Arquivo mensais:novembro 2011

É rock and roll na veia e no palco

Narrativa é costurada por fantasma de ator que interpretou Hamlet. Foto: Pollyanna Diniz

Quando estavam criando a peça Antes da coisa toda começar, os atores da Armazém Companhia de Teatro assistiram ao documentário O equilibrista. A história de um homem que, em 1974, queria atravessar as Torres Gêmeas se equilibrando num cabo de aço ajudou a despertar aqueles intérpretes. Era o limite tênue entre o mágico e o fatal. Quais os momentos em que nos sentimos capazes de tudo ou os opostos, quando perdemos o chão? São essas as sensações evocadas na montagem que será apresentada no Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu, de hoje até sexta-feira, sempre às 21h.

Antes da coisa toda começar é a peça mais recente desta companhia surgida em Londrina e radicada no Rio de Janeiro. Ano que vem, o grupo comemora 25 anos (com uma peça nova, que estreia em setembro). “A gente queria falar sobre o que chamamos de ‘primeiras sensações’, esses primeiros momentos na vida em que a gente se sente único, potente, indivíduo, capaz de tudo. Esse momento talvez esteja ligado à juventude, mas está ligado também totalmente à questão da criação. Percebemos que, para a maioria de nós do grupo, esse momento estava relacionado ao teatro, quando a gente acreditou que era importante, que tinha algo a dizer e que as pessoas iriam se interessar em ouvir a nossa voz”, explicou o diretor Paulo de Moraes.

É uma montagem de pegada muito mais rock and roll do que a penúltima, Inveja dos anjos, apresentada no Santa Isabel ano passado. “Inveja dos anjos tinha uma relação direta com a delicadeza, tanto na história quanto no trabalho dos atores. Quando fomos iniciar o novo trabalho, ficou claro que a gente queria ir para outro lado, a gente queria o rock’n’roll, queria uma estética mais cortante. Acho que isso tem a ver com essa tentativa de se reinventar a cada novo trabalho, de não se acomodar com o que já foi conquistado. Aos poucos fomos percebendo que a gente estava falando muito sobre nós mesmos, sobre nossos medos, desejos. Acho que a gente se expõe bastante, corta na própria carne”.

Patrícia Selonk como Zoé

Antes da coisa toda começar tem uma narrativa costurada pelo fantasma de um ator que interpretou Hamlet. E ele quem encontra os três personagens principais, de histórias independentes: Zoé, uma garota apaixonada pelo irmão; Léa, uma cantora doente; e Téo, um ator. Estão em cena Patrícia Selonk (em ótima interpretação como Zoé), Thales Coutinho, Simone Mazzer (Simone foi substituída em muitas apresentações por Rosana Stavis, mas está de volta ao elenco), Ricardo Martins, Marcelo Guerra, Verônica Rocha e Karla Tenório.

A dramaturgia foi construída, mais uma vez, em parceria por Paulo de Moraes e o poeta Maurício Arruda Mendonça. Esse é, aliás, o décimo texto produzido pela dupla. “É vital para o grupo esse tipo de construção. A gente parte de uma pesquisa temática, trabalha com ela durante alguns meses, até que começam a surgir alguns personagens e situações de cena. Quando isso acontece, eu e Maurício nos juntamos para começar a pensar num roteiro. Com o roteiro estabelecido, continuo trabalhando com os atores, tentando aprofundar as questões e os personagens contidos ali. Ao final, eu e Maurício nos trancamos alguns dias pra escrever a peça”, conta o diretor.

A trilha sonora é executada ao vivo pelos próprios atores, o que seria uma influência do grupo Galpão, de Minas Gerais. “A gente fez uma troca de experiências com o Galpão no início de 2010. Os atores dos dois grupos passavam exercícios que tinham a ver com a forma de cada grupo construir seus espetáculos.Os exercícios do Galpão eram muito ligados à música e isso reacendeu um desejo antigo dos atores do Armazém de cantar e tocar instrumentos em cena”. Os atores formam uma banda (Ricco Viana, pernambucano que assina a direção musical, também está em cena) que fica em plataformas construídas nas laterais do palco, a dois metros do chão. A cenografia é de Paulo de Moraes e Carla Berri; a iluminação de Maneco Quinderé e os figurinos de Rita Murtinho.

Passado e presente se misturam nessa que é mais uma tentativa do grupo de contar histórias, mesmo que, como diz um dos personagens, a vida não siga em linha reta e os fatos não se encaixem uns nos outros como peças de um quebra-cabeças. “A gente não sabe viver sem fazer teatro. A gente quer entender um pouco melhor a vida, o homem, o nosso tempo. E o jeito como a gente se sente mais útil nessa ideia de reconstrução constante da humanidade é no palco”, finaliza Moraes. No início do ano que vem, a peça Antes da coisa toda começar será apresentada em Natal, João Pessoa e Fortaleza; e o grupo ficará em cartaz no Rio com três montagens do seu repertório: Alice através do espelho, Toda nudez será castigada e Inveja dos anjos.

Antes da coisa toda começar, da Armazém Companhia de Teatro
Quando: de hoje a sexta-feira, às 21h
Onde: Teatro Luiz Mendonça, Parque Dona Lindu
Quanto: R$ 30 e R$ 15 (meia)
Informações: (81) 3355-9821

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Para não perder o encanto – e o público

Avaliação pública do Festival Recife do Teatro Nacional 2011. Foto: Val Lima

Na sua festa de debutante, ano que vem, quando completa 15 edições, o Festival Recife do Teatro Nacional precisa se reinventar. Atualizar a sua função e importância não só para o público em geral, mas também para os artistas que ajudou a formar na cidade. Mesmo que os números não denunciem, já que os espectadores nos teatros até aumentaram do ano passado para cá – de 4.794 para 5.089 pessoas – o fato é que, quem acompanhou os 12 dias de festival, sentiu os teatros esvaziados em muitas apresentações.

Talvez seja um reflexo, como foi levantado pelo próprio secretário de Cultura do Recife Renato L, presente na avaliação, da proposta curatorial defendida pelo jornalista e pesquisador de teatro Valmir Santos: apostar no teatro de grupo, de pesquisa, e na apresentação de peças dos seus repertórios, deixando de lado grupos mais conhecidos na cidade, que estariam sempre se revezando na programação de anos anteriores. Proposta ousada e que se mostrou importante tanto para o público quanto para os artistas que acompanharam as sessões.

A Companhia Hiato, por exemplo, de São Paulo, nunca tinha vindo ao Nordeste e teve a oportunidade de apresentar os seus três espetáculos: Cachorro morto, Escuro (que abriu a programação do festival) e a comovente O jardim. “A proposta era povoar os palcos com criadores que nunca tinha passado pela cidade. Núcleos que necessariamente não têm muita estrada, mas experiências interessantes. Jovens criadores que dialogam com a tradição, com espetáculos que não são fruto do mero ímpeto juvenil”, disse Valmir Santos. A Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, também trouxe três peças: Oxigênio, Vida e Descartes com lentes. O instigante e difícil dramaturgo e diretor Francisco Carlos, do Amazonas, trouxe duas peças da sua tetralogia Jaguar cibernético.

Paulo Vieira, professor, ator e diretor da Paraíba, foi convidado para acompanhar o festival e realizar uma avaliação crítica. Vieira lembrou do tempo em que “era um jovem ator de pouco mais de vinte anos, quando vim com um grupo de amigos com os quais eu trabalhava, exclusivamente para assistir aos espetáculos que varavam a noite do Vivencial. Era a linguagem de um teatro que gostaríamos de ter por perto, de ver mais vezes e se não exatamente fazer igual, ao menos com ele reabastecer as emoções que o teatro proporcionava”. O grupo Vivencial, que teve sua história contada através de uma série publicada no Diario de Pernambuco semana passada, foi o homenageado do festival.

Mas o avaliador fez críticas, como a escolha do espetáculo Escuro, que não era “alegre, esfuziante”, como a noite de homenagem ao Vivencial pediria e denunciou as más condições da escola municipal Antônio Farias, no bairro de San Martin, que recebeu uma apresentação da montagem O encontro de Shakespeare com a cultura popular: Romeu e Julieta, do Ceará. “A degradação do ambiente me provocou a sensação de estar em uma antessala de penitenciária”.

Para o coordenador do festival, Vavá Schön-Paulino, ainda há algumas questões que em 14 anos de mostra ainda não conseguiram ser solucionadas, como uma bilheteria informatizada, um espaço de convivência do festival e um local para a central de produção. A divulgação do festival, um calo da sua organização, também recebeu críticas. A programação foi divulgada apenas com uma semana de antecedência, o site só ficou pronto quando o festival já estava acontecendo e o programa completo da mostra estava disponível já no fim do festival. Apesar disso, o clima foi amistoso e, apesar de não haver ainda uma definição sobre se Valmir Santos será o curador do ano que vem, o festival deve de alguma forma homenagear o centenário de nascimento do pernambucano mais importante da história do teatro nacional: Nelson Rodrigues.

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Avaliações

Depois de 12 dias de programação, terminou ontem o Festival Recife do Teatro Nacional. Vimos muitas coisas, que merecem outros posts, mas estamos escevendo para lembrar que a avaliação do festival será hoje, às 19h, no Teatro Apolo. O convidado para fazer a avaliação este ano é Paulo Vieira, da Paraíba. Como todos os anos, um momento para conversar e tentar melhorar os festivais que estão por vir.

Falando nisso, amanhã, às 19h, a Gerência Operacional de Artes Cênicas da Fundação de Cultura da Cidade do Recife vai realizar uma reunião com a classe no Salão Nobre do Teatro de Santa Isabel. Estaremos lá, claro, para saber quais são os planos, ainda que tardios, da gestão.

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A vida como ela é: Luis Antonio – Gabriela

Espetáculo Luis Antonio Gabriela, no Teatro Luiz Mendonça, no Recife. Fotos Ivana Moura

Luis Antonio – Gabriela é um pedido de desculpa a um irmão morto. É também uma tentativa de entender as radicais diferenças quando alguém “nasce num corpo errado”. Uma experiência catártica. E uma tentativa de expurgar um fantasma. Chamado de documentário cênico ou ficção verdade, o espetáculo dirigido por Nelson Baskerville, com produção da Cia. Mungunzá de Teatro, no mínimo inquieta o espectador. Ele foi exibido ontem e tem outra sessão hoje, dentro do Festival Recife do Teatro Nacional, no Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu.

Com extrema coragem, que esses tempos covardes necessitam, o ator e diretor Nelson Baskerville sangra sua própria história. Seu irmão mais velho, Luis Antonio (interpretado por Marcos Felipe), nasceu em 1953. Nelson, oito anos depois, em 1961. Ainda menino, Luis Antonio se sentia inadequado naquele corpo. Seu pai batia muito nele, porque queria arrancar daquele “pele curta” uma atitude viril. Ele viveu em Santos até os 30 anos e passou quase três décadas sem comunicação com a família. Mudou-se para a Espanha. Em Bilbao, assumiu a identidade de Gabriela e foi estrela de shows em boates. Morreu em 2006, vítima da aids.

É um passado familiar complicado, que muita gente tenta varrer para debaixo do tapete. Baskerville futuca esse passado sem pudor e mostra que o mundo não e feito de super-heróis. Qualquer um tem seu lado bom. Qualquer um tem seu lado podre. Então o garoto que poderia ser encarado com vítima da intolerância, abusa sexualmente do pequeno Nelson.

Espetáculo obrigatório da Cia. Munguzá de Teatro

A dramaturgia fragmentada foi construída por Nelson Baskerville e Verônica Gentilin a partir de depoimentos de familiares e amigos de Tonio. E chega ao palco projetando a desordem do grupo familiar, com um pai violento, uma mãe omissa e um bando de filhos, seis da parte dele, três da parte dela, que eram viúvos. Totalmente disfuncional.

Uma profusão de imagens é projetada da parafernália tecnológica, captadas e geradas pelos próprios atores, além de imagens de arquivo e um depoimento do diretor do espetáculo. A iluminação não convencional também é operada pelo elenco e cria climas diversos com a utilização de panos coloridos cobrindo as lâmpadas em determinadas cens, por exemplo.

O cenário poderia ser uma instalação de arte contemporânea. Na cena em que Maria Cristina leva Luis Antonio ao Museu Guggeinhein de Bilbao caem 22 telas 22 telas do jovem artista plástico Thiago Hattner. Pendurados estão sacos de soro que remetem para os problemas que o protagonista enfrenta. Também cabe aos atores executar a trilha sonora composta por Gustavo Sarzi. É uma música poderosa, repleta de vigor, realizada ao vivo, com piano, guitarras, entre outros instrumentos.

Montagem ousada fez sucesso na temporada paulista.

Os atores/narradores mostram a trajetória do menino que virou homem, que virou travesti. Marcos Felipe interpreta o personagem-título com força e alegria. Revela as múltiplas facetas de Luis Antonio/Gabriela de forma apaixonante. Evitando qualquer tipo de maniqueímo, o ator explora as variadas facetas do personagem: feliz, cruel, generosa, egoísta, vítima e algoz. Para fugir dos clichês, o protagonista também não usa salto alto, mas anda na ponta dos pés como se estivesse usando. Isso cria uma instabilidade no andar, uma coisa titubeante que pontua a situação da figura, sempre na corda bamba.

Nelson Baskerville é personagem interpretado por Veronica Gentilin. Também estão no elenco competente Day Porto, Sandra Modesto, Virginia Iglesias, Lucas Breda.

O espetáculo estreou em março deste ano. Assisti antes no espaço do Galpão do Folias, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. O local menor, meio claustrofóbico, e com a cena realizada mais próxima da plateia me pareceu mais forte, mais pancada, mais hard. No Teatro Luiz Mendonça, com seu palco e aquela bocarra de cena o espetáculo também mostrou se vigor estético pulsante. Mas é diferente. Um coisa bem interessante que o grupo fez foi abrir o fundo do palco, que dá para o parque, nos minutos finais do espetáculo. Foi uma ótima sacada.

Luis Antonio – Gabriela expõe a realidade dura e crua, bela e cruel. Sem nada de limpeza asséptica (como querem alguns), mas repleta de sujeitas, muitos ruídos, lapsos. Mas sem perder o lirismo e ambiguidades da figura do travesti.

Montagem ressalta lirismo e ambiguidade do travesti Gabriela

Luis Antonio-Gabriela
Quando: Hoje, às 21h
Onde: Teatro Luz Mendonça, no Parque Dona Lindu, em Boa Viagem
Quanto: R$ 5
Informações: 3355-9821 / 3355-9845
Classificação: 16 anos

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Comovente O jardim, da Companhia Hiato

O jardim, da Companhia Hiato, espetáculo comovente. Fotos: Ivana Moura

É muito difícil um espetáculo despertar tantas sensibilidades. Mérito de O Jardim, da Cia. Hiato, dirigido por Leonardo Moreira. A recepção nos dois dias foi muito parecida. Gente chorando após as apresentações. É um trabalho comovente que vai tecendo suas teias para tocar na emoção do público aos poucos.

Seus personagens perderam algo e tentam se agarrar a todo custo a um passado que foge implacavelmente. Restam as lembranças.

É uma peça que trata da memória a partir do cruzamento de três episódios de uma mesma família em épocas distintas.

Em meio a um amontoado de caixas de papelão, – que já indica separação, despedida, abandono,- os personagens expõem situações-limite. A jovenzinha que busca manter o casarão ou o que sobrou dele; o último encontro de um casal que já se amou e o acerto de contas de duas filhas com seu pai que será levado ao abrigo.

Espaço e tempo são fragmentados e o público fica dividido em três plateias e dependendo da localização assiste a sequências diferentes. As três ações se desenvolvem ao mesmo tempo, mas o espetctador só acompanha uma de cada vez. Há uma sobreposição e algumas lacunas o espectador deve preencher.

A sequência que vi foi a partir da terceira trama, que se passa em 2011. A neta de Thiago luta pela conservação da história sua família. Ela dialoga com a moça que trabalhou a vida inteira na casa, uma propriedade que tem um grande jardim e faz alusão ao clássico O Jardim das Cerejeiras, de Tchékhov. Nesse primeiro quadro há o confronto da que sempre teve e perdeu e da que quase nada teve mas também perdeu. Há um sutil choque social e um humor fino para destacar essas diferenças.

Depois vi um casal em processo de separação. É 1938. A mulher tenta de todo jeito manter o casamento, eles brigam, se abraçam, choram,se beijam. Rememoram, se acusam. Ela faz chantagem emocional, mas Thiago está irredutível. Eles perderam um filho, e o futuro.

Quatro décadas depois, o Thiago de 1938 é um senhor que sofre de Alzheimer, prestes a ser internado numa clínica por suas filhas. Uma está grávida e foi abandonada pelo marido. Esta ficou para cuidar do paí. A outra é uma atriz que se mudou para a França, para cuidar da sua vida. Há acusações mútuas e a culpa que cada uma tem que aprender a conviver. O velho tem um olhar perdido no tempo. E essa situação, de decidir internar seus velhos queridos em asilos já é um detonador de sentimentos contraditórios.

Episódio de 1938, separação do casal

Como atesta Carlos Drummond de Andrade em seu poema Resíduo:
“De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco”.

Para mais adiante em tom maior:
“E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.”

Lembrei desses versos, da memória como algo que cheira e fede. E os odores são como senhas que nos transportam, quase num passe de mágica, para um outro tempo, outro espaço…

Episódio de 2011, da neta de Thiago

Os ótimos atores da peça trabalham valorizando a sutiliza e os detalhes emocionais. É uma poesia dramática, com direção delicada, iliminação que acompanha esse sentimento. Um espetáculo que marcou esta versão do Festival Recife do Teatro Nacional, na primeira curadoria de Valmir Santos.

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