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Quando a chapa esquenta, a educação some

Deborah Evelyn, Paulo Betti e Júlia Lemmertz em espetáculo imperdível

Assisti ao espetáculo Le dieu du carnage (Deus da Carnificina) há uns três anos, no Teatro Antoine, em Paris, com elenco formado por Isabelle Huppert, Andre Marcon, Valerie Bonneeton e Eric Elmosnino. Fiquei impressionada, apesar de ter perdido muito coisa dessa luta verbal do texto em francês. Mas tanto lá como cá, o público apalude quando Annete joga o celular do marido dentro do jarro de flores com água. Ninguém aguentava mais o telefone dele tocando de dois em dois minutos. Isso deve ter ocorrido em outros lugares em que a peça de Yasmina Reza foi montada.

A encenação brasileira de Deus da carnificina, com Júlia Lemmertz, Paulo Betti, Deborah Evelyn e Orã Figueiredo, que foi exibida ontem e tem mais uma sessão hoje é imperdível, no Teatro da da UFPE.

O enredo é parte aparentemente de um caso banal. A briga de dois colegas de escola. O filho de Annette e Alan Reis (Julia Lemmertz e Paulo Betti) bateu com um pedaço de pau no filho de Verônica e Michel Hortiz (vividos por Déborah Evelyn e Orã Figueiredo) e quebrou dois dentes do garoto. Por isso, esses dois casais que não se conhecem vão ter um encontro em princípio amistoso. Mas o embate vai minando a civilidade e deixa desabrochar o lado infantil e a brutalidade do quarteto.

Os diálogos brilhantes da autora vão desvelando as camadas das máscaras e o veniz social vai se deteriorando até chegar ao ponto da selvageria entre os dois casais. Mas ao cairem as máscaras, maridos e mulheres também brigam entre si e expõem o lado mais podre de seus parceiros.

O embate causa desconforto, incomoda pela sua virulência, mas também por reconhecermos naquele ringue um pouco de nós mesmo, tão pouco humanos nessa faceta animalesca. A peça enfoca o limite da intolerância no mundo contemporâneo.

A civilidade vai pras cucuias. E o público ri muitas vezes dessas situações aparentemente absurdas. O texto tem sarcasmo, ironia e um humor cruel.

Deborah Evelyn e Orã Figueiredo em cena de Deus da carnificina

Alan Reis (Paulo Betti) é um advogado que, de dois em dois minutos, atende uma ligação para tratar de negócios. Entre os seus clientes tem uma empresa farmacêutica que é acusada de lançar um remédio sem testar todos os seus efeitos colaterias, deixando claro que para garantir seus altos honorários ele é capaz de se posicionar contrário à saúde pública, para defender essa indústria. Annette (Julia Lemmertz) tenta ser a mediadora do embate, mas está engasgada com muita coisa, que termina vomitando, literalmente, em cena.

Michel Hortiz (Orã Figueiredo) é um vendedor de quinquilharias, como panelas e descargas de privada. Dos quatro é o que tem menos ambições intelectuais. Sua mulher Verônica (Déborah Evelyn) é uma escritora, amante dos livros de arte e pesquisadora de um massacre ocorrido na África e se preocupa com causas sociais.

Cada casal esconde suas frustrações no casamento e percebemos que há diferenças éticas e estéticas entre eles.

A principal peça do cenário de Flávio Graff é uma mesa feita com 160 mil peças de encaixe, tipo Lego. Além dela, algumas cadeiras, vasos com lírios, e muitos livros sobre a mesa, perto do telefone. A luz de Renato Machado é bem linear durante o espetáculo e utilizou pequenas lâmpadas dicróicas penduradas.

A direção criativa de Emílio de Mello salienta os defeitos de cada uma dessas pessoas e mantém a tensão sempre em alta, o que gera faíscas emocionais. E explora com mão de mestre as mudanças de clima e as facetas que se revelam da personalidade de cada figura. É primorosa a direção.

O elenco afinado extrai as características risíveis dos seus personagens. Atuações maravilhosas. Sutilezas entre silêncios de Júlia Lemmertz, a barbárie revelada no cotidiano por uma diferença de conceitos, defendido por Déborah Evelyn. As duas atrizes estão espetaculares.

Nossa querida Tatiana Meira disse que o final poderia ser menos pessimista. Mas o mundo é cruel, Taty.

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A primeira Helena

Lilian Lemmertz na década de 1960 atuando em A bilha quebrada

No último domingo, fez 25 anos que o teatro, a televisão e o cinema perderam Lilian Lemmertz. Quem nos lembrou da data foi Cleodon Coelho, que escreveu a biografia da atriz: Lilian Lemmertz – Sem rede de proteção, publicada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Hoje vi algumas imagens da atriz numa reportagem do Vídeo show e senti muito não ter visto Lilian nos palcos. Fui então resgatar a matéria que escrevi quando Cleodon esteve aqui no Recife para lançar o livro, em outubro do ano passado. É a nossa forma de homenagear a atriz.

“Na década de 1950, modelo era manequim. Essa foi a primeira atividade profissional da gaúcha alta, de beleza clássica, que usava tênis americano pelas ruas de Porto Alegre. Nessa época, Lilian Lemmertz era uma das musas de Rui Spohr, costureiro famoso no Rio Grande do Sul, que começou a vida profissional desenhando chapéus. Lilian tinha características fundamentais para uma manequim de chapéus: era magra, feminina, suave e dona de um nariz perfeito, lembra o próprio Spohr. Ao mesmo tempo, fazia inglês com Antônio Abujamra. Foi ele quem a convidou para participar da peça À margem da vida, que seria realizada pelo Teatro Universitário da União Estadual dos Estudantes. Não aceitou. Ela fazia balé, mas nunca tinha pensado em ser atriz. Em casa, comentou a mãe, que achou uma ótima ideia.

Assim, meio por acaso e muito por insistência da mãe, mas entregando-se com fervor a tudo que se propunha fazer, Lilian Lemmertz, tornou-se atriz. A trajetória da gaúcha, encerrada prematuramente aos 48 anos por conta de um enfarte, foi contada no livro Lilian Lemmertz – Sem rede de proteção (R$ 30) escrito pelo pernambucano Cleodon Coelho. O lançamento será hoje, às 18h, na Livraria Cultura, no Bairro do Recife.

“Recebi o convite por e-mail e aceitei imediatamente. Não vi a Lilian no palco, mas lembro da novela Baila comigo, na época em que os folhetins tinham 80% de audiência, e também no cinema”, conta o autor, que é jornalista e roteirista do Faustão. O livro integra a coleção Aplauso, publicada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Um dos diferenciais, no entanto, é que a narrativa aqui não é escrita em primeira pessoa, como normalmente é feito. “Foi um desafio contar a história de uma pessoa que já não está aqui”, revela Coelho. Para isso, ele contou com a ajuda filha de Lilian, a também atriz Júlia Lemmertz, e dos inúmeros artistas que conviveram com a gaúcha. No lançamento do livro no Rio de Janeiro na última quarta-feira, estiveram na Livraria da Travessa, no Leblon, nomes como Paulo Betti, Tony Ramos, Renata Sorrah, Laura Cardoso, Marieta Severo, Marcos Paulo e o escritor Manoel Carlos.

Em Quem tem medo de Virginia Woolf, Lilian contracenava com Cacilda Becker e Walmor Chagas

Foi de Maneco, aliás, a primeira novela de grande repercussão protagonizada pela atriz. Lilian Lemmertz foi a primeira Helena de Manoel Carlos. Em Baila comigo, no início dos anos 1980, Lilian fez par romântico com Fernando Torres e era mãe de Tony Ramos, que fazia gêmeos. “O drama da novela é porque ela tinha criado os gêmeos separados. Um deles ela tinha dado ao pai, interpretado por Raul Cortez”, explica o autor do livro. Lilian, no entanto, tinha começado a carreira na televisão anos antes, em 1968, na extinta TV Excelsior. E depois de Baila Comigo, o sucesso nacional, foram quatro anos intensos até o seu falecimento. Fez, por exemplo, Final feliz, Partido alto, teve uma participação especial em Roque Santeiro.

Atriz de teatro – Hermilo Borba Filho dirigiu a atriz e o seu marido, o também ator Linneu Dias, na montagem de estreia da gaúcha em São Paulo: Onde canta o sabiá. Lilian e o marido vieram para a capital paulista, com a filhinha ainda bebê, a convite de Cacilda Becker. “Foi uma loucura. Na medida em que a leitura da peça avançava, eu ia descobrindo que, simplesmente, estava com o papel principal, Nair. O pior é que Hermilo parava a leitura de vez em quando e dizia aqui você canta o Jura, aqui você canta o Taí. Mais adiante interrompia de novo: aqui você dança o charleston, aqui é o tango. Mal consegui terminar a leitura. Estava estatelada”, diz o depoimento da atriz registrado no livro.

Além do teatro, Lilian também fez cinema. “Logo no início, Walter Hugo Khouri a chamou para fazer Noite vazia, mas como era para o papel principal, ela não aceitou. Depois disso, aceitou um papel secundário no filme O corpo ardente e fez mais oito filmes do Khouri.

Antes de morrer, Lilian estava ensaiando a peça Ação entre amigos, de Paulo Betti. A filha Júlia tinha tentado falar com a mãe durante o dia todo e não havia conseguido. Encontrou-a na banheira de casa, já morta. Era 5 de junho de 1986 e oBrasil vivia a euforia da Copa do México. “Tanto que a notícia da morte dela não teve a comoção que seria normal”, avalia Coelho. Quando Lilian morreu, a filha já era atriz. Estava encenando O que o mordomo viu, mesmo papel vivido pela mãe em 1971, sob o título de Quanto mais louco melhor. Hoje, a neta de Lilian, Luiza, já é atriz. Veio ao Recife com a trupe de Zé Celso Martinez Côrrea. O talento descoberto ao acaso tornou-se hereditário.”

Lilian e Eva Wilma em Esperando Godot, de 1977

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