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A arte do dissenso sem aniquilar o outro
Crítica do espetáculo ragédia e Perspectiva I – O Prazer de Não Estar de Acordo

Tragédia e Perspectiva tem texto do brasileiro Alexandre Dal Farra e direção do argentino Lisandro Rodríguez. Foto: Guto Muniz

Tragédia e Perspectiva. Foto: Guto Muniz

O título ferveu minha cabeça

                                                                 Tragédia
                                                                                      Perspectiva
                                                                                                               Prazer

–Não estar de acordo. Contestar. Ir de encontro.

– Acordo. convénio entre duas ou mais partes ou uma resolução premeditada de uma ou mais pessoas.

– Negocie suas dívidas.

– Dívida? O que o Brasil deve? A quem? Eu devo pagar?

– Não é esse acordo.

– Que acordo?

– Concordar?

– Harmonia; conciliar.

– Sempre soube que seu desejo era de aniquilar.

– É tudo dissenso!

– Eu sabia, de um jeito ou de outro, a vontade é de destruir.

– Enlouqueceu? Estou te ouvindo. Vendo as grandes palavras sair por bocarra…

– Tá vendo? Estão vendo? Ele não me acolhe. Não diz nenhuma palavra Con-creta!

– Mas você disse que estava com expectativa.

– Eu?

– Falou que o título ferveu sua cabeça?

– É… mas depois congelou. Não consigo pens…

– Isso era expectativa.

– Abaixo a expectativa.

– Vamos dar nomes aos bois!

– Nomes aos bois?… isso é de um filme antigo.

– Antigo? O que é antigo? 30 anos é antigo? 35 anos é antigo?

– Você é antigo…

– Eu não tenho nem 40.

– Quantos anos você tem?

– O que eu já vivi, eu os perdi, não os tenho mais.

– Somos amigos?

– Somos amigos.

– E aquele abraço?

– Não quero.

– Por que não?!

– Não estou com vontade.

(É tanta solidão que… o rejeitado dobra-se sobre si. Bateu na quina aquela dor. O fantasma da psicanálise apareceu, de repente, uma convulsão)

– Gritou-se o escândalo.

– Criou-se o trágico.

– Um rio de lágrimas.

– Convulsão.

– Mas se as palavras não dão conta, para o acerto.

– Depois da solidão extremada, vamos resolver no corpo.

– No corpo-a-corpo.

– Testosterona explodindo.

– Ode à capacidade de sustentar a divergência, vivenciar o desacordo sem a necessidade de aniquilar o outro. Isso se sustenta?

– De tudo um pouco.

– Muito pouco.

– Fica um pouco.

– Do seu asco.

– Isso não tem lógica!!!

– Tem Lacan!

– Impotência do Eu.

– Eu grande Eu pequeno.

– Terreno movediço.

– Gozo… mistura de prazer e insatisfação.

A dramaturgia do espetáculo Tragédia e Perspectiva I – O Prazer de Não Estar de Acordo  me inspirou a escrever esses diálogos cruzados, pensamentos suspensos de um possível encontro. Esse texto meu vai na cola do que percebi do texto do Dal Farra e da encenação do argentino Lisandro Rodríguez.

Aldo Bueno, uma presença forte na peça. Foto; Guto Muniz / Divulgação

Rafael Sousa Silva, Pedro Guilherme (em pé), Aldo Bueno, Flow kountouriotis e Rodrigo Bianchini.  Foto: Guto Muniz

A célula da escola é bem contundente. Foto; Guto Muniz / Divulgação

O espetáculo Tragédia e Perspectiva I – O Prazer de Não Estar de Acordo junta cinco atores. É uma produção da MITsp, com texto do brasileiro Alexandre Dal Farra e direção do argentino Lisandro Rodríguez. O processo criativo ocorreu, em parte, de forma remota durante a pandemia. Dal Farra já disse que a peça está/estava sendo um work in progress. Parece que continua.

Não é evidente o propósito ou o lugar, e qual a relação entre as cinco pessoas, que surgem uma a uma enquanto o diretor toca ao violão uma canção enigmática (quero mesmo dizer enigmática? Ou ambígua?).

O primeiro que chega, Pedro Guilherme, parece que tem um delay na fala e na ação. E isso cria um efeito estranho. Um efeito. Rafael Sousa Silva, o mais magro – que adiante vai pedir um abraço – é o segundo a aparecer. Rodrigo Bianchini, o terceiro. Flow kountouriotis, artista trans masculino, é o quarto. Mas também não tenho certeza dessa ordem.

O quinto é Aldo Bueno, que carrega no corpo tantos zumbis, tantos malandros. Parece que está prestes a dizer “pode ser a gota d’agua”, mas adia. Aldo anda mais lento, tem mais histórias e fala menos. Cria um foco solar em torno de si com o seu quase zombeteiro “não sei”. E por fim canta.  

Dal Farra tenta tirar o discurso direto da polarização e suspende o teor virulento do campo da política dura nas questões das discordâncias. Mas o assunto está lá. É difícil começar, pois a conversa anda em círculos de supostas banalidades – uma garrafa d’água, se é ou não é cerveja.

Ideias são jogadas na roda enquanto os atores trabalham com a propositalmente irritante função de enrolar e desenrolar um pano que será colocado em algum momento numa posição plano infinito.

É difícil expor as engrenagens da faceta totalitária, fugindo dos clichês dos coturnos. Tudo é mais sutil nessa Tragédia e Perspectiva I. Um gesto, uma palavra e o clima muda, as portas fecham, os sentimentos viram.

O recorte é de um microcosmo, um grupo de homens supostamente amigos que fazem um exercício de linguagem. Nesse percurso a linguagem pode ser um bloco monolítico com difíceis passagens ou o voar de uma pluma. Falando sobre (*o quê?), a peça projeta quadros voláteis das variações de atitudes a partir das argumentações. Uma coreografia que se quebra, formando outros desenhos, e outros, e outros, extraindo segregação e consenso.

Ao pôr em cena os atritos, o trabalho levanta que a diferença precisa desses espaços de discórdia para existir, para não sucumbir, não aniquilar o outro, seu próximo.

A célula da escola é dinâmica, cruel, cáustica para projetar tempos de Brasis com tudo que tem de doente dos exploradores da bíblia, dos usuários da bala e do agrogenocidas. Em palavras e gestos, eles fermentam uma atmosfera risível, mas de perspectiva (ou realidade) trágica.

É possível viver em desacordo sem extinguir o outro? Parece que a peça quer sustentar essa possibilidade. Como quero apostar na ampliação dessa vontade. A montagem busca defender esse espaço no meio da guerra.

 

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