Arquivo da categoria: Críticas

21º Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco
aposta na criatividade sem limite

Jornada teatral promete encantar público com histórias instigantes como O Segredo da Arca de Trancoso. Foto: Wilson Lima

Pinoquio. Foto: Cesar Almeida

Por que levar as crianças ao teatro?
O teatro é uma arte poderosa para o desenvolvimento infantil. Além de estimular a imaginação e a criatividade, as apresentações teatrais ajudam as crianças a desenvolverem empatia, pensamento crítico e habilidades sociais. Não tem contraindicação. 

“Quando uma criança assiste a um espetáculo teatral, ela não está apenas se divertindo, mas também aprendendo sobre emoções, valores e diferentes perspectivas de vida”, destaca Edivane Bactista, produtora do 21º Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco (FTCPE), que neste 2025 tem como tema Criatividade sem Limite.

O universo lúdico e encantador do teatro infantil ganha as principais casas de espetáculo do Recife a partir deste final de semana e traz 14 espetáculos que prometem transportar o público para mundos de fantasia, aventura e aprendizado.

De 5 a 27 de julho, sempre aos sábados e domingos, os teatros de Santa Isabel, Parque e Barreto Júnior serão palco de montagens que celebram a diversidade cultural brasileira e a imaginação sem fronteiras. A programação reúne companhias de Arcoverde, Moreno, Paulista, Recife, João Pessoa (PB), além de uma montagem luso-brasileira vinda do Rio de Janeiro e uma produção olindense com influências egípcias e espanholas.

“O Festival busca oferecer ao público infantil uma mostra das muitas possibilidades que o teatro proporciona através da dramaturgia, da música, das formas animadas e do circo, linguagens que dialogam naturalmente com o universo da criança”, explica Ruy Aguiar, diretor artístico do evento.

Uma novidade desta edição é que todas as sessões contarão com acessibilidade em Libras, tornando o festival ainda mais inclusivo.

A solenidade de abertura acontece neste sábado (05/07), às 16h30, no Teatro de Santa Isabel, dez minutos antes da apresentação do espetáculo Mundo em Busca do Coração da Terra, da Tropa do Balacobaco de Arcoverde. Na ocasião, serão homenageados três artistas pernambucanos que dedicaram mais de 50 anos às artes cênicas, com destaque para as dramaturgias negras e quilombolas: as atrizes Carmelita Pereira e Juraci Vicente, e o ator, diretor e dramaturgo Didha Pereira.

Os espetáculos selecionados para o 21º FTCPE abordam temas relevantes como amizade, coragem, diversidade cultural e respeito ao meio ambiente, sempre de forma lúdica e acessível ao público infantil.

Em 21 anos de atividade, o Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco consolidou-se como um dos mais longevos do Brasil. Até a edição de 2024, foram realizados 270 espetáculos presenciais em mais de 485 apresentações, alcançando 154 mil espectadores e gerando mais de 5.200 trabalhos diretos e indiretos. Além das apresentações, o Festival também promove o Colóquio do Teatro para Infância e Juventude, que em 2025 completará 11 anos.

MUNDO em busca do coração da Terra – Foto_ Kaian Alves 

Programação do Final de Semana de Abertura

Sábado (05/07)
Teatro de Santa Isabel – 16h30

Mundo em Busca do Coração da Terra (Tropa do Balacobaco/Arcoverde-PE) : Uma aventura emocionante sobre um menino sertanejo que sonha conhecer a noite, em um tempo onde o sol reina sozinho. A jornada o leva a encontrar lendas das cinco macrorregiões do Brasil.
Ingressos: R$ 60,00 (inteira)/ R$ 30,00 (meia-entrada)
Duração: 70 minutos
Classificação: Livre

Teatro do Parque – 16h30

O Segredo da Arca de Trancoso (Cênicas Cia de Repertório/ Recife-PE): A história de um menino que recebe a missão de entregar uma arca misteriosa, enfrentando personagens inusitados e descobrindo que o objeto tem poderes surpreendentes.
Ingressos: R$ 60,00(inteira)/ R$ 30,00 (meia-entrada)
Duração: 60 minutos
Classificação: Livre

Domingo (06/07)
Teatro de Santa Isabel – 16h30

Pinóquio (Roberto Costa Produções/ Paulista-PE): O clássico boneco de madeira que sonha em se tornar um menino de verdade ganha vida no palco, em uma adaptação que encanta gerações.
Ingressos: R$100,00 (inteira) /R$ 50,00 (meia-entrada)
Duração: 50 minutos
Classificação: Livre

O Segredo da Arca de Trancoso. Foto: Wilson Lima

Pinoquio. Foto: Cesar Almeida

PROGRAMAÇÃO POR POLO

Teatro de Santa Isabel (16h30)
13 de julhoJoão por um Fio – (Companhia Boto-Vermelho / Rio de Janeiro–RJ e Lisboa–Portugal) Ingressos: R$ 80,00 (inteira) e R$ 40,00 (meia-entrada)

Teatro do Parque (16h30)
12 de julhoPra não dormir – Cutia Coletivo (Recife–PE)
R$ 60,00 (inteira) e R$ 30,00 (meia-entrada)

Teatro Barreto Júnior (16h)
12 de julhoO Reizinho Negro – Companhia Fuá de Terreiro (João Pessoa–PB)
R$ 60,00 (inteira) e R$ 30,00 (meia-entrada)

13 de julhoO Dia em que a Morte Sambou – Grupo Habib e Valeria (Olinda/Egito/Espanha)
R$ 60,00 (inteira) e R$ 30,00 (meia-entrada)

19 de julhoTatu-do-Bem – Catalumari e os Giguiotes (Recife–PE)
R$ 40,00 (inteira) e R$ 20,00 (meia-entrada)

20 de julhoA Batalha de Botas – Trupe Arlequin (João Pessoa–PB)
R$ 60,00 (inteira) e R$ 30,00 (meia-entrada)

Serviço
21º Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco

Data: De 5 a 27 de julho (sábados e domingos)
Locais: Teatro de Santa Isabel e Teatro do Parque (16h30)
Teatro Barreto Júnior (16h)
Ingressos: Preços variados, com meia-entrada para crianças a partir de 2 anos, autistas e acompanhantes, estudantes, professores, doadores regulares de sangue ou de medula óssea e idosos com apresentação da carteira.
Vendas: Plataforma Sympla (link disponível no site
www.teatroparacrianca.com.br) e nas bilheterias dos teatros a partir das 15h nos dias das apresentações (sujeito à lotação).
O 21º Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco é uma realização da Métron Produções, com incentivo cultural do SIC – Sistema de Incentivo à Cultura / Fundação de Cultura Cidade do Recife / Secretaria de Cultura / Prefeitura da Cidade do Recife.

 

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Projeto Totem Relicário:
A memória viva da performance pernambucana

Acervo histórico do grupo compreende cerca de 600 itens de 38 criações realizadas entre 1988 e 2009

Pesquisa continuada em quase 40 anos de trajetória. Foto: Olga Wanderley/ Divulgação

O Grupo Totem, um dos mais longevos e influentes coletivos de artes cênicas de Pernambuco, com 37 anos de trajetória, celebra sua história com o lançamento do projeto Totem Relicário. Este evento marca a disponibilização de um vasto acervo virtual que documenta as primeiras duas décadas de produção do grupo, oferecendo uma imersão na rica cena performática pernambucana e brasileira.

Fundado em 1988 por Fred Nascimento e Lau Veríssimo, o Grupo Totem tem sido um laboratório contínuo de experimentação nas artes cênicas, explorando as fronteiras entre teatro, performance, dança e rituais. Desde sua origem no casarão da Rua de São Bento, em Olinda, onde funcionava o icônico bar Abraxas, o grupo se dedicou a uma poética singular, caracterizada pela intensidade corporal, pela exploração de arquétipos e mitos, e por uma perspectiva ritualística da cena.

Suas obras, como Signosimbolosícones, Ele, Artaud!, Ita e Mulheres marcaram época e influenciaram gerações de artistas. A longevidade do grupo, mantendo-se ativo e relevante por quase quatro décadas, é um testemunho da força de sua pesquisa artística.

A filosofia do Totem aposta na capacidade de transformar o corpo do performer em um discurso político e poético, explorando a subjetividade e a cultura caosmopolitana, como visto em Caosmopolita. A composição de referências, desde a psicologia arquetípica de Carl Gustav
Jung e James Hillman até a antropofagia cultural brasileira, demonstra a riqueza intelectual e criativa que permeia suas produções.

A Preservação da Memória Performática em Formato Digital

Lançamento do projeto com reperformances em Olinda

O lançamento do projeto Totem Relicário, neste 5 de julho de 2025, representa um marco na história do Grupo Totem e na cena artística brasileira. Trata-se de uma plataforma virtual que reúne e disponibiliza o vasto acervo histórico do grupo, compreendendo cerca de 600 itens de 38 criações realizadas entre 1988 e 2009. Este “relicário” digital é uma verdadeira viagem no tempo, oferecendo acesso a fotos, vídeos, material gráfico, manuscritos, clipagens, croquis, mapas técnicos de palco e luz, fichas técnicas e roteiros.

A iniciativa é de extrema importância para a preservação da memória da performance. A arte performática, por sua natureza efêmera e de acontecimento ao vivo, enfrenta o desafio intrínseco de sua documentação e arquivamento. Muitas obras se perdem no tempo, existindo apenas na memória dos espectadores e artistas. Ao digitalizar e organizar este acervo, o Grupo Totem garante a perenidade de sua própria história como também oferece uma valiosa fonte de pesquisa e inspiração.

Jailson de Oliveira, Angélica Costa, Nara Sales, Lau Veríssimo e Zoraya Brayner, elenco de ITA

Cartaz do trabalho Ele, Artaud. Foto: Divulgação

Festivo e imersivo, o lançamento do Totem Relicário retorna ao local de origem do grupo em Olinda, no casarão da Rua de São Bento. A programação é um convite à revisitação e ressignificação das obras do Totem:

Reperformances

Integrantes, ex-integrantes e colaboradores convidados apresentarão cenas de seis performances históricas:

Duplo Faca Destino (2005),
com Juliana Nardin: Performance criada a partir da obra do artista visual Rinaldo Silva, explorando a dualidade da faca, do corte e do ferir.

Signosimbolosícones (1991),
com Lau Veríssimo, Suzi Couto e Zoraya Brayner: Um teatro de imagem, uma paisagem humana, mixando personas de trabalhos anteriores do grupo e registros fotográficos.

Ele, Artaud! (1997),
com Angélica e Luan Amim: Espetáculo ritualístico que antropofagicamente absorve o teatro Artaudiano, misturando-o com referências culturais brasileiras.

Ita (1991) e Mulheres (1993),
com Jailson Oliveira: Solo que integra trechos dessas performances. Ita delineou a poética do Totem, enquanto Mulheres aborda o princípio feminino e arquétipos de deusas.

Caosmopolita (2005),
com Gabi Cabral: Situa-se na fronteira do teatro físico, performático e dança, com o corpo do ator/performer como discurso político.

Outras Atividades

Depoimentos e Documentário:
O evento inclui depoimentos em vídeo de artistas que passaram pelo grupo e a exibição do documentário Totem Retrospecto, de Taína Veríssimo.

Roda de Conversa:
Uma discussão sobre a história do grupo e o site do acervo, com a participação de Fred Nascimento, Taína Veríssimo, Zé Diniz (web designer), Alexandre Figueirôa (jornalista/cineasta), e participações em vídeo de Alexandre Nunes e Inaê Veríssimo.

Pocket Show:
Atual e ex-integrantes da banda do Totem, incluindo Fred Nascimento, Cauê Nascimento, Mário Sérgio, Mari Paiva, Patrício Rodrigues e Gustavo Vilar, apresentarão trilhas sonoras dos espetáculos.

O projeto Totem Relicário é realizado via Fundo de Incentivo à Cultura do Governo de Pernambuco – Funcultura, garantindo a gratuidade e acessibilidade do acervo. O site (grupototem.com.br) conta com ferramentas de acessibilidade comunicacional para pessoas com baixa visão, daltônicos, surdas e cegas, reforçando o compromisso do grupo com a inclusão e a democratização do acesso à cultura.

GeoPoesis, filme da videoperformance do Totem. Foto: Divulgação

A performance, por sua natureza transitória, sempre representou um desafio para a historiografia da arte. O Totem Relicário encara diretamente essa questão, transformando a efemeridade em um legado acessível. Ao digitalizar e contextualizar seu vasto material, o grupo contribui para a construção de uma memória viva da performance brasileira, permitindo que obras que aconteceram uma única vez ou em poucas ocasiões possam ser estudadas, revisitadas e compreendidas por novas gerações.

Isso se alinha a discussões contemporâneas sobre a “arquivabilidade” da performance e a importância dos acervos digitais como ferramentas de pesquisa e difusão cultural. Como aponta a teórica Diana Taylor em seu livro O Arquivo e o Repertório, existe uma tensão produtiva entre o arquivo (documentos, textos, vídeos) e o repertório (práticas corporais, conhecimentos incorporados). O Totem Relicário cria uma ponte entre essas duas dimensões.

A programação do evento, com as “reperformances”, é um exemplo prático da teoria da reencenação na arte contemporânea, que pensa numa ressignificação das obras originais no contexto atual, com novos corpos e perspectivas. Isso demonstra a vitalidade da performance como linguagem, capaz de se adaptar e gerar novos sentidos ao longo do tempo.

A reperformance celebra a continuidade e a evolução de uma linhagem artística. Este conceito dialoga com as práticas de artistas como Marina Abramović e seu projeto Seven Easy Pieces, onde ela reperformou obras icônicas suas e de outros artistas.

A longevidade do Grupo Totem e a participação de ex-integrantes e colaboradores no evento de lançamento sublinham seu papel como um polo de formação e irradiação artística. Muitos artistas que passaram pelo Totem seguiram suas próprias trajetórias, levando consigo a experiência e a filosofia do grupo.

O Totem Relicário, ao disponibilizar o histórico de criações e processos, torna-se uma “escola” aberta, um repositório de metodologias e inspirações para jovens artistas e pesquisadores que buscam compreender as raízes e as evoluções da performance no Brasil. Esta função pedagógica é fundamental em um país onde o ensino formal das artes performáticas ainda enfrenta desafios estruturais.

A atuação contínua do Grupo Totem em Pernambuco, e a visibilidade que o Totem Relicário trará, reforça a importância das cenas artísticas regionais para o panorama cultural brasileiro. Em um cenário muitas vezes centralizado no Rio-São Paulo, o Totem demonstra a riqueza e a capacidade de produção artística de outras regiões, contribuindo para a diversidade e a pluralidade das expressões performáticas nacionais.

O projeto, financiado pelo Funcultura, também evidencia a relevância do apoio público para a sustentabilidade e o desenvolvimento da cultura local. Em tempos de escassez de recursos para a cultura, iniciativas como esta reafirmam a importância das políticas públicas para a preservação da memória artística.

Lau Veríssimo, uma das fundadoras do Grupo Totem. Foto: Divulgação

Fred Nascimento, um dos fundadores do Totem. Foto: Divulgação

Em quase quatro décadas de existência, o Grupo Totem construiu uma das mais consistentes e inovadoras trajetórias artísticas do Brasil, reinventando constantemente as fronteiras da performance, do teatro ritual e da experimentação corporal em Pernambuco. Apesar de sua metodologia singular, que mescla referências antropológicas, mitológicas e políticas, e de ter formado gerações de artistas que hoje atuam em diversas frentes da cena cultural brasileira, o Totem permanece um tesouro parcialmente oculto no panorama artístico nacional. Como tantas iniciativas culturais surgidas fora do trânsito Rio-São Paulo, o grupo carrega o paradoxo de ser simultaneamente reverenciado por quem conhece sua obra e invisibilizado nos grandes circuitos e narrativas oficiais das artes cênicas brasileiras, raramente recebendo o reconhecimento proporcional à sua contribuição estética e cultural.

O projeto Totem Relicário surge, portanto, como um arquivo digital e como um ato de justiça histórica e resistência cultural. Ao disponibilizar virtualmente seus 600 itens documentais e registros de 38 criações realizadas entre 1988 e 2009, o grupo ultrapassa as barreiras geográficas que tradicionalmente limitaram seu alcance, permitindo que pesquisadores, artistas e entusiastas de qualquer parte do mundo possam descobrir e estudar esta produção única. Esta plataforma representa a democratização da memória performática pernambucana e a possibilidade de reescrita de uma história das artes cênicas brasileiras mais plural e descentralizada. O Totem Relicário honra não apenas o passado do grupo, mas aponta para um futuro onde iniciativas artísticas de todas as regiões do Brasil possam ser devidamente reconhecidas, estudadas e celebradas, inscrevendo definitivamente o Grupo Totem no lugar que sempre mereceu: o de referência fundamental da performance contemporânea brasileira.

SERVIÇO
Lançamento do Acervo Virtual do Grupo Totem
Local: Rua de São Bento, 344 – Olinda-PE
Dia: SÁBADO, 05 de julho de 2025
Horário: 17h às 20h
Entrada: gratuita
Mais informações: @grupototemrecife
Site do acervo: grupototem.com.br

FICHA TÉCNICA
Acervo Virtual do Grupo Totem
Direção/coordenação: Fred Nascimento
Pesquisadoras: Lau Veríssimo, Juliana Nardin, Taína Veríssimo e Íris Campos
Web designer e programação: Zé Diniz
Editor gráfico: Luan Amim
Produtora: Taína Veríssimo

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Melhorando as gentes, melhoramos os seus deuses
Crítica de A Última Ceia

A Última Ceia, espetáculo do grupo MEXA, se aproxima do quadro de Leonardo Da Vinci. Foto: Maringas Maciel

 

Em Véspera, livro de Carla Madeira, um pai dá aos filhos gêmeos os nomes de Caim e Abel para se vingar da esposa religiosa que o rejeitava. Anos mais tarde, um dos gêmeos ia mal no colégio, seria reprovado. A mãe, Dona Custódia, temia que houvesse uma quebra na relação entre os irmãos. Resolve então interceder por Abel junto a um dos diretores da escola, padre Tadeu. O religioso pede que a mulher deixe que ele lhe conte a história bíblica de Caim e Abel, ao que ela retruca dizendo que a conhece.

– Tenho certeza que sim, mas, para nossa sorte, uma história sempre pode ser recontada.

Padre Tadeu narra a história de Caim e Abel pontuando que Deus provocou a ira de Caim quando fez diferença entre as ofertas dos irmãos, e que teria usado o mais velho para nos ensinar sobre a raiva e o quanto ela nos potencializa ao mal, nos desajusta. Ao mesmo tempo, impediu que Caim fosse morto, mesmo depois de ter assassinado Abel. Não seria aquele episódio que instauraria o olho por olho, dente por dente.

Há semelhanças entre o que tenta a narrativa de Carla Madeira, aqui personificada por padre Tadeu, e o grupo MEXA, criado em 2015, em São Paulo, em sua peça A Última Ceia, apresentada no 33º Festival de Curitiba. Aproximando-se e apropriando-se de histórias bíblicas incorporadas ao nosso repertório comum cristão ocidental de determinado modo, o livro e a peça nos oferecem outras miradas. Perspectivas, senão de rompimento ou de fuga, de respiro. Nessa operação, não há necessariamente questionamentos ou contradições escancaradas à “verdade bíblica das escrituras sagradas”, mas possibilidades de relação.

– Isso não está escrito, dona Custódia. É uma interpretação. E, como toda interpretação, carrega um pouco do desejo de quem a faz. Não será diferente comigo, diz padre Tadeu quando a mãe dos gêmeos questiona sua perspectiva bíblica.

Há muito de desejo no espetáculo do MEXA, que tem no elenco majoritariamente atrizes trans e travestis. Estão em cena Aivan, Alê Tradução, Dourado, Patrícia Borges, Suzy Muniz e Tatiane Arcanjo. A direção e a dramaturgia são assinadas por João Turchi. Alguns dos corpos no palco se anunciam antes de qualquer fala pronunciada.  Corpos considerados abjetos que desejam perscrutar a Santa Ceia a partir do quadro A Última Ceia, de Leonardo Da Vinci (1452-1519), pintado no refeitório de um convento dominicano, ao lado da Igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão, na Itália, entre os anos de 1494 e 1498.

A peça do MEXA tem uma trajetória internacional: estreou em 2024 no Kunstenfestivaldesart, em Bruxelas, na Bélgica, foi apresentada no Kaserne Theatre, em Basel, na Suíça, no Festival Theaterformen, em Braunschweig, e no Sophiensaele, espaço em Berlim, ambas as cidades na Alemanha. No Brasil, fez temporada na Casa do Povo, em São Paulo, onde os artistas do MEXA são residentes, participou da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo e agora do Festival de Curitiba. De 18 a 27 de setembro de 2025, o MEXA leva o espetáculo A Última Ceia ao Festival d’Automne, em Paris.

A obra de Da Vinci captura o momento em que Jesus diz aos discípulos que seria traído. Era a última refeição com os seus amigos antes de ser crucificado. O que podem nos dizer corpos travestis, corpos de pretas e pretos, sobre traição, morte, ressurreição, comunhão e partilha? Quais as simetrias entre “um homem crucificado, mulheres enforcadas como bruxas, negros arrastados por carros de polícia”? O que significa a expectativa do fim para uma travesti no Brasil? Precisamos dizer que o Brasil é o país que mais mata travestis e transsexuais no mundo? Essa peça não é sobre morte, ou não apenas, mas sobre ressurreição, compartilhamento, fartura, festa. Alguma bondade nos servirá a todos, melhor defendê-la, escreve Carla Madeira.

Protagonismo das narrativas é uma questão no espetáculo. Foto: Maringas Maciel

Se a injustiça da exclusão, da fome e da iminência da morte geram raiva, aquela que Deus provocou em Caim, e mais violência – ou histórias isoladas de superação –, as atrizes decidem que a peça não vai seguir por aí. O desejo passa por assumir o protagonismo das suas narrativas, brindar ao fato de terem chegado até ali, e decidir quais histórias e como elas serão contadas. Como todas as histórias dependem da perspectiva de quem as conta, as atrizes se questionam: como gostaríamos de ser lembradas? Quantas vezes uma imagem precisa ser repetida para que a gente se lembre dela?

Nem crianças – ou, neste caso, nem travestis – lançarão granadas na imagem da face de Cristo, como acontecia em Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus, do diretor italiano Romeo Castelucci, homem branco europeu que provocou polêmica com sua peça já apresentada no Brasil. Se há uma expectativa no senso comum de que artistas – e especificamente artistas com corpos ditos abjetos – provoquem escândalo criticando o cristianismo em suas obras, o espetáculo do Mexa não atende a esse anseio. O máximo que vai aparecer é a falta de fé – uma das atrizes assume que não acredita em Deus e outra imediatamente revida: as duas pegariam um voo juntas em alguns dias, isso lá é coisa que se diga? Risadas na plateia. Ou a citação no texto de outras religiões, especialmente as de matrizes africanas: “Na minha releitura, Jesus é Exu”.

De modo geral, poderíamos dizer, inclusive, que A Última Ceia é um espetáculo bastante cristão, dependendo do que consideramos cristão. Como esse categorização pode variar bastante num país conservador e direitista como o Brasil, o exemplo de cristianismo que trago aqui, quando me refiro à peça, é o do padre Júlio Lancellotti, um cristão que não se dobra ao preconceito, combate a transfobia, prega a convivência, a partilha. Que olha o outro nos olhos, enxerga a dor da fome e da exclusão, e acredita na potência que pode surgir no compartilhamento do pão. Por seus posicionamentos e sua prática, sofre as consequências.

A subversão da peça, se é que podemos chamar assim, está no campo da instauração de uma convivência com corpos dissidentes na sala de espetáculos. Corpos que não estamos acostumados a ver no teatro, mesmo que esse seja o espaço íntimo de imaginação de novas realidades. Em determinado momento, elas, as artistas, as donas do palco, as detentoras do poder naquela situação, convidam parte do público para jantar com o elenco. E há, aqui, um fato: não haverá lugar para todos à mesa. Talvez pelo desejo de que aquela cena seja de fato representação, e que haja essa divisão clara entre os que participam e os que estão no lugar de espectadores comuns, assistindo ao que acontece com alguma distância; ou pela reprodução de um cristianismo da vida cotidiana que não comporta todos. Não há comida, vagas nos centros de acolhida, emprego, dignidade para todos.

No jantar que transforma o palco em mesa, servido no meio do espetáculo, temos frango, farofa, batatas. Brinde com vinho. Alguém da plateia, rápido o suficiente para garantir o lugar à mesa, comemora: “essa é a melhor peça do festival”. Rimos, mesmo sabendo que não se trata disso. É só parar por um instante e se perguntar de modo quase rasteiro: quantas pessoas ali naquele teatro convivem com travestis em seus cotidianos? Quantas dividiram, em condição de igualdade, pelo menos uma vez na vida, uma mesa com uma travesti? O texto da peça nos lembra que essa é a única vez em que essas pessoas vão jantar juntas. Logo depois daquela sessão, esse arranjo vai se desfazer. Será o último? Só melhorando as gentes, melhoramos os seus deuses, me permito uma versão de uma das epígrafes de Carla Madeira.

Parte do público compartilha “A Última Ceia” com elenco. Foto: Maringas Maciel

Referências biográficas e documentais atravessam a montagem. Foto: Maringas Maciel

Nas confluências com o quadro A Última Ceia e a história cristã, a dramaturgia propõe analogias e atravessamentos que vão se desenhando. Assim como aquela seria a última refeição que Jesus faria com seus discípulos, seus amigos, a peça estabelece uma dúvida sobre o fim do próprio grupo MEXA. “Toda peça pode ser a última, mas alguma coisa muda quando a gente sabe que é uma despedida”. Essa suposição do fim do grupo, e o que isso significaria, vai percorrer toda a dramaturgia. Alguém diz que poderia ser um novo começo. Outra pessoa atesta que não voltará ao grupo depois da peça. O que significa trabalhar com arte, especificamente com teatro, para uma travesti?

Há ainda um questionamento sobre ficção e realidade e sobre a própria representação. Ivana (Aivan), de vestido vermelho, uma figura imponente, dá o texto: teatro é sobre repetição. Ao final da temporada, de tanto repetir o espetáculo, elas todas estarão cansadas de suas personagens, e acharão que não existe mais nenhuma verdade em suas representações. O que é verdade numa representação? O que é verdade numa história contada repetidas e repetidas vezes como a do sacrifício de Jesus? Quais verdades a tela de Da Vinci consegue capturar?

Nessa tentativa de estabelecer relações dramatúrgicas com os disparadores da obra, o quadro bíblico e as narrativas que se desprendem dele, as que melhores se estruturam, dando maior consistência ao texto, dizem respeito ao campo documental, às histórias que supostamente vazam da ficção. O MEXA se formou no âmbito de alguns centros de acolhida da região do Bom Retiro, especialmente da Casa Florescer, primeiro centro de acolhida de São Paulo destinado a mulheres trans em situação de rua. Num vídeo, uma das atrizes, Suzy Muniz, diz que veio do Maranhão para São Paulo de ônibus. Durante a viagem, comeu apenas maçãs, porque era mais barato. Vemos então o refeitório do centro de acolhida que ela frequentou na cidade – e está lá, a reprodução do quadro de Da Vinci, mas com muito mais fartura de comida do que na pintura original. É possível representar a fome?, questiona a dramaturgia. Há muito mais fome do que comida naquela tentativa de representação imagética. O que se quebra depois da fome? Um paraíso não é suficiente contra determinados infernos, volto a Carla Madeira.

As artistas compartilham suas histórias com a imagem de A Última Ceia, uma das mais reproduzidas da história da arte mundial. O quadro na cozinha da casa da avó; o pai bêbado trazendo o quadro e a mãe que acaba por destruí-lo porque alguém diz que a imagem tinha demônios; o quadro que sobrevive a intempéries, como uma enchente. O processo da peça também é incorporado à encenação, um registro documental em vídeo questiona: quantas vão sucumbir? Ao final dos ensaios, quem vai fazer a peça? Os conflitos inerentes a uma criação artística são explicitados. Assim como na vida, a convivência durante os ensaios pode ser desafiadora. As relações de poder e de autoridade entram na discussão: “Eu não gosto de dar palpites, gosto de dar ordens”.

Na esteira do processo, uma demanda trazida à encenação: quem faria Judas? Se todas ali já foram traídas, como atesta a dramaturgia, por que querem ser Judas? O que, de humanidade, escorre da figura de Judas? Em teoria, o público escolhe quem vai interpretar Judas depois que cada uma diz por que deveria fazer o papel. Duvido outra pessoa ganhar depois que Veronika Verão promete amor – uma noite de amor. Se o papel de Judas está definido, e o de Jesus? Esse lugar, o daquele que reparte o corpo, o pão, o salvador, o que é sacrificado, morre, mas ressuscita, está mesmo vazio no palco? Todas poderiam ser Jesus. Mas sabendo que o que queremos, precisamos ressaltar, é vida e não morte, festa e alegria, e não fome. Passou da hora de Jesus humilhar o satanás, como na brincadeira com a música The Rhythm of the Night.

O espetáculo A Última Ceia foi apresentado nos dias 31 de março e 1 de abril de 2025 no Festival de Curitiba.

Continuidade do grupo é um dos motes da peça. Foto Maringas Maciel

Ficha técnica:

Criação: MEXA
Direção e dramaturgia: João Turchi
Performance e co-criação: Aivan, Alê Tradução, Dourado, Patrícia Borges, Suzy Muniz, Tatiane Arcanjo e Veronika Verão
Vídeo performer, criação de vídeo e direção técnica: Laysa Elias
Assistência de direção, de movimento e de performance: Lucas Heymanns
Trilha sonora, sound design e performance: Podeserdesligado
Luz e performance: Iara Izidoro
Produção executiva: Francesca Tedeschi
Produção e direção de arte: Lu Mugayar
Figurino: Anuro Anuro e Cacau Francisco
Cenário: Vão
Direção vocal: Dourado
Integraram parte do processo criativo: Anita Silvia, Daniela Pinheiro e Gustavo Colombini
Colaboração dramatúrgica: Olivia Ardui
Pesquisa e consultoria artística: Guilherme Giufrida
Produção: MEXA
Coprodução: Kunstenfestivaldesarts, Casa do Povo, Kampnagel – Internationales Zentrum für Schönere Künste
Agradecimentos especiais: Esponja, Ana Druwe, Benjamin Seroussi, Marcela Amaral e Felipe Martinez

A Última Ceia vai participar do Festival d’Automne, em Paris. Foto: Maringas Maciel

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Poética da masculinidade
em movimento
Crítica: Umbigo

Espetáculo Umbigo, da Companhia Ozinformais, de Alagoas,. Foto: João Erisson / Divulgação

Bailarinos-criadores José Marcos Tope e Jal Oliveira. Foto: João Erisson / Divulgação

Umbigo, espetáculo da Companhia Ozinformais, de Alagoas, com os bailarinos Jal Oliveira e José Marcos Topete e direção de Carlos Alberto Barros, foi apresentado no Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, no dia 3 de junho, no Teatro CHC Santa Casa. E circula pelo Palco Giratório por várias cidades brasileiras. Parto da premissa de que esse trabalho se revela como uma contundente reflexão corporal que, ao se inspirar em tradições como o Toré e o Coco de Roda, estabelece um diálogo provocador com as masculinidades contemporâneas. Proponho que sua poética corporal ao celebrar essas manifestações culturais, também as fricciona com as questões de ser homem no século 21.

O espetáculo abraça e reelabora tradições culturais alagoanas, práticas ancestrais que representam elaborados sistemas de conhecimento corporal e cosmovisões. Essas manifestações oferecem um rico repertório de movimentos, ritmos e espacialidades, servindo como base para a exploração de narrativas corporais.

O Toré, ritual dos povos indígenas do Nordeste brasileiro, notadamente os Kariri-Xocó e Xucuru-Kariri de Alagoas, Pankararu, Fulni-ô, Truká, Kambiwá, Pipipã, Pankará e Xukuru (Pernambuco), Potiguara (Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte), Tumbalalá, Kiriri, Pataxó, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Kaimbé e Kantaruré (Bahia), Xocó (Sergipe), Tremembé, Tapeba, Jenipapo-Kanindé e Anacé (Ceará), Atikum (Pernambuco e Bahia), Tupinambá (Bahia), Kalankó, Koiupanká, Karuazu e Tuxá (Alagoas, Bahia e Pernambuco), manifesta-se como dança circular concebida para estabelecer contato com entidades ancestrais, a espiritualidade da terra e a coesão comunitária. Caracterizado pelo movimento rítmico e contínuo dos pés no chão, gera círculos dinâmicos, acompanhado por cantos e pelo som de maracás.

Na peça de dança Umbigo, a circularidade e a percussão insistente dos pés no solo tornam-se princípios estruturantes da coreografia, ressoando a resistência cultural e a força telúrica desses povos.

Paralelamente, o Coco de Roda alagoano, manifestação cultural de raízes afro-brasileiras
nascida nos quilombos e engenhos açucareiros, apresenta-se como patrimônio cultural de elaborada tecnicidade rítmica e coreográfica, forjado em contextos de resistência e celebração. O trupé – caprichado jogo de batidas dos pés que gera padrões rítmicos intrincados e sincopados – evidencia um refinado sistema de saber corporal. Essa técnica demanda notável destreza, coordenação e sensibilidade rítmica, sendo ressignificada no espetáculo ao transpor sua essência tradicional para uma linguagem coreográfica contemporânea.

Entrelaçando memória, resistência e pertencimento, essas manifestações culturais permitem que Umbigo construa pontes entre temporalidades e contextos diversos, gerando novas energias.

Masculinidades em Transformação: Diálogos Teóricos e Corporais

A proposta cênica estabelece diálogo frutífero com as teorias contemporâneas sobre masculinidades, especialmente com Raewyn Connell e bell hooks. Connell propõe que não existe uma masculinidade singular, mas diversas configurações hierarquicamente organizadas. Seu conceito de “masculinidade hegemônica” refere-se a práticas de gênero que legitimam a posição dominante de alguns homens e a subordinação das mulheres e outros homens.

Connell identifica quatro padrões: hegemônica (forma culturalmente exaltada e dominante), cúmplice (beneficiários dos dividendos patriarcais), subordinada (formas oprimidas pela hegemônica) e marginalizada (relacionada a homens subalternizados por classe, raça ou etnia).

Umbigo contesta o modelo dominante através da corporalidade dançante. Os corpos masculinos manifestam práticas contra-hegemônicas – formas de expressão que desafiam expectativas normativas sobre como homens devem se movimentar, expressar emoções e se relacionar.

bell hooks desenvolve uma crítica incisiva à masculinidade patriarcal, argumentando que esta prejudica mulheres e causa danos profundos aos próprios homens. Sua “ética do amor” defende que homens precisam desenvolver capacidades para intimidade emocional e cuidado mútuo. No espetáculo, isso materializa-se nos gestos de sustentação recíproca, particularmente quando um bailarino abre os botões da camisa do outro – gesto de desarmadura que sugere abertura para intimidade não-dominadora, baseada na confiança e no respeito.

A Reinvenção da Corporalidade Masculina: Gravidade, Essência e Presença. Foto: João Erisson / Divulgação

A batida de pé no chão, elemento nuclear da coreografia, vai além da técnica, convertendo-se em metáfora de uma relação renovada com o mundo e o próprio corpo. O contato percussivo com o solo propõe uma masculinidade enraizada, conectada à terra. No palco desnudado, os corpos revelam sua essência sem artifícios mediadores. 

A exigência física dos 40 minutos constitui uma declaração performática intencional. As técnicas do Toré e do Coco de Roda alagoano demandam excepcional resistência, fazendo com que os intérpretes se entreguem à exaustão como parte integrante da narrativa.

Montagem exercita uma desobediência epistêmica. Foto: João Erisson / Divulgação

A direção de Carlos Alberto Barros revela consciência dos dilemas geopolíticos da criação artística atualmente. Produzir dança contemporânea desde Alagoas implica enfrentar invisibilização e subalternização. O sistema brasileiro historicamente privilegiou produções do eixo Rio-São Paulo, relegando outras regiões à categoria de “regionais” ou “folclóricas”. Tal hierarquia reflete uma lógica colonial que desvaloriza a produção cultural das periferias.

Nesse contexto, a articulação de tradições alagoanas com a dança contemporânea representa “desobediência epistêmica” – conceito de Walter Mignolo que se refere ao ato de desafiar estruturas de conhecimento eurocêntricas dominantes.

Umbigo expressa essa desobediência ao se afirmar simultaneamente como radicalmente alagoano e plenamente contemporâneo, demonstrando a viabilidade de criar dança contemporânea a partir de referências culturais específicas sem resvalar no exotismo, propondo uma nova centralidade para as periferias.

O figurino no espetáculo Umbigo, composto por bermuda e camisa de botão, embora simples, desempenha um papel crucial na narrativa cênica. Essa escolha minimalista facilita a mobilidade dos bailarinos e serve como uma tela neutra que destaca os movimentos e interações corporais, sugerindo uma concentração na expressão física e na dinâmica das relações em cena. O momento em que um bailarino abre os botões da camisa do outro constitui-se como ponto de inflexão dramatúrgica. Como já citado, o gesto de abrir os botões da camisa do outro bailarino pode ser interpretado como um momento de intimidade não mediada por papéis tradicionais masculinos de competição ou dominação, mas baseada em vulnerabilidade compartilhada e cuidado mútuo. 

A trilha sonora original de Iury Limão estabelece um diálogo cúmplice com a coreografia, compartilhando suas raízes no Toré e no Coco de Roda alagoano. A composição se integra à linguagem corporal do espetáculo, acompanhando-a e recriando de forma contemporânea a essência rítmica das danças tradicionais, enquanto cria novas texturas sonoras. Os ritmos percussivos que evocam as batidas dos pés no chão criam camadas de significação que acompanham as transformações coreográficas, iluminando as mudanças de dinâmica e intensidade ao longo do espetáculo. 

Peça contesta o modelo dominante e sugere o umbigo como ponto de conexão e antídoto ao falocentrismo

O umbigo, como elemento central, condensa significados que remetem à nossa conexão primordial com a mãe e a Terra. Ele evoca conceitos como a Pachamama andina, símbolo de fertilidade e interconexão. Como cicatriz vital, é um lembrete contínuo de nossa interdependência.

Cabe aqui uma importante distinção: longe de evocar a visão popular e excludente do “olhar para o próprio umbigo” como centro do mundo e sinônimo de egoísmo, a simbologia do umbigo explorada nesta análise aponta, ao contrário, para uma dimensão de profunda conexão, sensibilidade e interdependência mútua. Ele se torna o ponto de origem de um vínculo essencial, que remete à formação e à sustentação da vida, sublinhando a natureza inerentemente relacional do ser humano.

A psicanalista feminista Luce Irigaray, em Speculum of the Other Woman, critica a centralidade do falo na psicanálise, argumentando que tal centralidade reforça uma ordem patriarcal. Enquanto o falo encarna separação e dominação, outros elementos corporais poderiam fundar uma ordem alternativa baseada em conexão e reciprocidade.

Embora Irigaray não discuta especificamente o umbigo, sua crítica ao falocentrismo oferece subsídios essenciais para compreender o potencial desestabilizador deste elemento no espetáculo. O umbigo evidencia nossa origem compartilhada, desafiando narrativas de autonomia absoluta associadas à masculinidade hegemônica. Funciona como lembrete ontológico de que todo ser humano provém de outro corpo e carrega interdependência inscrita em seu ser.

Na coreografia, os corpos traduzem que a força reside na conexão, não no isolamento. O espetáculo propõe uma ordem alternativa – não centrada no falo como separação, mas no umbigo como conexão e origem.

Os corpos que percutem o chão, sustentam-se mutuamente e conectam-se através do umbigo propõem formas de ser homem baseadas na igualdade e vulnerabilidade. Tal proposição ressoa num país marcado por violência de gênero, feminicídio, transfobia e homofobia, ligada a normas de masculinidade tóxica e patriarcal. A performance, portanto, se apresenta como um alerta. Sua estética, ao propor uma força baseada na conexão e no reconhecimento da própria humanidade, sugere a urgência de uma ética de cuidado e reciprocidade.

 

Ficha Técnica

Bailarinos criadores: Jal (Jailton) Oliveira e José Marcos Topete
Encenação e direção: Carlos Alberto Barros
Trilha sonora original: Iury Limão
Fotografia: João Erisson
Figurino: Penelope
Produção executiva: Carlos Alberto Barros

Referências

 

BOLA, JJ. Seja Homem, a Masculinidade Desmascarada. São Paulo: Dublinense, 2020.
CONNELL, Raewyn. Masculinities. Berkeley: University of California Press, 1995.
hooks, bell. Feminism is for everybody: passionate politics. Londres: Pluto Press, 2000.
hooks, bell. The Will to Change: Men, Masculinity, and Love. New York: Atria Books, 2004.
IRIGARAY, Luce. Speculum of the Other Woman. Trad. Gillian C. Gill. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1985.
GRÜNEWALD, Rodrigo de Azevedo. (Org.). Toré: Regime Encantado do Índio do Nordeste. Recife: Editora Massangana, 2004.
MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Tradução de Ângela Lopes Norte. Revista Gragoatá, Niterói, n. 22, p. 11-41, 1º sem. 2007.
MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica, pensamento independente e liberdade decolonial. Tradução de Isabella B. Veiga. Revista X, Curitiba, v. 16, n. 1, p. 24-53, 2021.

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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Epifanias cênicas: arte é política
Crítica: Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém]

Apresentação do espetáculo Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém} em Porto Alegre. Foto: Adriana Marchiori

Renata Sorrah e cia brasileira de teatro em Porto Alegre

Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre, lotado nas duas sessões da peça. Foto: Adriana Marchiori

Todo o mundo ama Renata Sorrah. Talvez não todo o mundo do mundo inteiro, porque há quem prefira exercitar sentimentos menos nobres. O que é incontestável, porém, é que o público que lotou as duas sessões do Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém], no Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre, na quarta e quinta-feira, 4 e 5 de junho, na programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, vibrou numa emoção coletiva de admiração e carinho. Um fenômeno semelhante já havia sido testemunhado durante a temporada no SESI-SP, onde o espetáculo somou 64 apresentações entre 22 de agosto e 1º de dezembro de 2024, atraindo cerca de 27.400 pessoas. Mas bah, tchê, essa experiência no Rio Grande do Sul foi extraordinária. A atriz gaúcha Sandra Possani foi uma das pessoas que se emocionou do início ao fim da peça.

Em Porto Alegre, alguns espectadores mais afoitos buscavam eternizar os momentos pós-espetáculo em selfies. No contexto da peça, qualquer receio de que o público gaúcho, por vezes associado a um certo conservadorismo, fosse reticente com a linguagem contemporânea da Companhia Brasileira de Teatro desfez-se por completo. A plateia, composta por amantes das artes e especialmente do teatro, mostrou-se aberta e disposta a mergulhar de cabeça na proposta, permitindo-se expandir seus horizontes.

Essa receptividade entusiástica transformou-se em uma declaração coletiva de benquerença. Todas ali desejavam expressar, e o fizeram com uma ovação calorosa: “Nós amamos sua arte”. Muitos, naquele momento, sentiram-se conectados às emoções que a canção Beatriz tão bem entoa – aquela valsa composta por Edu Lobo, com letra de Chico Buarque, e eternizada na voz de Milton Nascimento: “… Olha / Será que é uma estrela / Será que é mentira / Será que é comédia / Será que é divina / A vida da atriz / Se ela um dia despencar do céu / E se os pagantes exigirem bis / E se o arcanjo passar o chapéu / E se eu pudesse entrar na sua vida…” – versos que capturam essa mescla de admiração distante e desejo de proximidade que tantos nutrimos por grandes artistas.

Curiosamente, essa relação entre público e celebridade o espetáculo questiona e desdobra. As falas da peça refletem essa obsessão de forma crítica e bem-humorada: Deixa ela… “Olha como ela sorri. Olha como ela anda… olha como ela dirige o carro.” A dramaturgia e a encenação de Marcio Abreu jogam com o conceito de celebridade de forma sagaz, agenciando sua desconstrução. Em cena, a “estrela” Renata Sorrah é instigada a ir além do que se espera de sua persona pública, revelando a humanidade e as complexidades por trás do ícone.

As grandiosas projeções do rosto de Sorrah em cena atuam como um recurso estético impactante e como uma metáfora visual potente que, ao magnificar a figura da atriz a proporções monumentais, força o espectador a um escrutínio íntimo sobre a construção da celebridade. Essa magnificação aprofunda o debate para além do universo estético e performático, adentrando questões urgentes e contemporâneas, como a ascensão de figuras desqualificáveis no campo político e a criação de um terreno fértil para a proliferação desenfreada de desinformação. A justaposição da imagem da atriz – uma figura de culto no teatro, na televisão e no cinema brasileiros – com a crítica incisiva a esses fenômenos sociais e políticos, estabelece um paralelo inquietante e insinua que a mesma lente crítica aguçada, aplicada ao estudo do culto de personalidades e à construção de ícones, deve ser rigorosamente direcionada à arena social e política.

Rodrigo Bolzan e Renata Sorrah. Foto: Adriana Marchiori

Bárbara Arakaki, Rodrigo Bolzan, Bianca Manicongo (Bixarte), Renata e Rafael Bacelar.Foto: Adriana Marchiori

Em um momento da encenação, Renata Sorrah remonta a uma epifania vivenciada na década de 1970, no limiar de um ensaio rotineiro de A Gaivota, onde interpretava Nina. Nesse trajeto cotidiano, uma súbita e profunda clareza se manifestou. Uma epifania, em sua essência, é isso: um lampejo de percepção tão profundo e inesperado que uma verdade fundamental irrompe na consciência, um ponto de inflexão existencial que altera a perspectiva do indivíduo. Essa reminiscência, meticulosamente partilhada com a plateia, irradia-se como feixes de luz que permeiam e moldam cada gesto, cada intenção e cada palavra proferida em cena. É essa memória fundacional que nutre a complexa engrenagem criativa do espetáculo, desempenhando o papel de um pilar que conecta a experiência pessoal e íntima da atriz e do elenco às questões intrínsecas de dilemas e complexidades do viver e à prática artística.

A dramaturgia, elaborada a partir da pesquisa e criação coletiva de Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria, estrutura-se em complexos estratos subjetivos sobrepostos, que deliberadamente conduzem o espectador por intrincados deslocamentos temporais e fissuras na consciência. A peça de Tchekhov move-se como um eco ressonante, uma matriz referencial e temática que possibilita explorar os dilemas entre arte e vida, idealismo e realidade. As sequências articulam-se não por encadeamento causal tradicional, mas por associações poéticas e excertos dialógicos forjados em improvisações, o que confere à narrativa um caráter fluido e em constante devir, resistindo a interpretações fechadas. A experiência performática incorpora recursos metateatrais, como a autorreferencialidade ao ato de criação e menções diretas ao processo de ensaio, desvelando a própria construção da obra e convidando o público a refletir sobre a natureza da representação.

O elenco, composto por Rentata, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo (Bixarte), revela-se uma verdadeira constelação de talentos. Cada integrante concede voz à sua singular vivência e corporeidade, tecendo-as à cena e enriquecendo a intrincada trama de subjetividades que a peça desdobra.

A Trajetória de uma Parceria Excepcional

Ao longo de mais de treze anos, a colaboração entre a Companhia Brasileira de Teatro, sob a direção de Marcio Abreu, e a atriz Renata Sorrah firmou-se como um dos encontros mais inspiradores e influentes no panorama teatral contemporâneo brasileiro. 

O capítulo inaugural dessa trajetória remonta a 2012, com Esta Criança, texto do dramaturgo francês Joël Pommerat. Na montagem, a Companhia, com Sorrah e o elenco de Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha, explorou dez situações-limite entre pais e filhos, valendo-se de estruturas fragmentadas e economia de gestos para revelar a urgência das emoções familiares.

Em 2015, a parceria firmou-se em Krum, texto de Hanoch Levin, onde a violência simbólica e o humor ácido integraram-se à pesquisa corporal e vocal do coletivo. O elenco contava com Cris Larin, Danilo Grangheia, Edson Rocha, Grace Passô, Inez Viana, Ranieri Gonzalez, Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan e Rodrigo Ferrarine. Naquele momento, se aprofundava uma linguagem teatral pautada na metalinguagem, na desarticulação de linearidades narrativas e na tensão entre corpo, memória e dicção, elementos que seriam mais explorados em trabalhos futuros.

Com Preto (2017), a colaboração ascendeu a um novo patamar de excelência artística, com a participação de Renata Sorrah no elenco, ao lado de Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan/Rafael Bacelar (em alternância).

Elenco da peça .Foto: Adriana Marchiori

Quando Renata e Bianca trocam de texto para focar no lugar de fala. Foto: Adriana Marchiori

Em Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém], os artistas demonstram, com uma eloquência poética que ressoa profundamente, que o ato de criar é intrinsecamente político, pois a arte não é apenas estética, mas uma expressão de agência e visão de mundo. Cada manifestação artística autêntica, ao propor novas perspectivas e realidades, afirma a possibilidade tangível de um mundo mais equitativo e sensível. É um gesto vital de resistência contra a uniformização do pensamento, a imposição de ideologias dominantes e as diversas formas de opressão social e cultural, abrindo espaço para a diversidade, a empatia e a transformação coletiva.

A vertente política da montagem assume contornos nítidos no atual panorama brasileiro, marcado pela polarização e pela emergência de discursos autoritários. A peça perscruta dilemas sociopolíticos sem resvalar no didatismo ou no panfletarismo, incorporando comentários sobre a história recente do país.

Em uma sequência de particular impacto, Renata Sorrah tece, por meio de frases concisas e incisivas, uma narrativa que imbrica eventos coletivos – a prisão de Lula, as manifestações feministas, o impeachment de Dilma, a primeira deputada trans no Congresso Nacional, a reeleição de Lula. A força dessa sequência reside na capacidade de evocar a memória coletiva sem a necessidade de explicações exaustivas, confiando na inteligência e na vivência do público. Em um período em que a cultura e a liberdade ainda sentem o impacto dos ataques sistemáticos empreendidos por aquele malfadado governo que nunca deveria ter ocupado o poder, a própria existência desta encenação, com sua complexidade estética e seu compromisso com o pensamento crítico, emerge como um gesto de insubmissão e como farol.

Os corpos em cena configuram-se como territórios de discurso e resistência, onde a presença se torna eloquente e irradiadora. A repetição calculada de gestos e falas e a pluralidade interpretativa – exemplificada quando vários atores proferem o mesmo texto e reiteram o gesto – compõem uma gramática teatral que desafia expectativas e convida o público a uma experiência sensorial e intelectual, desmitificando o processo criativo. Uma cena emblemática dessa dimensão surge quando uma atriz cisgênero, Renata, e uma atriz transgênero, Bianca Manicongo (Bixarte), trocam seus textos, uma discorrendo sobre corporalidades trans e a outra sobre etarismo, revelando como certos discursos, ao transitarem entre diferentes corpos, expõem profundas contradições sociais e a arbitrariedade de quem é autorizado a falar sobre certas experiências. Essa inversão provoca um questionamento crucial: a quem realmente compete falar em nome do outro, e como a identidade de quem se expressa influencia decisivamente a percepção e interpretação do que é dito.

Rafael Bacelar, montado de drag queen, faz um elogio ao lado esquerdo (do corpo). Foto: Adriana Marchiori

Humor e crítica na performance de Bacelar. Foto: Adriana Marchiori

Intérprete dubla Sacrifice, de Elton John. Foto: Adriana Marchiori

Em sua sequência de dança de caráter político, Rafael Bacelar constrói uma performance que reafirma a corporalidade como campo de disputa ideológica e expressão de identidades dissidentes. O artista inicia a cena ouvindo conselhos maternos em áudio enquanto se monta como drag queen perante os espectadores, estabelecendo uma intimidade transgressora com o público e borrando as fronteiras entre o pessoal e o político. Essa ação convida o espectador a um espaço de cumplicidade e sublinha a performatividade inerente à construção da identidade. Em um surpreendente desdobramento cênico, esse áudio materno é dublado, em vídeo projetado, por Renata Sorrah, que já havia estabelecido com Bacelar outra relação mãe-filho em cena de A Gaivota, criando uma camada adicional de intertextualidade e afeto que enriquece a narrativa. Durante a performance, ele tece um elogio poético ao lado esquerdo do corpo, instituindo uma metáfora explícita que alude aos partidos de esquerda no Brasil, um gesto de clara filiação política e artística.

Com humor perspicaz e crítica incisiva, Bacelar provoca a plateia por meio de uma comunicação direta e desafiadora: encara os espectadores, setoriza a assistência em “direita”, “esquerda” e “centrão”, gerando uma tensão permeada de comicidade que convida à autoanálise e ao riso nervoso. Essa interação performática força o público a confrontar suas próprias posições e preconceitos. O clímax da performance ocorre com uma potente dublagem da canção Sacrifice de Elton John, momento em que a plateia é completamente arrebatada pelo showman, que transforma a vulnerabilidade em força e a arte em um grito de liberdade. São múltiplas tessituras que se entrelaçam, constituindo uma vivência que se configura como um manifesto corpóreo-político pulsante e inesquecível.

Campo de atuação se expande e comprime no palco. Foto: Adriana Marchiori

Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo (Bixarte). Foto: Adriana Marchiori

A visualidade de Ao Vivo transpõe o fluxo mental para o espaço cênico, alternando entre abstração e concretude. Em cena, os próprios atores manipulam estruturas minimalistas e móveis, como cadeiras, mesas ou estantes de partitura, transformando-as em elementos cenográficos dinâmicos que criam transições entre distintos recortes de memória e estados de consciência. Essa manipulação é funcional e performática, sublinhando a maleabilidade da mente e a construção subjetiva da realidade. A iluminação, trabalhada com precisão cirúrgica nos focos e variações sutis de intensidade e cor, demarca e borra as fronteiras entre realidade e imaginário, salientando rupturas temporais e os jogos performáticos que desafiam a percepção do público.

Bianca Manicongo canta lindamente. Foto: Adriana Marchiori

Atriz cantora evoca o anseio por um país mais justo. Foto: Adriana Marchiori

Ao Vivo constrói uma poética da reexistência onde imaginação e memória se tornam instrumentos de compreensão e transformação da realidade. As reflexões sobre a perenidade da arte, o significado do ofício teatral e a efemeridade interpenetram-se com a crítica sociopolítica, culminando em momentos de beleza e profundidade. Em passagem emblemática, Bianca Manicongo evoca o anseio por um país onde seja possível “beijar bocas, beber água limpa, abraçar a floresta, brindar suas existências” – uma invocação poética do desejo coletivo por um Brasil mais justo, acolhedor e em harmonia com a natureza, um manifesto de utopia possível que ressoa como um chamado à ação e à esperança.

A música pulsa e ressoa com extraordinária potência. A dramaturgia sonora, urdida por Felipe Storino, constitui um elemento estruturante da encenação, operando como um fio condutor emocional e narrativo. A sonoridade ecoa para a plateia e encontra na voz inconfundível de Bianca Manicongo sua expressão mais sublime, especialmente na interpretação de Love is a Losing Game de Amy Winehouse. Há uma melancolia profunda nessa canção, que reflete o amor como um jogo de azar, uma aposta incerta, e ressoa com as vulnerabilidades e os riscos inerentes à vida artística e à militância política, particularmente para corpos dissidentes e historicamente perseguidos e ameaçados. Contudo, o espetáculo não se rende ao desalento; prefere o amor, mesmo com seus riscos, e encontra respiro na esperança suave que emana de canções como Magrelinha de Luiz Melodia – “E o pôr do sol renove e brilhe de novo os nossos sorrisos” – e nas interpretações de Começaria Tudo Outra Vez de Gonzaguinha. Esta junção de melancolia e esperança, de crítica e afeto, mergulha-nos na musicalidade que habita essa cabeça, essa peça, esse ato de resistência poética que é Ao Vivo – Dentro da Cabeça de Alguém, consolidando a música como um pilar fundamental da experiência.

A epifania mencionada por Renata Sorrah projeta-se como metáfora para o próprio espetáculo: um momento de revelação, um instante de clareza em meio à turbulência. É provável que alguma epifania ressoe também no público, gerando instantes de iluminação. Ao deixar o teatro, levamos conosco muitas coisinhas miúdas dessa obra complexa, mas também perguntas essenciais sobre nosso lugar no mundo e nossa responsabilidade perante a história.

 

Pollyanna Diniz também escreveu uma análise crítica de Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém] no contexto do Festival de Curitiba, que pode ser acessada [aqui].

 

 

Ficha Técnica

AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]
Texto e Direção Geral: Marcio Abreu
Pesquisa e Criação: Marcio Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria
Elenco: Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki, Bianca Manicongo (Bixarte)
Direção de Produção e Administração: José Maria e Cássia Damasceno
Iluminação e Assistência de Direção: Nadja Naira
Direção Musical e Trilha Sonora Original: Felipe Storino
Direção de Movimento e Colaboração Criativa: Cristina Moura
Assistência de Direção e Colaboração Criativa: Fábio Osório Monteiro
Figurinos: Luís Cláudio Silva | Apartamento 03
Direção Videográfica: Batman Zavareze
Cenografia: Batman Zavareze, João Boni, José Maria, Nadja Naira e Marcio Abreu
Assistente de Arte: Gabriel Silveira
Edição de Vídeo: João Oliveira
Captação das Imagens para Vídeos: Cacá Bernardes | Bruta Flor Filmes
Design de Som: Chico Santarosa
Assistência de Cenografia: Kauê Mar
Técnica de Vídeo, Luz e Programação Videomapping: Michelle Bezerra, Ricardo Barbosa e Denis Kageyama
Técnica de Luz e Som: Dafne Rufino
Fotos: Nana Moraes
Programação Visual: Pablito Kucarz e Miriam Fontoura
Produção Original: Sesi SP
Criação e Produção: Companhia Brasileira de Teatro

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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