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Companhia francesa Ktha seleciona elenco recifense

Montagem de On Veut em Séoul, na Coreia do Sul, em 2023. Foto: Reprodução

Espetáculo On Veut apresenta uma lista de desejos coletivos. Foto: Reprodução 

Uma convocatória está aberta para seleção de artistas pernambucanos para integrar o espetáculo da companhia francesa Ktha durante o 24º Festival Recife do Teatro Nacional, programado para novembro. A iniciativa faz parte da temporada Ano Cultural Brasil-França 2025, um intercâmbio cultural oficial entre os dois países que promove colaborações artísticas bilaterais ao longo do ano.

Conforme anunciado pela Secretaria de Cultura do Recife no perfil do Instagram culturadorecife : “Atenção, trabalhadores da cena e das cênicas recifenses! Trazemos duas boas novas sobre a 24ª edição do Festival Recife do Teatro Nacional. A primeira é que a programação gratuita, que será realizada em novembro, pela Prefeitura do Recife, contará com a participação da companhia francesa Ktha, que fará sua estreia na capital pernambucana, apresentando-se em espaço público, acessível a todas as plateias, com o espetáculo A Gente Quer / On Veut. A segunda é que o grupo está em busca de elenco recifense para a curta temporada de dois dias, que fará durante o festival..”

Para se candidatar, os interessados devem enviar carta de interesse, foto e mini bio (não são necessários portfólio, nem vídeos) para o e-mail projetoagentequer@gmail.com, com cópia para festivalteatronacionalrecife@gmail.com, até o próximo dia 10 de setembro. Um aviso importante da organização: é necessário que os interessados tenham disponibilidade para trabalhar com a companhia, em tempo integral, de 10 a 23 de novembro, e também que tenham boa memória, porque o texto é longo. O resultado da seleção, feita pela própria companhia, será anunciado por e-mail. Uma reunião on-line já está agendada para o dia 24/09, às 9h30, com as pessoas selecionadas.

Outra versão de On Veut / A Gente Quer. Foto: Divulgação

A companhia Ktha, fundada em 2000 e credenciada pela Prefeitura de Paris, desenvolveu ao longo de mais de duas décadas uma linguagem teatral singular que acontece em espaços urbanos não convencionais. Seus espetáculos são realizados em contêineres, caminhões de mudança, telhados, túneis subterrâneos, estacionamentos, gramados de estádios, varandas e rotatórias, sempre com atores que se dirigem diretamente ao público, estabelecendo um contato visual direto e sem mediações. A companhia explora a cidade através de projetos coletivos e laboratórios de pesquisa, adotando um olhar engajado e ativista sobre questões urbanas contemporâneas.

O espetáculo que será apresentado no Recife é A Gente Quer, versão brasileira de On Veut. Descrito como uma longa lista de desejos e reivindicações, o espetáculo trabalha com a presença e o reconhecimento mútuo entre performers e espectadores. Desde sua criação em 2021, On Veut já passou por múltiplas versões e foi apresentado em mais de 15 cidades no  mundo, sempre integrando artistas locais ao núcleo francês e absorvendo as particularidades de cada contexto.

Seria interessante ter também Tu Es Là / Você está Aqui no Marco Zero, à beira do Rio Capibaribe, no Recife

On Veut / A Gente Quer em São Paulo. Foto: Reprodução

A experiência mais recente da Ktha no Brasil aconteceu em agosto na Casa do Povo, em São Paulo, durante o festival ERUV. Durante duas semanas intensas, seis artistas brasileiros trabalharam em residência artística para criar versões paulistas de A Gente Quer / On Veut e Tu Es Là / Você está Aqui, este último um espetáculo que mistura línguas e olhares com a plateia – seria lindo se Tu Es Là pudesse ser encenada no Marco Zero, na beira do rio Capibaribe! A programação incluiu apresentações na Casa do Povo e uma turnê pelos SESCs. Segundo relatos da própria companhia, a recepção foi entusiástica, com casas lotadas e ovações de pé, demonstrando a potência do diálogo entre a dramaturgia francesa e a realidade brasileira. A experiência paulista serviu como laboratório para o que será desenvolvido no Recife, onde a companhia pretende criar uma versão específica que dialogue com as particularidades locais.

A qui tu parles ? , um outro trabalho da companhia Ktha. Foto: Divulgação 

As primeiras reações à convocatória nas redes sociais revelaram questionamentos legítimos da classe artística local. Artistas como Daniel Barros comentaram: “Interessante a proposta, mas não vi nenhuma informação no post sobre a remuneração dos selecionados. É doação ou o que se ganha é ‘experiência’. Seria bom deixar claro quando se convoca a classe trabalhadora.” Paulo Pontes também perguntou diretamente: “Qual é o cachê dos aprovados?”, enquanto Mari Onduras completou: “Faltou o cachê!” A organização respondeu que as informações sobre remuneração seriam fornecidas após a seleção, garantindo que o festival não contrata artistas sem remuneração.

Contrapondo aos questionamentos, a artista Juliana Andrade observou que nunca viu “chamada de elenco de cinema, publicidade ou espetáculo divulgando cachê”, sugerindo que a prática de não anunciar valores antecipadamente é comum no mercado audiovisual e teatral. Esta observação levanta uma discussão interessante sobre as diferenças entre os setores e as expectativas de transparência em cada um deles.

Embora a discussão sobre cachê seja fundamental para a valorização e dignificação do trabalho artístico, outras questões financeiras e conceituais merecem igual atenção. Quanto custará o projeto completo ao Festival Recife do Teatro Nacional? Quais são os valores envolvidos na vinda da companhia francesa, incluindo deslocamentos, hospedagem e produção local? Quem está financiando efetivamente este intercâmbio – recursos municipais, federais, franceses ou uma combinação de fontes? Como se mensurar o retorno deste investimento em termos de “fertilização de subjetividades” e fortalecimento da cena teatral local?

A temporada do Ano Cultural Brasil-França 2025 representa uma oportunidade de intercâmbio cultural que já vem acontecendo, com eventos programados em diversas cidades brasileiras e francesas até o final do ano. O programa oficial articula colaborações em teatro, dança, música, artes visuais e cinema, movimentando recursos significativos de ambos os governos. Algumas ações já foram realizadas em território brasileiro, consolidando esta ponte cultural bilateral.

No caso específico da vinda da Ktha ao Recife, Giovana Soar atua como ponte fundamental entre as duas realidades, trazendo sua experiência como ex-avaliadora do Festival Recife e atual produtora da companhia no Brasil. Sua participação facilita o diálogo entre as expectativas francesas e as possibilidades locais, contribuindo para que este projeto específico se adapte melhor ao contexto pernambucano.

Inserido neste contexto maior de intercâmbio, o projeto A Gente Quer/On Veut no Recife pode configurar-se como um laboratório de experimentação teatral capaz de influenciar futuras produções locais e inserir a cidade na rede mundial de territórios que receberam esta dramaturgia nômade. A proposta de apresentações gratuitas em espaços públicos democratiza o acesso e alinha-se com a vocação da Ktha para o teatro urbano, potencialmente alcançando públicos que normalmente não frequentam espaços teatrais tradicionais.

Paralelamente às potencialidades artísticas do projeto, as questões levantadas pelos artistas nas redes sociais refletem um amadurecimento da classe artística em relação aos seus direitos e condições de trabalho, mas também evidenciam a necessidade de maior transparência em projetos culturais que envolvem recursos públicos. Como garantir que intercâmbios internacionais efetivamente fortaleçam a produção local ? De que forma mensurar o impacto real de projetos desta natureza além do aspecto imediato da experiência artística? Qual o equilíbrio adequado entre investimento em eventos pontuais e políticas culturais continuadas? E que mecanismos de acompanhamento e avaliação poderiam ser implementados para garantir que experiências como esta geram desdobramentos efetivos na formação e profissionalização dos artistas locais?

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Festival Cena CumpliCidades 2025:
Dramaturgias do Brasil e da França no Recife

Até aqui tudo bem, da Cia MALKA( França), abre a programação do Cena CumpliCidades. Foto: Alicia Cohim

Obras do Brasil e da França ocupam oito espaços culturais durante quase um mês de programação que redesenha o mapa das artes cênicas no Recife. O Festival Cena CumpliCidades retorna em setembro com uma curadoria que faz o hip hop francês conversar com o carnaval pernambucano, a militância das prostitutas brasileiras dialogar com a dança contemporânea, e o legado de Malcolm X ressoar nas periferias do Nordeste. Entre 4 e 28 de setembro de 2025, 20 espetáculos europeus e brasileiros de sete estados e 10 cidades de Pernambuco, em diferentes linguagens cênicas compõem uma programação que vai dos teatros tradicionais aos museus, dos parques aos centros universitários, em 27 apresentações, complementada por 4 ações formativas que consolidam o evento como plataforma de intercâmbio artístico e formação cultural no país.

O festival abre com uma provocação estética que reverbera por toda a programação: como as identidades contemporâneas se articulam em territórios de memória colonial? A Cia MALKA (França), que desenvolve pesquisas sobre encontros culturais há mais de duas décadas, exibe    Até Aqui Tudo Bem, enquanto Grupo de Dança da UFPE – LEED apresenta Danças do Carnaval de Recife, expondo a energia vibrante de três manifestações de uma das maiores festas populares do Brasil: o frevo, o caboclinho e o coco (04/09, 19h, Teatro de Santa Isabel, R$ 20). O espetáculo promove um encontro na mesma noite entre a cultura hip hop francesa – nascida também nas periferias de imigrantes – e a energia carnavalesca pernambucana , criando um diálogo coreográfico que borra fronteiras culturais ao demonstrar como diferentes formas de resistência popular podem se potencializar mutuamente.

Essa mesma urgência decolonial pulsa em CHENN / FRIDA DANSE | A Coluna Quebrada / Mes Horizons (11/09, 20h, Teatro Hermilo Borba Filho, Gratuito), do Centro Nacional de Desenvolvimento Coreográfico (CDCN) Touka Danses, da Guiana Francesa, que se apresenta no Brasil no âmbito da Temporada França-Brasil 2025, (o Touka Danses é a primeira entidade ultramarina vinculada à rede nacional francesa de CDCN’s). Um tríptico coreográfico que investiga as cicatrizes e potências do passado colonial através de três perspectivas: a corrente que simbolicamente une mas também pode confinar (CHENN), a transformação da dor em potência criativa (inspirado em Frida Kahlo) e a busca identitária das populações guianenses (Mes Horizons), explorando as complexidades de identidades que se formam entre diferentes referências culturais.

Brasil Plural: Geografias Afetivas

Tudo Acontece na Bahia (05/09, 19h, Teatro de Santa Isabel, R$ 20), da Subitus Company (PE), constrói uma geografia afetiva entre Rio de Janeiro e Salvador, onde Francisco e Quitéria vivenciam a tensão entre migração e pertencimento, entre partir e ficar, atravessando as complexidades urbanas, históricas e culturais de duas metrópoles brasileiras.

Gabri[Elas], do Coletivo Mulheres da Vida (SP) com Fernanda Viacava e direção de Malú Bazán. Foto: Divulgação

Fernanda Viacava constrói um “crochê de narrativas” em Gabri[Elas] (05/09, 19h, Teatro Hermilo Borba Filho, R$ 40), do Coletivo Mulheres da Vida (SP). Sob a direção de Malú Bazán, a atriz encarna Gabriela Leite – criadora da DASPU, liderança fundamental na luta em defesa dos direitos das prostitutas no Brasil – e todas as mulheres que fizeram da palavra “puta” uma ferramenta de luta e afirmação. O espetáculo, fruto de quatro anos de pesquisa com arquivos históricos e testemunhos vivos, utiliza a metáfora do crochê – hobby da ativista – para entrelaçar memória pessoal e luta coletiva.

A peça dialoga com décadas de invisibilização do feminismo das prostitutas, questionando por que a prostituta sempre foi objeto de representação e nunca sujeito de sua própria narrativa. O trabalho emerge de encontros com familiares de Gabriela, companheiras de luta como Lourdes Barreto e Vânia Rezende, além de pesquisadores como Soraya Simões (UFRJ), criando uma rede de memórias que ultrapassa os limites do teatro. Mesmo sendo um monólogo, o espetáculo é construído por 14 mulheres, demonstrando que a criação coletiva pode habitar a cena individual, multiplicando vozes em uma única intérprete.

Masculinidades em Crise e Memórias Interrompidas

Um solo autobiográfico que investiga três décadas de relação mãe-filho, Primavera Cega (06/09, 19h, Teatro Hermilo Borba Filho, R$ 40), de Igor Iatcekiw (SP), com direção de Alejandra Sampaio e Malú Bazán, mergulha nas ruínas da masculinidade tóxica. O espetáculo navega entre a homofobia estrutural que mata 291 pessoas LGBTQIAPN+ anualmente no Brasil e o Alzheimer que apaga memórias, criando um paradoxo cruel: enquanto o filho luta para lembrar, a mãe se liberta pelo esquecimento.

Eron Villar e DJ Vibra (Recife) em Se eu fosse Malcolm. Foto: Divulgação

Se eu fosse Malcolm (10/09, 19h, Teatro Apolo, Gratuito), de Eron Villar e DJ Vibra (Recife), constrói um encontro fictício entre Malcolm X e outras personalidades negras, de Martin Luther King e Nina Simone até Elza Soares e Bell Puã. A performance cênico-musical funciona como ritual de invocação, onde música contemporânea e teatro épico-narrativo criam um espaço de cura e resistência, questionando como o legado do ativista ressoa nas periferias brasileiras contemporâneas.

A Marcelos Move Dance School (Suíça/Brasil) apresenta Ne me jugez pas & Scape (06/09, 19h, Teatro de Santa Isabel, R$ 20), dupla de trabalhos que investigam identidades em trânsito através da dança contemporânea, onde artistas suíços e brasileiros exploram questões de julgamento social e possibilidades de fuga através de linguagens corporais que cruzam fronteiras geográficas e estéticas.

Balancê Antropofágico (14/09, 16h, Museu de Arte Sacra de PE, Gratuito), de Yla + Jeff (França/Brasil), propõe uma performance que dialoga com o espaço museológico, onde a dupla franco-brasileira desenvolve ações corporais que conversam com o acervo de arte sacra, criando tensões entre o sagrado e o profano, entre tradição e contemporaneidade.

Neris Rodrigues (Paulista-PE) apresenta Músicas do Mundo (19/09, 16h, Parque Dona Lindu/Galeria Janete Costa, R$ 20), um concerto que navega por sonoridades de diferentes culturas, enquanto a Banda Chanfrê (20/09, 20h, Teatro do Parque, R$ 20) traz um projeto musical colaborativo entre artistas franceses e brasileiros que explora fusões instrumentais e vocais, criando pontes sonoras entre dois continentes.

Carlota, Focus dança Piazzolla, com a Focus Cia de Dança (RJ). Foto: Divulgação

A Focus Cia de Dança (RJ) encerra o festival com três criações distintas. Trupe (24/09, 19h, CAC UFPE, Gratuito) e De Bach a Nirvana (26/09, 20h, Teatro Luiz Mendonça, Gratuito) antecipam Carlota, Focus dança Piazzolla (27/09, 20h, Teatro Luiz Mendonça, Gratuito), espetáculo que homenageia Carlota Portella através das composições de Astor Piazzolla.

Alex Neoral desconstrui o tango tradicional para criar linguagem híbrida onde oito bailarinos exploram “o drama do abandono” através de coreografias que buscam ir além do clichê passional. A trilha de Piazzolla atua como dramaturgia sonora, criando espaço para cenas que transitam entre melancolia e brilho, ressaltando a intensidade como personalidade da companhia de mais de mais duas décadas dede trajetória.

Criação Local e Mostra de Talentos

A produção pernambucana marca presença com Mouras (11/09, 18h, Teatro Apolo, R$ 20) do Impacto FM, Se eu Fosse Eu (12/09, 19h, Teatro Apolo, R$ 20) de Luna Padilha e convidados e Contando Histórias (13/09, 18h, Teatro Apolo, R$ 20) do Integrarte. A Mostra de Coreografias CENA (17 a 21/09, Teatro de Santa Isabel, R$ 20) apresenta a produção coreográfica local, revelando novos talentos e consolidando trajetórias.

As 10 ações formativas operam como laboratórios onde artistas locais, nacionais e internacionais compartilham metodologias e visões de mundo, criando rede de conhecimento que se estende além do período do festival e consolida o Recife como território de experimentação e irradiação artística no Nordeste.

O Festival Cena CumpliCidades 2025 oferece uma programação com ingressos entre R$ 20 e R$ 40, além de várias apresentações gratuitas. A diversidade de linguagens e origens dos trabalhos, aliada às ações formativas e à ocupação de diferentes espaços culturais da cidade, configura um evento que articula criação local e intercâmbio internacional, formação artística e circulação de obras contemporâneas.

Realização: Artistas Integrados
Ingressos: Sympla_cumpliCidades

 

📅 Programação Completa

Data/  Horário

Espetáculo / Companhia

Local 

Valor

04/09 – 19h Danças do Carnaval de Recife – Grupo de Dança da UFPE – LEED

Até Aqui Tudo Bem– Cia MALKA (França)

Teatro de Santa Isabel  R$ 20,00
05/09 – 19h Tudo Acontece na Bahia – Subitus Company (PE)  Teatro de Santa Isabel  R$ 20,00
05/09 – 19h Gabri[Elas] – Coletivo Mulheres da Vida (SP) Teatro Hermilo Borba Filho  R$ 40,00
06/09 – 19h Ne me jugez pas & Scape – Marcelos Move Dance School (Suíça/Brasil) Teatro de Santa Isabel  R$ 20,00
06/09 – 19h Primavera Cega – Igor Iatcekiw (SP) Teatro Hermilo Borba Filho  R$ 40,00
10/09 – 19h Se eu fosse Malcolm – Eron Villar e DJ Vibra (Recife) Teatro Apolo  Gratuito
11/09 – 18h Mouras – Impacto FM (Recife) Teatro Apolo R$ 20,00
11/09 – 20h CHENN / FRIDA DANSE / Mes Horizons – Touka Danses (França) Teatro Hermilo Borba Filho Gratuito
12/09 – 19h Se eu Fosse Eu – Luna Padilha e convidados (Recife) Teatro Apolo  R$ 20,00
13/09 – 18h Contando Histórias – Integrarte (Recife) Teatro Apolo  R$ 20,00
14/09 – 16h  Balancê Antropofágico – Yla + Jeff (França/Brasil)  Museu de Arte Sacra de Pernambuco Gratuito
17 a 21/09 Mostra de Coreografias CENA Teatro de Santa Isabel R$ 20,00
19/09 – 16h Músicas do Mundo – Neris Rodrigues (Paulista-PE) Parque Dona Lindu/Galeria Janete Costa R$ 20,00
20/09 – 20h Banda Chanfrê (França/Brasil) Teatro do Parque R$ 20,00
24/09 – 19h Trupe – Focus Cia de Dança (RJ) CAC UFPE Gratuito
26/09 – 20h De Bach a Nirvana – Focus Cia de Dança (RJ) Teatro Luiz Mendonça Gratuito
27/09 – 20h Carlota, Focus dança Piazzolla – Focus Cia de Dança (RJ) Teatro Luiz Mendonça Gratuito
28/09 Trupe – Focus Cia de Dança (RJ)  [A CONFIRMAR] A confirmar

 

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Magiluth celebra poeta e questiona hierarquias narrativas em Miró: Estudo n°2

Miró da Muribeca construiu uma poética urbana que desafiou hierarquias culturais estabelecidas. Magiluth honra essa trajetória. Foto: Jorge Farias 

A metateatralidade estrutura integralmente Miró: Estudo n°2 do Grupo Magiluth como metodologia de questionamento social, revelando suas potencialidades críticas através de cada escolha cênica. O espetáculo constrói um laboratório onde as fronteiras entre realidade e representação se dissolvem para expor mecanismos de poder que determinam quais vidas merecem ser teatralizadas. Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira e Giordano Castro desenvolvem uma dramaturgia expandida que problematiza fundamentalmente a legitimidade de quem narra histórias de resistência urbana.

Erivaldo Oliveira imprime uma atuação que dialoga visceralmente com a memória coletiva recifense, capturando gestualidades e cadências vocais que reconstituem a presença poética de Miró através de uma abordagem que evita reducionismos estereotipados. O próprio grupo dirige um jogo cênico onde as posições de protagonista, antagonista e coadjuvante se desestabilizam constantemente, questionando privilégios de representação através de estratégias performáticas que evidenciam tensões sociais contemporâneas.

Crítica social e experimentação formal se articulam ao incorporar linguagens tecnológicas como extensões orgânicas do discurso teatral, reconhecendo manifestações culturais periféricas como produtoras de inovação estética própria. Fragmentação narrativa espelha a própria experiência urbana, construindo uma poética cênica que recusa linearidades coloniais em favor de perspectivas múltiplas e simultâneas. Estudo n°2 opera como dispositivo de questionamento que desloca hierarquias narrativas estabelecidas.

Em cena, Bruno Parmera, Giordano Castro e Erivaldo Oliveira. Foto: Jorge Farias 

Particular potência emerge da exploração de espacialidades teatrais expandidas, materializando deslocamentos geográficos e simbólicos que redefinem relações entre centro e periferia. Esta escolha cênica corporifica o conceito de cidade como organismo político, onde cada território carrega marcas simultâneas de violência e resistência. O espetáculo constrói uma dramaturgia que questiona processos de apagamento histórico sem recorrer a idealizações que despolitizam conflitos reais.

João Flávio Cordeiro da Silva, o Miró da Muribeca (1960-2022), construiu uma poética urbana que desafiou hierarquias culturais estabelecidas, e Estudo n°2 honra essa perspectiva ao questionar como biografias periféricas podem ocupar centralidade cênica mantendo sua potência transformadora. O trabalho do Magiluth reconhece Miró da Muribeca como produtor de conhecimento estético autônomo, recusando lógicas de inclusão que mantêm estruturas coloniais intactas.

SERVIÇO
🎭 Miró: Estudo n°2
19, 20 e 21 de agosto, às 20h
📍 Centro Apolo Hermilo. Teatro Apolo, Recife
️ Ingressos de R$ 30 a R$ 60 + taxas no Sympla  

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HBLYNDA EM TRANSito aposta
na força política das narrativas trans

HBlynda Morais é uma artista não binária, negra, gorda, candomblecista e periférica. Foto: Divulgação

O teatro contemporâneo brasileiro experimenta uma reconfiguração radical de seus protocolos narrativos. Corpos historicamente relegados às margens dos processos de representação agora reivindicam a autoria de suas próprias dramaturgias, subvertendo hierarquias seculares entre quem conta e quem é contado. Neste cenário de disputas estéticas e políticas, o espetáculo HBLYNDA EM TRANSito opera como laboratório onde biografia e ficção se contaminam mutuamente, produzindo uma dramaturgia que desafia tanto convenções teatrais quanto epistemologias dominantes sobre gênero e sexualidade.

HBLYNDA EM TRANSito, dirigido por Emmanuel Matheus e com direção musical de Raphael Venos, utiliza elementos performativos que combinam teatro, dança e música. A montagem celebra os 15 anos de carreira artística de HBlynda Morais, como também sua própria existência como contradiscurso às estatísticas que condenam pessoas trans ao desaparecimento precoce.

A potência política do espetáculo reside na interseccionalidade presente na obra. HBlynda Morais é uma pessoa não binária que acumula marcadores sociais de diferença: negra, gorda, candomblecista e oriunda das periferias urbanas. Esta multiplicidade de identidades reflete a complexidade das experiências trans no país. Sua formação acadêmica – licenciatura em História pela UPE e mestrado em andamento na UFPE – subverte narrativas que associam pessoas trans ao abandono escolar e à marginalização social.

Os dados sobre a expectativa de vida de pessoas trans no Brasil são alarmantes, especialmente quando recortados por raça e classe social. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), a expectativa de vida média é de apenas 35 anos. Neste contexto, cada ano de vida de uma pessoa trans negra representa um ato de resistência contra um projeto necropolítico sistemático.

A iniciativa “Trans Free” para ingressos gratuitos destinados a pessoas trans, travestis e não binárias demonstra o compromisso do projeto com a democratização cultural. É um reconhecimento de que o teatro deve ser acessível às comunidades cujas experiências documenta.

Urgência do Testemunho

A encenação dirigida por Emmanuel Matheus. Foto: Lígia Jardim / Divulgção

HBLYNDA EM TRANSito integra uma linhagem específica do teatro contemporâneo onde performer e personagem coincidem na mesma pessoa. Este trabalho opera a partir do entendimento de que toda autobiografia é uma construção narrativa atravessada por códigos culturais, expectativas de gênero e demandas de inteligibilidade social.

A especificidade desta operação reside no fato de que, para pessoas trans, narrar a própria vida implica necessariamente confrontar discursos médicos, jurídicos e familiares que historicamente definiram suas identidades como patológicas. Ao assumir a autoria de sua narrativa, HBlynda não busca estabelecer uma “verdade” sobre sua experiência, mas demonstrar como certas vidas precisam ser constantemente reinventadas para existir.

Quando Judith Butler desenvolveu sua teoria sobre a performatividade de gênero em Corpos que Importam (2019), ela abriu caminho para compreendermos como as identidades se constroem através da repetição de atos performativos. No teatro, essa construção ganha dimensões ainda mais potentes: o palco teatral intensifica a ambivalência da performatividade, ao mesmo tempo que reitera convenções cênicas, permite que corpos dissidentes reconfigurem os códigos de inteligibilidade social.

Paul B. Preciado, em Manifesto Contrassexual (2014), argumenta que os corpos trans funcionam como “tecnologias de resistência” aos dispositivos normativos de sexo-gênero. O teatro autobiográfico trans radicaliza esta proposição ao fazer da própria vida matéria-prima estética, transformando experiência em conhecimento e trauma em linguagem cênica.

HBLYNDA EM TRANSito reafirma o palco como território de resistência. Foto: Lígia Jardim

HBLYNDA EM TRANSito transforma o que a sociedade codifica como “desvio” em metodologia de conhecimento. Enquanto o teatro tradicional trabalha com personagens ficcionais que representam tipos sociais, este trabalho investe na própria vida como arquivo de resistência.

Quando HBlynda narra sua trajetória, não está oferecendo uma “lição de vida” ou um “exemplo de superação”, mas documentando as estratégias micropolíticas necessárias para sobreviver em um país que mata uma pessoa trans a cada 48 horas. O palco se torna um laboratório de sobrevivência onde técnicas de resistência são compartilhadas através da performance.

O que emerge desta operação não é mais uma narrativa de superação, mas a instalação de uma temporalidade dissidente. Enquanto a lógica cisnormativa organiza o tempo em termos de desenvolvimento linear rumo à “normalidade”, HBLYNDA EM TRANSito propõe uma cronologia queer onde cada momento de existência constitui uma afirmação fundamental de que corpos como o seu têm direito de estar no mundo. A celebração aqui não é do indivíduo que “venceu na vida”, mas da própria possibilidade de que vidas como essa continuem acontecendo – desobedientes, incontroláveis, imprevisíveis.

SERVIÇO
🗓️ Datas: 05 e 06 de agosto de 2025, ⏰ 20h
Local: Teatro Hermilo Borba Filho – Recife/PE
🎟️ Ingressos: R$ 30,00 (inteira) | R$ 15,00 (meia-entrada)
💳 Vendas: Plataforma Sympla
🏳️‍⚧️ Política inclusiva: Trans Free – entrada gratuita para pessoas trans, travestis e não binárias

FICHA TÉCNICA
Atuação e Dramaturgia: HBlynda Morais
Direção Geral: Emmanuel Matheus
Direção Musical: Raphael Venos
Produção: Realização com recursos do FUNCULTURA e PNAB

 

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Um Leão de Prata
para Carolina Bianchi
e a internacionalização do teatro brasileiro

 

Carolina Bianchi mostra a força de uma trajetória construída na persistência. Foto Mayra Azzi./ @may_azzi

Bienal de Dança de Veneza, Em 19 de julho de 2025 Carolina Bianchi recebeu o Leão de Prata no prestigioso Salão das Colunas de Ca’ Giustinian. Foto: Andrea Avezzù / Official photographer of the Venice Biennale

Coreógrafa norte-americana Twyla Tharp (D) revolucionou a dança do século XX;, enquanto Bianchi  forja novas linguagens para o século XXI. Foto: Andrea Avezzù / Official photographer of the Venice Biennale

“Extraordinária artista, diretora, escritora e criadora de imagens que frequentemente utiliza seu corpo como elemento central de seu trabalho, desenvolvendo experiências profundamente pessoais, viscerais e coreográficas que nos atravessam e interpelam”. Foi assim que Wayne McGregor, diretor artístico da Bienal de Dança de Veneza, definiu Carolina Bianchi ao entregar-lhe o Leão de Prata em 19 de julho de 2025, durante a cerimônia realizada no prestigioso Salão das Colunas de Ca’ Giustinian.

As palavras de McGregor capturam a essência de um trabalho que transforma vulnerabilidade em potência criativa, estabelecendo Carolina como uma das vozes mais intransigentes da performance contemporânea mundial. O reconhecimento veneziano posiciona a artista brasileira entre os nomes que estão redefinindo as fronteiras entre teatro, dança e arte corporal.

A premiação de Carolina ocorreu no mesmo evento em que a lendária coreógrafa norte-americana Twyla Tharp foi agraciada com o Leão de Ouro pelo conjunto de sua carreira. McGregor exaltou Tharp destacando que “suas contribuições revolucionárias para a ecologia global da dança são incomparáveis em seu trabalho, que combina rigor e ludicidade, disciplina clássica e técnica de balé, misturando gêneros com facilidade audaciosa e expandindo nossa compreensão das capacidades desta ferramenta extraordinária que todos possuímos: o corpo humano”.

A simultaneidade dos prêmios cria um diálogo geracional fascinante: de um lado, Tharp, que revolucionou a dança do século XX; do outro, Carolina, que forja novas linguagens para o século XXI. Ambas utilizam o corpo como território de investigação, mas Carolina adiciona uma dimensão política e autobiográfica que ressignifica completamente a tradição da performance feminina.

O festival veneziano, que se estendeu de 17 de julho a 2 de agosto de 2025, ratificou assim a relevância internacional de uma geração de artistas que redefinem os limites da arte corporal. Conforme destacado por McGregor, os premiados “recebem um prêmio financeiro para apoiar seu próximo grande projeto” – suporte material que pode ser decisivo para que Carolina continue desenvolvendo uma arte que exige recursos consideráveis e tempo de maturação.

Avignon 2023: O Momento de Inflexão Internacional

A Noiva e o Boa Noite Cinderela estreou no Festival de Avignon de 2023. Foto @christophe.raynauddelage

O Festival de Avignon de 2023 marcou definitivamente a inserção de Carolina Bianchi no circuito artístico europeu. A Noiva e o Boa Noite Cinderela, primeiro capítulo da Trilogia Cadela Força, causou profundo impacto em públicos e críticos, estabelecendo uma nova referência para a performance contemporânea feminina.

Como testemunha direta daquele momento histórico – estive presente em Avignon cobrindo o festival para o site Satisfeita, Yolanda? -, posso afirmar que o espetáculo criou uma reverberação única no ambiente artístico francês. A obra, que investiga a violência sexual através do próprio corpo da artista em estado de inconsciência farmacológica, investiu numa linguagem inédita que dialoga com pioneiras como Marina Abramović e Gina Pane, estabelecendo territórios completamente novos de investigação cênica.

Leia AQUI a crítica do espetáculo A Noiva e o Boa Noite Cinderela, que estreou em Avignon, publicado em 23 de julho de 2023, escrito por Ivana Moura.

Confira AQUI a entrevista feita por Ivana Moura durante o festival de Avignon 2023 com Carolina Bianchi e postado em 24 de julho de 2023.

O sucesso francês abriu as portas do circuito europeu, levando a obra aos principais festivais do continente e culminando com o Prix du Syndicat de la Critique, que elegeu a montagem A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Cadela Força – Capítulo I como Melhor Estreia Internacional da temporada 2023/24 da França.

Longe de ser um fenômeno súbito, o reconhecimento internacional da dramaturga e performer gaúcha reflete mais de uma década de trabalho árduo e investigação artística que começou em Porto Alegre, passou pelos palcos alternativos de São Paulo e encontrou na Europa o terreno fértil para florescer plenamente.

A Irmandade (The Brotherhood)
Teatro como confissão e investigação

Segundo capítulo da Trilogia Cadela Força investiga os mecanismos da masculinidade tóxica. Foto Mayra Azzi

Mesmo sendo uma ode ao teatro, The Brotherhood questiona também as origens históricas da misoginia no próprio teatro. Foto: Mayra Azzi / Dvivulgação

Em maio de 2025, nos palcos do Kunstenfestivaldesarts em Bruxelas, Carolina Bianchi apresentou A Irmandade (The Brotherhood), segundo capítulo da Trilogia Cadela Força. A obra, posteriormente apresentada em Viena, Amsterdã em Barcelona e em Veneza, volta-se para os mecanismos da masculinidade tóxica.

O espetáculo dialoga diretamente com o conceito de “fraternidade” desenvolvido pela antropóloga argentina Rita Segato em sua obra La Guerra contra las Mujeres (2016). Para Segato, a “fraternidade” ou “corporação masculina” representa um sistema de pactos entre homens que opera como estrutura fundamental do patriarcado. Segundo a pesquisadora, essa irmandade masculina funciona através de “lealdades horizontais” que unem os homens independentemente de outras diferenças sociais, criando um front comum para manter o controle sobre as mulheres e perpetuar a violência de gênero.

Para compreender a dimensão e o impacto desta encenação que aprofunda a investigação iniciada com A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Cadela Força – Capítulo I , selecionei quatro críticas de veículos especializados de diferentes países: Theaterkrant (Holanda), Revista Rialta (Espanha), Libération (França) e Sceneweb.fr (França). Foram escolhas aleatórias, a partir do que tive acesso na internet. Juntas, essas análises revelam como A Irmandade se estabeleceu como um marco desestabilizador no teatro europeu contemporâneo, questionando as estruturas de poder masculino tanto na sociedade quanto nas artes.

A Anatomia da Fraternidade Masculina

Os homens têm liberdade…Foto: Mayra Azzi / Dvivulgação

“O purgatório de sua jornada dantesca” – assim Karin Veraart, do Theaterkrant holandês, contextualiza A Irmandade, onde Carolina “examina diversas expressões de masculinidade, ‘virilidade’, inclusive em relação à arte, e também como um sistema de linguagem perpetua o patriarcado”. Uma cena em particular impressiona Veraart: “a fraternidade de rituais como iniciações, trotes, homenagens e brincadeiras compartilhadas. Aqui, os oito homens da companhia têm liberdade: eles dançam, brincam e gesticulam com uma vingança, irritantemente identificável, quase impossível de assistir”.

Em outro aprofundamento, Martha Luisa Hernández Cadenas, da Revista Rialta espanhola, observa que “Bianchi apresenta a fraternidade como um pacto intransigente; é praticamente o presente que ‘protegerá’ cada criança ao longo da vida”. Para Cadenas, a obra expõe “a performatividade do masculino como irmandade, o fascínio pelos gênios, a mentira, a violência e o estupro”, criando uma investigação que vai além da denúncia para questionar as estruturas fundacionais da cultura patriarcal.

“Como é possível que olhemos e escutemos com tanta admiração e deferência aqueles que eles chamam de ‘mestres’?” A pergunta de Nadja Pobel, do Sceneweb.fr francês, identifica o cerne mais perturbador de A Irmandade: o desmonte da adoração aos “grandes mestres” da história teatral. Pobel destaca como Carolina “coloca em cena com força a aniquilação das mulheres pelos homens, qualquer que seja o grau de predação (…) em nome da arte”.

Anne Diatkine, do Libération, descreve uma cena emblemática onde Carolina “brande um imenso pênis fúcsia que coloca entre as pernas e se masturba com gritos altos, durante a transmissão de um arquivo de rádio de um grande mestre particularmente confuso”. A crítica observa o “constrangimento não pela cena de masturbação, mas por seu paralelo com as palavras de Kantor”, revelando como a obra expõe a obscenidade oculta na veneração acrítica dos “gênios” masculinos.

Duas “cenas-chave” identificadas pela crítica espanhola Cadenas aprofundam essa análise: a entrevista com um diretor fictício alemão e o painel de intelectuais. No diálogo com o diretor de sucesso, emergem “os relacionamentos abusivos com as atrizes de seu elenco, a exploração do corpo feminino e a omissão de créditos que as mulheres merecem”. O arquétipo criado por Carolina é “tão fiel que parece real”, funcionando como uma síntese devastadora dos mecanismos de poder no teatro contemporâneo.

O que torna A Irmandade particularmente desestabilizadora é a honestidade brutal de Carolina em expor seus próprios paradoxos. Pobel elogia essa dimensão: “como ela pôde amar tanto Jan Fabre? Como ela pode lidar, agora, com o fato de ser parte integrante dessa irmandade teatral da qual recebe ‘recompensas’?” Esta autocrítica impede que o trabalho se torne “banal” ou um simples “acerto de contas”, elevando-o a uma reflexão mais complexa sobre cumplicidade e resistência.

Veraart observa que Carolina “indica que certamente não está isenta de pecados. São as contradições, os conflitos, as consequências que ela quer expor e questionar”. A artista não se posiciona como vítima pura, mas como alguém que reconhece estar inserida nas mesmas estruturas que critica, criando uma camada de complexidade que desafia tanto o público quanto a própria artista.

Essa radicalidade intransigente coloca Carolina em uma linhagem específica do teatro europeu contemporâneo, próxima a artistas como Angélica Liddell. Como a performer catalã, Carolina desenvolve uma proposta radical e excessiva que pode polarizar reações: ou cativar completamente, ou ser rejeitada sem meio-termo.

A Dramaturgia da Violência Histórica

Carolina Bianchi expõe uma genealogia da violência contra as mulheres que atravessa séculos. Foto: Mayra Azzi 

A Irmandade constrói uma genealogia da violência contra as mulheres que atravessa séculos. Cadenas destaca como Carolina evoca “Ana Mendieta, Sylvia Plath, Gisèle Pélicot, Perséfone e, especialmente, Sarah Kane”, criando não “um catálogo, mas tecendo, sem gritos ou fúria, com força e clareza, uma história da violência de uns contra os outros”.

A crítica espanhola conecta o trabalho de Carolina com casos contemporâneos devastadores: “Ana Mendieta caiu do 34º andar do apartamento que dividia com seu parceiro, o também artista Carl Andre, que foi absolvido da acusação de feminicídio e desfrutou da cumplicidade da comunidade artística”. Esses casos históricos e contemporâneos se entrelaçam na dramaturgia de Carolina, revelando a continuidade da violência patriarcal através dos tempos.

Todas as críticas destacam a dimensão acadêmica rigorosa do trabalho. Veraart observa que Carolina “documentou meticulosamente sua pesquisa; na primeira parte de Irmandade, ela carrega seu livro de 500 páginas pelo palco”. Pobel complementa: “O pensamento predomina sobre as ações. As palavras constituem a estrutura fundamental deste capítulo, amplamente apoiadas por sua pesquisa acadêmica”.

Diatkine descreve a cena onde “sete garotos (…) engolirão suas palavras, sua tese de 500 páginas rasgada”, criando uma metáfora poderosa sobre como o conhecimento produzido por mulheres é sistematicamente desvalorizado e destruído pelos homens que detêm o poder de legitimação acadêmica e artística.

As quatro críticas convergem ao descrever o impacto visceral da obra. Veraart define “A Irmandade” como “dolorosa, mas é assim que deveria ser: uma catarse”. Diatkine fala de um “monólogo denso e proteico de três horas e quarenta minutos” que “produz uma sensação de pavor”. Pobel conclui que se trata de “um espetáculo intenso que deixará marcas duradouras”.

Cadenas oferece uma síntese poética do impacto: A Irmandade está repleta de vozes, flashes, horas no chuveiro, suicídios em sua vingança prematura, balbucios, mulheres anônimas em fitas de vídeo onde são violentamente penetradas (…) Bianchi transforma sua dor em linguagem; ele não apenas a autotematizou, mas também construiu seu próprio artifício”.

LINKS DAS CRÍTICAS
Theaterkrant – Holanda – Crítica de Karin Veraart Theaterkrant
Revista Rialta – Espanha Crítica Martha Luisa Hernández Cadenas Rialta
Libération – França – Crítica Anne Diatkine Libération
Sceneweb.fr – França – Crítica Nadja Pobel –Sceneweb.fr

Entretanto, A Irmandade desenvolve uma camada reflexiva inesperada que transforma o trabalho numa verdadeira carta de amor ao próprio teatro. Ao dissecar os mecanismos de poder masculino inscritos na arte teatral, a obra simultaneamente se volta para dentro, questionando o teatro como instituição e celebrando-o como possibilidade transformadora. Em seu perfil no Instagram, Carolina revelou essa dimensão metateatral do trabalho, definindo-o como uma “declaração sensual, confusa, sombria, perversa e totalmente complexa” ao teatro.

Esta dimensão amorosa do espetáculo emerge da própria metodologia de investigação da artista, que não se limita a denunciar estruturas opressivas, mas busca compreender como a arte pode simultaneamente reproduzir e subverter essas mesmas estruturas. O teatro torna-se, assim, objeto de desejo e crítica, paixão e resistência, revelando a complexidade de uma artista que ama profundamente aquilo que também precisa destruir para reconstruir.

O Coletivo Cara de Cavalo: Dez Anos de Resistência Criativa

Coletivo Cara de Cavalo desenvolveu uma pesquisa consistente na cena paulistana. Foto: Mayra Azzi  

A história de Carolina Bianchi está intimamente conectada ao coletivo Cara de Cavalo, que completa dez anos em 2025. Durante uma década, o grupo desenvolveu uma pesquisa consistente na cena independente paulistana, enfrentando as limitações estruturais e financeiras que caracterizam a produção cultural brasileira.

Em post recente no Instagram, Carolina celebrou essa trajetória: “Cara de Cavalo completa 10 anos este ano. Comemoro e continuo a trabalhar duro com este grupo de pessoas que admiro profundamente.” A reflexão da artista sobre o prêmio veneziano também revela sua consciência sobre a dimensão coletiva do trabalho: “Na semana passada tivemos um Leão de Prata na Bienal de Veneza – que alegria violenta! Sinto-me profundamente honrada e sinto-me inegavelmente pequena.”

Em 2017, durante o Festival TREMA! no Recife, Carolina já demonstrava a radicalidade de sua pesquisa artística em Utopyas For Every Day Life, uma instalação performática de três horas realizada em parceria com Flávia Pinheiro. O trabalho, que questionava as fronteiras entre vida e arte, utilizava o corpo como arma de combate contra o machismo e a violência de gênero numa sociedade heteronormativa. Durante 180 minutos ininterruptos, as artistas exploravam estados de resistência e criação, permitindo ao público movimentar-se livremente pelo espaço e participar da experiência. Em minha crítica, destaquei como a dupla “gritava com o suor dos poros contra o machismo” e “avançava em pernadas para forjar nos deslocamentos a relevância da produção feminina”, antecipando questões que se tornariam centrais na Trilogia Cadela Força.

Lobo, que estreou em São Paulo em 2019, já sinalizava a potência investigativa do grupo. Na peça, Carolina dividia o palco com 16 homens em sequências performáticas intensas que combinavam corrida, queda, sexo e poesia de Emily Dickinson.

A mudança de Carolina para Amsterdã em 2020, para cursar mestrado, criou uma dinâmica transnacional que hoje permite ao grupo operar simultaneamente entre Brasil e Europa, mantendo suas raízes enquanto explora novas possibilidades de criação e circulação. Fundamental nesse processo tem sido o trabalho de produção de Carla Estefan e da Metro Gestão Cultural, responsáveis pela viabilização da complexa logística internacional que permite ao coletivo manter sua presença em festivais e palcos europeus.

O reconhecimento de Carolina Bianchi em Veneza integra um movimento crescente de artistas brasileiros que conquistam espaço no circuito internacional através da especificidade de suas pesquisas. Não se trata de um fenômeno massivo, mas de trajetórias individuais (ou de companhias) que, somadas, começam a desenhar novas possibilidades para a arte cênica nacional em contexto global.

Ficha Técnica

A Irmandade – Trilogia Cadela Força – Capítulo II
Concepção, textos e direção: Carolina Bianchi
Elenco: Chico Lima, Flow Kountouriotis, José Artur, Kai Wido Meyer, Lucas Delfino, Rafael Limongelli, Rodrigo Andreolli, Tomás Decina, Carolina Bianchi
Colaboradora de dramaturgia e pesquisa: Carolina Mendonça
Diálogo teórico e dramatúrgico: Silvia Bottiroli
Tradução para o inglês: Marina Matheus
Tradução para o francês: Thomas Resendes
Direção técnica, criação sonora e música original: Miguel Caldas
Assistente de direção: Murilo Basso
Cenografia: Carolina Bianchi, Luisa Callegari
Direção de arte e figurinos: Luisa Callegari
Iluminação: Jo Rios
Vídeos e projeções: Montserrat Fonseca Llach
Ressurreição coreográfica do prólogo e assessoria de movimento: Jimena Pérez Salerno
Câmera ao vivo e apoio artístico: Larissa Ballarotti
Estagiária: Fernanda Libman
Direção de palco e apoio à produção: AnaCris Medina
Direção de Produção, Gerência de Tournee e Comunicação: Carla Estefan
Produção: Metro Gestão Cultural; Carolina Bianchi Y Cara de Cavalo
Coprodução: KVS Koninklijke Vlaamse Schouwburg -Brussels, Theater Utrecht, La Villette –Paris, Festival d’Automne à Paris, Comédie de Genève, Internationales Sommer Festival Kampnagel, Les Célestins –Théâtre de Lyon, Kunstenfestivaldesarts, Wiener Festwochen, Holland Festival, Frascati Producties HAU Hebbel am Ufer -Berlin, and Maillon, Théâtre de Strasbourg – Scène européenne.

Agenda de Apresentações

Volkstheater, Viena – Wiener Festwochen
1 e 2 de junho de 2025

Holland Festival, Amsterdã
18 a 20 de junho de 2025

GREC, Barcelona
11 e 12 de julho de 2025

Bienal de Dança de Veneza
18 a 20 de julho de 2025

Kampnagel Sommerfestival, Hamburgo
14 a 16 de agosto de 2025

HAU, Berlim
30 de outubro e 1º de novembro de 2025

Les Célestins, Teatro Lyon
6 a 8 de novembro de 2025

Maillon, Teatro de Estrasburgo
13 a 15 de novembro de 2025

La Villette – Festival de Outono em Paris
19 a 30 de novembro de 2025

Comédie de Genève
22 a 25 de abril de 2026

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