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Humor afiado mira gordofobia
Crítica de 116 Gramas: peça para emagrecer

Atriz Letícia Rodrigues desafia os padrões de beleza impostos ao compartilhar conflitos e indignações. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

116 Gramas: peça para emagrecer é um monólogo inspirador que afronta e combate a gordofobia na sociedade. Com foco na vivência da atriz Letícia Rodrigues, o espetáculo traça uma delicada e complexa relação entre corpo, identidade e autoaceitação.. A personagem “A Gorda” propõe uma reflexão sobre como a pressão para se adequar a normas de beleza irreais podem afetar profundamente a vida das pessoas. A meta de emagrecer a cada sessão 116 gramas, aparentemente insignificante, estampa a constante preocupação com a balança. Essa fixação demonstra a coação social para que as mulheres controlem obsessivamente seus corpos e hábitos alimentares, muitas vezes em detrimento de sua saúde mental e bem-estar.

Para explorar os mecanismos de perpetuação da opressão contra as gordas, problematizando as normas restritivas impostas pela mídia e indústria da beleza, a protagonista compartilha sua história de tentativa e falha em se conformar às medidas impostas. Nessa jornada emocional e introspectiva, ela utiliza elementos de performance, projeção e interação.

A encenação estabelece um tom confessional e íntimo, utilizando a busca de se parecer com ícones como Britney Spears e Gisele Bündchen para criticar a obsessão com a magreza e a pressão para se encaixar em moldes inatingíveis. 

Logo no prólogo, a personagem revela de maneira incisiva sua compulsão por se adequar a um ideal de beleza: “Eu fiz de tudo pra emagrecer para ser como Britney, Gisele e tantas outras. Só que eu não consegui… até agora. A única coisa que eu não fiz para emagrecer foi uma peça e é por isso que eu tô aqui.” O teatro surge então como um último recurso nessa jornada.

Ao criar um espetáculo teatral como forma de “queimar calorias”, Letícia Rodrigues, atriz, diretora  e dramaturga, e o codiretor João Pedro Ribeiro lançam um olhar crítico sobre a supervalorização da aparência. A comparação irônica com uma “aula de academia, só que mais bonita” evidencia como a perseguição pela magreza pode eclipsar outras dimensões importantes da vida, como a criatividade e a autoexpressão.

A dramaturgia oferece uma perspectiva quase científica da perda de peso, com exercícios, números e teorias. A utilização da balança e a projeção dos cálculos de calorias contextualizam a preocupação com a perda de peso, além de questionar a medicalização e a quantificação do corpo humano. 116 Gramas mergulha na “ciência da obesidade”, usando o Índice de Massa Corporal (IMC) como um ponto de partida para uma análise mais ampla sobre os parâmetros de normalidade. As projeções de dados de celebridades e seus IMCs servem como um comentário ácido sobre a hipocrisia e a arbitrariedade dos paradigmas de beleza. A introdução das teorias da conspiração dos Illuminati adiciona uma camada de humor e absurdo, subvertendo as expectativas e destacando a obsessão da sociedade com a aparência e o controle.

Ao compartilhar memórias e buscar poesia no exercício físico e suor, a protagonista tenta ressignificar sua experiência corporal, carregando a montagem com intensa carga emocional. Ela expressa sua raiva e frustração de maneira física em determinados momentos, expondo a violência simbólica contra si mesma e os padrões que a oprimem, traduzindo sua luta interna e externa. A lista de coisas que ela odeia é um grito de desespero.

Com uma narrativa autoficcional, a dramaturgia investiga o desejo de aceitação e as imposições sociais relacionadas à aparência física. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

Com domínio da cena, Rodrigues utiliza com maestria seus recursos vocais, expressões faciais e linguagem corporal para expor as dores e conflitos. Existe um humor cáustico e corrosivo que revela uma dor profunda, as marcas de anos de autorejeição e sabotagem social de todas as ordens. Ela transita com habilidade entre as diferentes vozes que a atormentam. Sua interpretação comprometida e envolvente contribui para desnaturalizar essa forma de intolerância.

Como aponta Malu Jimenez em Lute Como Uma Gorda (Editora Jandaíra, 2022), a gordofobia não é sobre saúde, mas sobre controle dos corpos, especialmente os femininos. As pessoas gordas têm seu caráter e valor questionados por conta do peso, sofrendo humilhações, rejeições e exclusões de oportunidades.

A saga autoficcional de Letícia transita entre a ironia sarcástica, o desespero sufocante e o grito de revolta. Seu corpo é a própria carne da política, o campo de batalha onde se inscrevem as marcas da gordofobia estrutural. Cada movimento, cada gota de suor que escorre é um manifesto da existência insurgente, um atestado vivo da humanidade que resiste sob a pele estigmatizada.

A performance expõe sem filtros a violência cotidiana que os corpos gordos sofrem numa sociedade que os rejeita e os desumaniza. Sua presença cênica é um ato de resistência e afirmação, reivindicando o direito de existir e ocupar espaços sem pedir desculpas por seu tamanho. Letícia denuncia como a gordofobia é um problema sistêmico que permeia todas as esferas da vida social, muito além de uma questão individual. A pressão constante para emagrecer, os olhares julgadores e a exclusão de oportunidades são manifestações concretas de uma estrutura opressiva.

Ao expor sua própria vulnerabilidade e transformá-la em potência criativa, a artista nos confronta com a necessidade de repensar nossa relação com os corpos. Sua performance é um manifesto político que usa a arte como ferramenta de denúncia e transformação.

Recheada de referências pop e fluxos de consciência febris, 116 Gramas: peça para emagrecer é um mosaico caleidoscópico dos discursos contraditórios que bombardeiam esses corpos. Das dietas da moda às teorias conspiratórias, passando pelos vigilantes do peso e a iconografia da Barbie, Letícia costura uma colcha alegórica que reflete a esquizofrenia de uma sociedade que lhes impõe o inatingível.

A atriz expõe a crueldade por trás desse ideal inatingível de magreza. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

Letíícia Rodrigues dança A Morte do Cisne de Tchaikovsky. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

O humor afiado é a arma com que Letícia desfere seus golpes mais incisivos. Ao rir do próprio incômodo, ela expõe a hipocrisia de uma cultura capitalista que lucra com a insegurança e o auto-ódio feminino. O riso na peça assume uma função subversiva, como propõe Mikhail Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, ao desestabilizar as estruturas de poder e expor suas contradições.

Após listar tudo que odeia em ser gorda, a personagem manifesta sua raiva, exemplificando o impacto da gordofobia. O espetáculo transita entre o lírico e o cru, utilizando releituras de mitos. A comparação do suplício de Prometeu à condição das pessoas gordas, “acorrentadas a corpos que a sociedade rejeita e pune”, enriquece a narrativa com uma pitada filosófica e mitológica.

A metáfora do corpo gordo que se sente permanentemente sujo, “como se precisasse ser constantemente limpo”, ressoa com a experiência de muitos. A ideia de estar preso em um corpo não desejado e a busca por libertação oferece uma visão sensível das dificuldades enfrentadas pelas pessoas gordas.

E é justamente esse corpo gordo enquanto ato de rebeldia que Letícia traz à cena, numa performance física e emocionalmente extenuante. Como quando executa até a exaustão A Morte do Cisne de Tchaikovsky. 

O espetáculo tensiona as noções estreitas e excludentes do que é um corpo capaz e desejável. Letícia desmascara na arte a crueldade por trás desse ideal inatingível de magreza. Num momento em que discursos de ódio e intolerância avançam, 116 Gramas se posiciona como uma voz potente e necessária de resistência. Numa sociedade neoliberal que nos adoece para depois lucrar com a cura, o espetáculo de Letícia Rodrigues é um chamado à insurreição.

Ficha Técnica
116 Gramas: Peça para Emagrecer
Idealização, dramaturgia e atuação: Letícia Rodrigues
Direção: João Pedro Ribeiro e Letícia Rodrigues
Direção de arte: Eliseu Weide
Direção de movimento e coreografia: Luaa Gabanini
Direção musical: Natália Nery
Composição e arranjo de trilha sonora: Lana Scott e Natália Nery
Gravação, mixagem, técnica e operação de som: Lana Scott
Direção, edição audiovisual, mapping e operação de vídeo: Lana Scott
Motion graphics: Pablo Vieira
Desenho de luz: Camille Laurent
Operação de luz: Felipe Stucchi
Coordenação de produção: Leo Birche
Produção: Jéssyca Rianho
Planejamento estratégico de comunicação: Thiago Dias
Comunicação visual e fotografia: Maria Luiza Graner

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Ser Tão Teatro combina Tchekhov com bolo na cara
Crítica a partir da peça Alegria de Náufragos

Os atores de Alegria de Náufragos: Rafael Guedes, Cely Farias e Thardelly Lima. Foto: Rafael Passos/ Divulgação

Digamos que você, espectador, chegue ao cais para embarcar no espetáculo Alegria de Náufragos, sem ter muita informação sobre a peça. No primeiro momento, você pode ficar um pouco perdido. Afinal, há uma profusão de citações e referências. Eu também fiquei atordoada no começo.

Alegria de Náufragos é uma montagem intrigante. De cara, vemos os atores vestidos de pijamas, às voltas com as aflições e delírios do professor Nicolai Stiepánovitch, que ostentou por décadas os símbolos de prestígio, de sucesso, enfim de felicidade, agora vivendo um pesadelo contínuo. O protagonista contracena com outras figuras e com os seus fantasmas. 

Adaptado livremente do conto Uma história enfadonha – das memórias de um homem idoso, de Anton Tchekhov (1860-1904), a encenação, produzida pelo grupo Ser Tão Teatro da Paraíba, é resultado de um processo colaborativo do grupo com outros artistas nordestinos. Com dramaturgia assinada por César Ferrario, Giordano Castro e o coletivo, e direção compartilhada entre Ferrario e Castro, a peça busca estabelecer conexões entre a obra de Tchekhov e situações contemporâneas.

A montagem combina um tratamento poético de Ferrario, conhecido por seu trabalho com os Clowns de Shakespeare, e a perspectiva de Castro, do grupo Magiluth, que enfatiza a presença cênica do ator, sua potência de performance. Essa junção de estilos resulta em um espetáculo crítico e cômico, marcado por uma atuação física intensa.

A direção explora a desconstrução das personagens e evidencia a interação entre atores e público, quebrando a quarta parede e criando um ambiente de cumplicidade. O humor ácido satiriza instituições sociais e convenções culturais, expondo sua superficialidade e hipocrisia, ao mesmo tempo em que provoca risos e reflexões, subvertendo o peso de determinados valores.

Com uma estrutura não linear e fragmentada, a peça opta por uma encenação mais experimental. A história do professor Nicolai Stiepánovitch é contada através de uma série de cenas que se entrelaçam, que vão do deboche à reflexão filosófica.

Os atores Cely Farias, Rafa Guedes e Thardelly Lima interpretam várias personagens. Para as mudanças, o elenco faz pequenas alterações nos figurinos, concebidos por Vilmara Georgina, como a adição de um acessório ou a troca de um elemento de vestuário. Essa dinâmica ágil e a constante alternância de papéis, esse embaralhamento de figuras e a vertigem verborrágica podem confundir. Mas não se preocupe. Siga firme.

Ter algum conhecimento prévio sobre a obra de Anton Tchekhov talvez ajude a compreender algumas das referências ou temas abordados. Mas, se não tiver, tudo bem. Estar aberto a formas não convencionais de narrativa e performance é fundamental para se divertir com as nuances da peça, que desafia as expectativas tradicionais do teatro, exigindo disposição e uma mente aberta e curiosa. Faça as associações que lhe pareçam significativas.

Na idade madura, o protagonista questiona o sentido de prestígio, fama, poder.

Nicolai Stiepánovitch é um professor emérito, reconhecido por seu currículo impecável e suas contribuições significativas no campo da Medicina. Aos olhos da sociedade, alcançou o ápice do sucesso profissional e pessoal, enfim, a felicidade. Ele é respeitado, condecorado e visto como um exemplo de vida bem-sucedida. No entanto, aos 62 anos, Nicolai enfrenta uma dolorosa crise existencial. Ele começa a questionar as escolhas que fez ao longo de sua vida, percebendo a superficialidade e a pateticidade das instituições que antes valorizava. Gradualmente, suas conquistas e honrarias perdem o sentido para ele, que se vê como um náufrago em sua própria existência.

Para enriquecer a discussão sobre Nicolai Stiepánovitch, podemos trazer as ideias do sociólogo Zygmunt Bauman sobre a modernidade líquida e a vida líquida. Bauman argumenta que, na modernidade líquida, as estruturas sociais e as instituições são instáveis e em constante mudança. Essa fluidez gera incertezas e inseguranças, afetando a identidade e a busca por significado dos indivíduos.

Stiepánovitch é um exemplo de um indivíduo que, apesar de suas conquistas, se sente perdido em um mundo líquido. Sua crise existencial reflete a dificuldade de encontrar estabilidade e propósito em uma sociedade onde tudo é efêmero e mutável. As reflexões de Nicolai sobre a futilidade das instituições e o vazio interior ecoam as ideias de Bauman sobre a fragilidade das relações humanas e a busca incessante por validação.

A representação do envelhecimento em Alegria de Náufragos merece uma reflexão crítica sob a ótica contemporânea. Retratar Nicolai, aos 62 anos, como um homem no ocaso de sua carreira e de sua vida, restrito por limitações físicas e mentais, pode reforçar estereótipos e preconceitos relacionados à idade. Essa abordagem não condiz com a realidade de muitas pessoas na faixa dos 60 anos no século 21, que, graças aos avanços da medicina, da qualidade de vida e da consciência sobre a saúde, mantêm uma vitalidade e uma energia notáveis.

Exemplos de artistas como Madonna e Sting, que aos 64 e 71 anos, respectivamente, seguem criando, se apresentando e cativando o público com sua arte e presença cênica vibrante, acentuam que a idade não é um fator determinante para a vitalidade e a paixão pela vida.

No que diz respeito à personagem Cátia, que ocupa um lugar especial na vida do protagonista, ela de fato representa um contraponto significativo ao desalento e ao vazio interior de Nicolai. Sendo uma jovem artista plena de sonhos e paixão pela vida e pela arte, Cátia personifica a esperança e a busca incessante por sentido. Sua luta para viver da arte, mesmo quando enfrenta fracassos e decepções, ressoa com a própria experiência dos atores do Ser Tão Teatro e os desafios de muitos grupos espalhados pelo Brasil.

Montagem paraibana participa do circuito do Palco Giratório nacional. Foto: Eunilo Rocha / Divulgação

Os elementos cênicos, retirados de uma caixa central no palco, ganham estatura na encenação. Objetos simples como flâmulas, troféus, cabos de vassoura e medalhas são utilizados para construir a imagem do professor Nicolai e sua trajetória.

É um mérito do grupo trabalhar com temas profundos como a ruína interior, os valores mundanos das instituições e a crise existencial na chave da comicidade e do deboche, agregando o interesse de plateias mais jovens. Afinal, a peça também fala disso: não se leve tão a sério, não leve a vida tão a sério.

Quem é do teatro ama a porção metateatral, com a incorporação de elementos autobiográficos dos atores e reflexões sobre a própria prática e seus perrengues, adicionando uma camada extra de complexidade.

Os atores utilizam gestos exagerados, expressões faciais e movimentos corporais para criar momentos cômicos. A peça expõe as dificuldades enfrentadas pelo povo do teatro, como a corrida por editais, a burocracia envolvida na obtenção de financiamento para projetos e a necessidade de complementar a renda com papéis de figurantes, animações de festas infantis, oferecendo uma visão da precariedade e incerteza da vida de artista.

O uso de ações cômicas como tapa na cara, bolo na cara, talco, água e açúcar na cara se mostrou uma estratégia eficaz para criar momentos de humor físico. Esses recursos intensificam a comicidade e criam um ambiente de caos controlado.

O Ser Tão Teatro, fundado em 2007 por alunos e profissionais das artes cênicas da UFPB, é um grupo de pesquisa teatral de João Pessoa, Paraíba, que tem se destacado no cenário nacional e regional. Com Alegria de Náufragos – que estreou em março de 2016, em João Pessoa, e foi financiado pelo Fundo Municipal de Cultura (FMC) – a trupe está em circulação pelo Brasil, através do projeto Palco Giratório do SESC Nacional. Estão previstas apresentações em Natal (RN) no dia 07/08; São Paulo (SP) nos dias 13/08, com a realização do Pensamento Giratório, e 14/08; Rio de Janeiro (RJ) no dia 15/08, com uma apresentação no Polo Educacional; Florianópolis (SC) no dia 22/08; São Luís (MA) no dia 18/09; e Porto Velho (RO) no dia 26/09.

A peça estreou na época do # fora Temer. Foto: Eunilo Rocha / Divulgação

Ficha técnica:
Direção: César Ferrario e Giordano Castro
Dramaturgia: César Ferrario, Giordano Castro e Ser Tão Teatro
Elenco: Cely Farias Rafa Guedes Thardelly Lima Polly Barros (stand in) Paulo Philipe (stand in)
Direção musical e música original: Marco França
Desenho de luz:: Ser Tão Teatro
Produção: Rafa Guedes, José Hilton
Iluminador: Fabiano Diniz
Operador de som: Polly Barros
Figurino: Vilmara Georgina
Cenografia e adereços: Maria Botelho
Direção de palco e contrarregragem: José Hilton e Daniel Torres

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Delírio perplexo no Km 23, Brasil
Crítica a partir do espetáculo
Neste mundo louco, nesta noite brilhante

Yara de Novaes e Débora Falabella em cena do espetáculo Neste mundo louco, nesta noite brilhante. Foto: Sérgio Silva / Divulgação  

Quando assisti ao espetáculo Neste mundo louco, nesta noite brilhante pela primeira vez em 2019, no Sesc Consolação em São Paulo, vivenciei um episódio de medo e insegurança nas ruas da cidade. Descendo, depois da sessão, pela Rua Dona Veridiana sem estrelas e sem luar, ao lado de uma amiga, fomos surpreendidas por um homem que caminhava na nossa direção e que despertou os piores sentimentos de pavor e vulnerabilidade. O que havia visto no palco com Débora Falabella e Yara de Novaes ainda reverberava intensamente em mim, e os dados alarmantes de violência contra as mulheres acionavam mecanismos estranhos. Minha amiga correu por uma rua lateral, enquanto eu, não sei exatamente porquê, fui em direção ao sujeito. Tudo parecia muito rápido. Minha amiga encontrou uma viatura da polícia que se prontificou a nos deixar perto de casa, depois de nos fichar. Eu me recusei, não querendo estar nas fichas da polícia. Minha amiga ficou possessa comigo e seguimos a pé, com a amizade quase se rompendo ali, ou perdendo um pouco do romantismo.

Esse incidente ocorreu antes da pandemia de Covid-19, que paralisou o planeta e alimentou a utopia de que a humanidade iria aprender com os milhões de mortes; mas qual o quê! Também foi antes da operação policial realizada em 2022 na Praça Princesa Isabel, onde estava concentrada a Cracolândia naquela época. Após a ação, os usuários de crack se dispersaram para outras ruas da região central de São Paulo, como a Rua Helvétia, a Alameda Dino Bueno e outras dos bairros de Santa Cecília, Campos Elísios, República e adjacências.

A montagem de Neste mundo louco, nesta noite brilhante, agora em cartaz no Teatro Firjan SESI Centro, no Rio de Janeiro, até 18 de agosto, foi muito bem recebida em todas as temporadas e por onde esteve em cartaz. Um casal de amigos da área de produção de orgânicos que passava a semana no Rio de Janeiro, a quem indiquei o espetáculo, retornou entusiasmado: “Gratidão amiga, a peça é estupenda”. Fui buscar aquelas imagens e sensações ainda acesas, que tanto me impactaram.

Muitas produções teatrais têm trabalhado com a temática da violência contra a mulher no palco, e há diversas formas de representar uma questão tão dura, tão real, tão abominável. O que pode fazer a diferença é a linguagem, esse treco que faz amarrações incríveis para mergulhar em assuntos complexos sem querer apresentar soluções mágicas. No caso desta peça, a estética não realista e poética vem associada a um humor ácido.

A violação de uma mulher é uma barbárie que continua sendo praticada, sem que os homens no poder, ou os que se autointitulam de bem, se sintam realmente atravessados como se fosse na própria carne. Nenhum homem sabe de verdade o que é sentir no corpo o irreparável do estupro. Os dados são alarmantes e as taxas crescem.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, houve 61.243 casos de estupro no Brasil em 2023, um aumento de 9,2% em relação a 2022. Isso significa que, em média, uma mulher é estuprada no país a cada 9 minutos. Nove minutos; repito! Além disso, o Brasil registrou 1.427 casos de feminicídio em 2023, um aumento de 8,2% em relação ao ano anterior. Esses números chocantes evidenciam a urgência de se discutir e enfrentar a violência contra a mulher em todas as suas formas.

As raízes dessa violência se entrelaçam com as estruturas patriarcais que permeiam nossa sociedade, perpetuando a dominação masculina. O patriarcado é um emaranhado complexo de relações de poder que se infiltra em todas as esferas da vida, desde as interações mais íntimas até as instituições que moldam nossa existência compartilhada.

Essa lógica perversa de dominação não se limita a aspectos isolados, mas se alastra, contaminando a política, a economia, a cultura e até mesmo nossa psique. É ela que sustenta a cultura do estupro, que normaliza a violência sexual e culpa a vítima por sua própria violação. É ela que mantém a violência de gênero como uma sombra constante, um fantasma que assombra a vida de milhões de mulheres.

O patriarcado se adapta e se reinventa, encontrando novas formas de se manifestar em um mundo em constante mudança. Seja através de microagressões cotidianas, da desigualdade salarial, da sub-representação feminina nos espaços de poder ou da violência física e sexual, o patriarcado se faz presente, limitando e oprimindo as mulheres.

A dramaturgia é de Silvia Gomez. Foto: Joao Caldas Fº / Divulgação

Um dos pontos de inspiração da dramaturgia da montagem foi um episódio real ocorrido no Piauí em 2015, quando quatro meninas foram estupradas e jogadas de um abismo. No entanto, a peça não se limita a esse evento trágico. Muitas linhas se cruzam e muitas histórias se acumulam, dialogando em camadas na trama tecida por Silvia Gomez.

A dramaturga – autora de peças como O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade, O Amor e Outros Estranhos Rumores, Marte, Você Está aí? e Mantenha Fora do Alcance do Bebê –, constrói uma narrativa com palavras afiadas que penetram nas camadas mais subterrâneas da sociedade, expondo as entranhas de um sistema que normaliza o inaceitável. 

Gomez encontra no delírio a chave para destrancar as portas da perplexidade e do horror. Sua escrita carrega uma qualidade cirúrgica, trabalhada com precisão para expor as estruturas mais profundas e as vísceras de uma sociedade que normalizou a violência a tal ponto que chegou à indiferença, corroendo nossa humanidade.

Na encenação de Gabriel Fontes Paiva, o tema delicado e difícil do estupro coletivo é tratado com sensibilidade. Débora Falabella interpreta a garota violentada que, em meio ao turbilhão do trauma, busca desesperadamente um fio de sentido para não sucumbir. Yara de Novaes, como a vigia testemunha do quilômetro 23, cenário do crime, encarna a impotência e o atordoamento diante da barbárie, oscilando entre a empatia e a descrença. Juntas, elas traçam uma cumplicidade cênica desconcertante, que anos de convívio artístico no teatro de grupo proporciona. 

Trago algumas reflexões sobre performance, trauma e representação. No livro The Body in Pain: The Making and Unmaking of the World (1985), Elaine Scarry explora como a dor física, especialmente a dor extrema como a da tortura, resiste à representação linguística. Scarry argumenta que a dor destrói a linguagem convencional, tornando-a fragmentária e incoerente.

Outro autor que aborda questões semelhantes é o teórico de performance e trauma Patrick Duggan. Na publicação Trauma-Tragedy: Symptoms of Contemporary Performance (2012), Duggan investiga como as performances contemporâneas lidam com o trauma. Ele sugere que a performance pode servir como um meio de “testemunhar” o trauma, não através da representação direta, mas através da evocação de seus efeitos e sintomas, muitas vezes através de meios não verbais como o corpo, o som e a imagem, criando “efeitos de presença” do trauma.

Já a teórica da performance Diana Taylor, em seu livro The Archive and the Repertoire: Performing Cultural Memory in the Americas (2003), investe na relação entre performance e memória traumática. Taylor sugere que a performance, como um “repertório” de memória corporificada, pode transmitir experiências traumáticas de maneiras que escapam ao discurso verbal e à documentação escrita.

A peça é uma montagem do Grupo 3 de Teatro com direção de Gabriel Fontes Paiva. Foto: João Caldas Fº

Neste mundo louco, nesta noite brilhante tem a capacidade de “testemunhar o “intestemunhável”, ou seja, tocar em experiências traumáticas que desafiam a representação.

O cenário de André Cortez funciona como uma metáfora visual para o não-lugar da violência, esse espaço de suspensão onde a realidade se desintegra. É um território onírico, onde os pesadelos ganham forma e a linha entre o real e o surreal se dissolve. As projeções de vídeo são como fragmentos de memória, ecos deformados de um trauma que se recusa a ser esquecido. Elas sugerem a natureza intrusiva e repetitiva das memórias traumáticas, que voltam incessantemente, muitas vezes de forma despedaçada. A iluminação cria uma atmosfera de claustrofobia, como se o palco fosse a própria mente aprisionada no labirinto do trauma.

A trilha sonora, composta por Lucas Santana e Fábio Pinczowisk, adiciona mais uma camada à narrativa. Durante as apresentações no Sesc Consolação, a banda boliviana Las Majas a executava ao vivo, criando uma atmosfera única. Nessa temporada no Teatro Firjan SESI Centro, a trilha é gravada,  mantendo sua força e impacto.

O Grupo 3 de Teatro – que já montou espetáculos como Contrações (2013), com direção de Grace Passô, e Love, Love, Love (2017), dirigido por Eric Lenate -, utiliza a poética do desconforto como estratégia estética. Essa poética visa desestabilizar o público, tirá-lo da zona de conforto das certezas e confrontá-lo com o incômodo, o mal-estar. É uma linguagem que se recusa a ser complacente, que escolhe a vertigem do estranhamento como forma de provocar reflexão.

Ao abraçar o desconforto, o Grupo 3 de Teatro nos convida a encarar as sombras dentro de nós mesmos, a questionar as estruturas que sustentam a violência e a reconhecer nossa própria cumplicidade silenciosa. 

É difícil transmitir a intensidade e a complexidade das experiências encarnadas pelas atrizes. Ao longo da peça, as atrizes Débora Falabella e Yara de Novaes utilizam uma linguagem corporal descontínua para evocar os estados internos da mulher violentada e da testemunha solidária. Os movimentos convulsivos, os gritos sufocados, os silêncios carregados – todos esses elementos evocam o impacto da violência. 

Ao mesmo tempo, a estrutura não linear e onírica da cena, com suas transições abruptas e justaposições insólitas, reflete a natureza descontínua e desorientadora da memória traumática. Não há uma narrativa clara de causa e efeito, nenhuma resolução fácil – em vez disso, somos imersos em um espaço psicológico onde o tempo é distorcido, as identidades são fluidas e as fronteiras entre o real e o imaginado são borradas.

Esse reconhecimento, esse ato de “testemunho secundário”, implica o público. Ao sermos confrontados com a realidade crua da violência e suas consequências devastadoras, não podemos mais manter uma distância segura. Somos chamados a sentir, a nos envolver em um nível profundamente político.

Assim, Neste mundo louco, nesta noite brilhante se mostra como um ato de resistência contra o silêncio e a invisibilidade que muitas vezes cercam a violência sexual, lembrando que essa ferida coletiva requer um engajamento coletivo.

Ficha técnica:
Elenco: Débora Falabella e Yara de Novaes
Texto: Silvia Gomez
Direção: Gabriel Fontes Paiva
Cenografia: André Cortez
Vídeo-cenário: Luiz Duva
Figurino: Fabio Namatame
Iluminação: Gabriel Fontes Paiva e André Prado
Trilha sonora original: Lucas Santtana e Fábio Pinczowisk

Serviço:
Neste mundo louco, nesta noite brilhante
Quando: Quinta e Sexta às 19h, Sábado e Domingo às 18h. De 28 de Julho a 18 de Agosto
Onde: Teatro Firjan SESI Centro. – Avenida Graça Aranha, 1, Rio de Janeiro – Rio de Janeiro
Quanto: Ingressos entre R$ 20,00 e R$ 40,00

 

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Querido público pagante, sobrevivente de guerra
Crítica de Cabaré Coragem

Cabaré Coragem é o primeiro espetáculo do Galpão pós pandemia de covid-19. Foto: Humberto Araújo

Neste cabaré, “cantaremos, beberemos, dançaremos!”. Essa é a promessa feita por Singapura, personagem de Inês Peixoto em Cabaré Coragem, espetáculo do grupo Galpão, de Minas Gerais, que estreou no ano passado, já passou por alguns lugares do país, participa agora do Festival de Curitiba e começa temporada neste mês de abril em São Paulo, no Sesc Belenzinho. Mesmo que proponha diversão, Singapura nos lembra instantes adiante que é importante estarmos alertas: nem tudo é o que parece, as aparências enganam. No foyer do Guairinha, na noite do último dia 30, a garrafa de cachaça está à mão, mais disponível do que disputada, dos frequentadores do local.

Quando entramos, a música alta da picape do DJ embala as conversas enquanto as pessoas procuram seus lugares e aguardam que o espetáculo comece, digamos, oficialmente. Lembro de ouvir Marília Mendonça e João Gomes, só para ficar entre os meus preferidos. Algumas pessoas se balançam nas cadeiras e há quem aceite o convite para dançar no palco ou no corredor. Os artistas que logo mais se apresentam neste cabaré circulam pela plateia, conversam com as pessoas. Oferecem doses de cachaça ou de conhaque. No canto do palco, sentada numa poltrona, a atriz Teuda Bara, 81 anos, ostenta peruca loura, sombra azul, blush rosado e batom vermelho.

Teuda Bara é madame, a dona do cabaré do Galpão. Foto: Humberto Araújo

A noite é de festa, mas as contradições são estabelecidas desde o início. Estamos aqui para nos divertir e viver esse momento. Quem sabe, dependendo do empenho e da entrega daquele conjunto formado por quem está no palco e na plateia, gozar. Mas gozar é difícil rotineiramente; o que podemos dizer então sobre gozar de barriga vazia, estando faminto? Nesses instantes iniciais da encenação, o Galpão pavimenta o caminho para os espectadores, anuncia a que veio.

Há uma expectativa de celebração que paira na plateia: além da possibilidade da instauração no teatro desse inferninho do Galpão, o reencontro com o grupo criado em 1982, com 26 espetáculos ao longo de sua trajetória, era aguardado. A última peça, Outros, segunda direção de Marcio Abreu para o grupo depois da disruptiva Nós (2016), estreou no distante ano de 2018, antes da pandemia. Eles sobreviveram. Nós também. Esse já seria motivo suficiente para cantar, beber e dançar, mas essa primeira cena deixa evidente que o Galpão traz ao centro desse cabaré o alemão Bertolt Brecht (1898-1956), dramaturgo, poeta, encenador, para tomar uma cachacinha junto e explicitar a luta de classes. É um cabaré cujas referências foram forjadas nos cabarés franceses e alemães do começo do século XX, espaços para discussão política, experimentalismo e transgressões.

Nos últimos anos, de modo mais recorrente na última década, estamos num contexto em que o teatro de grupo no Brasil, de modo geral, está refletindo muito mais a partir das identidades e das dissidências, das questões de raça e de gênero: o teatro negro, o teatro feminista, o teatro queer. Alguns grupos continuam suas pesquisas insistindo na luta de classes, como a Companhia do Latão, de São Paulo, e o Coletivo de Teatro Alfenim, da Paraíba, mas essa não é mais a tônica dominante, como já foi por exemplo na década de 1960.

O Galpão resgata a temática da luta de classes utilizando a irreverência para desestabilizar o que de algum modo naturalizamos: as consequências do capitalismo, desigualdades, exclusões e injustiças. Roberto Schwarz, em seu texto Altos e baixos da atualidade de Brecht, no livro Sequências brasileiras: ensaios, diz que “Trata-se de entender, em suma, que na realidade como no teatro os funcionamentos são sociais e, portanto, mudáveis”, o que nos explica noutras palavras Singapura.

Singura (Inês Peixoto) nos dá as boas-vindas neste cabaré brechtiano. Foto: Humberto Araújo

As menções a Brecht estão espalhadas ao longo da peça, desde o título, Cabaré Coragem, referência a Mãe Coragem e Seus Filhos, texto de 1941. Mas nesse caso há também uma memória afetiva que vem do mineiro Guimarães Rosa (1908-1967), como afirmou Inês Peixoto na coletiva de imprensa sobre o espetáculo no Festival de Curitiba. De Grande Sertão: Veredas talvez seja esse justamente o trecho mais citado e bonito: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Teuda Bara é a Madame, dona do cabaré, mas em seu número encarna a Mãe Coragem. A veterana fala sobre as consequências da guerra, o quanto teve coragem e, ao mesmo tempo, medo de perder os filhos, e depois engata os versos de Mamãe coragem, de Torquato Neto e Caetano Veloso, conhecida na voz de Gal Costa. Na música, que compõe o álbum coletivo Tropicália ou Panis Et Circencis (1968), considerado manifesto musical do Tropicalismo, um filho tenta consolar a mãe.

Espetáculo atualiza debate sobre luta de classes. Foto: Humberto Araújo

O espetáculo, aliás, quero colocar em letreiro neón, é do elenco feminino do Galpão: Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara. Gente, essas atrizes! No palco, principalmente Inês Peixoto e Lydia Del Picchia reforçam o estereótipo da figura da mulher no cabaré-inferninho brasileiro, performando em seus figurinos e caracterizações a mulher desejada por seu corpo, cujas formas são destacadas pelo brilho das roupas curtas e apertadas, pretas, de preferência, ao mesmo tempo em que trazem outras camadas ao feminino.

Lydia Del Picchia começa o espetáculo vestida com macacão de mecânico, bigode pintado, e se transforma no palco. “Vocês devem ter reparado na minha roupinha, um brilhozinho básico, vulgar sem ser sexy. Cansei de ser sexy, agora eu sou só vulgar!”, destacando o empoderamento e a liberdade no que se deseja ser, em se fazer desejante do modo que nos satisfaça a nós mulheres e não necessariamente aos outros.

Noutro momento mais adiante, Simone Ordones será transformada na mulher monstro defensora da moral e dos bons costumes, replicadora de memes e notícias falsas, que se acalma com as joias das Arábias. Em seu número musical que se segue à performance como mulher monstro, a música escolhida é Mulher limpa, de Juliana Perdigão, criada a partir do poema de mesmo nome de Angélica Freitas, que está no livro Um útero é do tamanho de um punho. Com toda ironia, Simone entoa e faz o público repetir os versos: “Uma mulher boa / é uma mulher limpa / se ela é uma mulher limpa / ela é uma mulher boa. Uma mulher brava / não é uma mulher boa / e se ela é uma mulher boa / ela é uma mulher limpa”.

Uma das camadas mais significativas quando pensamos no feminino retratado na peça é a idade dessas mulheres. São quase todos corpos de mulheres mais velhas, se bem que… o que é velho? Mas são corpos que não são enxergados comumente pela sociedade como desejáveis, como se a mulher tivesse um prazo de validade.

O espetáculo é atravessado pela questão da idade para além do feminino. Esse cabaré é um cabaré de idosos, maravilhoso! Em determinado momento, quando os artistas questionam as condições de trabalho, a falta de comida, a precariedade, Madame responde com deboche: “Quero ver quem é que vai dar emprego para um bando de artista velho que nem vocês…”.

O etarismo nosso de cada dia relega os mais velhos a posições escamoteadas. A imagem comumente associada ao cabaré é a da juventude. Mesmo que a arte seja mais gentil com quem envelhece do que outros campos, como pontuou Antonio Edson durante a coletiva de imprensa, os preconceitos permeiam a vivência da velhice, ignorando o fato de que a sociedade brasileira caminha rumo ao envelhecimento de sua população.

Nesse lugar que fica mais visível na velhice, mas existe em todas as fases da vida, de levar em consideração o que conseguimos ou não fazer, de respeitar os próprios limites, mas não deixar de tentar transgredi-los, o Galpão recria uma cena de acrobacia de Antonio Edson e Eduardo Moreira. Eles são atores e não acrobatas; e homens mais velhos. Mesmo assim, disponíveis ao jogo, levando os seus corpos a lugares possíveis e, nem por isso, menos dignos de celebração. A trajetória do Galpão é admirável por muitos motivos, inclusive por este: a capacidade que o grupo possui de se colocar disponível, de experimentar, de não deixar que os anos de trabalho engendrem uma marca pesada demais para carregar.

Discussão sobre etarismo permeia a encenação. Foto: Humberto Araújo

Voltando ao capítulo Brecht, sem nunca ter saído dele, o Galpão consegue espraiá-lo na montagem, de modo que algo vai te alcançar, você vai sair dali entendendo que a peça também é sobre luta de classes, sobre questionar a realidade “imutável” na qual estamos inseridos. Na cena do ventríloquo e da sua bonequinha, foi incorporada a fábula Se os tubarões fossem homens, de autoria do dramaturgo alemão. Explicando à bonequinha, num dos trechos, o ventríloquo diz: “Se os tubarões fossem homens, eles fundariam escolas onde os peixinhos aprenderiam a nadar para dentro da boca dos tubarões e a sempre acreditar nos tubarões, especialmente quando eles dizem que vão cuidar para que os peixinhos tenham um belo futuro”.

No número seguinte, Lydia Del Picchia faz referência ao nome do bar da peça, repetido algumas vezes, Gangorra´s Bar: “Eu conheço este sistema, é meu velho conhecido. Alguns poucos por cima, outros muitos em baixo”. Os versos da música soam baratos e vagabundos, mas é isso mesmo: “Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária / Onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre / E o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe e o de baixo desce”.

Há ainda Antonio Edson cantando em alemão Die Moritat von Mackie MesserA balada de Mac Navalha, de A ópera de três vinténs, de Brecht e Kurt Weill. Há a versão Tango dos açougueiros felizes, da música Les Joueux, do francês Boris Vian (1920-1959). A música gravada por Cida Moreira, que trabalhou com o Galpão durante o processo de montagem, uma das artistas especialistas no cabaré brechtiano no país, resultou numa cena catártica. Há a música Singapura – Um copo de veneno, também de Cida Moreira, que dá nome à personagem de Inês Peixoto. E há a explicitação das contradições do sistema capitalista engendradas na própria arte: “Aqui, quanto mais você paga, mais a gente brilha”, “querido público pagante”.

Galpão, grupo mineiro, é um dos principais representantes do teatro de grupo brasileiro, em atuação há 42 anos. Foto: Humberto Araújo

A peça do Galpão nos lembra que somos sobreviventes de guerra. Há vários tipos de guerras. Mesmo que não traga o contexto político brasileiro ipsis litteris, também é sobre isso. Acompanhamos um golpe de Estado que tirou a primeira mulher presidenta do Brasil do poder, nunca esqueceremos. Vimos um político se tornar presidente da república rendendo louros a um torturador. Vivemos a pandemia, vivemos a pandemia com Bolsonaro na presidência. Tivemos uma tentativa de romper com a democracia. O fantasma da extrema direita vive a nos assombrar. Mas a garantia do direito à memória – e o Galpão é memória em cena e memória encenada – continua a ser um desafio para nosso país. Assistimos no mês passado ao cancelamento dos atos em repúdio aos 60 anos do Golpe civil militar e das barbáries praticadas pelos militares após decisão do presidente Lula.

O Galpão traz ao palco uma luta que não se restringe ao individual, um grupo de teatro que se mantém no Brasil há 42 anos apesar de todas as circunstâncias, sejam políticas, econômicas, de descaso com a política de Cultura no país. Eles são caminho percorrido e vislumbre de possibilidade com sua atuação pública e artística. Ver o Galpão em seu 26º espetáculo, no palco, é pensar “um pouco na realidade e muito na imaginação”, como diria Roberto Schwarz, que o futuro pode ser bonito.

O espetáculo Cabaré Coragem foi apresentado nos dias 30 e 31 de março de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

Cabaré Coragem no Festival de Curitiba 2024. Foto: Humberto Araújo

Ficha técnica:
Elenco: Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara
Direção: Júlio Maciel
Direção musical, arranjos e trilha sonora: Luiz Rocha
Diretor assistente: David Maurity
Cenografia e figurino: Márcio Medina
Dramaturgia: Coletiva
Supervisão de dramaturgia: Vinícius de Souza
Direção de cena e coreografia: Rafael Bacelar
Iluminação: Rodrigo Marçal
Adereços e pintura de arte: Marney Heitmann
Preparação corporal e do gesto: Fernanda Vianna
Preparação vocal: Babaya
Assistência de figurino: Paulo André e Gilma Oliveira
Assistência de cenografia: Vinícius de Andrade
Assessoria de iluminação: Marina Arthuzzi
Direção de experimentos cênicos: Ernani Maletta, Luiz Rocha e Cida Moreira
Colaboração artística: Paulo André e João Santos
Maquiagem e perucaria: Gabriela Dominguez
Assistente de maquiagem e perucaria: Ana Rosa Oliveira
Construção cenário: Artes Cênica Produções
Confecção de figurinos: Taires Scatolin
Técnico de palco: William Bililiu
Instalação de luminárias cênicas: Wellington Santos
Assessoria de imprensa: Polliane Eliziário (Personal Press)
Comunicação on-line: Rizoma Comunicação & Arte
Fotos: Mateus Lustosa
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Filipe Lampejo e Rita Davis
Operação de luz: Rodrigo Marçal
Sonorização e operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Márcia Bueno e Idylla Silmarovi
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Músicas Alabama Song, Moritat, Singapura e Tango dos Açougueiros Felizes a partir dos arranjos musicais de Ernani Maletta
Fragmento do Texto: “Discurso sobre Nada” de Marcio Abreu

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Atrizes orquestras e teatralidade exposta*
Crítica de Ana Lívia

Ana Lívia, espetáculo da Cia. BR116, tem texto de Caetano W.Galindo

Até Ana Lívia, peça da Cia. BR116 com texto de Caetano W. Galindo, que estreou no ano passado em São Paulo e agora participou do Festival de Curitiba, Bete Coelho e Georgette Fadel nunca haviam trabalhado juntas. Vê-las em cena, interagindo afiadíssimas, como se só elas duas – e cenário, música, iluminação – fossem uma orquestra inteira com arranjos estranhos e belos, é um dos primeiros impactos do espetáculo.

Quando a peça vai acontecendo, quem se permite embarcar na encenação pode ter o corpo impactado pela vibração e experimentação das linguagens literária e teatral e descobre, por fim, que é o próprio teatro, desnudo, que se dá a ver ali, de modo febril e pulsante, desejoso de interação, solicitando que estejamos juntos a cada nova partitura dessa música.

Nessa encenação, na qual respiramos no mesmo ritmo das atuações, pode-se considerar irônico que a incomunicabilidade seja uma das questões latentes no diálogo entre as atrizes. Como em muitas relações que se desdobram no tempo, essas duas estão naquele espaço não se sabe desde quando, talvez desde crianças, talvez sejam duas personagens, ou uma só. Mas o que se estabelece entre elas vai além da apreensão formal de sentidos e, apesar disso, a escuta e, consequentemente, o diálogo, não se torna efetivamente viável. Uma delas quer muito contar algo à outra, ler o texto que acabou de receber, a outra sente que não tem oportunidade de falar, que mesmo quando fala não é ouvida.

Ainda assim, é como se respondendo não necessariamente, ou pelo menos não unicamente, ao que uma diz à outra, os corpos reagissem aos estímulos numa sincronia cronometrada. As duas se sucedem, até se interrompem, falam a mesma frase ao mesmo tempo numa intimidade desconcertante, disputam como se estivessem numa batalha, mas não se borram.

Bete Coelho está em cena e também assina codireção. Foto: Annelize Toledo

Georgette Fadel. Foto: Annelize Toledo

Ao mesmo tempo em que cada uma possui características bastante específicas na encenação, ao ponto de um dos melhores momentos do espetáculo ser justamente a cena em que uma imita a outra, elas também estão imbricadas como se pudessem ser uma só. Há um espelhamento potencializado pela experimentação da linguagem cênica e da linguagem literária, além do apuro técnico, do domínio de cada palavra, de cada suspiro e silêncio, de cada gesto colocado no momento exato pelas atrizes.

Se cenário, iluminação, figurino e muitas vezes até o texto sugerem uma sisudez, há cenas de humor escancarado, nas quais os ensaios das atrizes se estabelecem como espetáculo pronto à interação com a plateia, aos aplausos do público. As mudanças de registro, saindo muitas vezes radicalmente, sem escalas, do gesto contido ao exagero, ajudam na composição do humor nessa tragicomédia. É um corpo disposto ao risco do jogo e do caricatural em suas possibilidades de expressão, um risco teatral sabidamente calculado em suas filigranas.

Nesse sentido, a cenografia de Daniela Thomas, parceira de trabalho de Bete Coelho há mais de três décadas, deixa a caixa do teatro exposta ao público, nessa reiteração de que o que estamos acompanhando é teatro, uma configuração completamente diversa das últimas montagens da companhia, que tiveram cenografias assinadas por Thomas e Felipe Tassara. Em Mãe Coragem (2019), um espetáculo grandioso, o ginásio do Sesc Pompeia foi transformado para receber a encenação que era também uma instalação cenográfica, um campo de batalha, uma arena, planos distintos, público dividido em vários locais no espaço. Em Molly Bloom (2022), o cenário era uma cama, disposta num plano mais alto, mas que incorporava possibilidades de difusão das imagens dos atores: o reflexo no espelho, as projeções ao vivo em várias telas.

Em Ana Lívia, o principal elemento cenográfico é uma longa mesa formada por praticáveis de teatro e três cadeiras e, nesse reforço do local em que estamos todos juntos, as atrizes no palco, nós na plateia, vemos os refletores da iluminação de Beto Bruel expostos, além de todo o ambiente do palco, as laterais, o fundo.

Quais as nossas expectativas quando vamos ao teatro? A todo tempo, Ana Lívia faz questão de lembrar que o que estamos acompanhando ali é teatro, apontando para um caminho que reconhece e explora a própria natureza da linguagem.

O espetáculo é estruturado a partir de uma teatralidade acentuada pela reiteração da linguagem teatral. Mesmo que não que precisasse, a teatralidade está posta, mas o que essa operação propicia aos espectadores?

Ao insistir na exposição da teatralidade, o espetáculo fricciona as expectativas convencionais em relação ao que um espetáculo de teatro pode ser. Esse constante lembrete da artificialidade da representação talvez funcione como um mecanismo de distanciamento, convidando os espectadores a uma postura mais analítica e menos absorvida emocionalmente pelo drama.

Caetano W. Galindo, professor curitibano, tradutor especialista em James Joyce, em sua primeira incursão como dramaturgo (mas em seu segundo trabalho com Bete Coelho, já que assinou a tradução e a consultoria dramatúrgica de Molly Bloom), oferece ao público a possibilidade de enveredar por múltiplas interpretações, além de propor um exercício formal de linguagem. A estrutura não linear supera a tradição do teatro dramático, questionando a expectativa de uma narrativa coesa e fechada. Essa estrutura aberta estimula os espectadores a participarem ativamente na construção desses significados, o que pode tanto desafiar quanto expandir o horizonte.

É um texto que envereda por polos duais: ao tratar de teatro e de ficção, faz pulsar a realidade; ao falar de morte, questiona o que fazemos e como encaramos a vida. Qual a versão real da história do quase afogamento de um cachorro? Existe verdade? A imagem da água está sempre presente, seja pelo barulho de mar que se faz ouvir insistente na mente das atrizes, seja o cenário de um lago ou o rio.

O texto e aquelas atrizes nos fazem questionar como lidar com a inquietude, o desassossego, a iminência de que tudo pode mudar a qualquer momento. O que podemos controlar? No texto de Caetano W. Galindo, quase nada. E essa é uma característica que o potencializa, porque é como se escapasse das nossas mãos, mas permanecesse ecoando no ouvido e no corpo inteiro pelo modo como foram concatenadas as palavras.

A construção do texto privilegia a sonoridade, o encontro entre as palavras, a habilidade na construção do diálogo que não necessariamente tem como intenção possibilitar a comunicação. A experimentação do que um som promove no corpo das atrizes e na plateia. Há, por exemplo, um jogo de troca de palavras com sonoridades parecidas, mas sentidos completamente diferentes, que enriquece e deixa os diálogos ainda mais interessantes e curiosos.

Espetáculo faz exercício de linguagem. Foto: Annelize Toledo

Na primeira sessão do espetáculo no Festival de Curitiba, no último dia 26, o Teatro da Reitoria estava lotado e, dependendo do lugar em que você estivesse sentado, o áudio das atrizes parecia baixo, de modo que não foi fácil acompanhar o que elas diziam em todos os momentos da peça. Mas o texto, mesmo que não ouvido em sua integralidade, proporciona saltos às cenas quando reverbera no corpo das atrizes numa expansão deliberada da oralidade ao corpo.

As atrizes estão sempre se referindo ao autor do texto que elas estão ensaiando, um “ele” indeterminado. A terceira cadeira na mesa permanece desocupada, discreta, quase imperceptível. As palavras desse autor, escritas a pedido delas, estão grafadas no caderno azul ou chegam pelo celular. E talvez nessa operação que, mais uma vez, reforça a teatralidade, a autoria desse texto para aquelas atrizes não está circunscrita apenas ao que elas querem dizer, mas em como elas podem dizer. Voltamos então nesse circuito, que é cíclico e parece não ter fim, um ensaio que é vida representada, que pode se suceder indeterminadamente, à qualidade de presença e ao jogo entre essas atrizes. Atrizes-orquestras-inteiras ocupando o palco.

O espetáculo Ana Lívia foi apresentado nos dias 26 e 27 de março de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

A sonoridade é um dos elementos importantes na peça. Foto: Annelize Toledo

Ficha técnica:

Texto: Caetano W. Galindo
Direção: Daniela Thomas
Codireção: Bete Coelho e Gabriel Fernandes
Elenco 1: Bete Coelho e Georgette Fadel | Elenco 2: Bete Coelho e Iara Jamra
Cenário: Daniela Thomas e Felipe Tassara
Assistente de direção: Theo Moraes
Direção musical: Felipe Antunes
Assistente de direção musical: Fábio Sá
Figurino: Bete Coelho e Daniela Thomas
Diretor técnico: Rodrigo Gava
Desenho de luz: Beto Bruel
Assistente de luz: Sarah Salgado e Pamola Cidrack
Operadora de luz: Patricia Savoy
Operador de som: Rodrigo Gava
Contrarregra: Theo Moraes
Designer gráfico: Celso Longo + Daniel Trench
Diretor de comunicação: Maurício Magalhães
Assessoria de imprensa: Fernando Sant’Ana
Design de mídia social: Letícia Genesini
Assessoria jurídica: Olivieri e Associados
Dramaturgista da Cia.BR116: Marcos Renaux
Local de ensaio: CASAVACA
Produtora executiva: Mariana Mantovani
Direção de produção: Lindsay Castro Lima

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