eliane Robert Moraes e Paul Beatriz Preciado
Produção: Jéssica Teixeira
Realização: Catástrofe Produções

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Pessoa, perdoe a falta de abraço

Carlos Paulo no espetáculo Do Desassossego. Foto: Ivana Moura

Carlos Paulo no espetáculo Do Desassossego. Foto: Ivana Moura

Há 15 anos Carlos Paulo interpreta Do Desassossego. Foto: Ivana Moura

Há 15 anos o ator português  interpreta Bernardo Soares. Foto: Ivana Moura

“O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas cousas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual […]”
                                                                                   Fernando Pessoa, Carta a Adolfo Casais Monteiro                                                                                    Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

 

O ajudante de guarda-livros Bernardo Soares vive e trabalha na Baixa lisboeta. É cinzenta a paisagem humana e citadina que o rodeia. Dos cafés que frequenta ao escritório da Rua dos Douradores. De figuras como o patrão Vasques, o Moreira ou o moço de fretes. Solitário, mora num quarto alugado. Essa “personalidade literária” troca ideias sobre prosa e poesia com o próprio criador, o escritor Fernando Pessoa (1888 -1935). Os fragmentos literários de Bernardo Soares compõem o Livro do Desassossego. A partir de algumas passagens desses textos o Comuna — Teatro de Pesquisa, grupo com 45 anos anos de existência / resistência, estreou em 2001, em Lisboa, o espetáculo Do Desassossego.

O ator Carlos Paulo atua na peça Do Desassossego há 15 anos. A montagem foi vista por mais de 30 mil pessoas e já rodou por vários países durante esse tempo, na maioria das vezes em espaços pequenos, aconchegantes, intimistas, que criam uma ambiência de cumplicidade.

Com direção de João Mota, cabe a Carlos Paulo conduzir a plateia pelas aflições e intranquilidades de alma e de corpo que pulsam das palavras de Pessoa. O intérprete, que conta com a participação do músico Hugo Franco, se multiplica em seis personagens/ arquétipos: o Escriturário, a Criança, o Mendigo, o Palestrante, Homem/Mulher e Revoltado.

A montagem foi exibida ontem, no Teatro de Santa Isabel, dentro da programação do 23º Janeiro de Grandes Espetáculos. Não funcionou em sua plenitude. As condições materiais (escolhidas e/ou oferecidas) desfavoreceram a fruição. Por alguns motivos. A interpretação intimista, muitas vezes sussurrada, do ator exigia potentes microfones e/ou um espaço menor, que permitisse uma proximidade quase tátil com a plateia.

Quase no escuro em algumas cenas. Foto: Ivana Moura

Quase no escuro em algumas cenas. Foto: Ivana Moura

A luz baixa, quase em resistência, também dificultou, e para quem estava nas poltronas mais distantes do palco, impediu mesmo, de apreciar os detalhes interpretativos do rosto do ator.  E essa penumbra não convenceu como uma opção de dramaturgia da iluminação, como ocorre com o encenador brasileiro Roberto Alvim, que radicaliza nesse quesito do quase escuro. Além disso, o sotaque português, carregado demais neste papel e muitas vezes acelerado, embaralhou a escuta.

Carlos Paulo exibiu também neste Janeiro o recital poético Homenagem a João Villaret, (confira crítica: Poesia da cena portuguesa) junto com a atriz/cantora Tânia Alves e o músico Hugo Franco. Foi no Hermilo Borba Filho, um teatro menor do que o suntuoso Santa Isabel. Utilizando microfones, as mesmas entonações carregadas de sotaque português de Portugal ganharam uma audição melhor pela propagação do som e a dicção menos acelerada, o que resultou numa apresentação mais envolvente. 

O estilo discreto, sóbrio de atuar de Carlos Paulo ganha em Do Desassossego aspectos doces e tristes. Com alguns momentos irônicos e engraçados. Mas o que predomina é uma tensão dolorida, uma dramaticidade para refletir o que há de mais profundo das emoções humanas, avizinhadas pelo tédio ou pelo sentido de inutilidade. O músico faz o papel de Fernando Pessoa, que com a execução musical rasga ou preenche silêncios, evidencia mutações, baliza os ritmos.

Carlos Paulo no espetáculo Do Desassossego. Foto: Ivana Moura

Montagem da Comuna de Lisboa. Foto: Ivana Moura

Do Desassossego é um espetáculo de sensações. Há a orfandade original da Criança, a invisibilidade do Mendigo, a solidão do Escriturário. Em Homem/mulher no espelho, Bernardo Soares nega para si, o amor cúpido, de índole sexual.

“Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós… E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria…”

É uma obra pungente, em que o ator na pele do escriturário da rua dos Douradores, expõe as profundezas, a essencialidade da existência. E a encenação pesca essa paixão pelo sagrado no humano. E que a partir do desassossego possa ser erguida a esperança. No futuro, no ser, no teatro.

SERVIÇO
Autoria: Bernardo Soares e Fernando Pessoa
Adaptação: Carlos Paulo
Versão cênica e encenação: João Mota
Operação de luz e som: Paulo Graça
Técnico de montagem: João Monteiro
Gabinete de produção Comuna: Rosário Silva e Carlos Bernardo
Produção executiva da itinerância: Andrêzza Alves e Rosário Silva
Produção local Recife: Companhia Circo Godot de Teatro
Trilha sonora e músico: Hugo Franco
Figurinos e interpretação: Carlos Paulo
Personagem muda: Miguel Sermão e João Monteiro

Postado com as tags: , , , , , , , ,

O Encosto é mais cruel na vida real

Jr. Sampaio em O Churrasco. Foto: Joao Guilherme de Paula

Júnior Sampaio em O Churrasco. Foto: João Guilherme de Paula

O ator Júnior Sampaio entra em cena visivelmente nervoso e reforça esse palpite com a confissão de que está preocupado com o fenômeno teatral daquela noite. Pede a um espectador para segurar sua garrafinha d’água, a outro para acompanhar o texto e servir de ponto (caso ele erre alguma parte) e ao terceiro para guardar uma banana prata que ele trouxe para comer depois da sessão, já que é uma fruta com muito potássio. Já envolveu e tornou cúmplice a plateia com esse procedimento, que foi milimetricamente estudado.

Inteligente e esperto esse salgueirense radicado em Portugal. Na peça O Churrasco, ele interpreta um insólito churrasqueiro que diz que seu destino é aguardar a chegada da carne para matar a fome da humanidade. Mas a figura não leva em consideração os vegetarianos.

O espetáculo foi apresentado nos dias 13 e 14 deste mês, no Teatro Marco Camarotti (SESC Santo Amaro), no Recife, e faz mais uma sessão nesta sexta-feira em Caruaru, no Teatro Rui Limeira Rosal (SESC Caruaru), dentro do 23ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Pretensioso esse personagem, que oscila entra a arrogância e a modéstia. E que projeta no mundo variações do seu próprio umbigo. Mas será que não somos feitos dessa matéria? Só nos conectamos e reconhecemos frações de nós mesmos? Assunto para matutar. Desejamos nos relacionar de forma plena com o outro? O teatro pode ser um bom lugar dessa dessa troca subjetiva.

As “almas sentadas” acompanham o embate do Churrasqueiro com seu Encosto. A peleja é entre Auxivites, que garante que é um ser humano mesmo com o nome que carrega, e o Encosto, que nasceu em 20 de abril de 1889. “Vocês já sabem quem é este Encosto? Sabem ou não sabem? Se não sabe, estudem!”, provoca o personagem.

Com o palco limpo, apenas um tapete no chão e poucos objetos, as mudanças de clima são pontuadas pela luz, que também materializa a fogueira. O ator está vestido de uma bermuda e uma camiseta de marca, uma marca que grita em algum momento dentro desse discurso crítico.

Enquanto aguarda o carga de carne que encomendou, o Churrasqueiro discorre sobre variados assuntos. De sua origem de filho do cornudo com a vaca. “O meu pai, o cornudo, morreu queimado, deve ser isso que resolvi ser churrasqueiro”. Passando por reflexões sobre democracia, capitalismo, pobreza, opinião alheia, direito de ter filho.

Mas também define o Encosto: “Eu penso que nenhuma criatura neste mundo tem o direito de fazer o que tu fizeste. Deve ser por isso que tu não consegues reencarnar. Alma penada! Eu sei que todos merecem o perdão, mas eu não sou Cristo, apesar de ter dito que era, sou apenas um cristão discreto”.

O tom é de deboche, há ironias estendidas nas frases e intenções. Nada é demasiadamente denso. Mas instiga o espectador a explorar, e se deixar abalar das convicções arraigadas.

As balizas “cristãs” do que se entende por carne versus espírito avançam por caminhos que remetem para o mundo real ameaçado pela cobiça e pela concentração de riquezas nas mãos de poucos. Uma criatura pode num acesso de fúria fazer voar o nosso belo planeta, expõem as manchetes dos jornais do mundo inteiro, de forma velada ou nem tanto. “Que todas as fúrias do céu caiam sobre a raça dos poderosos! Que rolem as cabeças dos ditadores e dos delatores diante dos meus pés”, pontua Auxivites a certa altura.

Júnior Sampaio em O Churrasco. Foto: CMV / Divulgação

Cena despojada da montagem do português de Salgueiro.         Foto: CMV / Divulgação

Em O Churrasco, a literatura dramática atua como principal elemento organizador da encenação. Mas a alocução construída clama por ser chocalhada pelos possíveis coautores da escritura teatral, o público. O autor/ intérprete convoca a plateia a produzir significações e exercer sua liberdade para não aceitar os sentidos unívocos captados à primeira camada.

A arte de Júnior Sampaio trabalha com pequenos mecanismos contra a alienação. Sua dramaturgia formada por três dezenas de peças não descarta o divertimento, nem a ludicidade, mas persegue o essencial de uma apreciação do mundo e da crítica ao humano.

As frases de efeito do texto, as alusões a conceitos de pecado e perdão funcionam como trampolim para outras transgressões. Com sotaque português e alma que eletriza, Sampaio ficcionaliza suas demandas artísticas para tratar da vida.

O ator fisga em pequenos gestos, detalhes, coreografias corporais a sua fome de palco. E dispara em palavras as urgências políticas para nos assustar com o contemporâneo. “Todos nós temos uma ambiguidade”, vomita lá o Churrasqueiro. Para depois considerar: “Nem todo ser humano é humano”. Temo chegar a concordar com essa conclusão do filho da vaca com o cornudo. Enquanto aprecio o sobrevoo que esse intérprete cativante faz sobre os aspectos da prática da cena contemporânea na companhia de figuras como Samuel Beckett e Eugène Ionesco.

FICHA TÉCNICA
Texto, músicas, encenação e vivência cênica: Júnior Sampaio
Supervisão cênica, cenografia e pintura cenográfica:Leonardo Brício
Desenho de luz:Leonardo Brício e Júnior Sampaio
Técnicos de luz:Luciana Raposo e João Guilherme de Paula

SERVIÇO
O Churrasco – ENTREtanto TEATRO (Valongo/Portugal)
Onde: Teatro Rui Limeira Rosal (SESC Caruaru)
Quando: Dia 20 de janeiro de 2017 (sexta-feira), às 20h
Quanto: R$: 10,00 (Inteira) e 5,00 (Meia)
Classificação etária: a partir dos 12 anos
Duração:50 min.
Classificação etária:a partir dos 12 anos

Postado com as tags: , , , ,

Poesia da cena portuguesa

Recital do Teatro Comuna. Foto Pedro Portugal / Divulgação

Recital do Teatro Comuna. Foto Pedro Portugal / Divulgação

Em princípio, Homenagem a João Villaret inspirou desconfiança desde o título, pelo tom laudatório. Quem é essa criatura a merecer tão honrosos agraciamentos, mais de 50 anos após sua morte? E ainda mais sendo um artista da cena…

O Brasil é um país de pouca memória, mas os portugueses parecem perceber a importância de cultuar os seus grandes. Pelo menos é o que faz o da Comuna – Teatro de Pesquisa, de Lisboa. Mas outra cisma ficou instalada a partir da fotografia do espetáculo. Dois atores sentados em banquinhos com estantes de partituras à frente, e um músico no meio, com um cartaz do celebrado por trás.

Aos poucos a apreensão cede lugar a um envolvimento afetivo com o personagem da reverência. É um recital poético clássico, sem aparatos tecnológicos ou pirotecnia.
Em primeiro plano está a história desse ator, diretor e declamador português João Villaret (1913-1961). Histórias para quem gosta de saber de gente, exposta de forma praticamente cronológica pelos atores / cantores Carlos Paulo, Tânia Alves e o músico Hugo Franco.

A poesia das palavras, das entonações carregadas de sotaque português criam redes de afetos para confraternizar com o público. Esse visionário que queria ser bailarino quando criança, se entregou ao teatro e à poesia com força e dedicação. Ator que valorizava a palavra criou até um gênero, o fado falado.

Alternando episódios, canções e até uma gravação da voz do próprio Villaret, somos contagiados pela paixão desse criador irônico, bem-humorado, irreverente, que usava as armas da palavra para combater o fascismo, que aproveitou a chegada da televisão para divulgar a poesia. Na final da década de 1950, ele conduzia um programa semanal, acompanhado pelo pianista Carlos Mayer, seu irmão.

Como talvez soubesse que a vida é curta (ele morreu aos 47 anos) ele empreendeu muitas turnês teatrais, inclusive pelo Brasil, com suas revistas de críticas políticas e sociais.
Sua dicção permitiu que ele fosse sempre aplaudido ao declamar Fernando Pessoa, o que passou até a ser imitado. Ele sugeriu que cada um encontrasse sua própria emoção para expressar os sentimentos dos poetas.

E é justamente ao contar o episódio do encontro de Villaret com Fernando Pessoa que os intérpretes transportam a plateia para Lisboa. Eles falam, o músico toca e nós viajamos no tempo. E saímos do teatro com a alma amaciada.

FICHA TÉCNICA
Concepção: Carlos Paulo
Interpretação: Carlos Paulo e Tânia Alves
Músico: Hugo Franco
Direção técnica: Hugo Franco
Técnico de montagem: João Monteiro
Gabinete de produção Comuna: Rosário Silva e Carlos Bernardo
Produção executiva da itinerância: Andrêzza Alves e Rosário Silva
Produção local Recife: Companhia Circo Godot de Teatro

SERVIÇO
Homenagem a João Villaret, dentro do 23º Janeiro de Grandes Espetáculos
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quando: Dias 17 e 18 de janeiro de 2017 (terça e quarta-feira), às 20h
Quanto: R$: 30,00 (Inteira) e 15,00 (Meia) 
Classificação etária: a partir dos 12 anos
Duração: 50 min.

Postado com as tags: , , , , ,

Risíveis passos das criaturas de Deus

Cabaré da Humanidade Fotos: Wellington Dantas/Divulgação

Cabaré da Humanidade. Fotos: Wellington Dantas/Divulgação

Nos últimos anos, os musicais brasileiros – franqueadas ou versionados (Hello Gershwin (1991), As Malvadas (1997), Os Produtores (2008), Cabaret (2011), O homem De La Mancha (2013), Chaplin – O musical (2015), dentre muitos outros); biográficos (Tim Maia, Cassia Eller, Wilson Simonal, Rita Lee, Chacrinha, Cazuza, Luiz Gonzaga e Elis Regina) – viraram fenômenos de bilheteria. O público se identifica com o gênero que mistura dança, canto, música e interpretação. Que utiliza poderosos efeitos visuais, figurinos e cenário e em alguns casos até efeitos especiais. Criatividade ajustada com tecnologia para emocionar plateias, desde temáticas infantis como a Bela e a Fera e O Mágico de Oz; passando por questões políticas como Hair; até peculiaridades como O violinista no telhado ou Cats.

Um boom ocorrido no início do século 21 mostra que esse exemplar da indústria cultural movimenta fábulas de dinheiro e incentivou na consolidação de mão de obra qualificada.

Desde As surpresas do Sr. José da Piedade, de Justino de Figueiredo Novais, em 1859, a trajetória do Teatro de Revista passou por várias fases. Foi olhado de viés, como uma manifestação menor – burletas, comédias musicais e revistas, mas ganhou o público. Depois de um recuo na década de 1970, veio a retomada com montagens como Elas por Ela, com Marília Pêra, de 1989, seguida de crescente profissionalização.

Existem pesquisas sobre o assunto como Breve história do Teatro Musical no Brasil, e compilação de seus títulos (https://www.revistas.ufg.br/musica/article/view/42982/21533), o livro da pesquisadora Neyde Veneziano O Teatro de Revista no Brasil: Dramaturgia e Convenções (Sesi – SP Editora), entre outras coisas.

Montagem utiliza coreografias simples. Fotos: Wellington Dantas/Divulgação

Montagem utiliza coreografias simples. Fotos: Wellington Dantas/Divulgação

Mas essas citações são para pensar sobre a montagem Cabaré da Humanidade, produção da Niño de Artes Luiz Mendonça, do Rio de Janeiro). A peça foi apresentada no Teatro Luiz Mendonça (Parque Dona Lindu), nos dias 13 e 14 de janeiro e faz mais uma sessão nesta quarta-feira no braço da programação de Caruaru, no Teatro Rui Limeira Rosal (SESC Caruaru), dentro do 23ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Com texto de Luiz Carlos Niño (1965-2005), músicas de Luiz Carlos Niño e Núbia Moreira e direção de Ilva Niño e Josué Soares, a peça tenta dar conta do trajeto das criaturas de Deus, como diz o título, a partir de pequenos esquetes. A “comédia musical resgata a estrutura do teatro de revista” para criticar, de forma bem-humorada, a sociedade atual, divulga a produção.

O musical não utiliza escadarias, plumas e paetês em abundância, muitas luzes. A aparência de luxo e de sensualidade ficam bem distantes da encenação.

Com um palco limpo, apenas o nome cabaré ao fundo, que remete para uma “boate” decadente ou para as produções politicamente pobres da década de 1970, vemos um quadro atrás do outro, em que Deus mulher peleja com Lúcifer sobre a criação, ou a dona do Cabaré Madame Satã, famoso inferninho da Lapa, rememora os passos dos humanos e suas risíveis ambições e ganâncias.

Pequenas cenas ou imagens-clichês aludem as mudanças do matriarcado para o patriarcado, Revolução Industrial, ascensão da burguesia e o proletariado, guerras mundiais, cinema. A enorme boca de cena do Teatro Luiz Mendonça ainda retarda o ritmo das passagens de quadro, pouco ágeis.

Cena do concurso de miss mundo. Fotos: Wellington Dantas/Divulgação

Cena do concurso de miss mundo. Fotos: Wellington Dantas/Divulgação

Os elementos da montagem são todos precários. Os figurinos são estereotipados e o próprio elenco satiriza disso. A luz é problemática, a gravação do som traz as marcas do século passado. As atuações se revezam com as danças. Há falas irônicas, duplo sentido, um pouco de escracho, mas não muito. Há inclusive uma simulação do nu explícito, com um strip-tease fajuto (porque não chega a ocorrer) e engraçado.

Mas sem o luxo das superproduções, sem os homens e mulheres sarados, sem as coreografias espetaculares de alguns musicais, sem os cenários e figurinos para encher os olhos. O que tem esse espetáculo de especial?

Cabaré da Humanidade Fotos: Wellington Dantas/Divulgação

Ilva Niño atuou no palco que leva o nome do seu marido, o Teatro Luiz Mendonça, no Recife

Além da sátira social e política em doses homeopáticas nos diálogos ou pequenas falas, pois o texto tem uma pulsação inteligente, o que me parece maior é a força da atriz Ilva Niño. Aos 83 anos ela dá lição de que é possível fazer qualquer coisa com garra, alegria e determinação. Ela compensa as limitações de agilidade no deslocamento com técnica, um timing da comédia. E é especial por toda a história de luta que essa pernambucana de Floresta carrega, dos enfrentamentos políticos às vitórias pessoais.

E como ela estava feliz ao encenar no teatro que leva o nome do seu marido, o dramaturgo e diretor Luiz Mendonça (1931-1995). Ambos fugiram do Recife devido às ações do regime militar de 1964, que perseguiu os atuadores Movimento de Cultura Popular (MCP), criado na primeira gestão de Miguel Arraes como prefeito do Recife. Linda sua emoção.

Na primeira cena, em que o locutor avisa que a peça vai atrasar porque uma das atrizes não chegou, ela entrou brincando que morava no subúrbio do Recife, pegou ônibus e metrô para chegar, mas que naquela noite iria dormir na casa de Leda Alves (a secretária de Cultura do Recife, que estava na plateia). Depois apareceu de Cleópatra para disputar o papel de vedete, de japonesa para concorrer a miss mundo e deu a dica: “Primeiramente…”

Cabaré da Humanidade Fotos: Wellington Dantas/Divulgação

Ilva Niño no papel de Cleópatra. Foto: Wellington Dantas/Divulgação

A equipe sabe da fragilidade material da produção e brinca com isso. Muita coisa não funciona, como as cenas de plateia. Mas no elenco tem atores empenhados.

É interessante o adiamento da participação do personagem Jesus no espetáculo. Por três vezes, ou mais, ele vem reclamar com o Pai / Mãe a sua vez de entrar em cena, sempre protelada. Numa das vezes Deus diz que ele é muito carente e que aguarde sua vez.

E a peça fica muito extensa. Eles dizem que o espetáculo precisa terminar. Pular alguns episódios dessa trajetória humana sobre a Terra. E ao contrário do que está pichado nos muros da cidade, no Cabaré da Humanidade, Jesus não tem chance de voltar.

Como exemplo do que defende o produtor Paulo de Castro, o Janeiro de Grandes Espetáculos é um guarda-chuva generoso, onde cabem as mais diversas manifestações cênicas.

Ficha Técnica
Texto: Luiz Carlos Niño
Músicas: Luiz Carlos Niño e Núbia Moreira
Direção: Ilva Niño e Josué Soares
Direção musical: Lucina
Coreografia: Jandir Di Angelis
Cenografia: Vera Monteiro
Iluminação e operação de som: Josué Soares
Operador e montador de luz: Celso Rodrigues
Arranjos musicais: Lucina e Saulo Battesini
Vinhetas musicais: Beto Menezes
Produção musical e instrumentos: Saulo Battesini
Operador de som: Rodrigo Telles
Operador de luz: Drigo de Lisboa (EAT)
Visagismo: Ilva Niño
Elenco: Ilva Niño, Bruno de Aragão, Flávio Lázaro, Júlio Wenceslau, Márcia Valéria, Rita Grego, Rodrigo Telles e Vera Monteiro

SERVIÇO
Cabaré da Humanidade – Niño de Artes Luiz Mendonça (Rio de Janeiro/RJ)
Onde: Teatro Rui Limeira Rosal (SESC Caruaru)
Quando: Dia 18 de janeiro de 2017 (quarta-feira), às 20h
Quanto: R$ 30,00 (Inteira) e 15,00 (Meia)
Classificação etária: a partir dos 14 anos
Duração: 1h30

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , ,