Arquivo da tag: Marcos Júnior

Difícil realidade brasileira
Crítica de Contos em Dor Maior

Totonha, com Karla Pimentel, um dos quadros de Contos em Dor Maior, da Escola de Teatro Fiandeiros . Foto: fotojanela

Timidez ou solidão, egoísmo, medo do futuro ou fantasmas do passado. Teatro serve para tudo. Para quem quer ser artista ou para quem vai abraçar outra carreira, estudar teatro é um bom passo, seja qual o for o caminho a seguir. É um treinamento muito especial do que há de mais humano em nós.

A Escola de Teatro Fiandeiros, do Recife, é tocada por artistas-pesquisadores vocacionados. Os diretores André Filho e Daniela Travassos estão nessa labuta há mais de uma década, tecendo aprendizado /experimentação dos alunos-atores com cuidado e delicadeza.

No ano passado, devido à pandemia do Coronavírus, as aulas ocorreram de forma virtual. O trabalho de conclusão da Turma de Iniciação Teatral, nível 1, da Escola de Teatro Fiandeiros, ministrada pela professora Daniela Travassos, rendeu o espetáculo Contos em Dor Maior. Trata-se de uma composição dos contos do escritor Marcelino Freire, em monólogos sequenciados, de temática variada.

Os aprendizes dão os primeiros passos. E que bom que seja com Marcelino Freire, que carrega uma prosa poética, com muitas castas de reflexões. A gravação da peça foi exibida na programação do Janeiro de Grandes Espetáculos deste ano. 

A obra de Marcelino Freire aparenta ser fácil de levar à cena. Por uma teatralidade que pulsa na composição dos textos. Pelo tom coloquial. Mas ela exige uma dedicação maior ao se apropriar das feridas sociais e imprimir algum sentido no palco. Há complexidade ao tratar de opressão em vários campos: sexualidade, racismo, discriminação, machismo, patriarcado, militância, experiências e perspectivas sobre si e o outro. E mesmo que pareça colar em algum clichê, traça um deslocamento para provocar uma fissura profunda, um pequeno abalo sísmico, que infla a potência da fala, do corpo, do pensamento.  

As rimas dentro da prosa de Marcelino Freire se mostram um desafio. Em alguns casos de Contos em Dor Maior há uma dificuldade de se apropriar do universo da cena, as ações psicofísicas clamam por um treinamento exaustivo do ator. E a articulação das palavras precisam ser saboreadas, mastigadas, introjetadas.

A linguagem contemporânea de Freire aponta a complexidade da vida destes tempos, com os dramas do cotidiano, os protestos, o acordar para uma consciência crítica nas contradições. A tensão da linguagem no espaço de opressão social nos mostra coisas muito mais diretas que as teorias.

Quando Marcelino Freire investe, por exemplo, nos traumas de personagens homossexuais / bissexuais / transexuais não é para salientar os estereótipos, usados como entretenimento raso nos programas televisivos humorísticos. Mas para falar da humanidade daquela personagem e de quem a julga. Ou quando o autor salienta os efeitos do passado colonial e escravocrata refletidos no discurso das figuras, ele expõe as frustrações movidas pela discriminação contra as pessoas negras, pobres, periféricas. É preciso sutileza nessas falas diretas.

Nação Zumbi, com o ator Ariel Sobral. Foto Divulgação

Ao todo, 14 cenas formam Contos em Dor Maior. Seis de Contos Negreiros (2005): Nação Zumbi, Vanicléia, Totonha, Polícia e Ladrão, Curso Superior e Coração. Uma de Angu de Sangue (2002): Moça de Família. Três de Amar é Crime (2011): Vestido Longo, Ir Embora e Irmãos. Quatro de Rassif – Mar que arrebenta (2006): O Amigo do Rei, Maracabul, Roupa Suja e Ponto.Com.Ponto.

Começa com o conto Nação Zumbi, com o ator Ariel Sobral. Nele, um homem preto e pobre acertou vender um rim. Como o tráfico de órgãos no país é ilegal, algo dá errado e a operação não se realiza. A personagem problematiza a miséria, a fome, a falta de oportunidades, a saúde pública no Brasil, e os limites de pertencimento do próprio corpo. “E o rim não é meu? Logo eu que ia ganhar dez mil, ia ganhar.”, pergunta. “Se fosse para livrar minha barriga da miséria até cego eu ficaria”. A caracterização (roupas rasgadas e sujas, e um saco de tecido às costas) sugere o papel de um mendigo ou morador de rua. A pensar! O intérprete faz modulações interessantes do episódio que vai render ao personagem muita pancada nos rins.

“Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso”, se posiciona Totonha, personagem do conto homônimo. E desafia a mocinha que tenta convencê-la a ser alfabetizada. “O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-linguiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá me entendendo?”. Karla Pimentel valoriza a revolta, ironia e reflexões da personagem no quadro bem composto.

Silvia Raquel corporifica a funcionária da lavanderia que arma plano mirabolante para conquistar um cliente em Roupa suja. Ela imprime sensualidade ao relato dessa aventura amorosa e preenche com graça suas reticências. “Maria, nem sei por onde começar. A contar. A minha história de amor. Quando ele, Meu Deus, entrou na lavanderia. Parecia propaganda de sabão. Tudo à minha volta ficou limpo, límpido, esse mundo cão.”

Ponto.Com.Ponto segue a epígrafe e toca um trecho da música Carinhoso de Pixinguinha e João de Barro. Anúncio de um encontro amoroso no parque. O quadro, com Yuri Campelo expõe a expectativa de um jovem apaixonado. O ator traz uma leveza cativante, traduzida em gestos infantilizados. E deixa entrever os ardis de sentidos proposto pelo texto.

Um pai, fissurado em futebol, fica intrigado porque o filho não tem habilidade com a bola. E gosta de poesia. Em Amigo do Rei, Gerson Alves consegue extrair humor da ignorância do personagem que deduz que o filho está apaixonado por um tal de Manuel Bandeira, que ele não sabe se mora nas vizinhanças.

O machismo da sociedade brasileira atravessa todas as classes, com suas armações de superioridade/ inferiorização. A mulher da cena Vanicléia é pobre e negra, casada com um marido agressor. Sem perspectiva de vida, ela sonha para sua filha uma vida que já teve, como prostituta e o tratamento “mais humano” dos estrangeiros em rota de turismo sexual no Brasil. Bárbara Lavínia passeia por lembranças e indignações da personagem.

Há uma musicalidade na cena Ir embora, com Paloma Aires. Há extratos de beleza sobre despedida, sobre dúvidas da mudança da Chapada das Mangabeiras para uma cidade mais “desenvolvida”.

O espetáculo Contos em Dor Maior distingue potencialidades dos alunos, alguns com mais desenvoltura no trabalho. E o cuidado da diretora Daniela Travassos ao respeitar as circunstâncias de cada um deles. Que sigam, que o teatro faz bem.

Ficha Técnica
Contos em Dor Maior
Direção: Daniela Travassos.
Dramaturgia: Marcelino Freire.
Iluminação: Charly Jadson.
Elenco: Ana Gouveia, Ariel Sobral, Bárbara Lavínia, Edu Leandro, Gerson Alves, Karla Pimentel, Marcos Júnior, Matheus Travassos, Melquizedeque Lagos, Paloma Aires, Rafael Neves, Silvia Raquel, Tony Macedo, Yuri Campelo.

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,