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Um voo coletivo pelos territórios da memória
Crítica: Ave, Guriatã!

Turma Citilante encena Ave, Guriatã!. Foto: Widio Joffre / Divulgação

Em tempos de autocentramento digital e relações líquidas, Ave, Guriatã! propõe algo potente: a pausa. A montagem do Curso de Interpretação para Teatro do Sesc Santo Amaro, em sua passagem de formação para profissionalização, convida quem entra no teatro a desacelerar, a sintonizar com outros ritmos – os da terra úmida dos engenhos Laureano e Jaguarana, às margens do Rio Sirigi, no município de Aliança, na Zona da Mata de Pernambuco, territórios da infância de Marcus Accioly.

Inspirado no cordel Guriatã: um cordel para um menino, de Accioly, com dramaturgia de Robson Teles, dramaturgia complementar de José Manoel Sobrinho e Samuel Bennaton, o trabalho habita a poesia, criando um território cênico onde verso e movimento, canto e silêncio se entrelaçam através da invenção teatral.

A Encenação: Encontro de Olhares. Foto: Widio Joffre / Divulgação

Para José Manoel, que já declarou querer “trabalhar a memória, como esse lugar em que todas as histórias estão contidas”, Ave, Guriatã! surge como território ideal para essa investigação. Desta vez, divide a encenação com Samuel Bennaton, diretor com formação em teatro físico e pesquisa em linguagens corporais, criando um encontro de perspectivas que enriquece a proposta cênica.

Os encenadores optam por expandir o tempo dramatúrgico, embaralhando sequências temporais e permitindo que as despedidas e os reencontros aconteçam em camadas, transformando a cena em um espaço onde a memória opera por associações livres, não por cronologia linear – uma escolha que dialoga diretamente com as inquietações de José Manoel sobre a natureza mutante da memória contemporânea.

O País-Infância Como Território Inventado. Foto: Widio Joffre / Divulgação

Ave, Guriatã! constrói cenicamente o que podemos chamar de país-infância, um território onde o imaginário resiste às urgências do tempo produtivo adulto. Sucram – Marcus de cabeça para baixo, como tudo na infância pode ser visto – perambula por esse espaço acompanhado de Leunam, o amigo que virou pássaro, que virou memória, que virou canto.

Experienciar mais do que a compreender linearmente é o convite da dramaturgia, o que se torna uma forma de resistência contemplativa. Em nossa sociedade do cansaço – onde Byung-Chul Han identifica o excesso de positividade e a hiperatividade como fontes de esgotamento mental -, esta resistência se materializa na própria estrutura temporal do espetáculo: em vez de acelerar para atender à urgência contemporânea, Ave, Guriatã! desacelera deliberadamente, criando espaços de silêncio que funcionam como antídoto à cultura da eficiência.

Fios de Enredo: A Jornada da Despedida. Foto: Widio Joffre / Divulgação

O enredo acompanha um jovem da Zona da Mata que se despede de sua infância. Na jornada, perde seu amigo-irmão, mas o leva no coração, nas histórias compartilhadas, nas lembranças. Entre os medos dos seres imaginários que surgem na cena e a busca por colo e proteção da velha curandeira, a narrativa se constrói em camadas de sentimento e em sequências de ação coreografadas com sensibilidade por Mônica Lira, que desenha movimentos que traduzem poeticamente as transformações internas das personagens.

A dimensão artesanal e colaborativa permeia todo o trabalho. Os livros de artista confeccionados pelo elenco, os pássaros criados coletivamente com Colette Dantas, os elementos cenográficos construídos em parceria – tudo respira uma estética do cuidado, do tempo dedicado, do fazer junto.

Nesse universo de memórias, o trabalho do Ateliê da Trama ao Ponto (Francis de Souza, Monique Nascimentos e Álcio Lins) ganha relevância. Há algo de desbotado nos figurinos, como se carregassem o peso do tempo e da nostalgia. Essa qualidade me leva diretamente ao poema Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade: “De tudo fica um pouco (…) este segredo infantil…”. As roupas em cena parecem carregar esse “pouco que fica”, esses resíduos de memória que a infância deixa em nós.

Dialogando com essa atmosfera nostálgica, Beto Trindade desenha com a luz espaços que respiram junto com as palavras, formando climas que suspendem o tempo cronológico. Suas atmosferas luminosas criam territórios temporais onde presente e passado coexistem.

Completando essa trama sensorial, Públius Lentulus compõe músicas originais que, sob a direção musical de Samuel Lira, trazem o universo do cordel para a linguagem contemporânea valorizando a complexidade da experiência infantil. Há algo de nostálgico e doído nessas composições, porque crescer dói. A infância e o crescimento carregam em si uma melancolia profunda, a consciência da perda que é inerente ao amadurecimento. Quando o elenco canta – com preparação vocal de Leila Freitas – suas vozes se somam a esse universo sonoro que se despede do país-infância.

Diversidade em Cena. Foto: Widio Joffre / Divulgação

As asas do Guriatã que Mateus Condé carrega ostentam o desejo de liberdade, respeito e dignidade que o elenco como um todo defende. Apesar de ser uma montagem direcionada preferencialmente para a infância, a peça traz os sinais visíveis da diversidade LGBTQIAPN+ como realidade humana que pode habitar todos palco.

O elenco – Anne Andrade, Bibi Santos, Caví Baso, Diogo Cabral, Djalma Albuquerque, Bruna Flores, Eva Oliveira, Felipe Prado, Fanny França, Igor Henrique, Lívia de Souza, Márcio Allan e Mateus Condé – revela diferentes graus de amadurecimento cênico. Alguns ocupam a cena com mais propriedade, estão mais brilhantes em suas performances, enquanto outros ainda exploram suas descobertas cênicas. Mas o teatro não tem contraindicação. Essa diversidade de momentos formativos enriquece a textura humana do espetáculo. Há uma generosidade cênica que nasce dessa entrega ao experimento coletivo.

Ave, Guriatã! propõe a preservação de certas formas de estar no mundo – aquelas que privilegiam o encontro sobre a eficiência, a poesia sobre a produtividade, a memória ancestral sobre o esquecimento programado. É um trabalho que voa e nos convida a voar junto, redescobrindo a capacidade de habitar o tempo de forma menos utilitária e mais poética.

Elenco e público numa das sessões da temporada no Teatro Marco Camatotti. Foto: Divulgação

FICHA TÉCNICA

Autor – Robson Teles
Obra de referênciaGuriatã, um Cordel para Menino – Marcus Accioly
Encenação e dramaturgia complementar – José Manoel Sobrinho
Encenação, dramaturgia complementar e Oficina O Silêncio no Teatro – Samuel Bennaton
Elenco: Anne Andrade, Bibi Santos, Caví Baso, Diogo Cabral, Djalma Albuquerque, Bruna Flores, Eva Oliveira, Felipe Prado, Fanny França, Igor Henrique, Lívia de Souza, Márcio Allan, Mateus Condé
Músicas Originais – Públius Lentulus
Direção Musical, Arranjos e Canto – Samuel Lira
Preparação Vocal – Leila Freitas
Direção de Arte e Oficina Livros de Artista – Colette Dantas
Assistente de Direção de Arte, Confecção de Cadeiras Artesanais e Expografia de Livros de Artista – Patrícia Lauriana
Confecção de Figurinos e Adereços – Ateliê da Trama ao Ponto: Francis de Souza e Monique Nascimentos (figurinos) e Álcio Lins (adereços)
Confecção de adereços, adornos e mobiliários – Patrícia Lauriana e Elenco
Confecção de Livros de Artista – elenco
Confecção de Pássaros – Colette Dantas e elenco
Projeto de Maquiagem – Mateus Condé
Direção de Movimentos – Mônica Lira
Consultoria em Dança – Rogério Alves
Consultoria em Interpretação (Arquetipia Humanimal) – Murilo Freire
Criação, Design de Luz, Projeto, Montagem e Operação de Iluminação – Beto Trindade
Assistente de Montagem e de Operação de Iluminação – Júnior Brow
Gravação de Trilha Sonora – Estúdio do CDRM – Sesc Casa amarela
Técnico de Gravação e Mixagem – James Azevedo

MÚSICOS NA GRAVAÇÃO:
Samuel Lira – Flauta Transversa e Teclado
Marcelo Cavalcante – Violão
Charly du Q – Percussão
Luiz Rozendo – Violino
Luiz Veloso – Violão de 7 cordas, Violão, Berimbau

Operador de Som (no espetáculo) – Saw
Criação e Designer Gráfico – Mateus Condé
Gravuras – Eduardo Montenegro
Mídia Social – Igor Henrique
Grupo de Alunos do CIT – Citilantes
Direção de Produção – Ailma Andrade e Anderson Damião
Assistentes de Produção – Patrícia Lauriana e Camila Mendes
Produção – Serviço Social do Comércio – Sesc – Unidade Santo Amaro: Curso de Interpretação para Teatro – CIT

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Mané Gostoso e Seu Rei chegam a São Paulo

Espetáculo é inspirado na literatura de cordel e no teatro de mamulengo. Foto: Rogério Alves - Sobrado423

Espetáculo é inspirado na literatura de cordel e no teatro de mamulengo. Foto: Rogério Alves – Sobrado423

A Cia Meias Palavras, companhia pernambucana que trabalha a partir do encontro entre teatro, literatura e oralidade, faz uma curta temporada em São Paulo com os dois espetáculos do seu repertório: As travessuras de Mané Gostoso e Seu Rei Mandou.

As travessuras de Mané Gostoso é cheio de referências à cultura popular, dialogando com a literatura de cordel e o teatro de mamulengos. Segundo o historiador, antropólogo, advogado e jornalista Câmara Cascudo, Mané Gostoso é um dos personagens do cavalo-marinho. Virou também brinquedo popular nos interiores pelo país afora. O texto de autoria de Luciano Pontes, que também está no elenco ao lado de Arilson Lopes e de Samuel Lira (responsável ainda pela trilha sonora ao vivo), traz figuras de histórias populares, como a mocinha Anarina, o forasteiro e vilão Bibiu, a fofoqueira Comadre Zuzinha e o cabo Zé Firmino. A história vai se desenrolando, ou enrolando cada vez mais, sempre a partir de uma disputa. Mané Gostoso e Bibiu duelam pelo amor de Anarina, por exemplo; e a alma de Mané Gostoso se torna alvo da peleja entre o anjo e o diabo. É um espetáculo divertido, potente, uma dramaturgia que não menospreza o público infantil e cativa também os adultos. Mas, sobretudo, é uma montagem potencializada pelo trabalho e talento dos atores, que contaram na direção com Fernando Escrich.

Seu Rei Mandou é um trabalho de ator Luciano Pontes, que assina ainda texto, direção e figurinos. No palco, ele conta com a participação do músico Gustavo Vilar. A peça é reflexo de uma ampla pesquisa sobre tradição oral, narração e contação. Com histórias que tratam do universo fabuloso dos reis, através de releituras cômicas e poéticas, ora críticas, mas sempre lúdicas, Seu Rei Mandou recupera o prazer em ouvir histórias e devolve ao público o rico imaginário dos contos populares. O espetáculo promove um diálogo entre a contação de histórias, a música e o teatro de formas animadas, para falar da trajetória de tirania, bravura, esperteza e bonanças de três reis. Três contos são levados ao palco: A Lavadeira Real, O Rato que roeu a Roupa do Rei de Roma e O Rei chinês Reinaldo Reis.

Ficha Técnica: As Travessuras de Mané Gostoso

Texto: Luciano Pontes
Direção: Fernando Escrich
Trilha original composta: Fernando Escrich
Letras: Fernando Escrich e Luciano Pontes
Cenário e Bonecos: Rai Bento
Figurinos: Joana Gatis
Assistente de Figurino: Gabriela Miranda
Iluminação: Luciana Raposo
Preparação Vocal e Musical: Carlos Ferreira
Preparação Corporal: Maria Acselrad
Elenco: Arilson Lopes, Samuel Lira e Luciano Pontes
Participação voz Acalanto de Anarina: Isadora Melo
Confecção dos Bonecos: Tonho de Pombos, Bila, Genilda Felix e Rai Bento
Adereços: Álcio Lins, Fábio Caio, Rai Bento, Gabriela Miranda e Joana Gatis
Design Gráfico: Hana Luzia
Ilustração: Luciano Pontes
Idealização e Realização: Cia Meias Palavras

Seu Rei Mandou traz histórias de realeza. Foto: Sheila Oliveira

Seu Rei Mandou traz histórias de realeza. Foto: Sheila Oliveira

Ficha técnica: Seu Rei Mandou

Criação, adaptação e concepção: Luciano Pontes
Intérprete: Luciano Pontes
Músico: Gustavo Vilar
Pesquisa musical, composição e arranjos: Gustavo Vilar e Luciano Pontes
Figurinos: Luciano Pontes
Iluminação: Luciana Raposo
Idealização e Realização: Cia Meias Palavras

Serviço:
As Travessuras de Mané Gostoso
Quando: Sábados, às 11h, de 5 a 26 de agosto
Onde: Teatro Anchieta (Sesc Consolação)
Quanto: R$ 17 e R$ 8,50 (meia-entrada). Crianças até 12 anos não pagam

Seu Rei Mandou
Quando: Domingos, às 15h e às 17h, de 13 a 27 de agosto
Onde: Sesc Pinheiros – Auditório, 3º andar
Quanto: R$ 17 e R$ 8,50 (meia-entrada). Crianças até 12 anos não pagam

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Prometemos nos amar

Em nome do Pai. Foto Zé Barbosa

Samuel Lira e Jorge de Paula no espetáculo Em nome do Pai. Foto Zé Barbosa / Divulgação

São profundas as motivações humanas. Insondáveis às vezes. Irreveláveis, outras. Os impulsos emotivos podem ficar presos, guardados em sótãos da memória, sem querer intercambiar para abrir outras veredas mais luminosas. O espetáculo Em nome do Pai promove o encontro mais verdadeiro entre o genitor e seu filho para um acerto de contas afetivas, depois da morte da mãe. Sem a presença física da mulher, mediadora e juíza desse contato, esses dois homens precisam reinventar essa relação, esses laços. Desatar nós.

A montagem, com texto de Alcione Araújo e direção de Cira Ramos, cumpre curta temporada no Teatro Arraial, até o dia 17 de junho, sempre às sextas e sábados, às 20h. O projeto foi contemplado com o edital de ocupação 2017, promovido pela Fundarpe / Governo do Estado de Pernambuco.

Interpretados pelos atores pernambucanos Samuel Lira e Jorge de Paula, os personagens abrem suas comportas de emoções num terreno árido de comunicação. A relação amorosa está nas mãos dos dois, na habilidade que cada um tem de ceder e valorizar o outro. Nesse processo de vasculhar o passado, remexer em lembranças doloridas, ambos terão que aprender a conjugar o verbo perdoar.

Em nome do Pai chega ao seu terceiro ano de existência, com produção geral da Rec Produtores Associados e a produção executiva de Karla Martins, Nando Lobo e Cira Ramos. A encenação já participou de festivais como o Aldeia Yapoatan, realizado pelo SESC Piedade (2015); Janeiro de Grandes Espetáculos (2016); e o XXIII Festival Internacional Porto Alegre em Cena (2016).
FICHA TÉCNICA:
Texto: Alcione Araújo
Encenação: Cira Ramos
Elenco: Jorge de Paula e Samuel Lira
Preparação de atores e assistência de direção: Sandra Possani
Direção de arte: Marcondes Lima
Música original, direção musical e execução: Fernando Lobo
Músicos: Edson Rodrigues (SAX) e Fábio Valois (teclado)
Designer de luz e execução: Dado Sodi
Designer gráfico e registro fotográfico: Zé Barbosa
Produção Executiva: Karla Martins, Fernando Lobo e Cira Ramos.
Realização REC Produtores Associados

SERVIÇO
Em nome do Pai
Onde: Teatro Arraial Ariano Suassuna (Rua da Aurora, 457, Boa Vista)
Quando: de 02 a 17 de junho (sextas e sábados), 20h
Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (meia-entrada)
Informações: 3184.3057 / 996195396
Duração: 70 minutos
Classificação: 14 anos

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Puro Lixo diz até já

Stella Maris Saldanha na cena de plateia. Foto: Ana Araujo /Divulgação

Stella Maris Saldanha em cena de plateia. Foto: Ana Araujo /Divulgação

O espetáculo Puro Lixo, O Espetáculo Mais Vibrante da Cidade encerra sua primeira temporada no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife Antigo, neste domingo, com duas sessões: uma às 18h e outra às 20h. A peça estreou em 13 de agosto, com casa lotada em todas as apresentações, no teatro configurado para ter capacidade média de 90 espectadores. Cerca de mil pessoas foram conferir à montagem. Mas a peça se expande para além do palco. Campanhas eficientes nas redes sociais dão conta de iluminar teoricamente alguns aspectos da encenação, com o reforço dos ensaios que constam no programa e outras escrituras. Ficamos gratos com tanta generosidade intelectual. E garanto, isso não é uma ironia.

Algumas vivecas que foram à estreia comentaram que naquela noite não se sentiram identificadas com a cena, com o luxo e riqueza, com a calculada frieza da montagem. Mas o teatro alimenta esse caráter efêmero, mas dinâmico: cada sessão é única. E cada leitura depende tanto do dia de quem a recebe, das suas subjetividades e circunstâncias. Portanto… cada obra é singular na construção pelo espectador.

Clima de cabaré. Foto: Ana Aragão

Clima de cabaré. Foto: Ana Araujo

Montagem encerra o ciclo de investigação cultural, Transgressão em 3 Atos, voltada aos grupos teatrais pernambucanos Teatro Popular do Nordeste (TPN), Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e Vivencial. O trabalho foi desenvolvido em coautoria com Alexandre Figueirôa, Claudio Bezerra e Stella Maris Saldanha e publicada no livro Transgressão em 3 Atos – nos abismos do Vivencial, pela Prefeitura do Recife/Fundação de Cultura Cidade do Recife, em 2011.

Também foram erguidos os espeáculos Os fuzis da Sra. Carrar, de Bertolt Brecht, e O auto do salão do automóvel, de Osman Lins, em celebração ao Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e ao Teatro Popular do Nordeste (TPN), respectivamente.

A herança do Grupo de Teatro Vivencial, coletivo pernambucano que causou furor em Olinda/Recife entre 1974 a 1982  aportou em Puro Lixo, O Espetáculo Mais Vibrante da Cidade. O texto é assinado por Luís Augusto Reis, inspirado no artigo Vivencial Diversiones Apresenta: Frangos Falando para o Mundo, de João Silvério Trevisan, publicado no Lampião da Esquina (Rio de Janeiro, ano 2, n. 18, p. 15, nov. 1979). E tem direção de Antonio Edson Cadengue.

Os figurinos são de Manoel Carlos. Foto: Ana Araujo

O figurino, assinado por Manoel Carlos investe na criatividade dentro do universo manufaturado. Materiais novos, em combinação de cores, tecidos, apelo visual e praticidade na troca de artigo de roupa dos atores. As fotografias de Ana Araujo- que essas sim ficam para interpretações futuras -, são imagens de relevância estética. Na composição, na tonalidade, na apreensão de minúcias dramaticamente teatrais, na parcela de humanidade da valorização do teatro.

No elenco homens lindos: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira. Que se fazem de macho, que se fazem de fêmea, que se fazem de trans. Eles se inventam e transitam entre papeis. De salto alto, eles deslizam pelo palco melhor do que muitas mulheres. Desfilam entre o glamour, o protesto, o deboche, a crítica de tudo isso.

Sabemos que não é fácil andar naquelas plataformas (quase diria pernas de pau). Tem gente que disse que comeria todos eles, numa referência à derradeira canção do espetáculo. Uma música no encalço do corrosivo, que brinca com ação de tributo aos transgressores do passado/presente deitando-os também como objeto de consumo. Do espelho do camarim até o público vira simulacro de si mesmo.  E os atores denunciam cultura na cadeia de produção em série; nem sempre são bem compreendidos.

Ator Gil . Foto: Ana Aragão

Ator Gil Paz no trecho da canção Meu Guri. Foto: Ana Araujo

O ator Gil Paz festeja Elza Soares com o trecho da canção de Chico Buarque Meu Guri . Está estreitamento vinculado à outra cena de exaltação da negritude plasmada contra o preconceito na passagem “seja herói, seja marginal. E a do Meu Sobrado no seu Mocambo, que expõe feridas atávicas do passado escravocrata.

Soube que a montagem esquentou. O elenco se apropriou dos espaços reais do teatro e fictícios da peça. Stella Maris Saldanha representa as mulheres do Vivencial. Representa as deusas daquele teatro debochado feito de sucata e brilhos tirados da alma.

Com uma elegância que a caracteriza Stella dá pinta do seu jeito, dá bronca, canta, erotiza o humor.  É uma interpretação apolínea. Mesmo que estivesse blasfemando ou dizendo todos os palavrões acho que manteria essa postura altiva/contida. Isso não é bom nem ruim. Eu aplaudo a elegância de Stella. Acho bonito. Nos Fuzis, no Automóvel, em Puro lixo.

“Nem anjos nem demônios, os atores de Puro Lixo, o Espetáculo Mais Vibrante da Cidade, têm no corpo e na alma os riscos próprios a esse ofício que exige conhecimento de si e do outro”, escreveu o encenador Cadengue nas redes sociais.

Que Puro lixo volte logo para uma próxima empreitada.

Marinho Falcão na cena de As Criadas. Foto: Ana Aragão

Marinho Falcão na cena de As Criadas. Foto: Ana Araujo

Essa entrevista com Stella Maris Saldanha foi feita nas horas tensas que antecederam à estreia. Por troca de mensagens. Outros textos foram postados. Faltava esse.

Sobre Puro Lixo, o Espetáculo Mais Vibrante da Cidade nós publicamos Uma festa para o Vivencial, no dia 11 de agosto de 2016.

Desbunde, transgressão e poesia do Vivencial, no dia 13 de agosto de 2016.

“A liberdade era vivida na imediatez daqueles tempos”, uma entrevista com o encenador Antonio Edson Cadengue, publicada em 15 de agosto de 2016.

As nervuras do luxo, crítica ao espetáculo publicada no dia 28 de agosto de 2016, mas que parece que ninguém gostou.

E viva o teatro!

Entrevista: Stella Maris Saldanha

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Stella Maris Saldanha. Reprodução do Facebook

“Não adianta fazer ou assistir teatro sem considerarmos as características do tempo em que vivemos. O teatro é o reflexo das realidades de uma época e não um fenômeno isolado cujas dificuldades sejam exclusivamente suas, mas de todo um processo criativo em crise.” Gostaria que você comentasse.

Sim, o teatro é filho do seu tempo, pois dialoga com o que lhe é contemporâneo. Mesmo fazendo uma viagem temporal, quer dramatúrgica, quer de linguagem, o tempo presente, como dizia o poeta, é sua matéria. Vejamos o caso do projeto Transgressão em 3 Atos, que rememora o Teatro Popular do Nordeste (TPN), o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e o Vivencial. Trazê-los à cena atual, entre outras coisas, se justifica porque na sua contemporaneidade, ou seja, no momento em que atuavam, falavam do seu próprio tempo estando em desacordo com ele. Aliás, esta é a chave da contemporaneidade: o desacordo, porque ele propõe o alargamento contínuo de fronteiras.

Quando levamos ao palco as três montagens do projeto – Os fuzis da senhora Carrar (2010), Auto do salão do automóvel (2012) e agora Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade – não estamos apenas apresentando ao público de hoje estética e repertório do passado, mas fazendo ver que aquela história toda tem seus tentáculos no presente que nos incomoda. É disso que se trata. Ou seja; neste caso o que foi de ontem ainda é chama ardente.

Qual a dor e a delícia de cada um dos personagens da trilogia?

Comecemos pela personagem da primeira montagem do projeto, a Senhora Carrar. Bem, eu a havia interpretado aos 18 anos de idade. Uma aposta corajosa de Marcus Siqueira nas minhas possibilidades como atriz. Era, à época, a segunda peça da qual eu participava e a primeira em teatro adulto. Sou imensamente grata a Marcus Siqueira por ter me proposto esse desafio, quase um desatino. Então, voltar à mesma personagem 32 anos depois foi outro presente, e outro desafio. Eu tenho um caso de amor com a Senhora Carrar desde que a interpretei pela primeira vez em 1978. A expressão é esta mesma: um caso de amor.

Em Auto do Salão do automóvel, a delícia foi, primeiro, a estatura literária do texto de Osman Lins e, como falávamos antes, a sua contemporaneidade. É um texto quase profético. Em 1969 Osman Lins já enxergava o esmagamento do humano nos grandes centros urbanos do país, o avanço predatório do capitalismo sobre os espaços públicos. Agora, verdade seja dita, não foi fácil. Dar-me àquela experiência teatral com narrativa literária exigiu certa dose de desconstrução de tudo o que estava posto até ali. Foi um processo criativo em nada indolor.

E agora em Puro Lixo, outra experiência radical. Veja só: aos 18 anos – no momento do desbunde geral, da nudez, da politização do corpo – eu interpretava a Senhora Carrar, uma viúva de pescador lutando para manter os filhos vivos em plena guerra civil espanhola. Agora, aos 56, eu mergulho no universo ruidoso, transbordante e tropicalista do Vivencial, inclusive, com nudez. Parece um desafio invertido, né? Mais uma vez dou-me à vertigem.

Espetáculo Puro Lixo foi escrito a partir da matéria “Vivencial Diversiones apresenta frangos falando para o mundo”, publicada em 1979 por João Silvério Trevisan. Qual a estrutura e abordagem?

O texto de Luís Reis, no meu entendimento, conduz, à perfeição, à proposta primeira do projeto Transgressão em 3 Atos: uma interlocução entre a memória e o contemporâneo. Sim, porque não se trata de reproduzir uma experiência do passado, mas alinhavá-la às inquietações do presente. Usando como referência o que João Silvério Trevisan testemunhou sobre o Vivencial àquela época, Luís fragmenta e intercala lembranças, apelos sociais, irreverência, brincadeiras, ardências, atrevimento. Tudo à moda do Vivencial, mas à luz de reflexão e fruição de hoje.

Outro detalhe sobre o texto é que ele nos foi apresentado como uma obra aberta. Sujeito, portanto, às interferências decorrentes da rotina de ensaios e do processo criativo do grupo. O espetáculo apresentado ao público revela esse texto-processo, amálgama da carne viva do Vivencial de outrora e do testemunho que agora bradamos, com afeto, sobre tudo aquilo existido e existindo. Mas, para além da dramaturgia proposta por Luís Reis, gostaria de dizer ainda que tanto a montagem de Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade, como as duas montagens antecedentes do projeto Transgressão em 3 Atos, não representam um testemunho saudosista. Aos desavisados de plantão informo que tanto o Vivencial, como o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e o Teatro Popular do Nordeste (TPN) foram por nós focados como experiências pertencentes à esfera pública, às quais, à bem da criticidade e da memória, devemos observância. Fico, pois, com as palavras de Eric Hobsbawm em suas reflexões sobre o século XX: “os acontecimentos públicos são parte da textura de nossas vidas”.

Foto: Ana Aragão / Divulgação

Cena final de Puro Lixo.Foto: Ana Araujo / Divulgação

Serviço
Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade
Quando: Domingo, dia 4 de setemro, às 18h e 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00
Indicação: Para maiores de 16 anos

Ficha Técnica
Elenco: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira, Stella Maris Saldanha
Texto: Luís Augusto Reis
Consultoria: João Silvério Trevisan
Encenação: Antonio Cadengue

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As nervuras do luxo

Stella Maris Saldanha no espetáculo Puro lixo. Foto: Ana

Stella Maris Saldanha no espetáculo Puro lixo. Foto: Ana Aragão

Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade sustenta provocações desde o título. Atração e repulsão de unidades semânticas atravessadas por signos vindos das mais diversas origens. Conduz a ironia bem-comportada do dramaturgo Luís Augusto Reis em sua interpretação do mundo e de um período histórico que ele viu pela janela. E carrega o encantamento classe média do então jovem diretor com um tipo de teatro que jamais adotaria em sua estética. Fascínio idêntico comungado por alguns integrantes da trupe. Esses, também remediados, eram movidos pela busca por liberdade – materializada na exposição dos corpos nus ou seminus, na repetição de palavras de ordem, ou totalmente em desordem. Servidos como finas iguarias a uma sociedade ávida por consumir o exótico, o estranho, o diferente nas artes – o caranguejo da lama das cênicas – , supunham que chocavam.

A montagem nega sua própria nomeação. O que vemos no Teatro Hermilo Borba Filho – ou, no mínimo o que eu vi, numa sessão da temporada – foi uma encenação distante do que desperta a palavra vibrante – animada, eufórica, entusiasmada, extasiada. Ou pelo menos eu não fui afetada por essas ideias e sensações.

Em alguns momentos me pareceu algo glacial, como se fora arquitetado com essa intenção de distanciamento. De produzir uma crítica aos produtos e aos produtores que o tempo vai dando um jeito de embalar de várias formas. Não sei se o objetivo era expor com veemência a perda de todas as certezas. Inclusive a do lugar ocupado pelo Vivencial, da origem até suas facetas posteriores. Da coragem de cutucar o dragão até ser situado como praticamente um mainstream.

Puro Lixo foto Ana

Paulo Castelo Branco, Marinho Falcão, Eduardo Filho, Samuel Lira, Gil Paz. Foto: Ana Aragão

O que é a verdade? A pergunta de Pilatos prossegue pulsante. Então, o que era de fato esse Vivencial, que depois de 30 anos vem recebendo as mais honrosas homenagens? O grupo que nasceu com o pé na lama, as mãos dispostas para a luta e para a fechação, o corpo ardente de desejos contraditórios, mas sempre disposto a provocar. O coração em chamas de alegria e esperança, porque sim, acreditavam no fundo que iriam mudar o mundo. O seu pedaço de mundo. E mudaram…

Não conheci o Vivencial autêntico. O que dele sei é por livros, artigos, entrevistas com ex-integrantes, conversas com amigos recentes que participaram do grupo. A minha composição dessa trupe é a partir da memória dos outros. Dos filtros dos outros.

Henrique Celibi, a mascote do bando, a figura que talvez melhor tenha incorporado e processado o sopro vital daquela época, porque continua a engendrar personagens e situações atesta: “nós, as vivecas éramos terríveis”. Não duvido mesmo!

E talvez a partir daí abram-se fendas entre o grupo celebrado, o Vivencial, e a montagem Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade, dirigida por Antonio Edson Cadengue.

O encenador elenca como alicerce nessa empreitada os anjos, enquanto o clima nos bastidores da trupe olindense não era nada angelical. Não vou entrar nos méritos das categorias de anjos; até porque não entendo de coisas celestiais. Bem que gostaria, confesso. Mas o embate com os humanos em toda sua complexidade já me suga demais o espírito.

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Cenografia de Otto Neuenschwander remete ao palco e aos bastidores

Pós-tropicalista, sob a influência da contracultura, o Vivencial arrebentou com as tradições hegemônicas da Pernambucália. A trupe chegou para injetar novas ideias no território da cultura dominada pelo regionalismo e pelas convenções. A proposta era subverter o estabelecido. Desafiar a política, ir para o confronto. Sob a liderança de Guilherme Coelho, aspirante a abade que exaltava o profano, que contrabandeava as vocações da alma para concretizar nos prazeres de carnes trêmulas e tenras.

Esse bando inventava sua arte sem se importar com unidade dramática ou enredo. E virava as costas para estruturas aristotélicas. A falação sobre sexualidade ganhava aparência radical nas peças abarrotadas de ironias e deboche. Transgredir os valores vigentes –  sociais e estéticos – era o habite se.

O então demolidor Jomard Muniz de Britto, cineasta, escritor, professor, tropicalista, autor do Inventário de um Feudalismo Cultural (1974) estava sempre por perto para incendiar com seus conselhos, indicando caminhos, fervendo o verbo.

Mas os tempos são outros. Se lá atrás, os atritos e confrontos eram combustíveis para tomar posicionamentos, hoje impera a apatia cuja face mais degradante é o confisco de 54 milhões de votos.

É!!! Os tempos são outros e as personalidades, todas são boazinhas. Caras, coroas e caveiras campeões em tudo. Nunca tiveram um ato ridículo, nunca sofreram enxovalho como no poema de Pessoa.

Enquanto eu fui ali em Marte pegar um fogo emprestado, ao voltar me deparei com antigos desafetos sorrindo para compor o mesmo quadro, brindando junto, gente que comenta horrores pelas beiras estavam a felicitar unido. Parecia uma repetição seriada do que ocorre no seio do poder. Mas talvez sejam delírios meus, logo agora que não consumo álcool há séculos; desvarios por abstinência às drogas que nunca consumi. Mas isso realmente não tem importância, pois somos todos “farinha do mesmo saco, da mesma marinha… Sob a mesma bandeira”, pelo menos os do teatro. É tudo ficção.

Puro lixo

Iluminação de Luciana Raposo explora inclusive os reflexos de espelhos

Mas a peça é ou não uma homenagem ao Vivencial?

Sim, um tributo. Mas recheado de camadas de teóricos, de referências.

O potente laboratório de experimentação que foi o Grupo Vivencial é submetido a análises. É esquadrinhado, justaposto, invertido, devorado pelo tempo, vomitado junto com traumas e alegrias do caminho. E são muitas pinceladas de verniz.

O dramaturgo Luís Augusto Reis é muito hábil em vasculhar processos teatrais. Em celebrar essa arte fugidia, em perscrutar os seus sentidos.

É assim com A filha do teatro, que recebeu o Prêmio Funarte de Dramaturgia em 2003, pelo texto, e é narrada a partir de três pontos de vista diferentes. Perspectivas diversas, esses eixos explodidos também marcam a peça Puro lixo.

Para o ensaísta francês Maurice Blanchot, a narrativa deve ser compreendida como o próprio acontecimento. A filha do teatro confabula com essa ideia. As engrenagens são expostas na peça.

Em A Morte do Artista Popular, Luís Reis ergueu uma farsa sobre editais e concorrências de verbas públicas para a cultura e evidencia os bastidores desses processos, investigando os procedimentos teatrais. Reis tem facilidade em investir no metateatro de maneira criativa.

Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade encerra a trilogia Transgressão em 3 atos, iniciada em 2008. O projeto cultural, produzido pelos jornalistas e professores Alexandre Figueirôa, Claudio Bezerra e Stella Maris (também produtora e atriz), amealhou três importantes grupos pernambucanos que atuaram nos anos 1960, 1970 e início dos 1980: o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF), o Teatro Popular do Nordeste (TPN)  e, por fim, o Vivencial. As pesquisas originaram as encenações de Os fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht (2010), com direção de João Denys; Auto do Salão do Automóvel, de Osman Lins (2012), com direção de Kleber Lourenço.

O texto-roteiro de Luís Augusto Reis foi composto a partir do artigo de João Silvério Trevisan, Vivencial Diversiones apresenta: frangos falando para o mundo, publicado pelo jornal Lampião da Esquina, em novembro de 1979, quando a trupe fundou em Olinda um espaço próprio chamado Vivencial Diversiones.

Engrenagens do teatro são expostas

Engrenagens do teatro são expostas

A crônica de Trevisan é tomada como leitmotiv do espetáculo. Nessa história fracionada a prática do teatro ganha relevo. Cadengue proclama que a obra é um tributo e não uma reprodução. Faço ligação direta com René Magritte… Ceci n’est pas une pipe (Isto Não É um Cachimbo).

A peça segue os passos das montagens do Vivencial que lançava mão de crônicas, reportagens, contos, textos escritos não especificamente para o palco como matéria-prima, para recriar livremente em cena. O dramaturgo também aplica os atributos da obra vivenciana como reciclagem, colagem e superposição para cunhar uma cena em que os atores Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha atendem pelo próprio nome.

E Puro Lixo exibe uma série de engrenagens a serem elaboradas pelo espectador. O revezar do foco dramático robustece o “tempo” como representação.

O encenador que tem no seu currículo clássicos de vários matizes flerta com outro tipo de teatro de pesquisa, com o teatro contemporâneo. É um audaz deslocamento, mesmo que seja breve, e atesta que é difícil para essa arte tão efêmera ficar grudada às glórias do passado.

O discurso não reproduz a diversidade conflituosa daquele microcosmo. E, segundo o diretor, essa não era a intenção.

O espírito do grupo de teatro Vivencial é difícil de agarrar. Seria um erro mumificá-lo ou o reverenciar como um marco grandioso. Isso talvez ficasse mais próximo de uma apologia passadista. O Vivencial virou um “clássico” da cena brasileira, mas isso não pode apagar as contradições e impasses que o marcaram.

Antonio Edson Cadengue insiste que nessa dramaturgia estilhaçada e sem personagens bem delimitados cintilam flashes de cenas da trupe. Como exemplos o diretor elenca, no seu texto do programa, uma “estranha’ Marlene Dietrich, do filme Anjo azul; uma Janis Joplin drogada e bêbada; a disputa pelo protagonista na apresentação do show de variedades Bonecas… ou Frangos falando para o mundo entre Petrônio de Sena e a Marquesa (o ator Marcos Quenza), a cena Nem Tão Viúva, Nem Tão Honesta e menções a muitas vivecas como Lara Paulina, Paulete Godard, Luciana Luciene e Lee Marjories.

E de repente alguém do elenco tasca um oxe mainha. Essa referência mais largamente conhecida de Cinderela, a história que sua mãe não contou, da Trupe do Barulho, aponta para a criatividade febril de Henrique.

Mas tantas particularidades dificultam o espectador sem ampla bagagem, acho eu.

Cena de Nem tão viúva, nem tão honesta

Cena de Nem tão viúva, nem tão honesta

A arte desse bando de vivecas se contrapunha ao expediente da indústria cultural, que dita o consumo, as necessidades, os desejos e os valores dessa massa.

Em princípio pensei que a encenação de Puro lixo talhava para o procedimento da cultura pasteurizada, nas suas dobras, e do espetáculo poderia submergir ao fazer alusão a um grupo feérico, mas que não pulsa no mesmo diapasão. Refiz a trilha do pensamento.

Esse Puro lixo não é palatável a grande massa de consumidores. É até difícil de consumir pensando na imagem da alegria esfuziante, sem uma lágrima de tristeza. A montagem parece que foi tateando, dizendo vem comigo, no caminho eu explico, porque também estava a descobrir. Expôs os nervos.

Parece que a obra criadora e crítica de Puro lixo persegue seu próprio destino radical para não se tornar apenas entretenimento, não ficar esvaziada de si mesma. Ao olhar o passado com generosidade e ter certeza que não é possível repetir a mesma força, o mesmo brilho, o mesmo frescor. E como se tornou árdua essa tarefa de celebrar esse grupo tão polifônico.

Cadengue insinua ampliar o sentido teatral da narrativa, com a compreensão de incluir até mesmo a plateia, que conheceu o grupo original, como recurso de encenação.

Gil Paz em primeiro plano, de fraque e cartola

Ao adentrar no Hermilo Borba Filho, um homem lindo, de dois metros de altura, ostenta um tabuleiro com bombons, cigarros e outras bugigangas. É Eduardo Filho, montado em uma plataforma, assim como outros colegas. Enquanto o público se acomoda, eles oferecem seus produtos.

O elenco se doa à encenação e há destaques para cada um deles, no revezamento do protagonismo da cena. Gil Paz ganha destaque na cena de protesto contra o racismo e uma dublagem de Elza Soares. Samuel Lira, de salto alto tocando sanfona. E eles vão revelando uns segredos dos bastidores. Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, todos ótimos atores. A cena não pulsa na mesma dicção e às vezes sentimos o beliscão avesso do riso largo.

Com a escolha de olhar de soslaio o vulgar, o baixo cômico, predominantes no Vivencial, a montagem de Puro Lixo se afasta da gana terrível e das picuinhas de bastidores. Faz falta porque afasta o riso do deboche, de uma maldadezinha muito comum nas coxias teatrais. Os demônios da pinta, da fechação, da frescura e da viadagem parecem contidos demais no desempenho dos atores.

Stella Maris Saldanha representa as integrantes mulheres do Vivencial. As figuras femininas do grupo tinham que dar o truque para ficar no centro dos holofotes, diante daquele bando de homens, bi, trans. Cada uma que se garantisse. Com charme, potência, garra, esperteza. É louvável a coragem de Stella ao encarar esse universo. Suas personagens são mais solenes, aqui e ali é que ganham um toque mais depravado.

Quanto às cenas dos protestos ausentes, da violência, da negritude, do feminicídio mesmo que não seja uma proposta original ou inovadora, mas é um artifício que provoca uma inquietação. Ou incômodo.

Figurinos de Manuel Carlos.

Figurinos de Manuel Carlos.

Os figurinos de Manuel Carlos são harmoniosos no seu conjunto. De uma beleza do luxo, mesmo as simples sungas dos rapazes. É um guarda-roupa prático para a troca de peças que os atores vão alternando.  Valoriza o corpo dos atores e salienta as ambiguidades.

A derradeira música da trilha sonora original de Eli-Eri Moura corteja as vivecas originais, mas também paquera com figuras do teatro pernambucano. “O Magiluth eu comeria”. Intervenções sonoras e ruídos se ajeitam com saudações às músicas de filmes. O clima proposto é de cabaré dos anos 20 e 30.

A cenografia de Otto Neuenschwander materializa o aspecto metateatral, com camarim dos atores, palquinho, com cortina e uma boca enorme na parte de cima a convocar o espírito do Vivencial.

A iluminação de Luciana Raposo investe na dupla função de revelar e esconder as transformações dos atores, criando brilhos projetados nos espelhos, lâmpadas de toucador. Surpreendendo.

Puro lixo está em cartaz no Teatro Hermilo Borba Filho só até 4 de setembro de 2016. Sábados e domingos às 18h. Confira e tire suas próprias conclusões.

Serviço
Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade
Quando: De 13 de agosto a 4 de setembro, sempre aos sábados a partir às 18h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00
Indicação: Para maiores de 16 anos

Ficha Técnica
Elenco: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira, Stella Maris Saldanha
Texto: Luís Augusto Reis
Consultoria: João Silvério Trevisan
Encenação: Antonio Cadengue

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