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Epifanias cênicas: arte é política
Crítica: Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém]

Apresentação do espetáculo Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém} em Porto Alegre. Foto: Adriana Marchiori

Renata Sorrah e cia brasileira de teatro em Porto Alegre

Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre, lotado nas duas sessões da peça. Foto: Adriana Marchiori

Todo o mundo ama Renata Sorrah. Talvez não todo o mundo do mundo inteiro, porque há quem prefira exercitar sentimentos menos nobres. O que é incontestável, porém, é que o público que lotou as duas sessões do Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém], no Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre, na quarta e quinta-feira, 4 e 5 de junho, na programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, vibrou numa emoção coletiva de admiração e carinho. Um fenômeno semelhante já havia sido testemunhado durante a temporada no SESI-SP, onde o espetáculo somou 64 apresentações entre 22 de agosto e 1º de dezembro de 2024, atraindo cerca de 27.400 pessoas. Mas bah, tchê, essa experiência no Rio Grande do Sul foi extraordinária. A atriz gaúcha Sandra Possani foi uma das pessoas que se emocionou do início ao fim da peça.

Em Porto Alegre, alguns espectadores mais afoitos buscavam eternizar os momentos pós-espetáculo em selfies. No contexto da peça, qualquer receio de que o público gaúcho, por vezes associado a um certo conservadorismo, fosse reticente com a linguagem contemporânea da Companhia Brasileira de Teatro desfez-se por completo. A plateia, composta por amantes das artes e especialmente do teatro, mostrou-se aberta e disposta a mergulhar de cabeça na proposta, permitindo-se expandir seus horizontes.

Essa receptividade entusiástica transformou-se em uma declaração coletiva de benquerença. Todas ali desejavam expressar, e o fizeram com uma ovação calorosa: “Nós amamos sua arte”. Muitos, naquele momento, sentiram-se conectados às emoções que a canção Beatriz tão bem entoa – aquela valsa composta por Edu Lobo, com letra de Chico Buarque, e eternizada na voz de Milton Nascimento: “… Olha / Será que é uma estrela / Será que é mentira / Será que é comédia / Será que é divina / A vida da atriz / Se ela um dia despencar do céu / E se os pagantes exigirem bis / E se o arcanjo passar o chapéu / E se eu pudesse entrar na sua vida…” – versos que capturam essa mescla de admiração distante e desejo de proximidade que tantos nutrimos por grandes artistas.

Curiosamente, essa relação entre público e celebridade o espetáculo questiona e desdobra. As falas da peça refletem essa obsessão de forma crítica e bem-humorada: Deixa ela… “Olha como ela sorri. Olha como ela anda… olha como ela dirige o carro.” A dramaturgia e a encenação de Marcio Abreu jogam com o conceito de celebridade de forma sagaz, agenciando sua desconstrução. Em cena, a “estrela” Renata Sorrah é instigada a ir além do que se espera de sua persona pública, revelando a humanidade e as complexidades por trás do ícone.

As grandiosas projeções do rosto de Sorrah em cena atuam como um recurso estético impactante e como uma metáfora visual potente que, ao magnificar a figura da atriz a proporções monumentais, força o espectador a um escrutínio íntimo sobre a construção da celebridade. Essa magnificação aprofunda o debate para além do universo estético e performático, adentrando questões urgentes e contemporâneas, como a ascensão de figuras desqualificáveis no campo político e a criação de um terreno fértil para a proliferação desenfreada de desinformação. A justaposição da imagem da atriz – uma figura de culto no teatro, na televisão e no cinema brasileiros – com a crítica incisiva a esses fenômenos sociais e políticos, estabelece um paralelo inquietante e insinua que a mesma lente crítica aguçada, aplicada ao estudo do culto de personalidades e à construção de ícones, deve ser rigorosamente direcionada à arena social e política.

Rodrigo Bolzan e Renata Sorrah. Foto: Adriana Marchiori

Bárbara Arakaki, Rodrigo Bolzan, Bianca Manicongo (Bixarte), Renata e Rafael Bacelar.Foto: Adriana Marchiori

Em um momento da encenação, Renata Sorrah remonta a uma epifania vivenciada na década de 1970, no limiar de um ensaio rotineiro de A Gaivota, onde interpretava Nina. Nesse trajeto cotidiano, uma súbita e profunda clareza se manifestou. Uma epifania, em sua essência, é isso: um lampejo de percepção tão profundo e inesperado que uma verdade fundamental irrompe na consciência, um ponto de inflexão existencial que altera a perspectiva do indivíduo. Essa reminiscência, meticulosamente partilhada com a plateia, irradia-se como feixes de luz que permeiam e moldam cada gesto, cada intenção e cada palavra proferida em cena. É essa memória fundacional que nutre a complexa engrenagem criativa do espetáculo, desempenhando o papel de um pilar que conecta a experiência pessoal e íntima da atriz e do elenco às questões intrínsecas de dilemas e complexidades do viver e à prática artística.

A dramaturgia, elaborada a partir da pesquisa e criação coletiva de Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria, estrutura-se em complexos estratos subjetivos sobrepostos, que deliberadamente conduzem o espectador por intrincados deslocamentos temporais e fissuras na consciência. A peça de Tchekhov move-se como um eco ressonante, uma matriz referencial e temática que possibilita explorar os dilemas entre arte e vida, idealismo e realidade. As sequências articulam-se não por encadeamento causal tradicional, mas por associações poéticas e excertos dialógicos forjados em improvisações, o que confere à narrativa um caráter fluido e em constante devir, resistindo a interpretações fechadas. A experiência performática incorpora recursos metateatrais, como a autorreferencialidade ao ato de criação e menções diretas ao processo de ensaio, desvelando a própria construção da obra e convidando o público a refletir sobre a natureza da representação.

O elenco, composto por Rentata, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo (Bixarte), revela-se uma verdadeira constelação de talentos. Cada integrante concede voz à sua singular vivência e corporeidade, tecendo-as à cena e enriquecendo a intrincada trama de subjetividades que a peça desdobra.

A Trajetória de uma Parceria Excepcional

Ao longo de mais de treze anos, a colaboração entre a Companhia Brasileira de Teatro, sob a direção de Marcio Abreu, e a atriz Renata Sorrah firmou-se como um dos encontros mais inspiradores e influentes no panorama teatral contemporâneo brasileiro. 

O capítulo inaugural dessa trajetória remonta a 2012, com Esta Criança, texto do dramaturgo francês Joël Pommerat. Na montagem, a Companhia, com Sorrah e o elenco de Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha, explorou dez situações-limite entre pais e filhos, valendo-se de estruturas fragmentadas e economia de gestos para revelar a urgência das emoções familiares.

Em 2015, a parceria firmou-se em Krum, texto de Hanoch Levin, onde a violência simbólica e o humor ácido integraram-se à pesquisa corporal e vocal do coletivo. O elenco contava com Cris Larin, Danilo Grangheia, Edson Rocha, Grace Passô, Inez Viana, Ranieri Gonzalez, Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan e Rodrigo Ferrarine. Naquele momento, se aprofundava uma linguagem teatral pautada na metalinguagem, na desarticulação de linearidades narrativas e na tensão entre corpo, memória e dicção, elementos que seriam mais explorados em trabalhos futuros.

Com Preto (2017), a colaboração ascendeu a um novo patamar de excelência artística, com a participação de Renata Sorrah no elenco, ao lado de Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan/Rafael Bacelar (em alternância).

Elenco da peça .Foto: Adriana Marchiori

Quando Renata e Bianca trocam de texto para focar no lugar de fala. Foto: Adriana Marchiori

Em Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém], os artistas demonstram, com uma eloquência poética que ressoa profundamente, que o ato de criar é intrinsecamente político, pois a arte não é apenas estética, mas uma expressão de agência e visão de mundo. Cada manifestação artística autêntica, ao propor novas perspectivas e realidades, afirma a possibilidade tangível de um mundo mais equitativo e sensível. É um gesto vital de resistência contra a uniformização do pensamento, a imposição de ideologias dominantes e as diversas formas de opressão social e cultural, abrindo espaço para a diversidade, a empatia e a transformação coletiva.

A vertente política da montagem assume contornos nítidos no atual panorama brasileiro, marcado pela polarização e pela emergência de discursos autoritários. A peça perscruta dilemas sociopolíticos sem resvalar no didatismo ou no panfletarismo, incorporando comentários sobre a história recente do país.

Em uma sequência de particular impacto, Renata Sorrah tece, por meio de frases concisas e incisivas, uma narrativa que imbrica eventos coletivos – a prisão de Lula, as manifestações feministas, o impeachment de Dilma, a primeira deputada trans no Congresso Nacional, a reeleição de Lula. A força dessa sequência reside na capacidade de evocar a memória coletiva sem a necessidade de explicações exaustivas, confiando na inteligência e na vivência do público. Em um período em que a cultura e a liberdade ainda sentem o impacto dos ataques sistemáticos empreendidos por aquele malfadado governo que nunca deveria ter ocupado o poder, a própria existência desta encenação, com sua complexidade estética e seu compromisso com o pensamento crítico, emerge como um gesto de insubmissão e como farol.

Os corpos em cena configuram-se como territórios de discurso e resistência, onde a presença se torna eloquente e irradiadora. A repetição calculada de gestos e falas e a pluralidade interpretativa – exemplificada quando vários atores proferem o mesmo texto e reiteram o gesto – compõem uma gramática teatral que desafia expectativas e convida o público a uma experiência sensorial e intelectual, desmitificando o processo criativo. Uma cena emblemática dessa dimensão surge quando uma atriz cisgênero, Renata, e uma atriz transgênero, Bianca Manicongo (Bixarte), trocam seus textos, uma discorrendo sobre corporalidades trans e a outra sobre etarismo, revelando como certos discursos, ao transitarem entre diferentes corpos, expõem profundas contradições sociais e a arbitrariedade de quem é autorizado a falar sobre certas experiências. Essa inversão provoca um questionamento crucial: a quem realmente compete falar em nome do outro, e como a identidade de quem se expressa influencia decisivamente a percepção e interpretação do que é dito.

Rafael Bacelar, montado de drag queen, faz um elogio ao lado esquerdo (do corpo). Foto: Adriana Marchiori

Humor e crítica na performance de Bacelar. Foto: Adriana Marchiori

Intérprete dubla Sacrifice, de Elton John. Foto: Adriana Marchiori

Em sua sequência de dança de caráter político, Rafael Bacelar constrói uma performance que reafirma a corporalidade como campo de disputa ideológica e expressão de identidades dissidentes. O artista inicia a cena ouvindo conselhos maternos em áudio enquanto se monta como drag queen perante os espectadores, estabelecendo uma intimidade transgressora com o público e borrando as fronteiras entre o pessoal e o político. Essa ação convida o espectador a um espaço de cumplicidade e sublinha a performatividade inerente à construção da identidade. Em um surpreendente desdobramento cênico, esse áudio materno é dublado, em vídeo projetado, por Renata Sorrah, que já havia estabelecido com Bacelar outra relação mãe-filho em cena de A Gaivota, criando uma camada adicional de intertextualidade e afeto que enriquece a narrativa. Durante a performance, ele tece um elogio poético ao lado esquerdo do corpo, instituindo uma metáfora explícita que alude aos partidos de esquerda no Brasil, um gesto de clara filiação política e artística.

Com humor perspicaz e crítica incisiva, Bacelar provoca a plateia por meio de uma comunicação direta e desafiadora: encara os espectadores, setoriza a assistência em “direita”, “esquerda” e “centrão”, gerando uma tensão permeada de comicidade que convida à autoanálise e ao riso nervoso. Essa interação performática força o público a confrontar suas próprias posições e preconceitos. O clímax da performance ocorre com uma potente dublagem da canção Sacrifice de Elton John, momento em que a plateia é completamente arrebatada pelo showman, que transforma a vulnerabilidade em força e a arte em um grito de liberdade. São múltiplas tessituras que se entrelaçam, constituindo uma vivência que se configura como um manifesto corpóreo-político pulsante e inesquecível.

Campo de atuação se expande e comprime no palco. Foto: Adriana Marchiori

Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo (Bixarte). Foto: Adriana Marchiori

A visualidade de Ao Vivo transpõe o fluxo mental para o espaço cênico, alternando entre abstração e concretude. Em cena, os próprios atores manipulam estruturas minimalistas e móveis, como cadeiras, mesas ou estantes de partitura, transformando-as em elementos cenográficos dinâmicos que criam transições entre distintos recortes de memória e estados de consciência. Essa manipulação é funcional e performática, sublinhando a maleabilidade da mente e a construção subjetiva da realidade. A iluminação, trabalhada com precisão cirúrgica nos focos e variações sutis de intensidade e cor, demarca e borra as fronteiras entre realidade e imaginário, salientando rupturas temporais e os jogos performáticos que desafiam a percepção do público.

Bianca Manicongo canta lindamente. Foto: Adriana Marchiori

Atriz cantora evoca o anseio por um país mais justo. Foto: Adriana Marchiori

Ao Vivo constrói uma poética da reexistência onde imaginação e memória se tornam instrumentos de compreensão e transformação da realidade. As reflexões sobre a perenidade da arte, o significado do ofício teatral e a efemeridade interpenetram-se com a crítica sociopolítica, culminando em momentos de beleza e profundidade. Em passagem emblemática, Bianca Manicongo evoca o anseio por um país onde seja possível “beijar bocas, beber água limpa, abraçar a floresta, brindar suas existências” – uma invocação poética do desejo coletivo por um Brasil mais justo, acolhedor e em harmonia com a natureza, um manifesto de utopia possível que ressoa como um chamado à ação e à esperança.

A música pulsa e ressoa com extraordinária potência. A dramaturgia sonora, urdida por Felipe Storino, constitui um elemento estruturante da encenação, operando como um fio condutor emocional e narrativo. A sonoridade ecoa para a plateia e encontra na voz inconfundível de Bianca Manicongo sua expressão mais sublime, especialmente na interpretação de Love is a Losing Game de Amy Winehouse. Há uma melancolia profunda nessa canção, que reflete o amor como um jogo de azar, uma aposta incerta, e ressoa com as vulnerabilidades e os riscos inerentes à vida artística e à militância política, particularmente para corpos dissidentes e historicamente perseguidos e ameaçados. Contudo, o espetáculo não se rende ao desalento; prefere o amor, mesmo com seus riscos, e encontra respiro na esperança suave que emana de canções como Magrelinha de Luiz Melodia – “E o pôr do sol renove e brilhe de novo os nossos sorrisos” – e nas interpretações de Começaria Tudo Outra Vez de Gonzaguinha. Esta junção de melancolia e esperança, de crítica e afeto, mergulha-nos na musicalidade que habita essa cabeça, essa peça, esse ato de resistência poética que é Ao Vivo – Dentro da Cabeça de Alguém, consolidando a música como um pilar fundamental da experiência.

A epifania mencionada por Renata Sorrah projeta-se como metáfora para o próprio espetáculo: um momento de revelação, um instante de clareza em meio à turbulência. É provável que alguma epifania ressoe também no público, gerando instantes de iluminação. Ao deixar o teatro, levamos conosco muitas coisinhas miúdas dessa obra complexa, mas também perguntas essenciais sobre nosso lugar no mundo e nossa responsabilidade perante a história.

 

Pollyanna Diniz também escreveu uma análise crítica de Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém] no contexto do Festival de Curitiba, que pode ser acessada [aqui].

 

 

Ficha Técnica

AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]
Texto e Direção Geral: Marcio Abreu
Pesquisa e Criação: Marcio Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria
Elenco: Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki, Bianca Manicongo (Bixarte)
Direção de Produção e Administração: José Maria e Cássia Damasceno
Iluminação e Assistência de Direção: Nadja Naira
Direção Musical e Trilha Sonora Original: Felipe Storino
Direção de Movimento e Colaboração Criativa: Cristina Moura
Assistência de Direção e Colaboração Criativa: Fábio Osório Monteiro
Figurinos: Luís Cláudio Silva | Apartamento 03
Direção Videográfica: Batman Zavareze
Cenografia: Batman Zavareze, João Boni, José Maria, Nadja Naira e Marcio Abreu
Assistente de Arte: Gabriel Silveira
Edição de Vídeo: João Oliveira
Captação das Imagens para Vídeos: Cacá Bernardes | Bruta Flor Filmes
Design de Som: Chico Santarosa
Assistência de Cenografia: Kauê Mar
Técnica de Vídeo, Luz e Programação Videomapping: Michelle Bezerra, Ricardo Barbosa e Denis Kageyama
Técnica de Luz e Som: Dafne Rufino
Fotos: Nana Moraes
Programação Visual: Pablito Kucarz e Miriam Fontoura
Produção Original: Sesi SP
Criação e Produção: Companhia Brasileira de Teatro

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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Manifesto de esperança
Crítica de AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém]

Renata Sorrah em AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém], peça da companhia brasileira de teatro, no Festival de Curitiba 2025. Foto: Lina Sumizono

Bárbara Arakaki, Bianca Manicongo, Rodrigo Bolzan e Rafael Bacelar. Foto: Lina Sumizono

Memória deveria ser verbo. Sim, memorizar é verbo, mas não diz o que eu gostaria. Quando falamos sobre memorizar, o sentido que salta, imediato, é o de decorar, repetir até que saibamos algo de cor. No dicionário, memorizar também pode ser lembrar, recordar, relembrar. Não é isso. Queria pensar neste “verbo-memória” como uma prática expandida, fluida, que não separa corpo e mente, material e imaterial, realidade e imaginação, plantas, animais e humanos, tempos cronológicos ou estelares.

Como seria exercer este verbo-memória relacionado à pandemia de covid-19? Quais imagens permanecem incrustadas em nós, aquelas dilatadas para além dos nossos corpos físicos? Quem continua conosco? O que mudou internamente? E coletivamente? Estamos falando do que aconteceu, do que ainda vai acontecer ou das duas coisas? Não sabemos essas respostas, não racionalmente. Em março de 2023, chegamos ao número de 700 mil pessoas mortas vítimas de covid-19 no Brasil. 700 mil pessoas. SETECENTAS MIL PESSOAS. Não há quem consiga apreender esse número e tudo que ele implica no hoje, no amanhã, no ontem, no tempo que não conhecemos.

AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém], peça da companhia brasileira de teatro, com direção de Marcio Abreu, experimenta algo da dimensão do que estou chamando de “verbo-memória”, inclusive na expansão de acontecimentos temporalmente recentes, como a pandemia. A atriz Renata Sorrah, que está no elenco ao lado de Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo, diz que a montagem encara os instantes de suspensão, quando parece que você teve uma epifania e entendeu tudo, com seu corpo, sua mente, sua alma e, logo depois, quase imediatamente, isso se encerra. O portal fecha. Está de modo praticamente literal no título, amplificar, ao vivo, a fração de tempo em que sua cabeça abre, antes dela fechar de novo.

No caso da peça, esse momento acontece quando a personagem está dirigindo, esse hábito que se torna automático, vento no rosto, vontade de fumar um cigarro, música tocando baixinho no rádio a caminho do ensaio da peça. A sensação de liberdade. Essa epifania talvez ocorra para os espectadores em alguma cena específica da montagem, tomara, mas como proponho o verbo que é prática, que se move, neste texto esse instante se desdobra e se esgarça, mesmo que passe como num segundo, ou ao longo de toda uma peça de 1h30min.

Em A crise da narração, Byung-Chul Han escreve que “a memória é uma prática narrativa que constantemente vincula novos acontecimentos e cria uma rede de relações”. A questão é que a nossa interação com o que nos cerca estaria reduzida à causalidade dos fatos e informações, o que significa o “desencantamento do mundo” e a perda da nossa capacidade de narrar. “As coisas existem, mas quedam em silêncio”, diz o filósofo. A peça da cia brasileira de teatro é um contraponto a esse silêncio. Ao esfacelamento da dimensão pública e privada da memória como prática. Os atores deslizam na liberdade da linguagem das artes vivas para que fatos e informações possam ser descritos e narrados e se tornem praticamente palpáveis. O que é falado ganha densidade como imagem, matéria que passa a existir.

Os atores representam a si mesmos e a alguns, muitos, espero que multidões de nós. Fazem isso de um lugar determinado do campo político, que se revela de modo claro pela escolha de quais fatos e memórias vão enovelar, pelo conteúdo do discurso elaborado, e pelos quereres de futuro. O exercício vertiginoso do verbo-memória nos aproxima da ideia de que o tempo inteiro estamos perdendo o mundo como o conhecíamos e outros estão sendo criados concomitantemente, inclusive no palco. Um mundo se desfaz, outro começa. O teatro é suporte de criação para esses mundos que podem se estender para além da sala de espetáculos. No teatro, escrevemos, atuamos, cantamos, dançamos. A música de Gonzaguinha, cantada lindamente por Bianca Manicongo, Bixarte, dá o tom: “Começaria tudo outra vez | Se preciso fosse, meu amor | A chama em meu peito ainda queima | Saiba, nada foi em vão”.

AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém] trabalha com memórias coletivas e individuais. Foto: Lina Sumizono

Rodrigo Bolzan. Foto: Lina Sumizono

Bárbara Arakaki. Foto: Lina Sumizono

Esses mundos que se fazem e se desfazem ao vivo são compostos a partir de experiências de linguagem, em registros que vão se alternando. Ao lado do discurso social e político direto, do autobiográfico, do meme de Nazaré e das citações atribuídas à Clarice Lispector, há camadas de maior abstração na encenação, ligadas à composição das cenas, às imagens em vídeo, à cenografia, à dramaturgia – e aqui, especialmente, à representação de um texto seminal para o teatro ocidental, A gaivota, de Anton Tchékhov.

O texto referência é uma obra encharcada do humano, uma mãe famosa, um namorado mais novo escritor, um filho escritor, uma jovem atriz com muitos sonhos. O texto instaura discussões sobre as relações humanas, o sonho, a vaidade, a melancolia, a desesperança, a depressão, o desespero do fim. Embora a dramaturgia de A Gaivota esteja incorporada à encenação de AO VIVO, e seja visível para quem conhece o texto, a história paira como uma epifania. A composição da cena, como imagem, é quase uma tela, um fim de tarde no jardim. Os nomes dos personagens não são ditos, assim como não há menção ao nome da peça. Isso talvez nos aproxime ainda mais desse duplo, Renata Sorrah e personagem, essa mulher que é uma atriz famosa, muito mais famosa do que o seu namorado, que ao perceber que pode perdê-lo diz que é apenas uma mulher comum, que se ressente da idade quando o homem que ama se encanta por uma mulher mais nova, que não tem certeza se é livre.

A Gaivota é inspiração para a peça da cia brasileira de teatro. Foto: Lina Sumizono

AO VIVO, inclusive, pode ser considerada uma grande, linda e merecida homenagem à Renata Sorrah, essa atriz que marcou a história do teatro, do cinema e da televisão. Que foi Nina em 1974, numa montagem de A Gaivota que tinha no elenco Tereza Rachel como Arkádina, além de nomes como Sergio Britto, Cecil Thiré e Renne de Vielmond. Cuja imagem garota, num tempo que é memória e se expande, é exibida no palco em Matou a família e foi ao cinema, filme de 1969, de Júlio Bressane. O Brasil acompanhou o envelhecimento de Renata Sorrah e isso é muito bonito, uma atriz plena com suas escolhas.

Etarismo, uma das discussões que se desprende de A Gaivota e da própria presença de Renata em cena, e transfobia são tratados no registro do discurso direto, do manifesto, do que precisa ser dito. Renata Sorrah e Bianca Manicongo, travesti, fazem uma cena de espelhamento, uma dando o discurso correspondente à outra. Renata diz, entre outras coisas, que amar e ser amada não é para todas as pessoas, só para as vivas, e a média de vida de uma travesti é de 35 anos. Bianca questiona a pressão sobre as mulheres velhas, associadas às bruxas, enquanto os homens velhos são associados à sabedoria. Os discursos se atravessam no lugar de decisão sobre o próprio corpo e da discussão sobre a empatia: “O problema de falar em nome do outro é que todo mundo acaba sem voz”.

Renata Sorrah e Bianca Manicongo dão voz a discursos uma da outra. Foto: Lina Sumizono

A peça – e a peça dentro da peça – nos lembram que muitos vão sucumbir neste processo de memória-verbo. Morte matada, morte morrida, morte que até parece vida. Rafael Bacelar desabafa: é difícil dizer que todas as esperanças acabaram, assim como está em A Gaivota. Mas AO VIVO explicita a desesperança por meio de Tchékhov para anunciar o contrário: há espaço para esperançar. Espaços. Se você não consegue enxergá-los, vamos abri-los juntos, nesta epifania de 1h30min. Esperançar, na peça, depende do que chamo de resgate da memória-verbo que está, inclusive, no corpo das atrizes e atores. No corpo de Bianca, uma travesti dividindo cena com Renata Sorrah porque é uma atriz ótima, uma cantora maravilhosa. E seu corpo diz por si. Sua voz diz por si. Precisamos de novas formas, afirma o texto do espetáculo. Formas que são ancoradas por corpos. Por vozes. E, ao lado do dito sotaque “neutro” de Renata Sorrah, o sotaque da televisão que aplaina as diferenças, o sotaque nordestino de Bianca explode com força. A frase não é de Clarice, é de Leminski, não está no espetáculo, mas poderia: “Isso de ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além”.

Vocalizar e sustentar o discurso que reage à homofobia, à transfobia, ao etarismo, à ascensão da extrema direita no país é uma forma de esperançar novos mundos para plateias diversas. Espectadores muitas vezes atraídos ao teatro pelo nome de Renata Sorrah, e que não necessariamente ouviriam esses discursos de outra forma, senão na plateia de um teatro, um espaço que proporciona essa convivência “forçada” com o outro por um tempo determinado.

A peça cumpre o papel de alcançar e falar diretamente com esse outro: AO VIVO estreou no ano passado, no dia 22 de agosto, e permaneceu em cartaz até 1 de dezembro, com sessões de quinta a domingo, esgotadas, no Sesi-SP, no Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, em São Paulo. Poucas pessoas abandonaram as sessões no meio. Na porta desse prédio, por anos, as pessoas se reuniam e faziam vigílias para pedir por intervenção militar no país. Um pato inflável de cinco metros criticava a política tributária do governo da presidenta Dilma Rousseff. Então é significativo que, neste lugar, um grupo de teatro que completa 25 anos em 2025 possa falar sobre os desejos de um novo Brasil, como um manifesto lindo e potente que anuncia esses passos, incluindo “banhar o Brasil”, “abraçar a floresta”, “beber água limpa”, “convocar as bichas todas”, “beijar as bocas”, “desbrazilizar para existir Brasil”.

O espetáculo é acolhido – o que não quer dizer que as pessoas concordem com o que está dito ali – porque consegue balancear radicalidade do discurso e humanização. A partir de A Gaivota, da relação entre mãe e filho, por exemplo, Rafael Bacelar protagoniza uma cena em que se transforma em drag queen no palco – se maquia, coloca salto e peruca – e dialoga com um áudio de sua mãe. “Eu me conformei porque eu te vi feliz e ninguém tem o direito de obrigar o outro a ser o que se quer ser”. Que mãe não se identifica? Enquanto dança – propondo uma brincadeira de dançar apenas com o lado esquerdo do corpo – Rafael mistura sua história ao discurso político e à história recente do país: diz que começou a dançar com a esquerda em 2002, saiu da linha da pobreza, entrou na universidade pública. O apelo da cena é flagrante: o público, dividido pelo ator entre direita, esquerda e centrão, entra na brincadeira. Há, no entanto, um discurso sobre esquerda que particulariza, que personaliza na figura do presidente Lula a própria esquerda, e que, a despeito do que estamos vivendo hoje no Brasil, diz textualmente que recuperamos a radicalidade da esquerda. Queríamos que fosse verdade.

Rafael Bacelar se transforma em drag queen no palco e protagoniza cena sobre direita e esquerda no país, Foto: Lina Sumizono

Na memória que é verbo, de tempos entrelaçados, quem sabe isso possa se concretizar. Algum dia, outro tempo, nosso tempo. E o pôr do sol renove e brilhe de novo os nossos sorrisos, como diz a música de Luiz Melodia. O que fica desse tempo que não voltamos a viver? O que queremos guardar? O que queremos fazer novo? AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém] é esse vislumbre de esperança, que nos faz pensar quais outros mundos desejamos instituir. “Escutar, correr e agir”. E ser felizes. “Diante de nós, aquilo que formos capazes de construir agora”, anuncia o texto.

O espetáculo AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém] foi apresentado nos dias 27 e 28 de março de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha técnica:

Texto e direção: Marcio Abreu
Pesquisa e criação: Marcio Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria
Elenco: Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bixarte
Direção de produção e administração: José Maria e Cássia Damasceno
Iluminação e assistência de direção: Nadja Naira
Direção musical e trilha sonora original: Felipe Storino
Direção de movimento e colaboração criativa: Cristina Moura
Assistência de direção e colaboração criativa: Fábio Osório Monteiro
Direção videográfica: Batman Zavareze
Figurinos: Luís Cláudio Silva | Apartamento 03
Cenografia: Batman Zavareze, João Boni, Marcio Abreu, Nadja Naira e José Maria
Assistente de arte: Gabriel Silveira
Edição de vídeo: João Oliveira
Captação de imagens para vídeos: Cacá Bernardes | Bruta Flor Filmes
Design de som: Chico Santarosa
Assistência de cenografia: Kauê Mar
Técnica de vídeo, luz e programação videomapping: Michelle Bezerra, Ricardo Barbosa e Denis Kageyama
Técnica de luz e som: Dafne Rufino
Cenotécnica e maquinaria: Tinho Viana, Alexander Peixoto, Sasso Campanaro e Douglas Caldas
Fotos: Nana Moraes
Programação visual: Pablito Kucarz e Miriam Fontoura
Criação e produção: companhia brasileira de teatro

Peça é também uma homenagem à Renata Sorrah. Foto: Lina Sumizono

 

 

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Por que não vivemos?
Eis a questão!!!

 

 

Cena de Por que não vivemos?, com Camila Pitanga e rodrigo de odé. Foto: Nana Moraes / Divulgação

Rodrigo Bolzan ao centro. Foto: Nana Moraes / Divulgação

Montagem da companhia brasileira de teatro tem no elenco Camila Pitanga, Cris Larin, Edson Rocha, Josy.Anne, Kauê Persona, Rodrigo Bolzan, Rodrigo Ferrarini e Rodrigo de Odé. Foto: Nana Moraes / Divulgação

Josy.Anne e rodrigo de odé em Por que não vivemos? Foto: Nana Moraes / Divulgação

Em qualquer tempo, cada um de nós pode cair na armadilha da inação, da paralisação do desejo de ousar um caminho novo, uma aventura ou uma possibilidade radical. O espetáculo Por que não vivemos?, dirigido de Marcio Abreu, com a companhia brasileira de teatro, investiga cenicamente esse condição. “Por que não vivemos como poderíamos ter vivido?” é uma pergunta-chave pulsando no texto do dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860-1904), nessa peça escrita quando ele tinha por volta de 20 anos.

“Essa questão, que se abre para tantas outras, é um pouco a alma dessa peça”, situa Marcio Abreu. “São pessoas que gostariam de estar em outro lugar, mas não fizeram nada para isso. Mostra como a trama da vida vai se desenrolando e as pessoas vão caindo na armadilha de ficar onde estão”, aponta Giovana Soar, que assina com Abreu e Nadja Naira a adaptação da obra, a partir de uma tradução original do russo por Pedro Alves Pinto e de uma publicação francesa.

Por que não vivemos? estreou em julho de 2019 no CCBB do Rio de Janeiro, e passou no mesmo ano pelos CCBBs Belo Horizonte e Brasília. Em 2020, o espetáculo estreou em São Paulo no Teatro Municipal Cacilda Becker, mas com o início da pandemia suspendeu sua temporada. Depois disso, a montagem circulou por Recife e outras capitais. Agora, faz uma curta temporada no Sesc Santo Amaro (R. Amador Bueno, 505 – Santo Amaro, SP) de dia 20 de maio a 12 de junho de 2022, de sexta a domingo.

A peça, que foca na história do professor Platonov, foi descoberta nos arquivos do irmão de Anton Tchekhov após a sua morte, e publicada em 1923. Sem um título oficial, a peça foi editada em diversos países como Platonov. Somente no final da década de 1990 a obra ganhou traduções e montagens em teatros da Europa. Em 2017, os atores Cate Blanchett e Richard Roxburgh estrearam uma versão do texto na Broadway, em Nova York, chamada de The Present.

A escolha do título Por que não vivemos?, pela companhia brasileira de teatro estabelece, segundo o diretor, um exercício político pois aponta simultaneamente para o passado que não foi vivido e para uma convocação a um futuro que pode ser construído. Para Marcio Abreu, a encenação busca propor reflexões sobre as singularidades dos sujeitos, a conexão coletiva e uma consciência sobre as diferenças. “Os corpos dos atores se reconhecem na estrutura de um texto escrito no final do século XIX e as dinâmicas estabelecidas nos ensaios fizeram com que ele se atualizasse, conferindo ainda mais força à dimensão política da peça”, constata.

O espetáculo lida com temas recorrentes na obra de Tchekhov, a exemplo do conflito entre gerações, as transformações sociais através das mudanças internas do indivíduo, as questões do ser humano comum e do pequeno que existem em cada um de nós, o legado para as gerações futuras – tudo isso na fronteira entre o drama e a comédia, com múltiplas linhas narrativas.

“A montagem tem um foco muito específico nas personagens femininas. São elas que causam transformação, que caminham, que querem mudanças, contravenções e que enfrentam conceitos”, salienta Giovana. Soar atenta que esses traços estavam no texto de Tchekhov, mas foram acentuados na adaptação.

A encenação propõe uma perspectiva de convivência e proximidade com o público através de deslocamentos dos atores pelo espaço e pela quebra da frontalidade. Com isso, o público se tornar coparticipante das ações que ocorrem em cena. 

Por que não vivemos? Foto: Nana Moraes / Divulgação

FICHA TÉCNICA
Por que não vivemos?
Da obra Platonov, de Anton Tchekhov
Direção: Marcio Abreu
Assistência de Direção: Giovana Soar e Nadja Naira
Elenco: Camila Pitanga, Cris Larin, Edson Rocha, Josy.Anne, Kauê Persona, Rodrigo Bolzan, Rodrigo Ferrarini e rodrigo de Odé
Adaptação: Marcio Abreu, Nadja Naira e Giovana Soar
Tradução: Pedro Augusto Pinto e Giovana Soar
Direção de Produção: José Maria
Produção Executiva: Cássia Damasceno
Iluminação: Nadja Naira
Trilha e efeitos sonoros: Felipe Storino
Direção de movimento: Marcia Rubin
Cenografia: Marcelo Alvarenga | Play Arquitetura
Figurinos: Paulo André e Gilma Oliveira
Direção de arte das projeções: Batman Zavareze
Edição das imagens das projeções: João Oliveira
Câmera: Marcio Zavareze
Técnico de som | projeções: Pedro Farias
Assistente de câmera: Ana Maria
Assistente de produção: Luiz Renato Ferreira
Operador de Luz: Henrique Linhares e Ricardo Barbosa
Operador de vídeo: Michelle Bezerra e Sibila
Operador de som: Bruno Carneiro e Felipe Storino
Cenotécnico e contrarregra: Alexander Peixoto
Máscaras: José Rosa e Júnia Mello
Fotos: Nana Moraes
Programação Visual: Pablito Kucarz
Assessoria de Imprensa São Paulo: Canal Aberto
Difusão Internacional: Carmen Mehnert | Plan B
Administração: Cássia Damasceno
Criação e Produção: companhia brasileira de teatro
 
SERVIÇO
Por que não vivemos?
De 20 de maio a 12 de junho de 2022
Sextas, às 20h, sábados, às 19h e domingos, às 18h
Local: Sesc Santo Amaro (R. Amador Bueno, 505 – Santo Amaro, SP)
Ingressos: R$ 40/ R$ 20/ R$ 12
Capacidade: 279 lugares
Duração: 150 min.
Gênero: Comédia Dramática.
Classificação indicativa: 16 anos.
 
 

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Um Tchekhov que denuncia nossa imobilidade
Crítica do espetáculo Por que não vivemos?

Por que não vivemos?, da companhia brasileira de teatro. Foto: Nana Moraes / Divulgação

Josi Lopes e Camila Pitanga. Foto: Nana Moraes / Divulgação

“Por Que Não Vivemos?” é uma baita provocação. Em muitos sentidos. Plena de acendimento. A frase-trecho, e título dado pela companhia brasileira de teatro (grupo sediado em Curitiba e com conexões com o mundo) ao texto de Anton Tchekhov (1860-1904), articula com os desejos de ser/estar/ir além e as armadilhas que nos enredamos na vida. O dramaturgo russo escreveu a história do professor Platonov quando tinha menos de 20 anos. O manuscrito foi descoberto nos arquivos do seu irmão após a morte do escritor e publicado em 1923. Em sua forma original, o manuscrito é um pandemônio sem título, fragmentado, de 300 páginas de um melodrama, geralmente chamado de Platonov.

Com encenação de Marcio Abreu e elenco formado por Camila Pitanga, Cris Larin, Edson Rocha, Josi Lopes, Kauê Persona, Rodrigo Bolzan, Rodrigo Ferrarini e Rodrigo de Odé, Por Que Não Vivemos? faz uma curta temporada no Teatro de Santa Isabel, no Recife, até domingo.

Mergulhar no teatro de Abreu é experiência vigorosa ligada ao imponderável, ao risco, ao abismo. Todas as peças. Com aquecimentos diferentes. Em fluxo contínuo ou com a densidade de um momento que repercute e produz outras dobras no corpo do espectador. Marcio Abreu é uma das vozes mais criativas e lúcidas da arte na atualidade. Um artista incontornável das artes vivas, que leva para a cena a pulsação radical do humano permeado pelo diálogo com o real.

Os discursos subterrâneos, as constelações das dramaturgias, a fluência entre palavras, corpos, imagens, memórias, sons, ações, silêncios. Sua arte me interessa, para fazer alusão à montagem Isso te interessa? (2011), da francesa Noëlle Renaude. Sua arte ressoa em mim e me desperta de outros sentidos, aguça minha sensibilidade. 

Ansiosa por assistir Sem Palavras, que já traça no título um olhar diante das preleções de poderes caducos e nosso torpor horrorizado. Mas também embutido de energia para vibrar em outros acordes.

O elenco é composto por Camila Pitanga, Cris Larin, Edson Rocha, Josi Lopes (na imagem), Kauê Persona, Rodrigo Bolzan, Rodrigo Ferrarini e Rodrigo de Odé (na imagem). Foto: Nana Moraes / Divulgação

A adaptação de Giovana Soar, Nadja Naira e Marcio Abreu (feita a partir de uma tradução original do russo por Pedro Augusto Pinto e de versões francesas) e a encenação acentuam o protagonismo feminino, a inquietação da mulher em buscar mudanças e enfrentar os pré-conceitos.

Por que não vivemos? estreou em julho de 2019 no Rio de Janeiro, passou por Brasília e Belo Horizonte. Em 2020, fez uma temporada curta em São Paulo, interrompida pela pandemia da Covid-9. Foi lá, no Teatro Cacilda Becker, que vi a peça.

A cena inicial da chegada de convidados para a festa na casa da jovem viúva Anna Petrovna (Camila Pitanga) pode ser percebida, agora, como uma celebração da retomada ao teatro presencial; ou a resistência do teatro desde sempre. É uma alegria. Mesmo que lá, como cá, essa gente se ame e se odeie, “os ‘heróis’ tenham morrido de overdose” e haja tanto de vilania e patifaria, de sentimentos mesquinhos e emoções pensadas nobres nas cadeiras do Santa Isabel quanto nesse mundo inundado de gente escorregadia como seres humanos, cheios de segredos e autoilusão. Tchekhov e seus personagens que subvertem o que são e o que poderiam ter sido.

Ambientada numa propriedade rural da jovem viúva Anna Petrovna (Camila Pitanga) a história se desenvolve durante uma grande festa de amigos, ou apenas conhecidos. Mikhail Platonov (Rodrigo de Odé), um ex-idealista que aparece após muitos anos afastado, é o retrato do aristocrata falido, que se tornou professor. Ele desestabiliza o jogo, principalmente pelo reencontro com Sofia, uma paixão de juventude.

“Aqui estamos”, Anna diz a Mikhail. “Como nos velhos tempos, brigando por coisas que não podemos mudar e provavelmente nem mesmo se pudéssemos.”

As situações que envolvem os personagens se repetem. As hipocrisias vêm à tona. Eles mentiram, eles sabem que mentiram, cada um que mente tem consciência de que os outros sabem da trapaça, mas todo mundo está fingindo que a verdade está sendo dita. Os burgueses festejantes e/ou falidos, singulares figuras de Tchekhov. Há uma crise na pré-revolução russa e as personas se posicionam inertes. Nós também estamos num beco sem saída?

Kauê Persona e Camila Pitanga Foto: Nana Moraes / Divulgação

A prática reverbera na cena, em um looping contínuo. Tudo se repete e a vida segue. Mas as aparências não enganam, não, nas ressonâncias contemporâneas do mundo político. É uma selvageria da peça.

A trilha de Felipe Storino, os figurinos de Paulo André e Gilma Oliveira e a cenografia de Marcelo Alvarenga, a luz de Nadja Naiara compõem uma paisagem sonora e imagética repleta de redes nas várias dramaturgias.

A arte produzida nesse contexto de opressões e retrocessos, como o que vivemos atualmente também tem seu poder anunciador das ruínas de algumas estruturas no país que vive uma necropolítica.

Mas reexiste uma ética na estética. A textura do real numa a dramaturgia como campo expandido, que faz ressoar a dimensão pública do teatro e nos traz outras perguntas.

Mas mesmo nesse jogo de aparências tudo foi revelado. As figuras funestas destruíram muito, mas não são invencíveis. Voltamos à pergunta por que não vivemos como deveríamos ter vivido, por que não vivemos aquilo que temos a potencialidade de viver?

Temos alguns faróis. E é hora de colocar a vida em outra perspectiva. De respeito a todos os seres viventes e ao planeta. “Reparar os vivos” Para um devir futuro iluminado.

Camila Pitanga e Rodrigo de Odé. Foto: Nana Moraes / Divulgação 

Por que não vivemos?
Da obra Platonov, de Anton Tchekhov
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Camila Pitanga, Cris Larin, Edson Rocha, Josi Lopes, Kauê Persona, Rodrigo Bolzan, Rodrigo Ferrarini e Rodrigo de Odé
Adaptação: Marcio Abreu, Nadja Naira e Giovana Soar

Serviço

Por que não vivemos?
Quando: De 9 a 12 de dezembro; de quinta-feira a sábado, às 19h, e no domingo, às 18h
Onde: Teatro de Santa Isabel (Praça da República, s/n, bairro de Santo Antônio)
Quanto: R$ 40 e R$ 20 (meia-entrada). Ingressos à venda pelo site Sympla
Informações (81) 3355-3323

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