Arquivo da tag: V Mostra Capiba

Com os pés nos anos 1990

Severino Florêncio como a impiedosa Dorotéia. Foto: Rodrigo Moreira/Divulgação

Há 27 anos, 37 meses e não sei quantos dias, Madalena vive um aperreio de vida. Tem uma mãe que, vamos combinar, ninguém merece. Dorotéia faz questão de mostrar que quem manda, não só na casa, mas em Madalena, é ela. Esse é o mote da montagem Dorotéia vai à guerra, do Grupo de Teatro Arte Em Cena, de Caruaru, apresentada no segundo dia da V Mostra Capiba. Na realidade, Severino Florêncio (Dorotéia) e Welba Sionara (Madalena) já tem intimidade com o texto há vários anos. Severino montou a peça em 1993 ao lado da atriz Maria Alves e ficou em cartaz por dez anos. Welba integrava a equipe técnica da montagem. Foi um grande sucesso na década de 1990, abocanhou prêmios em vários festivais – Severino nem tem certeza de quantos, acha que foram 32.

Remontar um desses grandes sucessos, uma peça em cartaz por tantos anos, levanta muitos questionamentos e dispara desafios. Para Welba, porque viu Maria Alves atuar, mas tem que criar a sua própria Madalena. Mas principalmente para Severino, que segundo o próprio diretor (das duas montagens) Gilberto Brito, tem no personagem um divisor de águas na sua carreira. Então porque voltar? Porque não se debruçar sobre um texto novo, encarar um personagem que fosse acrescentá-lo ainda mais, um processo diferente?

São só provocações…e, como mesmo diz Dorotéia, “a verdade tem muitas variantes”. Fato é que o tema e as discussões que podem ser geradas a partir do texto continuam pertinentes. São as relações de poder e dominação que permeiam as relações e de que forma elas podem ser superadas. Se Severino domina perfeitamente as nuances da sua Dorotéia, tão cruel, mimada, Welba deixa transparecer que a sua interpretação ainda pode crescer – o espetáculo estreou em março. Em muitos momentos, texto e emoção ainda estão em descompasso: o “mamãe” precisa soar mais natural, mais engendrado na atriz.

Parece também não estar bem resolvido o tom da comédia. Há ironia no texto, claro que sim, mas em alguns momentos a dúvida parece pairar: é um drama ou uma comédia? É um drama que se transformou em comédia? É aí o público não consegue, quando deveria, embarcar no riso. Acha muito absurda toda aquela situação ali encenada, tem pena de Madalena, raiva da mãe, raiva de Madalena por não conseguir se libertar, mas não consegue se divertir com o humor negro de Dorotéia ou se sentir vingado quando Madalena parece assumir o controle.

A cena se passa numa casa antiga, sob as vistas dos santos na parede, dentro de um quarto. Um baú, uma cadeira e uma cama são os principais elementos de cena. Mas a encenação é mesmo muito baseada na construção dos atores. E fica a impressão de que a montagem – não vi a anterior, é bom que se diga – caminha nos trilhos e moldes da década passada. Não vou usar de ironias ou eufemismos, como propõe Dorotéia. Saí do teatro com vontade de ver um ator tão competente quanto Severino, tão engajado na luta pelo teatro no interior, se arriscar ainda mais – se retirando da sua própria zona de conforto e, certamente, nos deixando desconcertados.

Montagem ganhou mais de 30 prêmios na década de 1990

Postado com as tags: , , , , ,

Forró e poesia

Cante lá que eu canto cá abriu a V Mostra Capiba de Teatro. Foto: Rodrigo Moreira/ Divulgação

Festival de teatro é momento não só para aprimorar o olhar cênico, para ver montagens de diferentes estilos e lugares, para discutir dramaturgia, direção, elenco. É também uma celebração. Sendo assim, a V Mostra Capiba de Teatro começou muito bem. Ao som do forró e da poesia de Patativa do Assaré com o espetáculo Cante lá que eu canto cá, da Cia do Tijolo, de São Paulo.

O mesmo grupo foi o responsável por uma das melhores experiências que tive no teatro este ano. Em maio, eles vieram ao Recife dentro da programação do Palco Giratório, para apresentar Concerto de ispinho e fulô. Na realidade, Concerto… é a montagem resultante do show que eles apresentaram agora no Capiba.

As declamações da poesia de Patativa são entrecortadas por músicas de diferentes compositores cantadas ao vivo, como Qui nem jiló. “Se a gente lembra só por lembrar / Do amor que a gente um dia perdeu/ Saudade inté que assim é bom / Pro cabra se convencer/ Que é feliz sem saber/ Pois não sofreu / Porém, se a gente vive a sonhar/ Com alguém que se deseja rever/ Saudade intonce aí é ruim/ Eu tiro isso por mim/ Que vivo doido a sofrer”.

Na banda, um sanfoneiro de São Paulo (e não é que lá tem sanfoneiro do bom?) Aloísio Olivier, Jonathan Silva (violão) e Maurício Damasceno (percussão e bandolim). O elenco tem Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Fabiana Barbosa e Thaís Pimpão. A direção geral é de Rodrigo Mercadante.

As músicas servem ao propósito de criar correspondências temáticas e estilísticas com a obra de Patativa, poeta que nunca saiu do Ceará, mas conseguiu transformar os seus versos em espelhos de realidades muito maiores. E olhe que nem precisou de estudo para isso. A sabedoria popular não tem mesmo uma ligação direta com os bancos das escolas. Nem mesmo com os sentidos, já que Patativa era cego – mas enxergava como ninguém esse Sertão de meu Deus.

O show é o embrião de uma dramaturgia costurada com muita proeza em Concerto de ispinho e fulô, de uma interpretação que é viva, pulsante. As experiências, como a participação do público e as memórias dos artistas transformadas na dramaturgia, são apenas relances do que acontece na montagem.

Dá para perceber que o show não abarcou o mergulho que esses atores tinham dado na obra de Patativa do Assaré. O encantamento e, sobretudo, o diálogo que travaram com os versos do cearense ganharam a proporção devida em Concerto (que não foi apresentada no Capiba por falta de espaço). Cante lá que eu canto cá é só um pedacinho de bode assado quando a fome é grande; o cheiro de baião de dois na panela; o gostinho da primeira lapada de pinga.

Para quem quer mesmo se embriagar, o grupo apresenta Concerto de ispinho e fulô, se não me engano, em Triunfo e Arcoverde. Vou saber a agenda direitinho e digo a vocês.

Dinho Lima Flor como Patativa do Assaré

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , ,