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Abertura do JGE: Livro no primeiro ato

Cleodon Coelho e o biografado José Pimentel. Foto Pedro Portugal

Cleodon Coelho e o biografado José Pimentel. Foto Pedro Portugal / Divulgação

Hermila Guedes e José Pimentel. Foto Pedro Portugal

José Pimentel e a atriz Hermila Guedes. Foto Pedro Portugal

Escritora e jornalista Crla Denise, encenador Marcondes Lima e Cleodon Coelho. Foto Pedro Portugal

Escritora e jornalista Carla Denise, encenador Marcondes Lima e Cleodon Coelho. Foto Pedro Portugal 

A abertura do 24º Janeiro de Grandes Espetáculos – Festival Internacional de Artes Cênicas e Música de Pernambuco, na noite da quarta-feira (10/01), pode ser dividida em atos. O primeiro, o lançamento do livro no foyer do Teatro de Santa Isabel. O segundo composto por discursos e homenagens. E o terceiro, a exibição do musical Dorinha Meu Amor. No conjunto, sucesso de público, com a casa lotada.

Em clima festivo, o jornalista Cleodon Coelho lançou José Pimentel – Para Além das Paixões, em que desenha a trajetória do ator, diretor e jornalista pernambucano de Garanhuns, muito conhecido por suas atuações na Paixão de Cristo de Nova Jerusalém e na Paixão de Cristo do Recife. Autor e biografado passaram mais de duas horas dando autógrafos e entrevistas, tirando fotografias com os fãs.

De cabelos longos, mesmo depois de ter passado o bastão do papel de Cristo para Hemerson Moura, Pimentel parecia abatido, com uma alegria contida, mas cansado. Cleodon Coelho se mostrava jubiloso com a missão cumprida.

Essa é a terceira publicação assinada por Cleodon Coelho. A primeira foi Nossa Senhora das Oito (Mauad editora, 2003), sobre a novelista Janete Clair, em parceria com o crítico carioca Mauro Ferreira. A segunda foi Lilian Lemmertz – Sem Rede de Proteção (imprensa oficial, 2010).

 Para Além das Paixões está dividida em capítulos curtos e envolventes, que são flashes da vida do filho de Virgínio Albino Pimentel e dona Florentina nascido em 11 de agosto de 1934.

O rumo desse leonino que carregou a cruz de Jesus, na Paixão, por 40 anos, é curioso e marcado por ousadias e insistências

Algumas figuras foram fundamentais na escolha de caminhos desse artista. Entre elas, seu amigo de toda a vida que o encaminhou às artes, o diretor Octávio Catanho, o Tibi e o escritor Ariano Suassuna (1927-2014). “Sempre estive ao lado dele em todos os momentos de sua vida. Já fiz de tudo nos projetos que ele inventa. Trabalhei como ator, cenógrafo, produtor…”, conta Catanho no livro.  Foi com Tibi, no Grupo Dramático Paroquial de Água Fria, que Pimentel assumiu o primeiro personagem, o de Pôncio Pilatos, na montagem O Drama do Calvário.

Já seu début num palco italiano ocorreu com a peça Lampeão, em cinco atos de Raquel de Queiroz, sob a direção de Octávio Catanho, no papel de Ezequiel, cangaceiro conhecido como Ponto  Fino.

Cleodon registra que de uma maneira nada cordial, o crítico Isaac Gondim filho anunciou a novidade no Diário de Pernambuco “o Grupo Paroquial de Amadores (conjunto que não conhecemos e do qual nunca ouvimos falar) vai apresentar no Teatro de Santa Isabel representando a peça Lampeão, de Rachel de Queiroz…” Depois da estreia, apesar de apontar as falhas, Gondim Filho foi mais generoso: “Por isso, quando o GTA se apresenta pela primeira vez no teatro de Santa Isabel, só lhe podemos ter palavras de estímulo e de incentivo, sobretudo pelos valores positivos de sua realização …”

Já na crítica assinada por Ariano Suassuna, publicada no Diario de Pernambuco, em 16 de setembro 1956, sobre a peça A compadecida, depois chamada o Auto da Compadecida o escritor é só elogios a Pimentel: “José Pimentel viveu, no espetáculo do Teatro Adolescente, a figura do rico fazendeiro Antônio Moraes, e, posteriormente, o Encourado (o diabo). Saiu-se muito bem em ambas, tendo sido mesmo uma revelação de ator, com muito senso de ritmo nos gestos e nas falas, comedido e presunçoso como fazendeiro, odiento e perigoso como o diabo”.

Essa foi a primeira encenação do texto do escritor paraibano, montado por Clênio Wanderley com Teatro Adolescente do Recife. O livro revela detalhes deliciosos sobre a estreia na capital pernambucana, após alguns adiamentos, até a consagração no primeiro Festival de Amadores Nacionais no Rio de Janeiro. “Deu uma vontade danada de esfregar a medalha de ouro na cara de quem nos criticou na nossa própria terra”, comenta Pimentel na obra.  

As polêmicas da sua saída da montagem de Nova Jerusalém são bem conhecidas e estão retratadas. Mas uma outra faceta de Pimentel como colunista do jJornal da cidade dá uma apimentada na publicação.

O jornalista Cleodon Coelho selecionou algumas edições da Coluna Sinal Fechado, dentre elas estão alfinetadas em outros encenadores e grupos do Recife:

“Uma clara alusão aos espetáculos O Calvário de Frei Caneca e Batalha dos Guararapes, o pretensioso e pedante Toninho Candonga (nunca sei direito o nome desse cara) disse que ia resgatar, através de Shakespeare, a alegria e o barroquismo da Cidade Maurícia, no que ela tem de mais vivo e menos a arqueológico. Num ato falho, fala da Maurícia do século XVII”.

“A companhia teatral Fundação de Cultura Cidade do Recife Ltda. enviou-me dois convites para a estreia de Sonho de uma noite de verão, by (sic) Shakespeare. Na fila U, lateral, do Teatro do Parque. Levei luneta e amplificador. Na entrada, uma surpresa: a bolsa da minha mulher foi revistada.  Que será que os caras pensavam encontrar? Bombas, ovos podres, revólver? Máquina fotográfica? Pois é, os espiões teatrais, como os industriais, estão à cata de novidades e bem que poderiam documentar cenários, figurinos, peitos etc. Para utilizar em futuras montagens. … Sentei-me estiquei o pescoço e juro que vi. Gostei. Como sou leigo em teatro e não sou crítico de, deixo os comentários para Valdir Coutinho e Enéas Alvarez. Apenas, como espectador, devo dizer que gostei mais da revista Tal e qual – nada igual. Bom, pelo menos fui ver. Pior fazem eles que picham meus espetáculos sem vê-los.”

O encenador Antonio Cadengue comenta no livro que “Relendo o texto depois de muitos anos, eu dei boas risadas. Mas me chamar de Candonga não era um erro. Era provocação mesmo”.

Histórias do teatro pernambucano.

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Paula de Renor e Carla Valença deixam Janeiro de Grandes Espetáculos

Produtores do Janeiro trabalhavam juntos há 15 anos. Foto: Pollyanna Diniz

Produtores do Janeiro trabalhavam juntos há 15 anos. Foto: Pollyanna Diniz

O trio de produtores responsável pelo Janeiro de Grandes Espetáculos se desfez. Paula de Renor, que estava no festival há 16 anos, e Carla Valença, integrada à equipe em 2003, decidiram deixar a produção da mostra. Paulo de Castro, presidente da Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe), assume a tarefa de encabeçar o festival na edição 2018. “Há desgastes normais de trabalho, mas nunca da amizade, da confiança, da identidade. A confiança principalmente. Esse legado independe de estarmos juntos. Posso dizer que nos amamos, mas o momento era de afastar”, explica o produtor.

O Janeiro de Grandes Espetáculos foi criado pela Prefeitura do Recife em 1995. Nessa primeira edição, os ingressos custaram R$ 2 e a propaganda circulou em carro de som. A ideia consistia em movimentar o mercado de trabalho das artes cênicas no mês de férias, apostando prioritariamente na produção local. Tradicionalmente, era um período em que os teatros da cidade estavam fechados. Dois anos depois, a gestão municipal decidiu criar o Festival Recife do Teatro Nacional, com foco na produção nacional, e engavetar o Janeiro. Foi aí que a Apacepe assumiu o comando do festival.

Para Paulo de Castro, mesmo que o festival também tenha uma programação nacional e faça parte, desde 2011, do Núcleo de Festivais Internacionais do Brasil, os esforços do evento continuam sendo para incrementar o mercado de trabalho para a produção pernambucana. “O teatro da Argentina, da Bolívia, circula pelos festivais do mundo todo. A função do Janeiro é mercado de trabalho. Não adianta você ganhar o prêmio de melhor ator no Recife e não ir a Caruaru, por exemplo”, ponderar. Um dos objetivos do produtor é voltar a trazer ao festival curadores nacionais e internacionais. “Não sei se conseguiremos neste ano, porque financeiramente estamos vivendo o pior ano do festival. Até agora, só temos a garantia de R$ 120 mil para fazer um programa da importância do Janeiro. Mas é uma intenção”, afirma.

As inscrições para o próximo Janeiro já estão abertas. Podem participar espetáculos inéditos de teatro e dança de Pernambuco que estrearem até 12 de agosto deste ano ou espetáculos que pretendem estrear no festival. As inscrições terminam no dia 15 de agosto. As escolhas serão feitas por comissões formadas, cada uma, por três pessoas da classe artística. Para os grupos de outros locais do país e internacionais, a escolha será curatorial, mas feitas pelo próprio Paulo de Castro. Não há inscrições.

Algumas ideias para a edição estão sendo encaminhadas, como trabalhar em parceria com os grupos O Poste Soluções Luminosas, tomando o recorte da negritude, e Fiandeiros, valorizando os esforços do grupo na área de educação. Os homenageados do festival serão o casal Renato e Vanda Phaelante. Nos espetáculos de música, Expedito Baracho, que morreu no último mês de maio, deve ser lembrado. “Um Janeiro nunca será igual ao outro. Sempre crescemos, fazemos melhor. Já fizemos com R$ 1.600.000 e já fizemos com R$ 250 mil, mas sempre melhoramos. Vou batalhar para que tenhamos mais um Janeiro de sucesso”, finaliza Paulo de Castro.

Novos projetos

A saída de Paula de Renor e de Carla Valença da produção do festival não aconteceu de uma hora para outra. Mesmo que amigos e parceiros, algo que os três produtores enfatizaram, com o passar dos anos, as discordâncias do trio em relação aos rumos do Janeiro se acentuaram. Paula de Renor, por exemplo, acreditava que o festival precisava seguir um caminho curatorial mais definido. Muito por esforço dela e de Carla Valença, das articulações realizadas ao longo dos anos, o festival ganhou importância entre os festivais do país e também no circuito internacional. Discussões nacionais importantes saíram de reuniões realizadas no Recife. “Tivemos grandes avanços. Saímos na frente, trazendo curadores do país para assistir aos nossos espetáculos. Por um tempo, conseguimos uma parceria com a Prefeitura do Recife, o projeto Recife Palco Brasil, para que os grupos daqui circulassem por outros estados. Também discutíamos a qualidade da produção, tínhamos um espaço para debater os espetáculos. Infelizmente, perdemos alguns desses avanços. Mas continuo acreditando na vocação do Janeiro, na importância dele para as artes cênicas no nosso estado”, afirma.

A produtora, que circulou por vários festivais do mundo, já está dedicada a um novo projeto: o Cambio FIT/PE – Festival Internacional de Teatro de Pernambuco, previsto para acontecer em setembro de 2018. “É um festival que foca na difusão, mas também na formação e na reflexão, realizando não só apresentações, mas residências, oficinas, encontros. Queremos estreitar esses laços de convivência entre diferentes grupos, discutir processos criativos”, afirma.

Carla Valença produz Baile do Menino Deus, em parceria com Ronaldo Correia de Brito. Foto: Gianny Melo

Carla Valença produz Baile do Menino Deus, em parceria com Ronaldo Correia de Brito. Foto: Gianny Melo

Carla Valença, produtora também do Baile do Menino Deus, em parceria com Ronaldo Correia de Brito, explica que precisou pesar e fazer escolhas. “Estamos com o Baile há 14 anos e, há uns quatro ou cinco, percebemos que esse projeto cresceu e tem muito potencial ainda. O Baile acontece em dezembro. Então, de outubro ao final de fevereiro, todos os anos, a minha rotina era enlouquecedora”, avalia. A produtora também deve lançar um projeto que vem sendo desenhado há cinco anos, de e-commerce. Um site (mercadocultural.pe.com.br) para comercializar produtos culturais pernambucanos, discos, livros, audiovisual, artesanato, obras de arte, que deve ser lançado em setembro.

Na perspectiva de Carla Valença, o Janeiro trilha o desafio de continuar ampliando a formação de plateia e agregar programação que, de fato, façam diferença para o repertório da cidade. “São 15 anos de uma parceria. Os três ajudaram a construir e amadurecer esse festival. Um legado que está aí, estabelecido. Tenho certeza que tanto eu quanto Paula estaremos sempre próximas, prontas para dar qualquer suporte. O grande prêmio disso tudo é a amizade. Aprendi muito com eles dois. Tenho certeza que pude contribuir, com a minha paixão e vontade de acertar”, finaliza.

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Guerrilha e amor, uma mistura explosiva

Hilda Torres no espetáculo Soledad

Hilda Torres no espetáculo Soledad

janeiro-de-grandes-espetáculos-SSSSMuitos morreram pela liberdade. E cada vez que um personagem desses ganha os holofotes é uma justiça para a história. A  guerrilheira paraguaia Soledad Barrett Viedma (1945-1973) teve sua voz sufocada pela opressão das ditaduras por 42 anos. Até o ano passado, quando a atriz Hilda Torres, a diretora argentina Malú Bazán e a própria filha da militante, Ñasaindy Barrett, se juntaram para montar o espetáculo Soledad – A terra é fogo sob nossos pés.

O drama de “Sol” expõe as veias abertas da América Latina numa época de grande opressão política. Um trajeto de vida e poesia. Soledad foi mais uma vítima das barbaridades da ditadura militar do Brasil (1964-1985).

Ela morou na Argentina, no Uruguai, em Cuba e no Brasil, fugindo das repressões. Ao ser sequestrada por um bando de neonazistas em Montevidéu, ela adotou a guerrilha. Ao se recusar dizer a frase “viva Hitler!”, ela foi marcada nas coxas com a suástica nazista. Em Cuba, onde aprendeu a luta armada, conheceu Zé Maria, pai de sua filha Ñasaindy.

No Brasil se apaixonou por José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, companheiro que a entregaria à polícia, às garras do delegado Sérgio Fleury. O Massacre de São Bento matou Soledad grávida e outros cinco militantes na Chácara São Bento, em Abreu e Lima.

É um espetáculo emocionante.

SERVIÇO

Espetáculos de Hoje no Janeiro de Grandes Espetáculos

Soledad – A Terra é Fogo Sob Nossos Pés (Cria do Palco – Recife/PE)
Quando: Dia 18 de janeiro de 2016 (segunda), 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 20 e R$ 10

Luas de Há Muito Sóis (Papelão Produções e Fafe Cidade das Artes – Recife/Brasil/  Fafe/ Portugal)
Quando: Dias 18 e 19 de janeiro de 2016 (segunda e terça), 20h
Onde: Teatro Capiba (SESC Casa Amarela)
Quanto: R$ 20 e R$ 10

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Em nome do primeiro amor

Matheus Nachtergaele em Processo de Conscerto do Desejo. Foto: Marcos Hermes

Matheus Nachtergaele abre Janeiro de Grandes Espetáculos com Conscerto do Desejo. Foto: Marcos Hermes

janeiro-de-grandes-espetáculos-SSSSQuando entrevistei Matheus Nachtergaele pela primeira vez, ele já havia passado pelo método do diretor paulista Antunes Filho, pela Escola de Arte Dramática (USP-SP), e deixado sua marca no grupo Teatro da Vertigem, dirigido por Antônio Araújo, por sua atuação nos espetáculos Paraíso Perdido e O Livro de Jó. Já colecionava prêmios como Shell, Mambembe e APCA. Foi uma conversa durante as filmagens de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, dirigido por Guel Arraes, em Cabaceiras, na região do Cariri Velho, a 200 km de João Pessoa. A cidadezinha de apenas três ruas tinha virado um set de filmagem. O cotidiano pacato da população foi alterado com a presença de tanta gente famosa.

Intenso, profundo, boêmio, conversador, bem articulado, magrinho, de uma energia etérea. Matheus Nachtergaele, que interpretava João Grilo, despertava cuidados. Era tanta entrega que parecia que ele poderia explodir. “O tempo vai cuidando de tranquilizar a gente. Mas acho que, daquele tempo, 1998, até agora, acho que estou mais tranquilo. Acho que a minha intensidade talvez fosse um romantismo juvenil, uma entrega muito grande ao personagem, sempre fui muito boêmio. Tinha uma preocupação da produção ‘será que ele vai chegar às 5h da manhã ao set?’. Eu chegava. Mas também não tenho a mesma saúde daquela época para aguentar o tranco.

O ator é uma presença forte no cinema pernambucano. Atuou em quatro filmes de Cláudio Assis: Amarelo Manga, Baixio das Bestas, Febre do Rato e Big Jato. Além de Árido Movie e Sangue Azul de Lírio Ferreira; e Nina, de Heitor Dhalia. Já está com mais um na agulha. Uma adaptação de Nelson Rodrigues dirigida pelo pernambucano Jura Capela, com Lucélia Santos no elenco.

Hoje Nachtergaele abre o festival Janeiro de Grandes Espetáculos com Conscerto do Desejo uma homenagem e tentativa de apaziguamento pela ausência da mãe, que se suicidou quando Matheus tinha três meses. Depois de 30 anos de divã ele resolveu tornar pública essa dor da falta que carrega desde a infância. Acompanhado pelos músicos Henrique Rohrmann (violino) e Luã Belik (violão) o ator faz sua oração profana. Das entranhas, da memória, da imaginação, uma emoção vertiginosa como o primeiro amor que escapou tão rápido.

ENTREVISTA // MATHEUS NACHTERGAELE

Com esse espetáculo, imagino que você está tentando se curar totalmente. Por que você resolveu levar essa inquietação ao palco?
Veja só: comecei a fazer teatro no Antunes Filho. Era 1989. Não estreei nenhuma peça lá. Era o processo de Paraíso Zona Norte, duas peças de Nelson Rodrigues, que ele ia montar; e o trabalho dos atores era muito baseado no trabalho do Kazuo Ohno, o bailarino japonês. Então a gente leu muitos textos de Kazuo Ohno, nem sabia que tinha, mas a gente descobriu na época. Foi a minha primeira experiência teatral realmente. Kazuo Ohno, a física quântica e Nelson Rodrigues eram os nossos três focos. Essa dança expressionista oriental, que tinha o Hijikata e o Kazuo Ohno como pais, essa dança japonesa pós-guerra, o universo de Nelson Rodrigues e a física quântica. Assim eu fui apresentado ao teatro e isso me deixou marcas profundas, até hoje. É claro que eu tive muitas experiências, fui para o Teatro da Vertigem, onde eu fiz o Jó (O livro de Jó), passei pela Escola de Arte Dramática da USP, fiz muito cinema, tive muitos diretores, mas essas coisas me marcaram muito. Dessas coisas todas, alguns princípios me nortearam e me norteiam até hoje. Um deles é o depoimento pessoal. Isso está no Kazuo Ohno, isso está no butô, quer dizer, fazer da sua dor, a dor universal. O trabalho do butô era um trabalho de procurar a sua dor particular e dançar essa dor particular, sem palavras. E isso daria origem, se você fosse um poeta, a uma dança de alguma maneira universal, que atingisse todo mundo, a ideia de que quanto mais você fala do seu quintal, mais você fala do mundo, quanto mais você fala da sua dor, mais você fala da dor de todo homem. Então acho que o processo de Desejo de Conscerto tem a ver com isso. Acho que mais do que nunca estou indo no âmago das minhas questões e acreditando que isso deva fazer sentido para todos nós. Se cada um tem uma grande dor, uma grande perda, uma grande alegria, a minha deve também se comunicar com a dor de todo mundo; e me torna, minha dor especial, igual a todos. Todo mundo tem sua história, suas barbáries e suas maravilhas. Por isso que estou fazendo essa peça. Desde o Woyzeck, em 2005, eu não produzo um espetáculo de teatro. Fiquei muito envolvido com cinema, dirigi um longa-metragem, fiz muitos filmes como ator, muitos trabalhos na televisão e não me ocorria um texto que fosse importante de ser montado. Achava que os meus colegas que faziam teatro, que eu gosto, estavam fazendo teatro que tinha que ser feito, como o Zé Celso, como algumas pessoas que admiro. E me contive. De vez em quando pensava em fazer um Tennessee Williams, por exemplo, logo depois de uns meses de projeto, eu dizia: “não é isso. A veia não é essa!”. Eu tinha feito Woyzeck, que é uma peça determinante, uma peça de texto muito forte, moderno, que inaugura a tragédia moderna. É no Woyzeck que o destino do herói deixa de ser decidido pelos deuses para ser decidido pela sociedade capitalista. É uma peça que fala sobre muitas coisas. Que fala sobre um Brasil que não mudou muito de 2005 para cá. Então eu me sentia um pouco sem tema. Algumas pessoas me diziam: “faz o Hamlet”. Mas o meu Hamlet é o Woyzeck. O meu ser ou não ser estava no Woyzeck. Então me dediquei a outras coisas. Tinha os poemas da minha mãe guardados. Desde os 16 anos que eu tenho esses poemas, eles são o meu único contato oral, mental, racional com a minha mãe. Para mim, minha mãe é uma lembrança, também é uma perda, uma ausência. Eu estive com ela durante doze meses. Dentro do útero e fora do útero. Todo período deu doze meses. Não me lembro disso porque aos três meses é que você cria os primeiros laivos de alteridade. Parece que aos três meses é que a criança saca que existe outro. Até os três meses ela e a mãe são uma coisa só. Então minha mãe se matou justamente quando eu não era mais uma coisa só. Uma mulher inteligente, provavelmente não foi à toa. Não se matou enquanto eu era uma coisa só com ela. Esperou aquele neném entender que ele também existe sozinho e aí ela foi. Eu tinha esses textos como um tesouro. A transmissão oral que me foi possível, intelectual.

Você só teve acesso aos textos aos 16 anos?
Eu tinha 16 anos quando o meu pai me deu, pouco tempo depois de eu saber como ela tinha morrido. Até os 16 anos eu sabia que a minha mãe tinha falecido, que a minha mãe não era minha mãe, minha mãe era uma madrasta, que eu chamo de mãe até hoje, a Carmem, é minha mãe também. Mas eu não sabia como tinha acontecido. Eles demoraram um pouco porque na nossa sociedade o suicídio é uma coisa complexa. Eu acho que na nossa sociedade não…é complexo. Então demoraram um pouco para me contar. Quando me contaram eu tinha 16 anos e logo na sequência papai me deu os poemas. E eu então guardei. Foi mais ou menos quando eu decidi ser ator. Acredito que, de alguma forma, eu estou esperando esse momento há muito tempo. Como você falou, talvez uma certa intensidade, uma boêmia, um romantismo meu, me impediram de fazer isso antes. Sempre achei que se eu fizesse, eu ia ficar muito mexido e não ia aguentar a barra. E agora eu me sinto diferente. Eu me sinto homenageando não a mamãe exatamente, mas o que nós temos em comum, homenageando a possibilidade de ser feliz com o que se tem. Então tenho mamãe, que morreu em condições tristes, não são as condições ideais, um suicídio é de alguma maneira como um acidente, como um câncer, como algo que a gente não gostaria que acontecesse. Sendo que a pessoa que morre empunhou a arma que a matou. Mas, ao mesmo tempo, a mamãe me deixou os poemas, me deixou o talento, me deixou 50% de tudo que acontece em mim. Então quando eu faço essa peça e só agora eu posso fazer dessa forma, eu celebro o fato de, por ter sofrido a falta dela, talvez, também ser um ator, e usar o que eu tenho para dizer os textos dela, quer dizer, dar voz ao que foi calado. Fazer uma peça com mamãe, já que eu não pude fazer muitas coisas com ela, além de ser gerado e mamar, se é que é pouco. Agora a gente faz uma peça juntos. Eu não sou místico, então eu não acredito que ela esteja, em nenhum nível aqui acompanhando espiritualmente. Mas acredito que ela energeticamente, uma palavra mais ampla, está junto, os textos são dela, não mudo uma palavra do que ela escreveu, visto um vestido parecido com o vestido que dizem ela tinha separado para usar no meu batizado, ela morreu na madrugada que antecedia o meu batismo. Nunca se sabe se esse vestido preto foi guardado para o meu batismo ou se já foi reservado para o enterro. Ela foi enterrada com essa roupa, então eu nunca vi essa roupa, mas eu sei que era um vestido preto. Então eu visto essa roupa e falo os poemas da mamãe, mas sou eu falando. A gente faz a peça juntos. É uma peça bem simples, é um recital, com música, tem um violão clássico, com Luã Belik, e um violino clássico tocado por Henrique Rohrmann, e eu falo os poemas da mamãe, a gente canta e toca músicas que eu sei que a mamãe gostava, por notícias de parentes, de papai. E a gente faz disso então um concerto.

Você falou que não é místico. Você é agnóstico?
Eu não gostaria de definir, sabe por que? Eu acho que nenhuma palavra daria conta do que acontece exatamente. Nem comigo, nem com ninguém, não é? Se eu disser que eu sou um agnóstico, eu estaria mentindo. Se eu disser que sou ateu, eu vou estar mentindo também. Mas se eu disser que eu creio, eu também estou mentindo. Então eu sou um ateu que acredita em milagre. Eu sou um agnóstico com presságios, entendeu? Eu tenho sentimento de agradecimento pela vida, no sentido budista, mas não sou budista. Eu acredito que o amor é uma força bonita, poderosa e criadora, mas não acho que isso tenha um nome, não acho que isso vem de um ser, isso é uma consequência de um fluxo de coisas. Me sinto em Deus, se é que eu tenho que usar uma palavra para que todo mundo possa falar a mesma palavra. Então não sinto que eu preciso acreditar em Deus, uma vez eu já estou em Deus, eu, você, a planta, a máquina fotográfica. Está todo mundo em Deus, nesse fluxo que tem vida, tem morte, tem poema, tem suicídio, tem políticos roubando a gente, tem gente passando fome, tem Aids, tem amor, tem dança, tem festa, tem batuque, tem flor, tem espinho, tem leão matando a gazela, tem a gazela dando à luz um bebezinho de gazela, que sai e come uma plantinha, entendeu? E tudo isso vai sendo Deus. Então não preciso acreditar em Deus, uma vez que estou nele. E aí eu me defendo da pergunta dessa forma. Por que eu acreditaria, se eu já estou? Se já estamos todos aqui. Não é muito diferente do que as doutrinas pregam, mas não é doutrina.

A peça estreou no Rio de Janeiro. Recife é a primeira cidade que recebe a montagem depois da estreia?
É a primeira vez que a gente viaja. Estou bem contente de ser aqui, por motivos óbvios. Sou um pouco pernambucano de alma. Artisticamente eu sou muito pernambucano. Por muitos motivos eu fui jogado para dentro de uma poética que é a poética pernambucana, a poética de vocês, que se tornou a minha também. Acho que isso começou a acontecer no Auto e depois isso seguiu acontecendo nos meus encontros com Cláudio Assis, com Lírio, com Guel. Eu frequento a família Suassuna, sou amigo de Dantas, amava Ariano. Fiquei muito tempo no Sertão, trabalhando, filmando, e participando acho que poeticamente do universo pernambucano. Então apesar de ser paulistano, eu tenho cadinho que é pernambucano. Tenho grandes amigos aqui, pessoas que eu amo de verdade. Então estou contente de a primeira viagem da peça ser para cá. Acho que é um colo bom. É a primeira vez que a peça vai ser feita no palco italiano, é a primeira vez que a gente vai ter muito público. A peça sempre foi feita no Teatro Poeira, que é um teatro pequeno, como um útero. É uma cerimônia. Aqui a gente vai ter que fazer essa cerimônia se tornar uma missa, uma missa ateia, uma missa laica. Manter essa delicadeza da oração laica, mas para 700 pessoas. Então estar com amigos por perto é bom.

Por falar em amigos, acho muito bonita a relação que você tem com Conceição Camarotti. Então já que estamos falando de amor, de amizade, qual o significado dessas pessoas na sua vida?
Eu sempre me achei um cara meio incapaz de amar. Mas eu acho que subestimei minha capacidade. Muito tempo eu sentia culpa. Dizia: ‘poxa, eu não sou tão amigo dos meus amigos quanto eles são de mim’, ‘poxa, não sou tão amigo da minha madrasta quanto ela é de mim’. Eu colocava muita culpa nessa minha dor da mamãe ter morrido e ao longo do tempo e do amadurecimento que a gente vai tendo, eu fui percebendo que não, que eu tinha amigos de longa data e pessoas que estão na minha vida de uma maneira tão determinante. E a Conceição Camarotti é uma dessas pessoas. A gente se conheceu no Amarelo Manga, filme do Cláudio Assis, a gente criou um vínculo afetivo para além das cenas e do convívio no cinema, no set de filmagem. A gente ficou amigos íntimos, a gente é confidente, a gente se frequenta, a gente se fala de quando em quando, ela me liga quando tem saudades, só para dizer que estava com saudades, só para falar oi para mim. E eu penso na Conceição quase todo dia da minha vida, em algum momento, lembro da Conceição, assim como lembro de algumas pessoas que eu amo para sempre. Acho que a Conceição é uma dessas pessoas que me ensina que eu sei amar. Claro que grande parte disso é um mérito dela, ela que foi me ensinando ao longo do tempo, que uma amizade pode ser algo muito duradouro, muito eterno, muito bom. Eu fico muito calmo quando estou perto dela, me sinto em paz. A gente dá muita risada e fala muita sujeira! Vocês não têm noção da quantidade de porcaria que a gente fala dando gargalhadas. Ao mesmo tempo a gente é capaz de passar horas em silêncio, sem se incomodar, isso é importante eu acho, alguém com quem você possa ficar em silêncio muitas horas, é muito gostoso. Eu estou doido para que ela veja a peça, porque ela conhece essa minha história, conhece os poemas, ela se comove com a história da mamãe, ela gosta da história da mamãe, mesmo sem ter conhecido a minha mãe; ninguém conheceu a minha mãe, só meu pai e os meus avós. É engraçado…ela sempre gostou muito da mamãe, simpatiza com a mamãe. Então acho que ela vai se emocionar.

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Crítica // Se estes espasmos falassem

Robert Softley dá lição de coragem. Fotos Ivana Moura

Relatos são poesias em doses generosas

É encantadora, forte e envolvente a perfomance de Robert Softley em If these spasms could speak (Se estes espasmos pudessem falar). Ele fez três sessões, na Caixa Cultural do Recife, dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos. Em cena uma grande e confortável poltrona e um telão ao fundo com projeções. O artista entra engatinhando e explica que seu problema na fala pode dificultar o entendimento (o texto é dito em inglês, com legendas em português). E o ator e dramaturgo já mostra aí um dos trunfos da peça: o humor sem nenhum tipo de autocomiseração. Softley comenta que acha estranho – essa dificuldade de comunicação – já que na cabeça dele sua fala chega “como a de Laurence Olivier”.

Se estes espasmos pudessem falar é composto por quadros em que o artista narra suas vivências e as de outras pessoas com deficiência em situações divertidas, ternas, tristes, de embate, de alegria, tristeza, vitalidade, prazer, tesão.

Há o episódio da moça que chama a atenção pelos seus seios numa festa de casamento e não por seu problema físico. Do cara vidrado em música que vai a um festival e tem que enfrentar um mar de gente para chegar ao banheiro para cadeirantes, que fica do lado oposto do palco. De suas memórias, Softley conta sobre a arrogância e estupidez de um jovem médico, que o toma por paciente quando ele vai visitar um irmão internado no hospital.

Carismático, o ator envolve a plateia com suas tocantes confissões e de seus entrevistados. Ao falar desses corpos limitados, ele amplifica as possibilidades de existências. E passeia por questões  familiares, sexo, amor, relações humanas e jogos de poder quando os “corpos normais” ditam as regras.

Artista se entrega com alegria ao trabalho

Corajoso e com auto-estima robusta, o artista desafia a sociedade, qualquer uma, que ainda trata os deficientes como seres menores. Alí, ele diz que não aceita a posição de invisibilidade. E chama atenção para os problemas de acessibilidade que estão em toda parte.

A sonoplastia usa trechos de músicas que ressaltam os climas dos depoimentos. E para marcar a mudança de histórias ele ocupa posições diferentes na cadeira ou assume outro gestual.

Softley tem paralisia cerebral grave, distrofia muscular e problemas de fala. E um sorriso vitorioso no rosto. Seu espetáculo é uma celebração à vida e um soco em cada um de nós que vive reclamando por coisas banais.

Humor e ironia são trunfos da montagem

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