Arquivo da tag: Janeiro de Grandes Espetáculos

Supremacia do desejo sexual em xeque

Foto: Ivana Moura

Inspirado na novela O Animal agonizante, de Philiph Roth, o espetáculo homônimo dirigido pelo gaúcho Luciano Alabarse (o diretor do festival Porto Alegre em Cena), com Luiz Paulo Vasconcelos no papel principal, fala sobre sexo de forma despudorada e mira a hipocrisia da sociedade. Os relatos do intelectual de 62 anos (e depois aos 70), que usa toda sua erudição para conquistar jovenzinhas, na maioria suas ex-alunas são engraçados e beiram a vulgaridade. Mistura sedutora e excitante. A peça foi apresentada ontem e está em cartaz hoje no Teatro Apolo, às 19h. O livro de Roth já foi transformado em filme – Fatal (Elegy), com direção de Isabel Coixet e elenco encabeçado por Ben Kingsley e Penélope Cruz. No programa da peça, Alabarse conta que Roth “detestou a adaptação cinematográfica”.

Voltemos à peça. O cenário é a casa desse professor que circula entre a sala, a biblioteca e o quarto para narrar suas aventuras, sem medo de nominar os lugares do corpo. O discurso de David Kepesh é machista, mas com argumentação brilhante e cheia de humor. O público é atraído pelas experiências sexuais desse homem honesto ao fazer um balanço de sua trajetória, que remete aos anos 1960 da revolução sexual e dos hormônios em explosão.

David Kepesh não tem o menor pudor de usar o seu conhecimento para levar suas ex-alunas para a cama. E conta em minúcias sua atuação e o desempenho de suas “presas”. E tudo segue nesse clima erótico, com piadas inteligentes até metade do espetáculo, quando o clima muda. Depois de fazer digressões sobre casamento e criticar os gays que buscam reproduzir esse tipo de relação de papel passado, o protagonista ganha outro peso e outra dimensão.

Foto: Ivana Moura

Está diante da finitude da vida. Melhor, chega-lhe uma consciência de mortalidade depois do enfarto do seu melhor amigo. Antes disso, “o ciúme lançou sua flecha preta/ e acertou no meio exato da garganta” por Consuelo Castillo, uma de suas amantes, filha de imigrantes cubanos (ricos). Depois de meses de relacionamento, o professor se apaixona pela aluna, contrariando uma regra básica desse macho devorador, de nunca se comprometer emocionalmente. Mas Consuelo, a garota de seios perfeitos e pelos pubianos lisos, nocauteia o professor.

Sua tese da supremacia do desejo sexual é abalada com a notícia da doença de Consuelo, que contrai um câncer de mama e precisa retirar um dos seios e a decadência física anunciada no próprio corpo de Kepesh.

O Animal agonizante é um teatro da palavra em que o discurso erótico contracena com o teor cáustico da preleção. A montagem privilegia isso e a intepretação do ator, pelo menos do protagonista. Os outros dois personagens, Consuelo Castillo (interpretada por Luciana Éboli) e o filho Kenny (Thales de Oliveira), em alguns momentos são dispensáveis no palco. Enquanto Luiz Paulo Vasconcelos apresenta todas as nuances do personagem, os outros dois atores parecem não acrescentar grandes valores com suas presenças.

O diretor Alabarse, que também assina a cenografia, utiliza uma trilha sonora (de Moysés Lopes) que conduz o espectador por um território de reflexão sobre o percurso patético do ser humano e do seu melancólico fado. Com Roth, Alabarse sabe que não há espaço para final feliz ou mensagens edificantes.

Postado com as tags: , , , , , ,

Na casa dos 70

Foto: Ivana Moura

Um homem vaidoso que se vê perdendo o controle. Que tinha quase uma receita de bolo de como satisfazer os seus desejos, mas não previa armadilhas. Nem aquelas a que ele mesmo estava susceptível, como os seus sentimentos; nem aquelas relativas ao tempo, o relógio que não para um segundo sequer, independente de quem seja você; nem às que dizem respeito apenas ao acaso.

David Kepesh (Luiz Paulo Vasconcellos) era professor universitário, solicitado para dar opiniões sobre artes e cultura. E a intelectualidade era a isca para manter a sua virilidade. Ao término do seu curso de Crítica Prática, os alunos (na verdade, a maioria mulheres) eram convidados para uma festa no apartamento do professor. E lá ele seduzia a garota liberada sexualmente, desejosa de experimentar o sexo com um homem mais velho; e que, obviamente, ele tinha analisado durante todo o período letivo.

É esse o personagem do espetáculo O animal agonizante, baseado na novela homônima de Philiph Roth, apresentado nesta segunda-feira (24), no Janeiro de Grandes Espetáculos. A direção é assinada por Luciano Alabarse. A montagem se passa com o personagem principal contando um caso amoroso que manteve com uma de suas alunas. Só que ele se apaixonou por ela, foi fisgado pelo ciúme, pela insegurança e pelo medo.

Quando conheceu Consuela Castillo (Luciana Éboli), o professor tinha 62 anos. A aluna, 24 anos. Mantiveram uma relação por um ano e meio, mas a história chega aos 70 anos do protagonista. O texto traz à tona questões centrais, mas suscita ainda várias fagulhas. Desde a violência que pode circundar uma relação amorosa, a relação entre pais e filhos, o egoísmo e, principalmente, a velhice. Não dá para saber o que é fazer 70 anos até que esse momento chegue e que peso isso pode representar tanto física quanto emocionalmente… Mas o controle das situações… esse não o temos. Seja aos 24, seja aos 70.

Na sala do seu apartamento, o professor desfia suas memórias. A aluna e o filho de David (Thales de Oliveira) compõem algumas cenas, mas são figuração. Estão ali muito mais por uma escolha pragmática da direção do que por necessidade do enredo ou da montagem em si. Estão restritos a desfilarem pelo cenário, a trechos de diálogos ou, no máximo, a dar vida a uma carta repleta de mágoa (e, nesse momento, talvez só a leitura da carta pudesse transpor o público àquele universo, sem os arroubos de emoção que chegam a soar falsos).

Já o protagonista da história faz uma atuação marcante, segura e com nuances que comovem o público. Fui de um extremo ao outro: senti asco por aquele velho nojento, mas terminei por me render à piedade. É nesse caminho de esfacelamento do personagem (e depois rendição à humanidade) que a montagem se faz tão bem sucedida. Cenário, figurino, música e iluminação ajudam a compor a cena, mas não teriam surtido efeito se não tivessem sido construído a partir da escolha por um excelente texto, um ótimo ator e o olhar de um diretor sensível.

Postado com as tags: , , , , , ,

Fraca montagem de O santo e a porca

Foto: Ivana Moura

O Santo e a Porca é uma das mais deliciosas comédias brasileiras, que ataca um dos pecados capitais, a avareza. Todo mundo é um pouquinho avarento, mas Euricão – “Engole Cobra” ou Eurico Árabe, o protagonista, passou de todos os limites e suas atitudes provocam o riso da plateia. A peça escrita por Ariano Suassuna em 1957 tem todas as qualidades de uma boa comédia, com uma trama com reviravoltas, tipos engraçados e questão de fundo filosófico da rivalidade do mundo material e espiritual. E apesar da quantidade de personagens e dos seus três atos, encontramos de vez em quando uma montagem num festival pelo país afora. No Janeiro de Grandes Espetáculos o Teatro Popular de Arte – TPA, de Petrolina, apresentou sua versão no Teatro Barreto Júnior, no último sábado (22).

A comédia de Ariano Suassuna é um clássico da dramaturgia brasileira e põe em confronto elementos do sagrado e do profano. O texto é inspirado na obra do escritor latino Plauto, composta antes do nascimento de Cristo, chamada Aululária. O nosso Suassuna traz o conflito para solo nordestino, e usa referências da literatura de cordel. Na peça, o velho sovina e ranzinza guarda, mas não desfruta de sua riqueza. E todos ao seu redor têm que amargar do mau-humor, das esquisitices e da economia que Euricão faz em casa, chegando ao cúmulo de só bancar uma refeição por dia para a família e agregados. Enquanto ele reza para Santo Antônio, sem acender uma vela para não gastar um tostão, pede proteção para sua porca, onde guarda o dinheiro.

Coroba, a empregada com cara de tonta, tem certo parentesco com Chicó, o amarelinho do Auto da Compadecida. Ela também usa da esperteza para tentar resgatar o dinheiro não pago durante anos pela exploração do patrão. O avarento tem uma filha Margarida. Ela será disputada por pai e filho (sem que um saiba da intenção do outro). Benona é a irmã solteirona de Euricão, que foi noiva de Eudoro, que por sua vez quer casar com Margarida. Dodó é filho de Eudoro e o “dono” do coração de Margarida. Pinhão é noivo de Coroba e tão esperto quanto ela, mas o povo só vai saber disso no final da peça.

 A montagem de Petrolina, apesar de não atropelar o texto, carrega nas tintas. A iluminação é chapada, com predominância do amarelão no primeiro ato, o que dá um efeito muito estranho às figuras. As perucas dos atores que interpretam Euricão e Benona são simplesmente ridículas. O figurino é pobre. O cenário interage pouco com as cenas. Mas o maior problema é o elenco e inadequação de alguns atores aos personagens. Eudoro e Dodó, interpretados respectivamente por Godoberto Reis e Severo Filho não têm peso para as personagens. O menino Dodó, com a boca troncha e sua corcunda não convence nem um pouco. Já o pai desse também faz uma performance ruim. No conjunto, o elenco é fraco. A atriz que interpreta Coroba, Francine Monteiro, soube tirar proveito de seu personagem, tem vivacidade. Domingos Soares, que faz o avarento Euricão, se prende ao clichê fácil. A direção também é de Domingos Soares e infelizmente não traz algo de intepretação particular desse grande texto.

Foto: Ivana Moura

Era a primeira vez que o grupo fazia uma apresentação no Recife. E eles estavam emocionados com isso. O público aplaudiu entusiasmado, e riu durante boa parte da apresentação, (inclusive eu) com sinceridade, mas é porque o texto é muito bom. Sabemos das dificuldades de fazer teatro em qualquer lugar do mundo. No interior talvez isso seja mais complicado. Mas às vezes para crescer é preciso ter os pés no chão e ter consciência das limitações. O grupo já tem mais de 20 anos de atividade e isso merece todo o nosso respeito. Mas o teatro exige, além da paixão demonstrada pelo grupo, disciplina, estudo, condicionamento.

E, além disso, mesmo que muitos grupos que montam O Santo e a porca não percebam, esse texto tem uma sofisticação interna na construção de seus tipos, nas significâncias que não podem ser resolvidas com macaqueamento das figuras. Isso pode provocar o riso, mas diz pouco.

Postado com as tags: , , ,

Cuestión de principios é para aplaudir de pé

Foto: Ivana Moura

Um belo texto. Dois ótimos atores. Uma direção segura. Um espetáculo para se aplaudir de pé. Cuestión de principios, montagem uruguaia da peça do argentino Roberto Cossa, com direção de Patrícia Yossi; Laura Sánchez e Walter Reyno no elenco, propõe uma reflexão sobre a crise da utopia socialista. A encenação do Montevideo Teatro, do Uruguai, foi exibida ontem e ainda poderá ser vista neste domingo (23), às 19h, no Teatro Hermilo Borba Filho (Bairro do Recife), dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Depois de muito tempo sem se verem, pai e filha estão frente a frente. Ele é um sindicalista de longa militância política, que dedicou a vida para a construção de um novo mundo, sob sua ótica, mais justo. Ela é uma escritora e jornalista bem-sucedida. Ele já tem uns 70 anos e anda com roupas desalinhadas. Ela é elegante. Quando o pai resolve escrever suas memórias, convoca a filha para compor o livro. Com visões de mundo bem distintas, instala-se o confronto, em que ideais e ética estão na berlinda.

O pai comunista é um pouco sectário, mas honesto. Sua filha o questiona, e diz que ele se equivocou. Também estão em jogo os afetos, não só a política. Talvez, sobretudo, os afetos. Já que, como diz o protagonista, que acreditava que, mudando a economia, transformaria o homem. Mas o ser humano não é apenas economia, é também religião e outros fatores.

Um encontro “borrado pelos afetos”. O ex-militante dos Obreiros – um importante movimento esquerdista que lutava contra a ditadura, contra o imperialismo norte-americano e contra o colonialismo – se depara na figura de sua própria filha com tudo contra o qual lutou. Ela está a “serviço” do capitalismo, pertence ao mainstream, é representante da classe média burguesa. E chega ao cúmulo de confessar que sua primeira experiência sexual foi com um homem norte-americano, para se vingar do pai. Não poderia haver castigo pior para ele.

Foto: Ivana Moura

A peça está estruturada em idas e vindas da filha. Primeiro, ela não quer editar o livro do pai. Depois volta atrás e diz que aquilo é uma questão de negócios e assinam um contrato. E nesses confrontos, as verdades de cada um são reveladas. E destoam. As lembranças do velho são questionadas pela jovem. As cenas são rápidas, e nos diálogos sob o pretexto de se falar de política, de ética, eles discordam dos fatos reais. Até chegar à questão familiar. Principal para ela, que teve um pai adorado e ausente.

Os dois personagens atuam em campos opostos para defender suas argumentações. E elas são fortes. A composição de cada figura é encantadora. Ela é firme, decidida, mais pragmática, revela o outro lado. O gestual dele traz a carga emocional de um homem que sonhou com um mundo diferente e é obrigado a rever sua história. E o diálogo é cheio de humor, de nuances, de delicadeza. O livro será publicado ou não? Bem, isso talvez não importe tanto assim.

Postado com as tags: , , , , , ,

As feridas abertas da migração

Foto: Ivana Moura

Era tão difícil compreender o que ela dizia! Na realidade, eu a admirava muito. Como alguém, sem saber o idioma do país de destino, tem a coragem de se aventurar? Depois de um tempo de convivência, percebi que era a necessidade que convertia o medo em ação. Estávamos numa cidadezinha no fim do mundo, mais precisamente nos Estados Unidos, no meio de uma neve gigante. Mas era um lugar turístico, de muitos resorts e ofertas de emprego que pagavam em dólar. Ela estava só com o marido. Tinha deixado os três filhos no México com a mãe. Àquela época, em 2007, já não os via há quatro anos. A saudade machucava e o sonho era o reencontro.

Revivi todas essas memórias com a montagem No vayas a llorar, da companhia Teatro Viento de Água, de Cuba, que se apresentou no 17º Janeiro de Grandes Espetáculos. São duas histórias andando em paralelo no monólogo: a de uma mãe que sai de Havana para o México e está ansiosa pela autorização para que o filho a acompanhe; e a de Antonia, abandonada por Juan, o marido que, depois de 11 anos de casamento, decidiu buscar uma vida melhor noutro país. No primeiro caso, ficção e realidade mantêm uma relação estreita. A atriz Maribel Barrios, que inclusive é chamada pelo próprio nome numa parte da encenação, sofreu para recuperar o filho há 10 anos. A criança tinha quatro anos e ficou na ilha com uma tia.

Ainda estou me questionando como essa montagem terá sido recebida em Cuba. Sim, porque ela é direta, provocativa, sarcástica até. Relembra, por exemplo, principalmente em imagens, o ano de 1994, quando Clinton interveio para tentar evitar um êxodo maciço de cubanos. Também lembra 1966, a Guerra do Vietnã e os seus bombardeios.

Nesse cenário de desolação, de abandono, saudade e frustração, é interessante pensar como Boris Villar arquitetou o seu texto e a direção. A plateia é levada à realidade dos personagens ou pelas fotografias projetadas num lençol que parece uma colcha de retalhos ou pela ‘balsa’ de madeira que Antonia usa para navegar à procura – desesperada – pelo marido, encontrando muitos mortos pelo caminho. As músicas dão o contraponto ou acentuam situações. Lembram a religiosidade, as manifestações culturais, e podem ser evidentemente tristes ou não.

Foto: Ivana Moura

Na construção do texto, os personagens se sucedem, mas nada que indique uma previsibilidade. Ao contrário. E isso da mesma forma que ajuda a dar agilidade à peça, pode dificultar a compreensão, já que a atriz encena vários personagens na sua busca pelo companheiro.

E a peça nos dá a sensação de que essa situação de fuga de uma realidade continua a mesma. Ou de que essa dor ainda não sarou e, por isso, precisamos ouvir falar dela. Gritar, cantar, nos sujar com o sangue até de quem não está mais aqui. Fiquei com vontade de conhecer mais do teatro cubano. Algo que fugisse à idéia do exílio.

Ah, não sei como terminou a história da minha amiga mexicana. Se ela reencontrou os filhos, se demorou ou não para isso acontecer. Espero que ela os tenha pertinho agora.

Postado com as tags: , , ,