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Recife mantém respiração teatral
com programação atraente

 

Neste final de semana, a cidade oferece o cardápio cultural possível: do monólogo clássico ao musical biográfico, como Rita Lee – Uma Autobiografia Musical com Mel Lisboa, passando por experimentos cênicos e espetáculos para a família toda. Foto: Divulgação

Sharlene Esse no elenco de O Shá da Meia Noite. Foto: Ivana Moura

os Irmãos Gandaia apresentam Balaio na programação do Festival Cachoeira das Artes

Recife oferece por esses dias aquela programação cultural que conhecemos bem: nem revolucionária, nem inovadora, mas consistente. São atrações de teatro, música e dança que cumprem o papel de manter a cidade respirando culturalmente, oferecendo desde o solo autobiográfico até o musical infantil que agrada os pais.

A agenda não promete mudanças de paradigma, radicalidade ou experiências transformadoras, mas entrega o que se espera: espetáculos bem feitos, alguns nomes conhecidos retornando a papéis consagrados, festivais que misturam tradição e contemporaneidade, e uma dose necessária de entretenimento cultural que garante os teatros funcionando e o público frequentando.

Neste fim de semana, quem procura opções culturais na capital pernambucana encontra desde Mel Lisboa revisitando Rita Lee até experimentos de teatro físico, passando por peças gratuitas e produções que custam o preço de um jantar. É a cultura como ela é no Recife-Pernambuco: nem sempre excepcional, mas presente e acessível, que pode trazer conforto ou gerar discussão.

Mel Lisboa retorna ao papel que a consagrou. E exibe no Teatro Luiz Mendonça seis sessões de Rita Lee – Uma Autobiografia Musical (18 a 21/09). Desta vez baseada na autobiografia da cantora (bestseller com 200 mil exemplares), sob direção de Márcio Macena e Débora Dubois, a montagem transforma confissão editorial em partitura cênica, explorando “honestidade escancarada” como material dramatúrgico. A produção revisita a trajetória da artista desde a infância até seus últimos dias, com orquestra ao vivo e elenco que inclui Bruno Fraga como Roberto de Carvalho. O espetáculo ocupa o teatro quinta e sexta às 20h, sábado às 16h e 20h, domingo às 15h e 18h.

Se Rita Lee explora a autobiografia através da palavra e da música, outro trabalho investiga memórias e corporeidades de forma completamente diversa. Representando 25 anos de pesquisa franco-brasileira, Enquanto você voava, eu criava raízes (Cia. Dos à Deux) consolida a linguagem de André Curti e Artur Luanda Ribeiro, que prescinde da palavra para investigar corporalidades em trânsito. Premiado por APTR e Shell, o trabalho é bonito, com pesquisa consistente e entrega física surpreendente, que reserva momentos inesperados ao público. O espetáculo dialoga com tradições europeias sem perder especificidade brasileira, seguindo a linha de investigação que caracteriza o grupo. É um dos pontos altos da agenda cultural. A intimidade do teatro pequeno potencializa a recepção.

Enquanto você voava, eu criava raízes, espetáculo de excelente qualidade técnica e pesquisa de linguagem

Também navegando entre memória e identidade, mas com outra abordagem performática, Sharlene Esse, primeira dama trans do Teatro Pernambucano e referência LGBTQIA+ consolidada há quatro décadas na cena local, retorna aos palcos em O Shá da Meia Noite, comédia que problematiza disputas por estrelato. Com 40 anos de carreira, Sharlene continua sendo presença fundamental no teatro pernambucano, em trama de intrigas artísticas entre cantora veterana e coristas invejosos.

Ainda na trilha dos solos autobiográficos, a artista Hhblynda ocupa o Espaço O Poste (Rua do Riachuelo, 641, Boa Vista) nesta sexta-feira, 19/09, às 19h, com HBLYNDA EM TRANSito, criação que mescla performance, dança, música e teatro. O espetáculo compartilha suas vivências atravessando infância, descobertas da sexualidade e o florescer da identidade não binária. Ingressos: R$ 15 (meia) e R$ 30 (inteira).

Da performance autobiográfica para a dança como linguagem ancestral, Babi Johari e Caio Pinheiro apresentam gratuitamente no Teatro Arraial o espetáculo Híbridos – Enlaces, que explora ancestralidade das conexões através de dança fusionada de base oriental árabe, buscando liberdade nos movimento.

Contrastando com abordagens mais intimistas, a tecnologia se faz presente com The Jury Experience, adaptação brasileira de formato internacional dirigida por Talita Lima, que o Teatro RioMar apresenta no sábado (20), às 20h30. O espetáculo transforma espectadores em jurados de caso criminal fictício, utilizando códigos QR e interatividade digital para questionar limites entre ficção e realidade. A dramaturgia participativa de 75 minutos coloca decisões éticas nas mãos do público, buscando criar uma experiência imersiva onde cada sessão pode ter desfecho diferente dependendo das escolhas da plateia. Ingressos a partir de R$ 60.

Murilo Freire em Esquecidos por Deus

Voltando ao formato mais tradicional do teatro, Murilo Freire traz ao SESC Goiana nos dias 19, 20, 26 e 27/09, às 19h30, o drama Esquecidos por Deus, com entrada gratuita. O monólogo, baseado na obra O Livro das Personagens Esquecidas de Cícero Belmar, apresenta o ator interpretando diferentes personagens em uma encenação que preza pela proximidade com a plateia. O ator interpreta um bandido que se crê Deus. Lembranças saudosas de uma infância. Da irmã, do pai, da mãe… Um capanga grotesco arranca risos. Um casal é feito refém.

Enquanto o teatro explora as múltiplas facetas da linguagem cênica, a dança encontra seu espaço coletivo no Shopping Patteo Olinda, que recebe nos dias 20 e 27 de setembro, a partir das 16h, o 3º Festival de Dança e Cultura, também gratuito, reunindo mais de 30 grupos e escolas de dança com apresentações que vão do balé ao jazz.

A programação de festivais ganha continuidade com o Teatro Hermilo Borba Filho, que inaugura o Festival Cachoeira das Artes na sexta (19) com O Menestrel recita ‘O Guardador de Rebanhos’, às 19h30. O espetáculo, com direção de Márcio Fecher e música ao vivo do grupo Los Negrones, recria a atmosfera lírica do heterônimo Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa.

A música encontra protagonismo em duas noites do 18º Festival Internacional Cena CumpliCidades no Teatro do Parque. Na sexta (19), às 20h, a trombonista Neris Rodrigues apresenta Músicas do Mundo, seu primeiro projeto autoral com orquestra, explorando sonoridades que transitam entre jazz, música brasileira e world music. No sábado (20), também às 20h, a Banda Chanfrê – formação franco-brasileira que reúne músicos franceses e pernambucanos – apresenta fusão entre música francófona, jazz e ritmos do Recife, criando pontes sonoras entre duas culturas. Ingressos: R$ 20 (meia para todos).

Paulo Cesar Freire no papel de Francisco, um instrumento de paz, com texto e direção de Roberto Costa. Foto: Renan Andrade

Das fusões musicais contemporâneas para a tradição religiosa musicada, Francisco, um instrumento de paz sobe ao palco do Teatro Guararapes no dia 19/09, às 20h, com texto e direção de Roberto Costa. O musical promete uma experiência de fé e arte para todos os públicos, religiosos ou não. A história de Francisco de Assis é apresentada desde sua infância, passando pelos conflitos familiares, sua ida à guerra, a prisão e a conversão nas ruínas de São Damião. A peça narra sua poderosa transformação, que o levou a viver o evangelho na prática e a criar a ordem dos frades menores, sempre pautado pela caridade e pelo amor ao próximo. Para dar vida ao santo, o ator Paulo Cesar Freire foi convidado, e a produção conta com um grande elenco de músicos, atores e cantores. A trilha sonora será executada ao vivo, sob a direção musical da maestrina Hadassa Rossiter, do Conservatório de Música de Pernambuco. Valores: de R$ 50 a R$ 150.

A programação contempla ainda o público infantil, com o domingo (21) oferecendo três opções especiais. O Mundo Mágico de Peter Pan no Teatro Barreto Júnior (16h) traz o musical inspirado na obra de J.M. Barrie, acompanhando os irmãos Wendy, João e Miguel em sua jornada à Terra do Nunca, onde enfrentam o Capitão Gancho. Ingressos: R$ 50 (meia) e R$ 100 (inteira). Já no teatro Hermilo, a palhaça Gardênia, vivida por Luíza Fontes, embarca em uma aventura que promete ser divertida e emocionante em A Boba, uma jornada  (16h), enquanto os Irmãos Gandaia apresentam Balaio (17h30), espetáculo que celebra a cultura pernambucana com circo, dança e música.

Ainda na programação adulta do sábado, o clássico naturalista Raimundo (20h, Teatro Barreto Júnior), inspirado em O mulato de Aluísio Azevedo, ganha adaptação de Taveira Junior e direção de Filipe Enndrio. A trama acompanha Raimundo, um jovem culto que retorna da Europa e se depara com os preconceitos, segredos e hipocrisias de uma sociedade marcada pelo racismo e pelas convenções sociais do século XIX. O espetáculo marca a conclusão da Turma de Iniciação Teatral para Adultos do Espaço de Artes Teatralizar.

🎭 SERVIÇO 

QUINTA-FEIRA (18/09)

Rita Lee – Autobiografia Musical – 20h – Teatro Luiz Mendonça
Balaio de Memórias (FETED) – 19h – Teatro Apolo – R$ 20
O Shá da Meia Noite – com Sharlene Esse – 19h30 – Teatro Santa CRuz – Gratuito
Enquanto você voava, eu criava raízes – Cia. Dos à Deux – 20h – Teatro da Caixa, 15/30

SEXTA-FEIRA (19/09)

Enquanto você voava, eu criava raízes – Cia. Dos à Deux – 20h – Teatro da Caixa, 15/30
HBLYNDA EM TRANSito – 19h – Espaço O Poste – R$ 15/30
O Shá da Meia Noite – com Sharlene Esse – 19h30 – Teatro Santa CRuz – Gratuito
Esquecidos por Deus – 19h30 – SESC Goiana – GRATUITO
O Menestrel recita O Guardador de Rebanhos – 19h30 – Teatro Hermilo – R$ 15/30
Francisco, um instrumento de paz – 20h – Teatro Guararapes – R$ 50 a 150 Sessão Única
Músicas do Mundo – 20h – Teatro do Parque – R$ 20
Rita Lee – Autobiografia Musical – 20h – Teatro Luiz Mendonça
O Sistema Morreu (FETED) – 19h – Teatro Apolo – R$ 20
Híbridos – Enlaces – 19H – Teatro Arraial – GRATUITO

SÁBADO (20/09)

Enquanto você voava, eu criava raízes – Cia. Dos à Deux – 20h – Teatro da Caixa, 15/30
Esquecidos por Deus – 19h30 – SESC Goiana – GRATUITO
CALIUGA + Leitura Por Elise – 17h e 19h30 – Teatro Hermilo – R$ 15/30
Banda Chanfrê – 20h – Teatro do Parque – R$ 20
Raimundo – 20h – Teatro Barreto Júnior
Rita Lee – Autobiografia Musical – 16h e 20h – Teatro Luiz Mendonça
The Jury Experience – 20h30 – Teatro RioMar – A partir de R$ 60
3º Festival de Dança – 16h – Shopping Patteo Olinda – GRATUITO
Sonho de uma Noite de Verão (FETED) – 16h – Teatro Apolo – R$ 20
Sonetos para um quase amor (FETED) – 19h – Teatro Apolo – R$ 20
Híbridos – Enlaces – 19H – Teatro Arraial – GRATUITO

DOMINGO (21/09)
O Mundo Mágico de Peter Pan – 16h – Teatro Barreto Júnior – R$ 50/100
A Boba, uma jornada – 16h – Teatro Hermilo – R$ 15/30
Balaio (Irmãos Gandaia) – 17h30 – Teatro Hermilo – R$ 15/30
Rita Lee – Autobiografia Musical – 15h e 18h – Teatro Luiz Mendonça
Três Histórias (FETED) – 16h – Teatro Apolo – R$ 20
De Noite, Sombras e Ausências (FETED) – 19h – Teatro Apolo – R$ 20

INFORMAÇÕES GERAIS
FETED continua até 28/09 no Teatro Apolo
Festival Cachoeira das Artes: @cachoeiradasartes
Cena CumpliCidades: cenacumplicidades.com | @ccumplicidades
A programação cultural conta com apoio do Funcultura, Fundarpe, FUNARTE e diversos parceiros culturais da cidade.

 

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Até sempre Vavá Schön-Paulino

Heliogábalo & Eu (1990). Foto: Deborah Valença

Um artista de muitas frentes: ator, poeta, artista plástico, performer e gestor público.

Vavá morreu tragicamente neste 11 de setembro de 2025 em um incêndio em sua residência, em Floresta (PE)

Vavá Schön-Paulino entrava em cena como quem entra em casa. Sem alarde, sem pedir licença, mas com o cuidado de quem sabe onde cada objeto repousa e que luz acende primeiro. Havia algo de menino no gesto — o riso fácil, os olhos atentos, uma curiosidade que não se gastava com o tempo. Ele  atuava como quem oferece água a quem chega cansado: com generosidade, precisão e uma confiança íntima na partilha. Essa confiança moldou sua presença de ator, de educador, de provocador de processos, de artesão de encontros. Nos trabalhos marcantes — da secura luminosa de Fim de Jogo (Beckett), em montagem dirigida por João Denys à Rasif – Mar que arrebenta, a partir de textos de Marcelino Freire, à do ritual instável de Heliogábalo & Eu (1990) à medonha constatação capitalista de A carne mais barata  — sempre se reconhecia um fio: Vavá habitava a cena, deixando que alguns sentidos aparecessem no atrito entre corpos, palavras, silêncio e tempo.

É com esse cuidado que hoje, inevitavelmente, escrevemos no passado. Vavá morreu tragicamente neste 11 de setembro de 2025 em um incêndio em sua residência, em Floresta, no Sertão de Pernambuco, um mês depois completar 65 anos. A tragédia expôs um problema antigo: a ausência de um quartel do Corpo de Bombeiros no município, o que retardou o atendimento e agravou o desfecho. Nascido em Floresta, o artista mudou-se para o Recife em 1978 e, por mais de quatro décadas, foi presença articuladora e generosa na cena cultural pernambucana; há cerca de dez anos, voltou à cidade natal, onde seguiu como gestor, formador e artista — costurando pessoas, ideias e territórios com a mesma delicadeza com que entrava no palco.

Vavá foi um artista de muitas frentes: ator, poeta, artista plástico, performer e gestor público. Na gestão cultural, assumiu papéis decisivos — coordenador do Centro Apolo-Hermilo, diretor do Teatro de Santa Isabel, diretor de Cultura em Floresta e vice-presidente do SATED-PE. No teatro, ergueu uma trajetória vasta e variada. Atuou em A carne mais barata (2005), Espetacular & Espetaculoso (2014), performance De Profundis, Cenas Abissais (1987), Cinderela, a história que sua mãe não contou (1999), Em nome do desejo (1990), O balcão (1987), O burguês fidalgo (1988), Os palhaços da Rua da Alegria (1992) e Quarteto (1988). Não é uma lista exaustiva, mas aponta a extensão do gesto: do popular ao experimental, da farsa à poesia cênica, da pedagogia à prática cotidiana de teatro.

Talvez por isso suas aulas-oficinas ressoassem como ensaios de vida: “Consumo e Práxis Criadora” era um método. Ensinar, para ele, era encostar o ouvido no chão até sentir o trepidar do que vem — e, então, convidar todo mundo a experimentar junto. Primeiro o jogo, depois a tese; primeiro o risco, depois a palavra. Quando provocava “Estarei esperando Godot?”, havia ironia e ternura na mesma medida: não a resignação de quem aguarda o que não chega, mas o impulso de montar um espaço comum onde o encontro, esse sim, aconteça. O que Vavá propunha era simples e exigente: trabalhar a partir do “nosso quintal de subjetividades”, insistindo que a tal Internet das Coisas só faz sentido quando começa no chão compartilhado da presença, do erro, do gesto que ainda não sabe o nome. Da sala de ensaio ao corredor, do pátio à rua, sua obra parecia dizer que a arte não “representa” a vida: ela a curva um pouco, o bastante para que possamos passar.

E é nesse ponto que a transitoriedade se impõe, não como lamento, mas como claridade. O teatro, por definição, passa — e é no passar que ele nos toca. Vavá parecia saber disso desde sempre: não colecionava certezas; colecionava instantes. O palco, para ele, era o lugar onde o agora se dá por inteiro. Vavá armava a cena, no processo de preparar o terreno, arejar o ar, abrir passagem para que o extraordinário do agora possa, quem sabe, acontecer. E, se o tempo é o tecido do teatro, Caetano Veloso o nomeia com alegria grave: “Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos, tempo, tempo, tempo, tempo.” Vavá marcava esse compasso com a paciência de quem sabe que o ritmo não é a pressa; é a escuta — a cadência comum que faz de muitos um coro.

Transitoriedade é matéria. O que passa nos forma. Em Rasif – Mar que arrebenta, com ele, aprendemos que a maré não repete o desenho, mas insiste no gesto: vem, toca, recua, volta. Em Fim de Jogo, descobrimos ao seu lado que o palco é um laboratório de ruínas onde a vida insiste em brotar. Em Heliogábalo & Eu, dançamos na instabilidade. A pedagogia que deixou — feita de encontros, partilhas, cansaços honestos e um humor que desembaraça — foi um convite: experimentar o presente com inteireza. Talvez seja esse o maior legado: uma ética da presença que não perde tempo lutando contra o tempo, mas o transforma em parceria de criação.

Se perguntarem o que fica quando a luz desce, diremos talvez o exercício da atenção, que Vavá cultivou na cena e na vida; talvez a coragem de experimentar antes de entender; quem sabe o riso que desata nós; quisera a delicadeza firme de quem sabe a hora de falar e a hora de ouvir; fica, sobretudo, a certeza de que o teatro é uma arte do encontro, e que o encontro só existe porque somos, todos, passagem.

E se a notícia dura precisa caber num texto — a morte em incêndio, em casa, em Floresta; a cidade sem quartel de bombeiros; os muitos amigos e alunos desamparados — então que caiba junto o que a sustenta: a trajetória de um artista que fez do palco uma casa e da casa um lugar comum. O que fica agora é que a cena é encontro: esse foi o norte. E, enquanto o tempo compõe destinos e a cena se refaz, seguimos o conselho implícito que sua trajetória nos deixou: primeiro a partilha, depois o conceito; primeiro a vida, depois o nome. Porque a matéria passa, mas o gesto como resíduo drummondiano — esse sim — aprende a ficar. O resto a gente tenta aprender, como ele, em comum.

 

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Convocatória MITbr: últimos dias
de inscrições na Plataforma Brasil 2026

Grupo Cena 11, de Florianópolis (SC)  na MITbr 2024 com Eu não sou só eu em mim. Foto: Silvia Machado

A contagem regressiva começou. Entram na reta final as inscrições para a MITbr – Plataforma Brasil 2026, vitrine estratégica da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) dedicada a dar projeção internacional às artes cênicas brasileiras. O prazo se encerra em 15 de setembro no mitsp.org, e a convocatória — gratuita — é um convite a artistas, coletivos e companhias do país que queiram dialogar com curadores e programadores do circuito global.

Esta chamada é uma oportunidade de circulação, articulação e troca. Ao reunir espetáculos e proposições que refletem a diversidade estética e territorial do Brasil, a MITbr funciona como pontilhão entre a criação brasileira e os palcos do mundo.

Em 2025, a MITbr registrou 454 inscrições, um termômetro da vitalidade do setor e do interesse crescente pela plataforma. Para 2026, a expectativa é de ampliação desse alcance.

O que é a MITbr e por que ela importa 

  • É a plataforma da MITsp dedicada a apresentar um recorte curatorial da produção contemporânea brasileira (teatro, dança, performance) para programadores nacionais e internacionais.
  • O objetivo é acelerar convites, turnês, coproduções e residências, fortalecendo a internacionalização de artistas, companhias e coletivos do Brasil.
  • A curadoria é independente, e a seleção privilegia diversidade de estéticas, territórios e vozes, com atenção a grupos historicamente sub-representados.
  • Aumento da presença de artistas brasileiros em festivais e temporadas no exterior.
  • Fortalecimento de parcerias e coproduções, com impacto na sustentabilidade dos projetos.
  • Curadoria atenta a diversidade de linguagens (teatro, dança, performance e hibridismos), trazendo obras que tensionam formas e discursos.
  • Ampliação do olhar para além dos grandes centros, com maior atenção a territorialidades múltiplas.

Desafios em pauta

  • Logística e financiamento: a viabilização de turnês e deslocamentos segue como grande gargalo, especialmente para projetos de regiões distantes dos principais eixos de transporte.
  • Representatividade e acesso: refletir a pluralidade brasileira na programação exige políticas ativas e contínuas, considerando recortes étnico-raciais, de gênero, de deficiência e de território.
  • Diferenças de escala: obras intimistas e de pequeno porte competem, no radar internacional, com produções de maior orçamento — um equilíbrio que demanda mediação curatorial e negociação com a rede de programadores.
  • Sustentabilidade: pensar circulação de modo mais responsável (carbono, materiais, logística) tornou-se pauta transversal.
  • Apesar dos obstáculos, a MITbr vem acumulando resultados concretos: maior visibilidade no exterior, redes de colaboração mais densas e um diálogo curatorial que se atualiza a cada edição.

O que os curadores costumam observar

  • Intelecção artística: uma obra com proposição estética nítida e coerência entre linguagem, tema e dispositivo cênico.
  • Potencial de circulação: condições técnicas claras, adaptabilidade a diferentes espaços, e documentação audiovisual que reflita a experiência de público.
  • Singularidade e contexto: projetos que tragam vozes, territorialidades e imaginários pouco vistos no circuito internacional chamam atenção — especialmente quando articulam rigor formal e potência política                                                                                                                                   

Serviço — MITbr 2026

MITbr – Plataforma Brasil 2026 (chamada pública)
Inscrições: Até 15 de setembro de 2025
Divulgação dos selecionados: até 1º de dezembro de 2025
Apresentações: de 5 a 15 de março de 2026, em São Paulo
Taxa: inscrições gratuitas
Onde: site oficial da MITsp — mitsp.org

 

A MITsp em Avignon 2025:
Projeção Cultural Brasileira e Seus Desdobramentos

História do Olho, de Janaina Leite (São Paulo/SP). Foto: Reproduão do Instagram

A participação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) no Festival Off Avignon, realizada entre 5 e 13 de julho de 2025, constituiu um esforço notável na estratégia de projeção cultural brasileira no cenário internacional. Organizada no âmbito da Temporada Brasil França 2025 e respaldada por financiamento do Ministério da Cultura e patrocínio da Petrobras, a iniciativa buscou estabelecer um intercâmbio substancial, apresentando um recorte da produção nacional a um público e a programadores globais.

A delegação brasileira em Avignon foi composta por um programa com quatro espetáculos de teatro e dança, três filmes e três conferências. No palco francês, obras como História do Olho, de Janaina Leite (São Paulo/SP), foram apresentadas, explorando a fronteira entre o ficcional e o documental. AZIRA’I – Um Musical de Memórias, da atriz indígena Zahy Tentehar, trouxe à cena narrativas que ressoaram pela sua pertinência e pela performance de sua criadora. Fábio Osório Monteiro, com Bola de Fogo, propôs uma interação que mesclava o preparo de um quitute tradicional com discussões sobre identidades, enquanto Eles Fazem Dança Contemporânea, de Leandro Souza, abordou questões sobre a presença negra na arte contemporânea ocidental. Foram exibidos os filmes O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, de Bia Lessa; A Queda do Céu, de Éryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha; e As Cadeiras, de Luís Fernando Libonati. A programação foi enriquecida por conferências com intelectuais como Geni Núñez, Rosane Borges e Vladimir Safatle, que ofereceram análises sobre o Brasil contemporâneo sob perspectivas indígenas, raciais, de gênero e políticas.

Passados dois meses do evento, a recepção da presença brasileira em Avignon registrou resultados observáveis. A crítica especializada francesa dedicou cobertura às obras brasileiras, com comentários que abordaram a diversidade de temas, a inventividade das linguagens e a performance dos artistas. Sessões nas salas de La Manufacture registraram presença de público compatível com as expectativas, especialmente para os espetáculos que já possuíam um histórico de apresentações em festivais no Brasil. A imprensa francesa, incluindo publicações como Le Monde e Libération, veiculou comentários sobre a abordagem curatorial da MITsp, que procurou apresentar aspectos variados da cultura brasileira.

No que tange aos programadores e profissionais do setor, a exposição das obras brasileiras foi um objetivo cumprido. Relatos da própria MITsp e informações veiculadas indicam que discussões foram iniciadas com diversos programadores de festivais e espaços culturais de distintos países para possíveis futuras apresentações e parcerias. Guilherme Marques, diretor geral de produção da MITsp, indicou que o nível de engajamento alcançado foi significativo. As conferências e sessões de filmes também registraram participação considerável, o que agregou um componente de debate e reflexão à apresentação artística.

Em relação ao investimento e à percepção pública, a participação da MITsp em Avignon foi sustentada por financiamento público e privado. A repercussão da imprensa brasileira, tanto no período pré-evento quanto no pós-evento, focou predominantemente nos anúncios e na apresentação da iniciativa, com alguns veículos indicando desdobramentos positivos em termos de interesse e visibilidade para os espetáculos. 

A narrativa observada na cobertura midiática sugere que o aporte financeiro é contextualizado pela projeção da cultura brasileira e pela busca de novas avenidas de intercâmbio, cujos resultados tangíveis, como convites concretos para novas apresentações, ainda se encontram em fase de maturação e negociação. Tal perspectiva alinha-se à compreensão de que ações de projeção internacional, especialmente no campo cultural, demandam tempo para que seus impactos e retornos se manifestem plenamente.

 

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Flup Pernambuco:
Marco histórico na democratização
dos saberes periféricos

Algumas presenças da Flup.PE: Jessé Souza, Jaqueline Fraga (curadora), Luciany Aparecida, Carla Akotirene, Tarciana Portella (coordenação), Mãe Beth de Oxum , Robeyoncé Lima, Marilene Felinto, Julio Ludemir (criador da Flup-RJ),Vitor da Trindade, Cannibal e Itamar Vieira Jr.

A chegada da Festa Literária das Periferias (Flup) ao território pernambucano representa um movimento que reconhece as periferias como espaços de produção intelectual e resistência cultural sistematicamente invisibilizados pelos circuitos dominantes da literatura brasileira.

A partir de hoje, 10 de setembro, o Compaz Governador Eduardo Campos, no Alto de Santa Terezinha, se transforma em epicentro de debates que ultrapassam as fronteiras convencionais entre conhecimento acadêmico e saberes populares. 

Criada em 2012 no Rio de Janeiro por Julio Ludemir e Écio Salles (in memoriam), a Flup desembarca pela primeira vez em Pernambuco após 14 anos de consolidação na capital fluminense. A chegada ao estado acontece a partir da articulação de Tarciana Portella, coordenadora da Flup Pernambuco e cofundadora do Instituto Delta Zero, que conhecia Julio Ludemir desde a adolescência. Após acompanhar o trabalho do jornalista e escritor ao longo dos anos, Tarciana participou da festa no Rio em 2023, no Morro da Providência, e percebeu que essa experiência precisava chegar a Pernambuco, terra de tradição literária e cultural efervescente.

O evento, que reúne autores, intelectuais, artistas, lideranças religiosas e pensadores do Brasil para debater ideias que emergem das periferias, conta com extensa programação gratuita que traz nomes como Itamar Vieira Jr., Jessé Souza, Vitor da Trindade, Robeyoncé Lima, Marilene Felinto, Luciany Aparecida, Carla Akotirene, Cannibal, Odailta Alves, Bell Puã, Isaar, Mãe Beth de Oxum, Ellen Oléria, Lucas dos Prazeres, e muito mais 

A partir deste terça-feira, 10 de setembro, o Compaz Governador Eduardo Campos, no Alto de Santa Terezinha, se transforma em epicentro de debates que ultrapassam as fronteiras convencionais entre conhecimento acadêmico e saberes populares. A escolha deste equipamento público, reconhecido pela UNESCO por suas práticas de cidadania e cultura de paz, materializa o compromisso da Flup com a ocupação democrática dos espaços culturais.

A homenagem ao poeta e ativista Francisco Solano Trindade (1908-1974) estabelece um fio condutor que conecta diferentes momentos da luta antirracista brasileira. Nascido no Recife e declarado Patrono da Luta Antirracista de Pernambuco em 2020, Trindade antecipou debates contemporâneos sobre representatividade e acesso cultural e formulou um projeto que via na arte popular um instrumento de transformação social.

A presença de Liberto Solano Trindade, filho do poeta, junto com sua companheira Nilu Strang, na programação da Flup constitui uma ponte entre gerações. O casal participa de atividades que dialogam com ancestralidade e memória, incluindo a ação pedagógica Nós que somos Solano Trindade, que começou no dia 8 e vai até 12 de setembro. A proposta expande a memória da família, incluindo também Margarida Trindade, esposa e parceira artística de Solano, cuja história será resgatada em cordel.

Um Elenco de Vozes Transformadoras

Sob a curadoria da escritora e jornalista Jaqueline Fraga, autora do livro Negra Sou: a ascensão da mulher negra no mercado de trabalho (finalista do Prêmio Jabuti 2020), a programação reúne nomes fundamentais do pensamento brasileiro contemporâneo. O sociólogo Jessé Souza, autor de A Elite do Atraso e O Pobre de Direita, divide espaços com a pesquisadora Carla Akotirene, referência nos estudos sobre interseccionalidade e feminismo negro.

O escritor baiano Itamar Vieira Jr., vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos com Torto Arado, participa ao lado de Vitor da Trindade, filho de Solano, numa mesa que questiona A quem a arte incomoda? E a quem deve servir?. A cantora e compositora Ellen Oléria, vencedora do The Voice Brasil, encerra a programação junto com o poeta pernambucano Lucas dos Prazeres, explorando as fronteiras entre música e poesia.

A escritora e jornalista Bianca Santana, autora de Quando me descobri negra, participa dos debates sobre juventude negra. A física e escritora Sônia Guimarães, primeira mulher negra doutora em Física no Brasil, divide a mesa Pioneiras, sim! Sozinhas, não! com a advogada travesti Robeyoncé Lima, pioneira na advocação trans em Pernambuco.

Das lideranças religiosas, participam Pai Ivo de Xambá, Mãe Beth de Oxum e Pai Lívio, que abordarão A força e a resistência do sagrado em Pernambuco.

Esmeralda Ribeiro, uma das fundadoras dos Cadernos Negros, Inaldete Pinheiro, autora de Pixaim em versos soltos, Odailta Alves, com As bonecas de Nyashia, Marilene Felinto, escritora, jornalista e crítica literária, Lorena Ribeiro, escritora e ativista feminista, e Luciany Aparecida, autora de Mata Doce, finalista do Prêmio Jabuti 2024, trazem suas perspectivas autorais para os debates.

Nas artes visuais e performance, participam Jeff Alan, artista visual, e Andala Quituche, fundadora do Museu das Tradições do Cavalo-Marinho. O universo musical traz o cantor e compositor recifense Cannibal e a artista Isaar França, que compõem um mosaico sonoro diversificado ao lado de Ellen Oléria e Lucas dos Prazeres.

Compaz Alto Santa Terezinha. Foto: Andrea Rego Barros/ Divulgação

Desafios Estruturais e Estratégias de Superação

A implementação da Flup em Pernambuco enfrenta desafios estruturais que espelham as desigualdades do campo cultural brasileiro. O financiamento foi viabilizado através de emendas parlamentares do deputado Renildo Calheiros e do senador Humberto Costa, via Ministério da Cultura, além do patrocínio do Banco do Nordeste e apoio da Prefeitura do Recife.

A coordenação de Tarciana Portella, através do Instituto Delta Zero, demonstra como a economia criativa pode funcionar como vetor de desenvolvimento territorial. “A Flup é processo, plataforma de pensamento, conexões e incubação de talentos antes invisibilizados”, define ela, que quando conheceu a festa no Rio de Janeiro em 2023 percebeu que essa experiência precisava chegar a Pernambuco.

O modelo curatorial adotado pela Flup Pernambuco reflete avanços significativos na reconfiguração dos circuitos literários nacionais. A festa chega ao Nordeste após 14 anos de consolidação no Rio de Janeiro, onde se tornou Patrimônio Cultural Imaterial do Estado em 2023 e acumulou prêmios como o Jabuti (2020) e o Excellence Awards (London Book Fair, 2016).

A escolha do Alto de Santa Terezinha como sede do evento é logística, mas também estratégica. No Recife, os morros — chamados de Altos — ocupam 68% do território urbano, mas quem circula por eles são, em grande parte, seus próprios moradores. Ao ocupar este território periférico com programação cultural de alto nível, a Flup contesta geografias simbólicas que concentram a produção intelectual em áreas centrais das metrópoles.

Esta territorialização da cultura possibilita o que caracteriza uma democratização real dos espaços de legitimação intelectual. A programação temática abrange desde discussões sobre juventude negra até debates sobre feminismos e religiosidades afro-brasileiras, evidenciando uma sofisticação conceitual que supera a dicotomia entre cultura popular e erudita.

Homenagem ao poeta e ativista Francisco Solano Trindade (1908-1974)

Programação Completa – Flup Pernambuco 2025

10 de setembro (Quarta-feira)

– 15h – Roda de Diálogo: Nós que somos Solano Trindade
Participantes: Liberto Solano Trindade e Nilu Strang

17hSarau Versos e Raízes
Participantes: Odailta Alves, Mariana Brito, Regilane Franca, Maria Carolina, Débora Santos, Miriam Gomes
Apresentação musical: Ana Benedita Costa

18h30 – Cerimônia de Abertura

– 19h – Mesa: Sabemos a direção? Como resgatar a juventude negra
Participantes: Bianca Santana, Jessé Souza
Mediação: Jéssica Santos

– 20h30 – Lançamentos
Livros de Jessé Souza, Bianca Santana e Jéssica Santos

11 de setembro (Quinta-feira)

– 15h – Lançamentos de autores independentes
Caio do Cordel (Super Negro), Cibele Laurentino (Nobelina), Ana Daviana (Essa mundana gente)

– 17h – Lançamentos
Inaldete Pinheiro (Pixaim em versos soltos), Odailta Alves (As bonecas de Nyashia), Iaranda Barbosa (Ponto de Luz)

– 18h30 – Mesa 1: Ancestralidade em vida: construindo e abrindo caminhos
Participantes: Esmeralda Ribeiro, Inaldete Pinheiro
Mediação: Odailta Alves

– 20h – Mesa 2: Conhecimento é alimento cultural
Participantes: Carla Akotirene, Cannibal
Mediação: Iaranda Barbosa

12 de setembro (Sexta-feira)

– 15h – Lançamentos de autores independentes
Samuel Santos (Maria Preta), Luciene Nascimento (Tudo nela é de se amar), Marcondes FH (Rosa Menininho)

– 17h – Mesa 1: A força e a resistência do sagrado em Pernambuco
Participantes: Pai Ivo, Mãe Beth de Oxum
Mediação: Pai Lívio

– 18h30 – Mesa 2: A arte como vetor, movimento e inspiração
Participantes: Salgado Maranhão, Isaar
Mediação: Luciana Queiroz

20h – Mesa 3: A quem a arte incomoda? E a quem deve servir?
Participantes: Itamar Vieira Jr., Vitor da Trindade
Mediação: Lenne Ferreira

– 21h30 – Lançamentos
Livros de Itamar Vieira Jr. e Vitor da Trindade

13 de setembro (Sábado)

– 14h – Lançamentos de autores independentes
Eron Villar (O Carnaval de Capiba), Vera Lúcia e Wedna Galindo (Espanador não limpa poeira), Fátima Soares (Ossos)

– 15h – Mesa 1: Sonhos vivos: o poder da cultura na construção social
Participantes: Jeff Alan, Andala Quituche
Mediação: Thayane Fernandes

– 16h30 – Mesa 2: O futuro é agora e feminino. E a literatura também
Participantes: Marilene Felinto, Lorena Ribeiro
Mediação: Bell Puã

– 18h – Lançamentos
Livros de Thayane Fernandes, Lorena Ribeiro, Marilene Felinto

– 18h30 – Mesa 3: Pioneiras, sim! Sozinhas, não!
Participantes: Sônia Guimarães, Robeyoncé Lima
Mediação: Renata Araújo

– 20h30 – Espetáculo: Se eu fosse Malcolm
Artistas: Eron Villar e DJ Vibrasil
Peça inspirada no legado de Malcolm X, entre música identitária e teatro épico-narrativo

14 de setembro (Domingo)

– 14h – Lançamentos de autores independentes
João Gomes (Revezamento Secreto), Célia Martins (Ara-Y), Maria Cristina Tavares (As aventuras de Bayo em Terras Africanas), Robson Teles (Ave, Guriatã)

– 15h – Mesa 1: Acessos e permanências: nosso lugar é todo lugar
Participantes: Luciany Aparecida, Amanda Lyra
Mediação: Érico Andrade

– 16h30 – Lançamentos
Livros de Érico Andrade e Luciany Aparecida

– 17h – Mesa 2: Entre sons e sensações: palavra é música e música é poesia
Participantes: Ellen Oléria, Lucas dos Prazeres
Mediação: Marta Souza

– 19h – Encerramento
Apresentação artística de Lucas dos Prazeres com participação de Ellen Oléria

Serviço

📍 Compaz Governador Eduardo Campos – Alto de Santa Terezinha, Recife/PE
📅 10 a 14 de setembro de 2025
⏰ Diariamente das 14h às 21h30
Entrada: Gratuita
♿ Acessibilidade: Interpretação em Libras em todas as atividades
🍽️ Serviços: Feira de livros e espaço gastronômico permanentes
📱 Informações:
Instagram: @flup.pe2025
Site: www.vempraflup.com.br
🤝 Realização: Instituto Delta Zero e Ministério da Cultura
💼 Parcerias: Flup (RJ), Suave, Associação Na Nave, Sintepe, Araçá Produções Culturais
💰 Patrocínio: Banco do Nordeste (BNB)
🏛️ Apoio: Prefeitura do Recife, coletivos Redes do Beberibe, Minas Comunicação e Cultura, Negras Linhas, Negra Sou, Cooperativa Ecovida Palha de Arroz

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Soledad – A Terra é fogo sob nossos pés:
10 anos de teatro e resistência

Soledad, uma década de memória viva e transformação permanente. Foto: Jorge Farias / Divulgação

Há espetáculos que são concebidos para tensionar as urgências de seu tempo. Soledad – A Terra é Fogo Sob Nossos Pés faz algo mais complexo: ao resgatar uma voz silenciada de 1973, desenvolveu em 2015 uma nova voz que ressoa até hoje, em 2025. Honra Soledad Barrett Viedma como força política contemporânea.

Dez anos de trajetória ininterrupta pelos palcos brasileiros culminam agora em duas apresentações especiais que representam muito mais que marcos comemorativos: são afirmações de que a arte política permanece necessária e transformadora.

Nos dias 2 e 3 de setembro, às 19h30, no Teatro Hermilo Borba Filho, a montagem celebra uma década de existência. Dez anos que, como anuncia a própria produção, “nos transformaram para sempre”. E não é exagero: poucos espetáculos conseguiram unir com tanta força artística e política a recuperação histórica, o empoderamento feminino e a urgência do presente.

O espetáculo  é um marco do teatro político produzido em Pernambuco. Foto: Jorge Farias / Divulgação

Em 2015, quando a atriz pernambucana Hilda Torres, a diretora argentina Malú Bazán e a artista plástica Ñasaindy Barrett – filha de Soledad atuante no projeto – conversaram para dar vida à guerrilheira paraguaia nos palcos, o Brasil vivia um momento político turbulento que ainda não conseguia dimensionar completamente.

Como comentou Malú Bazán: “Desde o processo de pesquisa histórica para a montagem da peça, ainda em 2015, percebemos a relação íntima entre o passado e o presente. Nesse mesmo período aconteciam passeatas em São Paulo, principalmente, pedindo a ‘volta do golpe militar e chega de Paulo Freire'”. O que não sabiam então é que estavam criando uma obra profética, que anteciparia lutas e resistências que só uma década depois seriam plenamente compreendidas.

O espetáculo teve como ponto de partida o livro Soledad no Recife, do escritor pernambucano Urariano Mota, expandindo-se através de uma rede internacional de apoio. Ex-prisioneiros políticos, militantes paraguaios, argentinos e brasileiros, parentes e compatriotas de Soledad contribuíram para que a montagem se tornasse uma investigação coletiva sobre uma das figuras mais emblemáticas e injustiçadas da resistência latino-americana.

Soledad Barrett Viedma: para além dos rótulos da História. Foto: Jorge Farias / Divulgação

A história oficial reduziu Soledad Barrett Viedma (1945-1973) ao rótulo de “mulher do Cabo Anselmo”, uma enorme injustiça para uma personalidade complexa e potente. Neta do escritor, jornalista e líder anarquista Rafael Barrett, ela carregava no sangue uma herança intelectual libertária que atravessava gerações. Esta linhagem de resistência, fundamental para compreender sua formação política, conecta-se diretamente com as lutas anarquistas do início do século XX na América Latina.

Como descreve Hilda Torres : “Nasceu com sua mãe e ela apenas, por isso Soledad – Solidão; criança que cresceu entre sons de bombas e brincadeiras, levando recados codificados em suas saias para dirigentes comunistas”. A militante Soledad falava guarani e dedicava-se a alfabetizar populações indígenas – dimensão fundamental de sua atuação que conectava resistência política e preservação cultural originária.

Sua trajetória é um mapa da resistência latino-americana: exilada com menos de um ano, aos 16 anos já realizava apresentações de danças folclóricas em eventos solidários ao Paraguai no Uruguai. Aos 17, foi sequestrada por neonazistas que gravaram a suástica em suas coxas quando ela se recusou a gritar “viva Hitler!”. Estudou teorias comunistas na antiga URSS, treinou guerrilha em Cuba, onde se casou e teve sua filha Ñasaindy com José Maria de Ferreira de Araújo.

Em 1970, veio ao Brasil em missão pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Aqui, apaixonou-se por José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, sem saber que ele era um agente duplo. Grávida dele, foi entregue ao perverso delegado Sérgio Paranhos Fleury e assassinada junto com outros cinco companheiros no Massacre da Granja São Bento, em 8 de janeiro de 1973, em Abreu e Lima.

Dramaturgia colaborativa da resistência assinada por Malú Bazán e Hilda Torres. Foto: Jorge Farias / Divulgação

A dramaturgia foi desenvolvida pela atriz Hilda Torres e pela diretora Malú Bazán e contou com múltiplas colaborações para chegar ao texto final. Ñasaindy Barrett assina a identidade visual e as composições da trilha sonora. O texto é uma colcha de retalhos da memória histórica continental, tendo como base o livro de Urariano Mota e ampliando-se através de entrevistas com ex-prisioneiros políticos, da publicação 68, a geração que queria mudar o mundo (organizada por Eliete Ferrer), dos registros da Comissão da Verdade e do Tortura Nunca Mais.

Fundamental para a criação foram os poemas de Marco Albertim e as composições musicais de Ñasaindy Barrett, que empresta sua voz de cantora ao espetáculo, criando uma ponte sonora entre passado e presente. A direção musical de Lucas Notaro integra estes elementos em uma trilha que dialoga com as tradições musicais paraguaias, brasileiras e de resistência latino-americana.

Uma interpretação histórica e transformadora de Hilda Torres. Foto: Jorge Farias / Divulgação

A performance de Hilda Torres em Soledad é amplamente reconhecida como um marco na carreira da atriz e no teatro político brasileiro. Sozinha em cena, ela encarna a guerrilheira paraguaia com uma entrega total que vai do sussurro íntimo ao grito revolucionário, do guarani ancestral aos movimentos do cavalo-marinho pernambucano.

Para honrar a identidade da personagem, Torres aprendeu palavras e expressões em guarani – uma escolha que vai além da técnica, é política, reconhecendo a importância da língua originária na formação de Soledad. Os movimentos do cavalo-marinho nas cenas de batalha criam uma ponte entre as culturas paraguaia e nordestina, evidenciando como a resistência encontra expressão em diferentes territórios e tradições.

Como escreveu a jornalista Ivana Moura (que sou eu! 😉) em crítica publicada em maio de 2016: “É uma atuação de fôlego de Hilda Torres. A maior de sua carreira. Uma entrega total. Potente e bela. Por seus poros, por seus olhos, nos seus gestos, na gradação de sua voz, nas explosões emotivas da personagem pulsam o essencial de vida”.

Muitos elementos cênicos convocam as memórias da protagonista. Foto: Jorge Farias / Divulgação 

A direção de Malú Bazán criou uma encenação de elementos mínimos mas de máximo impacto imagético. O cenário despojado – uma cadeira, livros, papéis espalhados do processo de criação, uma boneca confeccionada por Maria de Lourdes Albuquerque (que em 2016 tinha 94 anos, uma das mães que buscaram filhos desaparecidos na ditadura) – transforma o palco em um espaço de memória viva e ritual ancestral.

A encenação exalta os mitos e ritos ancestrais e evoca os povos originários, incorporando elementos como o banho ritual com os seios desnudos (conectando com a Terra e a feminilidade ancestral) e a celebração de orixás como Nanã do candomblé. Estas escolhas estéticas têm dimensão política, reconhecendo as múltiplas resistências que Soledad representava.

A iluminação de Eron Villar cria ambientes que oscilam entre a intimidade confessional e a grandeza épica, enquanto a direção musical integra sonoridades que vão do guarani aos cantos de resistência brasileiros.

Um feminismo revolucionário habita o espetáculo. Foto: Jorge Farias / Divulgação 

Um dos aspectos mais inovadores do espetáculo é como ele resgata Soledad como precursora do feminismo interseccional contemporâneo. Em plena década de 1970, ela já praticava o que hoje chamamos de interseccionalidade: mulher, indígena, refugiada, mãe, guerrilheira. Esta postura, que em 1973 era revolucionária, em 2025 ressoa profundamente com movimentos feministas contemporâneos, lutas por direitos reprodutivos e feminismo decolonial. Soledad alfabetizando indígenas antecipa debates atuais sobre educação popular e resistência cultural.

O espetáculo, como eu observei em crítica de outubro de 2016, “é totalmente feminista, de empoderamento da mulher, e com caráter libertário, contra as repressões”. Mas consegue isso sem anacronismo, mantendo a complexidade histórica da personagem – mulher, mãe, filha, companheira, dançarina, poetisa – em toda sua humanidade.

2015-2025: Uma Década 

Quando o espetáculo estreou em 2015, o Brasil vivia o início de uma crise democrática que ainda não compreendia completamente. O impeachment de Dilma Rousseff se gestava, o feminismo lutava por espaços básicos, a memória da ditadura era questionada por negacionistas emergentes, e a América Latina via seus governos progressistas em declínio.

Dez anos depois, o planeta viveu transformações que tornaram Soledad ainda mais relevante: o Brasil viveu sua própria tentativa golpista em 8 de janeiro de 2023, compreendendo visceralmente os mecanismos autoritários que Soledad enfrentou; questões de gênero ganharam centralidade global,.

O espetáculo hoje encontra uma nova geração de espectadores: jovens de 15-25 anos que nasceram na democracia mas testemunharam autoritarismo recente; ativistas digitais que conhecem resistência virtual, mas precisam compreender resistência física; feministas contemporâneas que conectam instintivamente com o empoderamento interseccional de Soledad; movimentos identitários que compreendem a multiplicidade de opressões que ela enfrentava. Soledad, hoje reconhecida como referência feminista em toda a América Latina, dialoga com movimentos de mulheres indígenas contemporâneos, lutas por justiça de gênero no continente, resistências à violência política atual e a questão dos feminicídios que tornaram sua morte ainda mais simbólica.

Relevância histórica e reparação da memória. Foto: Jorge Farias / Divulgação

Como afirmou o escritor Urariano Mota em artigo intitulado Dilma Rousseff e Soledad Barrett, publicado no Diario de Pernambuco em 29 de agosto de 2016: “Soledad Barrett Viedma é um dos casos mais eloquentes da guerra suja da ditadura no Brasil”. O espetáculo funciona como um ato de reparação histórica, restituindo a Soledad o lugar de protagonista de sua própria história de luta e como referência continental de resistência feminina.

A montagem manifesta, nas palavras de Ivana Moura em crítica publicada em maio de 2016, “o poder da arte, de promover a reparação – pelo menos da imagem pública – das violações a direitos fundamentais. Para reescrever a História e subverter a ordem do esquecimento”.

Mas vai além: ao conectar Soledad com suas raízes guaranis, sua herança anarquista familiar e sua dimensão internacional, o espetáculo reinscreve toda uma linhagem de resistência que perpassa diferentes territórios e épocas.

Desde sua estreia, Soledad percorreu diversos palcos do Brasil, participou de festivais, foi apresentada em São Paulo como parte da Circulação Nacional, sempre provocando debates que ultrapassam o teatro. Em 2019, durante apresentação no Galpão do Folias em São Paulo, a militante Damaris Oliveira Lucena foi homenageada, evidenciando como o espetáculo conecta gerações de resistência.

A produção manteve um compromisso com a memória coletiva continental. Em setembro de 2016, durante as comemorações de um ano da montagem, foi realizado um ato de gratidão aos ex-prisioneiros políticos, como relatou Hilda Torres em entrevista ao Satisfeita, Yolanda?, publicada em setembro de 2016: “Essa geração atual precisa agradecer a uma geração que jamais poderá ser esquecida”.

Legado e continuidade… Soledad  tem muitas histórias.  Foto: Jorge Farias / Divulgação

Ao completar dez anos, Soledad – A Terra é Fogo Sob Nossos Pés se estabelece como um marco do teatro político brasileiro contemporâneo e referência latino-americana de resistência cultural. Torna-se uma referência de como a arte pode resgatar vozes silenciadas, transformar dor histórica em força transformadora e conectar lutas de diferentes épocas.

As apresentações de 2 e 3 de setembro no Teatro Hermilo Borba Filho celebram dez anos de uma necessidade que se renova: a necessidade de lembrar para transformar, de resistir para construir, de não deixar que a história se repita, mas garantir que a esperança se multiplique.

Como dizia Daniel Viglietti na música que inspira o espetáculo: “Uma coisa aprendi junto a Soledad: que deve-se empunhar o pranto, deixá-lo cantar”.

Dez anos depois, o pranto de Soledad continua cantando. E nós continuamos aprendendo que cantar é resistir, resistir é transformar, transformar é construir o futuro que ela sonhou e pelo qual morreu.

Ficha Técnica

Atriz, idealizadora e produção geral: Hilda Torres
Direção: Malú Bazán
Dramaturgia: Hilda Torres e Malú Bazán
Iluminação: Eron Villar
Direção musical e trilha sonora: Lucas Notaro
Identidade visual, trilha sonora: Nasaindy Barrett
Designer/social mídia: Li Buarque
Assessoria de Imprensa: Dea Almeida
Registro fotográfico: Rogério Alves
Vídeo e edição: Suco filmes
Assistente de produção: Anny Rafaella Ferly e Ariani Ferreira
Produção geral e trilha sonora: Márcio Santos
Realização: Cria do Palco

Serviço

📅  02 e 03 de setembro de 2025, 🕰️ 19h30
📍 Teatro Hermilo Borba Filho – Recife/PE
💰 Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)
🎟️ Vendas: Sympla Dia 02/SET e Dia 03/SET

+ Soledad no Satisfeita, Yolanda?

https://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/soledad-que-ainda-se-nega-a-morrer/
https://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/ressurreicao-de-soledad-barrett-no-palco/
https://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/guerrilheira-altiva/
https://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/manifesto-contra-a-repressao-de-ontem-e-de-hoje/
https://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/guerrilha-e-amor-uma-mistura-explosiva/

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