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Cena segue aquecida no Recife
Rolês teatrais

Festival de Circo encerra programação com atrações de espetáculos como Fragmentos

 Pernambucano Armando Babaioff  retorna ao Recife com seu sucesso Tom na Fazenda.

O Festival de Circo do Brasil chega ao fim de semana com suas últimas apresentações, mas ainda dá para ver cinco espetáculos até domingo. O ator pernambucano Armando Babaioff retorna para apresentar Tom na Fazenda, espetáculo que o consagrou mundialmente .

Duas iniciativas revelam a força da representatividade negra nas artes: o lançamento do livro Maria Preta, de Samuel Santos, que estreia como escritor com leituras dramatizadas, dialoga diretamente com a circulação do espetáculo Ubuntu ou o título mais longoEu conto, tu contas, nós contamos: Ubuntu, uma linda aventura na floresta afrobrasilândia pelas escolas públicas de Pernambuco. 

Os jovens inquietos do grupo ATO continuam sua função de despertar interesse pelo teatro clássico, propondo mais uma leitura dramatizada que combina vinho com literatura. A iniciativa, que vem arregimentando uma nova geração de espectadores, traz desta vez O Tartufo, de Molière.

Do Agreste chega Tempo de Vagalume, um monólogo sensível sobre memórias e identidade LGBTQIAP+.

Copyleft encerra a programação no Parque Apipucos 

Sarayvara apresenta no Teatro Hermilo Borba Filho o universo único de Poema Mühlenberg,

O último fim de semana do Festival de Circo do Brasil oferece um caleidoscópio de propostas que revelam a diversidade das artes circenses contemporâneas. Sarayvara leva para o Teatro Hermilo Borba Filho o universo único de Poema Mühlenberg, artista que cultiva seu próprio bambuzal e transforma cada colheita em instrumento cênico. Durante 21 anos de pesquisa, ela desenvolveu uma linguagem onde balaios carregados de encantos revelam bambus que serpenteiam pelo espaço, tornando-se manto que instaura momentos mágicos entre brincadeiras e ritual ancestral.

No Teatro Apolo, Fragmentos conduz o público a um território perturbador onde o grupo La Víspera explora a fragmentação como resposta à dor insuportável. Quando o sofrimento se torna intolerável, a mente se divide – e os artistas espanhóis e franceses transformam essa premissa em thriller circense que une marionetes, próteses e máscaras numa investigação mordaz sobre deformação física e mental.

Le Bruit des Pierres transforma o Teatro de Santa Isabel em laboratório de ganância, onde duas mulheres encarnam a obsessão ocidental pelo ouro de formas distintas. Uma cobre compulsivamente pedras com folhas douradas em gestos rituais, enquanto a outra descobre que algumas são comestíveis e as devora freneticamente até a overdose, empanturrando-se de pedras preciosas enquanto o ouro escorre de sua boca.

Juventud estreia no Teatro do Parque como manifesto em movimento perpétuo, onde cinco intérpretes criam dinâmica coletiva sem anular individualidades. O espetáculo da Cie NDE francesa funciona como espiral de energia crescente, combinando malabarismo, movimento, som, luz e vídeo numa celebração da vida que tem a juventude como ponto de partida e o futuro como horizonte.

Copyleft encerra a programação no Parque Apipucos através de 45 minutos de pura energia, mesclando precisão técnica com humor e referências esportivas. O dream team formado por artistas do Uruguai, Brasil, Argentina, Espanha e França demonstra como o malabarismo pode ocupar qualquer espaço, adaptando-se a terrenos diversos sem perder potência artística.

Babaioff enfrenta a Fazenda do preconceito. Foto: Jorge Etecheber / Divulgação

Tom na Fazenda retorna ao Recife com o prestígio do sucesso em festivais internacionais. Armando Babaioff defende o papel do publicitário que chega a uma fazenda para o funeral do companheiro, descobrindo que sua sogra jamais soube de sua existência ou da sexualidade do filho falecido.

A trama de Michel Marc Bouchard se desenrola através de mentiras orquestradas pelo irmão truculento do morto, criando relações de dependência complexa num ambiente onde quanto mais os personagens se aproximam, maior se torna a sombra de suas contradições. O elenco formado por Babaioff, Denise Del Vecchio, Iano Salomão e Camila Nhary, sob direção de Rodrigo Portella, constrói essa atmosfera claustrofóbica onde cada revelação aprofunda os conflitos familiares.

Para Babaioff, a obra funciona como ato de resistência duplo: pela longevidade excepcional no teatro brasileiro e pela urgência de sua discussão sobre homofobia familiar.

Samuel Santos e Grupo O Postinho

A literatura periférica ganha voz através de Samuel Santos, que transforma sua primeira obra em manifesto de representatividade negra. Maria Preta narra a jornada de uma menina de sete anos que, durante uma parada cardíaca causada por sopro no coração, realiza seu maior desejo: entrar no próprio corpo para conhecer como funciona por dentro.

No interior, Maria descobre um circo completo onde cada órgão ganha personalidade única: os rins vivem chateados por serem chamados de “ruinzinhos”, os intestinos se transformam nos Zindunga inspirados na cultura angolana, o estômago vira cozinheiro bufão que sofre mas não perde o humor, as amígdalas se tornam cantoras equilibristas histriônicas, e o fígado assume o papel de mágico apresentador carismático.

A obra será apresentada através de leituras dramatizadas pelo Núcleo O Postinho, com direção do próprio Samuel Santos e elenco formado por Cecília Chá, Larissa Lira, Sthe Vieira e Thallis Ítalo, que dão vida aos personagens através de encenação que mescla voz, corpo, música e ancestralidade.

Já o Grupo São Gens de Teatro leva Ubuntu às escolas do interior, resultado de sete anos de pesquisa inspirada no antropólogo Raul Lody. A narrativa acompanha duas flores pretas que questionam sua ausência no arco-íris, partindo em jornada pela floresta AfroBrasilândia guiadas pela filosofia Ubuntu – “eu sou porque nós somos” – e pela força dos Orixás.

Ambas as iniciativas compartilham compromisso de confrontar as heranças coloniais através da arte, oferecendo às crianças negras espelhos positivos onde possam se reconhecer e se orgulhar de suas origens e identidades.

Molière Entre Taças e Reflexões

O ATO reinventa a experiência teatral combinando “O Tartufo” com degustação de vinhos, criando ambiente que tem conquistado nova geração de espectadores. A comédia de 1664 permanece assustadoramente atual em sua crítica à hipocrisia moral e religiosa, apresentando o falso devoto que manipula uma família através de aparente religiosidade.

Molière criou em Tartufo um arquétipo que encontra ecos em diferentes épocas: o impostor que usa máscaras sociais para sustentar poder e satisfazer desejos. A leitura dirigida por Raíza Rameh conta com elenco formado por ela própria, Nilo Pedrosa, Vitória Vasconcelos, Lara Mano, Guta Menelau, David Péricles, Kennyo Severa, Lucas Carvalho, Inês Maia e Cardo Ferraz, privilegiando a intimidade e o diálogo que permite ao público vivenciar a obra de forma participativa.

A iniciativa funciona como ponte geracional, aproximando jovens de textos clássicos através de formato descontraído que valoriza tanto o patrimônio dramatúrgico quanto a criação coletiva, mantendo viva a tradição dos encontros culturais que alimentam o debate e a reflexão.

Joesile Cordeiro, de Garanhuns, em Tempo de Vagalume. Foto: Ivana Moura

Tempo de Vagalume apresenta uma “armadilha” criada por Joesile Cordeiro para se aproximar de sua criança interior. O monólogo autobiográfico utiliza o brilho dos vagalumes como fio condutor para reconectar o personagem com memórias de infância, explorando questões LGBTQIAP+ sem se limitar a elas.

O espetáculo, que estreou em Garanhuns em junho de 2024, funciona como experiência teatral sensível onde memórias, movimentos e mutações se entrelaçam em discursos dançantes. O palco se torna território transitado por imagens das vivências do ator, construindo tom performático e poético que convida à reflexão sobre a necessidade de revisitar a criança que fomos.

A peça usa a especificidade da experiência queer para tocar aspectos da formação humana, criando pontes entre passado e presente através da arte.

SERVIÇO 

Maria Preta” – Lançamentos com Leitura Dramatizada
08/11 (sábado), às 16h
Espaço O Poste – Rua do Riachuelo, nº 641, Boa Vista, Recife
Entrada gratuita | Interpretação em Libras

15/11 (sábado), às 18h
Quilombo do Catucá – Rua Ana Alves, nº 443, Viana, Camaragibe
Entrada gratuita | Interpretação em Libras

18/11 (terça-feira), às 15h
Escola Pernambucana de Circo – Av. José Américo de Almeida, nº 05, Macaxeira, Recife
Entrada gratuita | Interpretação em Libras

Ubuntu – Circulação em Escolas Públicas
17/11/2025 – Escola Frei João Pereira de Souza, Itaíba (PE)
18/11/2025 – Escola Cel Manoel De Souza Neto, Manari (PE)
19/11/2025 – Escola José Emílio De Melo, Tupanatinga (PE)
21/11/2025 – Grupo Escolar Dom Carlos Coelho, Jurema (PE)
22/11/2025 – Colégio Municipal Monsenhor José de Anchieta Callou, Caetés (PE)
Entrada gratuita

Tempo de Vagalume
Até 15/11 (sextas e sábados), às 19h
Teatro Arraial Ariano Suassuna, Garanhuns
Entrada gratuita

Tom na Fazenda
Local: Teatro Luiz Mendonça
07/11 (sexta-feira) – 20h
08/11 (sábado) – 20h
09/11 (domingo) – 19h
Ingressos: R$ 70 a R$ 140

ATO – Leitura de “O Tartufo”
08/11 (sábado), às 17h
Galeria Joana D’Arc – Av. Herculano Bandeira, 513, Pina, Recife
Entrada gratuita | Contribuição espontânea

Festival Circo do Brasil – Últimas Apresentações
Sexta-feira, 07/11:
19h – SARAYVARA – Teatro Hermilo Borba Filho – Gratuito (Sympla)
19h30 – FRAGMENTOS – Teatro Apolo – Ingressos: Sympla

Sábado, 08/11:
15h – COPYLEFT – Parque Apipucos – Gratuito
19h30 – FRAGMENTOS – Teatro Apolo – Ingressos: Sympla
20h – LE BRUIT DES PIERRES – Teatro de Santa Isabel – Ingressos: Sympla

Domingo, 09/11:
17h – JUVENTUD – Teatro do Parque – Ingressos: Sympla
18h – LE BRUIT DES PIERRES – Teatro de Santa Isabel – Ingressos: Sympla

Classificações: Livre, 10 anos e 14 anos (conforme espetáculo)

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Brutalidade como espelho do real
Crítica do espetáculo Tom na Fazenda

Tom na Fazenda na temporada no Théatre Paris-Vilette. Foto: Reprodução do Facebook

Há 15 dias, mais ou menos, Tom “passeia” na minha cabeça. Vou à Biblioteca da Sorbonne Nouvelle (BSN) e ele está lá. Ao supermercado, e ele dá pitaco nas compras. Vou à Sukyo Mahikari (centro de treinamento e elevação espiritual) e ele me espera na porta (não quis subir para receber o okyome [energia positiva]). No Centre Pompidou, ele aplaudiu ao meu lado à performance de Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Ficou cabreiro na sequência com o debate e inquieto quando Maïra Aggi (artista-pesquisadora brasileira) deu “um chega para lá” no homem cis branco (sempre no comando) que não estava vertendo muito bem as palavras do português para o francês da artista, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu Raimunda Gomes da Silva (uma das inspirações de Altamira 2042), e tomou para si a tradução. Vimos juntos, Tom, a nota de cancelamento da sessão de La Mort de Danton afixada na porta da Comédie Française, num dia de greve. Da janela do quarto, viajamos com o vai e vem do metrô da linha 6.

Falei sobre você, Tom, com o Mateus Furlanetto, brasileiro que mora na Alemanha e é tão apaixonado por teatro quanto eu. Ele veio de Berlim só para te ver de novo e confirmar o seu apreço. 

Paris é linda, mas Macron não está facilitando! Tom concorda comigo, pois encontramos bibliotecas fechadas, muito lixo nas ruas e transportes públicos perturbados em razão dos movimentos sociais contra a reforma da aposentadoria, que o governo insiste e os trabalhadores não aceitam. O mês de março se foi. Admiramos, ou nem tanto, les giboulées de mars (chuva forte repentina, geralmente curta, muitas vezes acompanhada de granizo).

Mas Tom, o que eu posso dizer ainda sobre a peça? Nesses seis anos que o espetáculo Tom na Fazenda segue pulsando já colheu as melhores críticas no Brasil, no Canadá e agora em Paris. Já recebeu os mais efusivos aplausos.

Gustavo Rodrigues e Armando Babaioff: tour de force interpretativo. Foto: Victor Novaes / Divulgação

A temporada de Tom na Fazenda no Théâtre Paris-Vilette ficou lotada por três semanas e prorrogada em mais três apresentações até 5 de abril. É a primeira produção latino-americana que ocupa esse palco. A peça foi ovacionada todas as noites, uma atitude pouco comum do público  francês.

Até agora, a produção não conseguiu patrocínio. Mas também não havia como. A peça estreou em 2017, ano seguinte ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff; e os desdobramentos foram terríveis. Além da censura às artes (praticamente uma perseguição) cresceram ou se instalaram movimentos xenofóbicos, genocídio em comunidades pobres e indígenas, desmatamento desenfreado, repressão das expressões “pagãs”, perseguições religiosas, homofobia.

Como pontuou o encenador Rodrigo Portella (em texto do livro Tom na fazenda, que integra a Coleção Dramaturgia da Editora Cobogó, publicado também na revista eletrônica Questão de Crítica – QdC ) , o contexto expõe “uma expressiva onda conservadora a se espalhar pelo mundo como reação às liberdades conquistadas na virada do século”.

Ativo há seis anos, o espetáculo se apresenta como uma célula acesa de resistência diante do desmonte que a cultura no Brasil viveu nos últimos quatro anos, na gestão bolsonarista. Ousada, a na produção Investiu na internacionalização e, por conta própria, participou do off do Festival de Avignon do ano passado. Terminou a sessão com convites para temporadas em alguns teatros europeus.

A homofobia é manifestada de forma truculenta na peça. Foto: Victor Novaes / Divulgação

Qual o risco de se assumir publicamente homossexual, bissexual, transsexual, LGBTQIA+ no Brasil? Na França? No Irã? Afeganistão? Catar? Somália? Nigéria? Ou numa fazenda distante? Ou seja, qual o perigo de ser o que se é? Em alguns lugares do mundo é crime, punido com pena de morte por decapitação, forca ou apedrejamento. Vamos mirar no Brasil, um país em que não existem penas de morte em leis escritas, mas que é apontado como um território violento e com maior número de assassinatos de pessoas dissidentes da norma cis-hétero-normativa no planeta. Os dados do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQI+ (316, no dossiê de 2022) são alarmantes.

Em Tom na Fazenda, a homofobia é exercida de forma truculenta dentro da casa. A complexidade é traçada a partir da relação intima, quase familiar. Tom, do título, planejava prantear a memória do amante durante os ritos fúnebres na casa da família do falecido. Ao chegar, de imediato constata que é um desconhecido para a sogra Aghata (“ele nunca me falou de ti”) e uma ameaça para o que seu cunhado Francis considera honra.

Para evitar que sua mãe e a longínqua vizinhança do vilarejo saibam que o irmão mais novo da família era gay e mantinha um relacionamento amoroso com o forasteiro de roupas elegantes e hábitos finos, o rude Francis chantageia, ameaça e agride Tom, numa abordagem que faz uma mistura estranha de violência e sensualidade.

Numa pisada de guardião da heteronormatividade da família, Francis cometera no passado um crime contra um garoto de 16 anos que se dizia apaixonado por seu irmão gay. Ele é um único homem, mas não pode ser percebido como uma voz isolada. Ao tratar o tema da homofobia, a encenação fornece algumas chaves ao espectador para pensar sobre uma série de desrespeitos e violações contra o outro.

As atuações são um trunfo da montagem. Gustavo Rodrigues (Francis) e Soraya Ravenle (Aghata)… 

Armando Babaioff (Tom) e Camila Nhary (falsa namorada do morto). Foto: Victor Novaes

A história do espetáculo Tom na Fazenda se passa num ambiente deslocado do seu personagem-título. O dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo à época da estreia brasileira expõe suas razões para situar sua peça no meio rural. “Eu queria uma região em que as coisas acontecessem mais lentamente. Um lugar orgânico… Um espaço que portasse uma tensão, rodeado de julgamento. Essa fazenda desponta como um território onde todos os abusos e liberdades são possíveis”, acentuou Bouchard.

É um pressuposto da peça que os ambientes rurais são mais atrasados que os centros urbanos e as leis têm laços mais frágeis na punição de crimes. Essas informações pontilham o texto e um dos personagens avisa que seria bem fácil se livrar de um corpo junto ao “cemitério” de vacas, bois e outros animais.

O presente é insatisfatório, já atestava Ernst Bloch, filósofo alemão (1885 – 1977).  “Nem todos estão presentes no mesmo tempo presente”. A montagem situa essa recusa triste do tempo presente no chão brasileiro desses últimos quatro anos de Bolsonaro (o pior presidente que esse país já teve), em que se escorrega, em que crimes e desvios de conduta são encobertos por lama. A encenação realça um tempo ralentado, uma sensação de isolamento geográfico, com costumes e ideias conservadoras para marcar o local.

Traduzido, produzido e protagonizado pelo ator Armando Babaioff, que atua ao lado de Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary, com direção de Rodrigo Portella, a versão brasileira abre canais para leituras do Brasil no tempo histórico em que a peça foi gestada.

O não-direito ao luto aparece em meio a um teia de assuntos violentos. Foto: Victor Novaes / Divulgação

De um jovem homem foi roubado o direito à manifestação pública do luto por seu companheiro morto. Esse impedimento baseado na chantagem, ameaça e violência gera uma transformação no comportamento, perspectiva e visão de mundo do protagonista. Tom chega à fazenda vestindo um modelito de marca e termina a peça com roupas em farrapos e enlameadas.

Com uma dramaturgia engenhosa e ágil, a direção usa de dispositivos para valorizar o teatro, o jogo, o desenho coreográfico, as ações físicas, as não-respostas, as possibilidades de o espectador criar. Tom fala com o namorado morto (por WhatsApp), utiliza o discurso interior, ou conversa com os outros personagens e muitas vezes isso fica propositalmente embaralhado. Ou ainda executa ações que os outros personagens não enxergam – o gesto e o que está por trás do gesto.

Armando Babaioff imprime transformações fortes à personagem; Tom vai se revelando um ser mais frágil, por trás do bem-sucedido publicitário com tiques consumistas.

Agatha é tocante em sua dor, na ignorância ou fingimentos das coisas não-ditas. Agarrada em suas crenças, ela cita passagens da Bíblia. Quando se vê saturada com a cultura de mentiras, ela reconhece que o que lhe restou, entre os três homens da vida, foi o “pior”, o “bandido”.

A falsa namorada do irmão morto leva um frescor ao ambiente, mas desestabiliza a relação de “quase irmandade” entre os dois homens.

Dispositivos utilizados pela encenação permitem dúvidas sobre o que o protagonista fala ou age

A cenografia assinada por Aurora dos Campos utiliza poucos objetos. Uma lona preta coberta por barro – que, de quebra, produz sonoridades com a movimentação dos atores – sacos de areia, alguns baldes pretos. Na iluminação, Tomás Ribas investe numa lâmpada solitária pendurada no centro do palco, que reforça o clima de aridez. A trilha de Marcelo H. atiça tensões com suas paisagens sonoras.

Para expor os atos de barbárie, a encenação utiliza de uma ferocidade cênica, que funciona em níveis energéticos e físicos. As interpretações dos dois atores – Babaioff e Rodrigues – são viscerais. Um sadomasoquismo que desliza entre atração e repulsa. Um jogo ambíguo de masculinidade, em que a tensão sexual paira no ar e cola nos corpos.

Francis expõe um comportamento próximo do bestial, mas a direção ressalta a humanidade em nuances e gradações. Durante os dias que passa na fazenda e nas incontáveis lutas corporais com Francis, Tom coleciona hematomas e tem os pulsos machucados. Mas os dois homens também trocam confidências, trabalham na companhia um do outro, dançam juntos uma cumbia no curral e realizam o parto de um bezerro.

Para ser aceito, Tom passa por um gradual apagamento de si, incorporando valores que ele repudiava. Pode lembrar as mentes fragilizadas pelo deflúvio subjetivo desses tempos que correm. “Atenção… É preciso estar atento e forte!”

Por que Tom não foi embora após o funeral?; Por que ele “aceita” tanta violência?; e muitas outras perguntas vão para a plateia. Com o desfecho inesperado e a mutação do protagonista – que chega ao final com os clichês do rude – questiono se não há também o risco de induzir os efeitos de captura das subjetividades que se deseja combater? Ainda bem que não existe uma explicação única, que responda a tudo.

Público francês aplaude com entusiasmo, em temporada com ingressos esgotados. Foto: Reprodução

Tom, boa sorte na sua caminhada.

A agenda da peça:
Paris 9 de março a 5 de abril  – Théâtre Paris-Villette
Recife 15 e 16 de abril – Teatro do Parque
Natal 20 de abril – Teatro Riachuelo
Juiz de Fora 26 e 27 de abril – Teatro Paschoal Carlos Magno
Belo Horizonte 28 a 30 de abril – Cine Theatro Brasil Vallourec
São Paulo 5 de maio a 25 de junho  – Teatro Vivo

Tom na Fazenda (Tom à la ferme)
Texto: Michel Marc Bouchard 
Tradução: Armando Babaioff 
mise en scène: Rodrigo Portella 
Elenco: Armando Babaioff, Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary 
Cenografia: Aurora dos Campos 
Iluminação: Tomás Ribas 
Figurino costumes: Bruno Perlatto 
Música: Marcello H. 
Coreografia: Toni Rodrigues
Fotos: 
Victor Novaes ou Roberto Peixoto

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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