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Dez dias de memória em movimento
28º Festival Internacional de Dança do Recife

Festival reúne mais de 20 espetáculos com artistas de cinco países… Fotos: José Luiz Pederneiras / Divulgação

… celebra meio século do Grupo Corpo e homenageia o Acervo RecorDança. Piracema e acima Pindorama

Em 10 dias, artistas de cinco países movimentam uma programação que vai acontecendo em diferentes pontos da capital pernambucana. A 28ª edição do Festival Internacional de Dança do Recife ocorre de 17 a 26 de outubro, reunindo mais de 20 espetáculos que transita entre tradição e contemporaneidade, do Teatro de Santa Isabel às praças públicas da cidade.

O festival chega com uma programação robusta: França, Argentina, Espanha e Senegal marcam presença internacional, enquanto mais de 70% da programação fica por conta de grupos e artistas pernambucanos. São seis teatros, duas praças públicas, um museu e um compaz que recebem desde o Grupo Corpo – que celebra 50 anos de trajetória – até jovens bailarinos do Projeto Primeira Cena.

O Grupo Corpo, fundado em 1975 em Belo Horizonte, chega ao Recife carregando meio século de uma trajetória que redefiniu a dança brasileira no cenário internacional. Criado pelos irmãos Paulo e Rodrigo Pederneiras, o grupo se tornou uma das companhias mais respeitadas do mundo, conhecido por sua capacidade única de traduzir a brasilidade em movimentos que dialogam com a contemporaneidade global sem perder suas raízes.

Com mais de 40 obras no repertório e apresentações em mais de 60 países, o Corpo construiu uma linguagem própria que agrega técnica apurada, trilhas sonoras marcantes e cenografias ousadas. Piracema, espetáculo inédito traduz a própria trajetória do grupo: como os peixes que sobem a correnteza do rio numa jornada épica de resistência e renovação, o Corpo atravessou décadas mantendo-se vivo, criativo e sempre em movimento, conquistando seu lugar como patrimônio vivo da cultura brasileira. Parabelo, peça de 1997, faz a abertura nas duas noites.

Le Sacre du Sucrealexandre boissot

Já a bailarina e coreógrafa Léna Blou, de Guadalupe, vai transformar a história colonial da cana-de-açúcar em dança contemporânea, explorando as conexões dolorosas entre Caribe e Nordeste brasileiro através do espetáculo Le Sacre du Sucre (A Sagração do Açúcar). Por  outro lado, o coletivo argentino BiNeural-MonoKultur promete transformar o jardim do Teatro do Parque numa pista de dança com Dancemos… que o mundo se acaba!, obra performática que mistura dança, música eletrônica e interação direta com o público. E fechando o festival, a lendária Germaine Acogny – considerada a “mãe da dança contemporânea africana” – apresenta À un endroit du début, misturando danças tradicionais senegalesas com técnicas contemporâneas que aprendeu durante os anos 1970 em Nova York.

Memória em Movimento é o tema que costura essa programação diversa, prestando homenagem ao Acervo RecorDança, coletivo pernambucano fundado em 2017 que há anos se dedica a guardar a história da dança no estado através da digitalização de documentos históricos, produção de entrevistas com pioneiros da dança local, criação de podcasts e documentários, além da realização de ações pedagógicas que conectam diferentes gerações de bailarinos. O grupo atua como uma verdadeira biblioteca viva da dança pernambucana, resgatando memórias que estavam se perdendo e garantindo que as novas gerações tenham acesso a essa herança cultural. Porque memória não é só passado – é combustível para o que está por vir.

Flaira Ferro. Foto Claudia Dalla Nora / Divulgação

🎭 O Protagonismo Local: Pernambuco em Movimento
Flaira Ferro: A Embaixadora do Frevo
A pernambucana Flaira Ferro é uma das principais representantes da cultura popular contemporânea do estado. Passista de frevo reconhecida nacionalmente, ela terá participação dupla no festival, mostrando a versatilidade de seu trabalho:

🎤 Show (18 de outubro, 19h – Teatro Apolo)
Apresentação que mistura frevo tradicional com sonoridades contemporâneas, demonstrando como a cultura popular pode dialogar com diferentes linguagens sem perder sua essência.

👥 Aulão de Frevo (19 de outubro, 10h às 11h30 – Teatro Hermilo Borba Filho)
Atividade pedagógica gratuita onde Flaira compartilha os fundamentos do frevo, conectando diferentes gerações em torno dessa manifestação cultural patrimônio da humanidade.

Patrimônios Vivos da Cultura Pernambucana

🥁 Bacnaré – Nações Africanas (20 de outubro, 14h – Teatro do Parque)
O grupo Bacnaré, reconhecido como patrimônio vivo do Recife, é uma das principais referências da cultura afro-brasileira em Pernambuco. Fundado há mais de quatro décadas, o coletivo preserva e recria tradições africanas através da dança, música e teatro. O espetáculo Nações Africanas celebra as diversas etnias que formaram a base cultural afro-brasileira, apresentando danças e ritmos que conectam o Recife diretamente às suas raízes ancestrais.

🐎 Cavalo Marinho Estrela Brilhante (26 de outubro, 16h – Teatro Hermilo Borba Filho)
O Cavalo Marinho é uma das manifestações mais ricas da cultura popular nordestina, misturando teatro, dança, música e improviso. O grupo Estrela Brilhante é uma das principais referências dessa arte em Pernambuco, mantendo viva uma tradição que remonta ao período colonial. A apresentação no encerramento do festival reafirma a importância das tradições populares como base da identidade cultural pernambucana.

Nova Geração: Projeto Primeira Cena

🌟 Revelando Talentos (21 de outubro, 19h – Teatro Hermilo Borba Filho)
O Projeto Primeira Cena é uma das iniciativas mais importantes do festival para o fomento da dança local. Este ano, quatro coreografias foram selecionadas, representando a diversidade da nova geração de bailarinos e coreógrafos pernambucanos:

Meu Frevo é assim – Cia de Dança Recifervo
Companhia jovem que se dedica à pesquisa e contemporaneização do frevo, explorando novas possibilidades coreográficas sem perder a essência do ritmo tradicional.

Corpo Fé: Trânsitos de presenças, ausências e águas – Irys Oliveira
Pesquisa autoral que investiga as relações entre corpo, espiritualidade e elemento aquático, temas centrais na cultura e geografia pernambucanas.

Fissura – Samuel José
Trabalho solo que explora as fraturas e resistências do corpo contemporâneo, dialogando com questões urbanas e sociais da realidade local.

Corpos que dançam entre gerações e memórias – Escola Viradança
Coreografia coletiva que conecta diferentes idades e experiências, materializando o tema do festival através do encontro entre veteranos e novatos da dança.

Experimentação e Vanguarda Pernambucana

🌍 Cia ETC – Memória do Mundo (21 de outubro, 12h – Praça do Derby)
A Cia ETC é conhecida por suas intervenções urbanas que questionam o cotidiano através da dança. Memória do Mundo será apresentada no meio da agitação da Praça do Derby, propondo uma reflexão sobre como a arte pode alterar a percepção do espaço urbano e criar momentos de contemplação no meio da correria cotidiana.

🎪 Circo Experimental Negro – O Encontro da Tempestade e a Guerra (25 de outubro, 17h – Teatro Apolo)
Coletivo que trabalha na intersecção entre circo, dança e teatro, sempre com uma perspectiva afrocentrada. O espetáculo aborda questões relacionadas à resistência negra e aos conflitos históricos, usando o corpo como território de luta e celebração.

🚴 Lúden Cia de Dança – Ciclobrega (25 de outubro, 18h – Teatro Hermilo Borba Filho)
Intervenção que mistura dança contemporânea com a cultura do brega, gênero musical profundamente arraigado na cultura popular pernambucana. A proposta é criar um diálogo inusitado entre linguagens aparentemente distintas, mostrando como a cultura popular pode ser fonte de inovação artística.

Novos Criadores em Destaque

🎭 Gabi Holanda, Guilherme Allain e Isabela Severi
Trio que representa a nova geração de criadores pernambucanos, apresentando dois trabalhos no festival:

Bolor (22 de outubro, 19h – Teatro Hermilo Borba Filho)
Trabalho que investiga processos de decomposição e renovação, tanto corporais quanto sociais.

Onde a Vida Insiste (23 de outubro, 19h – Praça da Várzea)
Apresentação ao ar livre que explora a resistência da vida em contextos adversos, tema que dialoga diretamente com a realidade social pernambucana.

🌟 Orun Santana – Orunmilá (24 de outubro, 14h e 19h – Teatro Hermilo Borba Filho)
Artista que trabalha na intersecção entre dança contemporânea e tradições afro-brasileiras. “Orunmilá” faz referência ao orixá da sabedoria e do destino, explorando as conexões entre corpo, ancestralidade e futuro.

Marcos Teófilo – Para Expectativa Somente Desvios (24 de outubro, 20h30 – Teatro Apolo)
Coreógrafo que se destaca pela capacidade de criar narrativas corporais complexas. O espetáculo questiona as expectativas sociais e propõe outros caminhos possíveis através do movimento.

🔥 Balé Afro Raízes – Os Guerreiros: A Luta pela Sobrevivência (21 de outubro, 20h – Teatro do Parque)
Grupo especializado em danças afro-brasileiras que apresenta espetáculo sobre resistência e luta, temas centrais na história da população negra em Pernambuco.

Dança Urbana e Cultura de Rua

🎤 Batalha da Escadaria (25 de outubro, 15h às 21h – Compaz Eduardo Campos)
Evento que reúne diferentes vertentes da cultura urbana pernambucana:

Serafin’s Company – From Afrobeats to hip Hop Heat!
Coletivo local que mistura hip hop com ritmos africanos, criando uma sonoridade única que reflete a diversidade cultural do Recife.

Batalha de All Style
Competição que reúne os melhores dançarinos de diferentes estilos da região metropolitana do Recife.

Baile Charme
Manifestação da cultura de rua que ganhou força no Recife, misturando dança, música e sociabilidade urbana.

🌍 Participações Internacionais

França: Três Visões Complementares
🍭 Le Sacre du Sucre (18 de outubro, 20h – Teatro do Parque)
🌊 Corpos (23 de outubro, 20h – Teatro do Parque)
✨ À un endroit du début (26 de outubro, 19h – Teatro de Santa Isabel)

Argentina: Interatividade e Performance
🎵 Dancemos… que o mundo se acaba! (22 de outubro, 10h e 14h – Teatro do Parque)

Espanha: Literatura e Flamenco
💃 Ellas en Lorca (23 de outubro, 19h – Teatro Apolo)

🏆 Abertura Histórica: Grupo Corpo Celebra 50 Anos

Piracema e Parabelo (17 e 18 de outubro, Teatro de Santa Isabel)

️ Exposições e Patrimônio Cultural

RecorDança: Acervo em Movimento (Abertura: 18 de outubro, 14h – Museu Murillo La Greca)
Corpo Ancestral: Dança Nagô em Movimento (18 de outubro, 18h – Teatro Hermilo Borba Filho)

Formação e Capacitação

Oficina: Vivência Danças de Blocos Afros (17 e 18 de outubro)
Ministrada por Vânia Oliveira (BA)

Cine Dança (21 de outubro, 19h – Teatro do Parque)

Sessão especial incluindo o curta Saramuná, de Gabriela Moura (PE), e Longa Repentino, de Drica Ayub (PE).

📍 Informações Práticas
🗓️ Período: 17 a 26 de outubro de 2025
🎟️ Ingressos: Maioria gratuita, com retirada nos locais uma hora antes das apresentações
♿ Acessibilidade: Libras e audiodescrição em múltiplas apresentações
🎯 Ação Social: Arrecadação solidária de alimentos

Sobre o Festival: Promovido pela Prefeitura do Recife através da Secretaria de Cultura e Fundação de Cultura Cidade do Recife, o Festival Internacional de Dança do Recife consolida-se como uma das principais vitrines da dança contemporânea no Brasil, com especial ênfase na valorização e promoção da produção artística local.

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A força política e estética do Feteag 2025

A mon seul désir, de Gaëlle Bourges (França), abre programação. Foto: Danielle Voirin / Divulgação

Cocina Publica, do Teatro Container (Chile). Foto: Adelano

Germaine Acogny, que encerra o festival, é uma das grandes referências mundiais da dança contemporânea. Foto: Thomas Dorn

Abrir um festival com uma peça francesa que reflete sobre representações femininas medievais expressa um posicionamento curatorial questionador das desigualdades. Levar teatro contemporâneo que discute a alimentação no mundo para um assentamento de luta pela terra tem também algo de subversivo. Encerrar a programação com uma bailarina senegalesa de 81 anos que revolucionou a dança em seu país afirma uma visão de mundo que aposta na circulação de saberes. O Festival de Teatro do Agreste, em sua 34ª edição, estabelece diálogos diretos entre criação artística contemporânea e as urgências sociais do nosso tempo.

Dirigido por Fabio Pascoal, o Feteag 2025 reúne 21 espetáculos de 9 e 26 de outubro, entre nacionais e internacionais, todos com entrada gratuita. A seleção das peças aponta para inquietações contemporâneas sobre exclusão, resistência e identidade que perpassam as criações escolhidas.

A seleção desta edição opera segundo uma lógica que articula diversidade geográfica com urgências temáticas. A curadoria geral, conduzida por Fabio Pascoal, aproveitou estrategicamente a Temporada França-Brasil 2025 para trazer criações de Burkina Faso (África Ocidental), Camarões (África Central) e Guadalupe (Caribe francês), além da própria França.

Esta escolha curatorial carrega uma compreensão particular sobre como usar as relações bilaterais para amplificar vozes frequentemente marginalizadas nos circuitos internacionais.

A mostra principal leva o nome de Argemiro Pascoal, um dos fundadores do Teatro Experimental de Arte – TEA, realizador do Feteag

Les Sans adapta o pensamento de Frantz Fanon para o teatro. Foto: Julie Cherki / Divulgação

Les Sans (Os Sem), do coletivo Les Récréâtrales-ELAN, de Burkina Faso, investiga diretamente a questão dos sem-teto e excluídos sociais através de linguagem cênica que combina tradições orais africanas com teatro político contemporâneo. A peça adapta o pensamento de Frantz Fanon para o teatro através do reencontro de dois ex-companheiros de luta. Ali Kiswinsida Ouédraogo explora o conflito entre Franck e Tiibo, interpretados por Ali K. Ouédraogo e Noël Minougou, onde um mantém ideais revolucionários enquanto o outro foi cooptado pelo sistema que combatiam. Sob direção de Freddy Sabimbona, a obra interroga as limitações da independência burkinabê, investigando se a libertação formal constitui verdadeira descolonização ou apenas mudança de máscaras do poder colonial.

Quando esta criação dialoga com La Cocina Pública, do grupo chileno Teatro Container, estabelece-se uma reflexão transnacional sobre precariedade e solidariedade. A obra chilena propõe a preparação coletiva de uma refeição como ato político e comunitário, questionando quem tem direito à alimentação e ao espaço público através de performance participativa que dissolve fronteiras entre arte e vida cotidiana.

Gaëlle Bourges propõe a desconstrução de Imaginários conservadores sobre o Feminino. Foto: Thomas Greil  

À mon seul désir, de Gaëlle Bourges, que abre o festival, parte da tapeçaria medieval A Dama e o Unicórnio para reavaliar construções históricas sobre feminilidade. A coreógrafa francesa examina como a cultura europeia associou mulheres ao mundo vegetal e animal, perpetuando ideais de virgindade e pureza através de imagens aparentemente poéticas.

Bourges desenvolve uma investigação coreográfica que expõe as violências simbólicas embutidas nessas representações românticas, utilizando movimento e voz para evidenciar como tapeçarias medievais funcionavam como dispositivos de controle sobre corpos femininos. Sua pesquisa conecta-se com debates contemporâneos sobre representação e autonomia feminina, oferecendo ao público brasileiro uma análise sobre como imaginários europeus ainda influenciam percepções sobre feminilidade.

Un endroit du début com Germaine Acogny. Foto: Thomas Dorn

Por sua vez, Germaine Acogny, que encerra o festival no Teatro Santa Isabel, é uma das grandes referências mundiais da dança contemporânea. Nascida no Senegal em 1944, ela fundou a primeira escola de dança contemporânea da África Ocidental em 1977 e desenvolveu uma técnica própria que combina danças tradicionais africanas com metodologias contemporâneas ocidentais.

Em Un endroit du début, criado com Mikaël Serre, ela explora memórias corporais e ancestralidade através de movimentação que articula gestualidade ritual com linguagem cênica contemporânea. Aos 81 anos, permanece ativa como pesquisadora corporal e formadora, tendo influenciado gerações de bailarinos e coreógrafos em todo o mundo através de sua escola, onde formou centenas de artistas. Escrevi uma crítica a partir do trabalho gravado da artista em vídeo e que integrou a edição de 2021 do festival Janeiro de Grandes Espetáculos. Leia texto AQUI.

Assentamento Normandia: Arte em Território de Resistência

Espetáculo trabalha a ideia de patrimônio alimentar compartilhado

A apresentação de La Cocina Pública no Assentamento Normandia, em Caruaru, estabelece uma das escolhas mais incisivas desta edição. O Assentamento Normandia constitui um território conquistado através da luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), expressando décadas de organização popular pela reforma agrária na região.

Programar uma obra sobre alimentação e participação comunitária para este espaço cria camadas de significado que expandem o artístico e o político. O Teatro Container, grupo chileno responsável pela criação, desenvolve há anos pesquisas sobre arte e alimentação como atos políticos, investigando como o preparo e partilha de comida funcionam como tecnologias de organização social.

La Cocina Pública transforma o preparo coletivo de uma refeição em ritual de partilha e reflexão sobre direitos básicos, utilizando metodologia participativa que convoca o público para ações concretas. No contexto do assentamento, onde a conquista da terra relaciona-se diretamente com o direito à alimentação, a criação ganha ressonâncias particulares sobre soberania alimentar e autonomia popular.

Mostra PE: Diversidade da Cena Local

A Mostra PE, com curadoria de Vika Schabbach e Igor Lopes, selecionou cinco trabalhos entre 57 inscrições através de chamada pública. Schabbach, crítica e pesquisadora teatral, e Igor Lopes, diretor e dramaturgo, construíram uma seleção que busca evidenciar a potência criativa da produção pernambucana contemporânea.

Itaêotá, do Grupo Totem

Bolor. Foto: Morgana Narjara

Itaêotá, do Grupo Totem, apresenta o resultado de seis anos de investigação artística que conecta ancestralidade indígena e africana com urgências contemporâneas. Este espetáculo de teatro-dança utiliza rituais coletivos e elementos como urucum para propor caminhos de regeneração social diante do colapso civilizatório, materializando a pesquisa Metamorfismo de (R)existência através de performance que dissolve fronteiras entre linguagens artísticas.

Bolor (Gabi Holanda, Guilherme Allain e Isabela Severi) confronta diretamente a mitologia freyreana do açúcar, empregando fungos como protagonistas metafóricos de processos de decomposição e renascimento. A criação aponta a violência estrutural da plantation açucareira através de estética da decomposição que valoriza redes subterrâneas de resistência, dialogando criticamente com pensadores como Malcom Ferdinand e Anna Tsing para imaginar futuros decoloniais.

 Joesile Cordeiro navega pela memória afetiva de ser um jovem gay em busca de reconexão com sua infância perdida na encenação Tempo de vagalume. Esta performance autobiográfica criada em Garanhuns constrói pontes poéticas entre passado e presente através de teatro intimista que busca transformar experiência pessoal em pensamento coletiva sobre identidade e pertencimento LGBTQIA+.

Eron Villar e DJ Vibra protagonizam o encontro entre música contemporânea e teatro épico que ressignifica o legado político de Malcolm X para o contexto brasileiro em Se eu fosse Malcolm?  A performance articula crítica decolonial e questões de raça e gênero através de linguagem cênico-musical que dissolve fronteiras entre som e cena, construindo um perspectiva antirracista contemporânea.

Circo Godot (Cia. Circo Godot de Teatro) acompanha dois artistas de rua em suas peripécias cotidianas, explorando relações de poder e subsistência através de humor que transita entre o universal e o particular. A comédia convoca o espírito itinerante do teatro dos espaços não convencionais para questionar hierarquias sociais através da jornada de Gatropo e Tropino.

Corpo, Memória e Resistência

Aquelas – uma dieta para caber no mundo convida para um jantar para falar de uma santa popular assassinada. Foto Raissa Dourado

Monique Cardoso investiga invisibilização da beata Maria de Araújo, protagonista do Milagre da Hóstia em 1889, no espetáculo Cavucar. Foto: Henrique Cardozo / Divulgação

As criações nacionais e internacionais estabelecem diálogos temáticos que ultrapassam fronteiras geográficas, trazendo inquietações compartilhadas sobre corpo, memória e resistência. 

O Manada Teatro, do Ceará, desenvolve Cavucar, do projeto Pote e Navalha, através da performance solo de Monique Cardoso, que também assina direção em parceria com Murillo Ramos, sobre dramaturgia de Tércia Montenegro. A obra ficcionaliza possível descoberta dos restos mortais da beata Maria de Araújo, protagonista do Milagre da Hóstia em 1889, provocando e tensionando as violações eclesiásticas que resultaram no desaparecimento de seus vestígios e invisibilidade na história de Juazeiro do Norte. A encenação utiliza elemento fantástico para convocar o público a fabular os fatos e reconstruir a história através de suposições que questionam a construção de um dos maiores centros de fé católica do mundo.

Aquelas – uma dieta para caber no mundo reconstrói a trajetória de Maria de Bil, santa popular de Várzea Alegre assassinada em 1926 pelo companheiro, através de performance participativa dirigida por Murillo Ramos e interpretada por Juliana Veras e Monique Cardoso. O espetáculo convida o público a participar do preparo de jantar envolvendo facas, carne, sangue oferecidos à mesa com os corpos das próprias atrizes, construindo encenação delicada e cruel que apresenta caleidoscópio das violências machistas através de quadros performativos que misturam história da santa com pessoalidades das intérpretes.

Sonho de uma noite de verão, montagem da Trupe Ave Lola, no Paraná. Foto: Caique Cunha / Divulgação

A Trupe Ave Lola (PR) desenvolve duas experiências distintas da dramaturgia clássica e contemporânea sob direção de Ana Rosa Genari Tezza. Sonho de uma noite de verão revisita Shakespeare através de encenação popular com tradução de Bárbara Heliodora, reunindo nove artistas em cena – Cesar Matheus, Helena de Jorge Portela, Helena Tezza, Kauê Persona, Larissa de Lima, Marcelo Rodrigues, Pedro Ramires, Wenry Bueno e Willa Thomas – e música original composta por Arthur Jaime, Breno Monte Serrat e Julia Klüber, executada ao vivo pelos músicos Arthur Jaime e Breno Monte Serrat, criando atmosfera festiva que convida o público a testemunhar momentos de paixão, magia e loucura através de linguagem teatral popular.

Já com O Vira-lata, a Trupe Ave Lola explora amizade improvável entre uma jovem romântica que sonha com grande amor e um homem-cachorro maltratado pela fome e desamparo, questionando convenções sociais quando surge um pretendente desconhecido que desperta ciúmes do fiel amigo, construindo fábula contemporânea sobre solidariedade, abandono e os conflitos entre sonhos românticos e lealdade verdadeira.

 Lucas Torres e Bruno Parmera em Édipo REC. Foto: Estúdio Orra: Zé Rebelatto e Grabriela Passos 

O Grupo Magiluth, de Pernambuco, em seu 16º trabalho que celebra duas décadas de pesquisa continuada, comparece ao Feteag com  Édipo REC, um trabalho com direção de Luiz Fernando Marques e dramaturgia de Giordano Castro. O elenco composto por Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral, Nash Laila e Pedro Wagner constrói releitura não-linear da tragédia sofocliana que joga com a cronologia para questionar a noção de tempo no teatro.

Tebas transforma-se no Recife fantasmagórico onde o Corifeu é representado pela câmera, espelhando a produção excessiva de imagens contemporâneas das redes sociais e câmeras de segurança. A linguagem audiovisual busca inspiração no cinema experimental, desde Édipo Rex (1967) de Pasolini até Funeral das Rosas (969) de Matsumoto, questionando se teatro e cinema conseguem dar conta das múltiplas tragédias contemporâneas e por que o público sairia de casa para assistir história tão antiga.

Mas mesmo a vida sendo decepcionante, como proclama o personagem de Erivaldo Oliveira, tem festa nesta Tebas-Recife-Caruaru no primeiro ato desta peça-peste, que convoca seu povo a dançar até o pé inchar.

Cartografias Francófonas: Trabalho, Identidade e Memória Colonial

Le Quai de Ouistreham fala da situação de mulheres que trabalham em empregos precários e invisíveis

Zora Snake em L’Opéra du villageois. Foto: Agir pour le Vivant

Corpos, da Cie Mangrove, (Guadalupe/Brasil). Foto: Divulgação

As criações francófonas constroem considerações convergentes sobre precariedade, identidade e legados coloniais através de perspectivas estéticas diversificadas.

Le Quai de Ouistreham, da Compagnie la Résolue, da França, adapta investigação jornalística de Florence Aubenas sobre mulheres que trabalham em empregos precários e invisíveis, especialmente na limpeza e na manutenção, e que vivem à sombra da crise econômica. Dirigido por Louise Vignaud, com atuação de Magali Bonat.

L’Opéra du villageois, da Compagnie Zora Snake, de Camarões, manifesta resistência através de performance-ritual que ressuscita potência das máscaras africanas roubadas pelos museus europeus. Zora Snake atravessa dimensão sagrada para questionar pilhagem cultural colonial, utilizando bandeira da União Europeia, rituais com ouro e sal para despertar força ancestral das comunidades aldeãs consideradas “incivilizadas”.

Corpos (Cie Mangrove, Guadalupe/Brasil) explora estigmatização do corpo negro através de laboratório coreográfico desenvolvido por Hubert Petit-Phar e Augusto Soledade, questionando representações corporais e sexuais no cruzamento entre culturas caribenhas e brasileiras, investigando singularidades corporais diante de fronteiras estéticas e políticas contemporâneas.

palestra-performance La Vérité vaincra / A Verdade Vencerá recria entrevista de Lula a Ivana Jinkings 

La Vérité vaincra / A Verdade Vencerá, da Cie KastôrAgile, (França) desenvolve palestra-performance que adapta o livro homônimo de Luiz Inácio Lula da Silva, baseando-se nas entrevistas concedidas à editora Ivana Jinkings em janeiro de 2018, momento crucial anterior à prisão do ex-presidente. Gilles Pastor transforma documento político em teatro de resistência através das interpretações de Alizée Bingöllü e Jean-Philippe Salério, que recriam cenicamente os diálogos sobre julgamento, vida pessoal e trajetória política de Lula.

A obra materializa voz de resistência do homem afastado injustamente da arena política, expondo raiva sagrada contra injustiças através de linguagem cênica que articula testemunho pessoal com denúncia estrutural. No contexto do Feteag, esta criação francófona estabelece pontes diretas entre público brasileiro e reflexão internacional sobre democracia e autoritarismo, questionando como arte pode amplificar vozes silenciadas pelo poder judiciário e construir solidariedade transnacional diante de perseguições políticas contemporâneas.

Experiências Imersivas e Linguagens Expandidas

Dancemos… que o mundo se acaba!, da BiNeural-MonoKultur, da Argentina. Foto: Reprodução

Fábulas de nossas fúrias explora o universo gay. Foto: Rogério Alves / Divulgação

peça Neva, de Guillermo Calderón, em montagem de Marianne Consentino (PE)

Três criações exploram possibilidades de imersão e participação através de dispositivos que expandem linguagens teatrais tradicionais. Dancemos… que o mundo se acaba!, da BiNeural-MonoKultur, da Argentina, propõe áudio-obra interativa que transforma público em dançarinos, questionando coreomanias, epidemias de dança e comportamentos coletivos através de jogo que reflete sobre sedução, pandemia e medo de dançar sozinho.

Fábulas de nossas fúrias (Coletivo Atores à Deriva, RN) articula contação de histórias com afirmação política da raiva como elemento transformador, inspirando-se em Paulo Freire para questionar hierarquias conservadoras através de viados que justificam suas fúrias expondo modos de amar, invertendo lógicas que classificam “bichos” em estruturas de poder.

Neva, montagem de Marianne Consentino (PE), ambienta-se no Domingo Sangrento de 1905 em São Petersburgo, friccionando arte e política através de três atores refugiados em teatro durante massacre nas ruas. A peça de Guillermo Calderón questiona a serventia do teatro através de Olga Knipper, viúva de Tchekhov, que encena repetidamente a morte do marido enquanto cidade desaba, oscilando entre necessidade absoluta e total irrelevância da arte.

Formação de público como letramento cênico

No que se refere à formação de público, a Mostra Erenice Lisboa, voltada para estudantes da rede pública, desenvolve uma compreensão específica sobre letramento teatral. Através das apresentações de O Vira-lata, da Trupe Ave Lola, seguidas de conversas entre artistas e estudantes, o festival promove o desenvolvimento de repertórios simbólicos e críticos.

Este letramento teatral envolve a construção de ferramentas interpretativas que permitam aos jovens ter apreciar as criações teatrais em suas potencialidades expressivas. As conversas pós-apresentação funcionam como espaços de processamento coletivo da experiência estética, fundamentais para a formação de público crítico e engajado com as artes cênicas.

Atividades Formativas: Aprendizado e Troca de Saberes

Paralelamente, as oficinas propostas pelo festival desenvolvem lógicas distintas mas complementares de formação artística. A oficina com Gaëlle Bourges permite aprofundamento na pesquisa específica da artista francesa sobre feminilidade e construção de imagens corporais. Já a oficina do Teatro Container integra os participantes no processo de montagem de La Cocina Pública, criando vínculos entre formação teórica e prática artística concreta.

Vendas e Mordaças, oficina exclusiva para mulheres conduzida por Faeina Jorge, Juliana Veras e Monique Cardoso, propõe vivência sensorial e afetiva em torno de identidades femininas através de exercícios que articulam corpo, voz e memória pessoal. Por outro lado, o workshop Corpos e Territórios, ministrado por Hubert Peti-Phar, articula fundamentos culturais brasileiros e guadalupenses através de práticas corporais que dialogam com tradições ancestrais e princípios contemporâneos da dança.

Larissa Lisboa apreenta espetácuo Inquieta, com participação de Gabi da Pele Preta

A programação musical está garantida com o espetáculo Inquieta, performance de Larissa Lisboa com participação de Gabi da Pele Preta, evidenciando nova cena musical pernambucana focada em compositoras negras e LGBTQIA+. Larissa Lisboa, cantora e multi-instrumentista recifense, constrói repertório que mistura criações autorais com obras de compositoras contemporâneas locais, enquanto Gabi da Pele Preta, de Caruaru, desenvolve sonoridade inovadora que mescla maracatu, coco, afoxé com jazz, soul e reggae, celebrando identidade negra através de conscientização social musicada.

Sustentabilidade e Articulação Institucional

Quanto à sustentabilidade, a rede de apoios do FETEAG 2025 demonstra capacidade articulatória entre diferentes esferas: federal (Ministério da Cultura), estadual (Funcultura, Fundarpe), municipal (Fundação de Cultura de Caruaru) e privada (Banco do Nordeste, Rede Itaú, Vale). A parceria com o Consulado Geral da França viabiliza a programação francófona dentro da Temporada França-Brasil 2025, demonstrando como acordos bilaterais podem amplificar recursos para programação cultural.

Com 34 edições no currículo, o Feteag confirma a qualidade artística com relevância social, diversidade internacional com fortalecimento da produção local, formação de público com experimentação estética. Esta programação evidencia como festivais podem funcionar como plataformas de articulação entre diferentes mundos – artísticos, sociais, educacionais, políticos. Neste contexto, o festival afirma o teatro como necessidade social e política em tempos de urgência democrática, construindo experiências coletivas de pensamento e sensibilidade.

Programação Completa do FETEAG 2025

RECIFE
09 e 10/10

À mon seul désir (Ao meu único desejo),
de Gaëlle Bourges (França)
Local: Teatro Luiz Mendonça | Horário: 20h | Classificação: 18 anos

CARUARU
15/10

Dancemos… que o mundo se acaba!,
de BiNeural-MonoKultur (Argentina)
Local: Estação Ferroviária | Horário: 19h | Classificação: Livre

Édipo REC, do Grupo Magiluth (PE)
Local: Teatro Lycio Neves | Horário: 20h | Classificação: 18 anos

16/10

Fábulas de nossas fúrias, de Cia de Atores à Deriva (RN)
Local: Teatro Lycio Neves | Horário: 20h | Classificação: 16 anos

17/10

NEVA,
de Marianne Consentino (PE)
Local: Teatro Lycio Neves | Horário: 20h | Classificação: 16 anos

18 e 19/10

Sonho de uma noite de verão,
da Trupe Ave Lola (PR)
Local: Teatro Rui Limeira Rosal | Horário: 17h | Classificação: 12 anos

A Cozinha Pública (La Cocina Pública),
Teatro Container (Chile)
Local: Centro de Formação Paulo Freire (Assentamento Normandia) | Horário: 17h | Classificação: Livre

20 a 24/10

O Vira-lata,
da Trupe Ave Lola (PR) – 
Local: Teatro Lycio Neves | Horário: 9h | Classificação: Livre

20/10

Itaêotá,
do Grupo Totem (PE)
Local: Teatro Rui Limeira Rosal | Horário: 19h | Classificação: 12 anos

Cavucar,
da MANADA Teatro (CE)
Local: Teatro Lycio Neves | Horário: 21h | Classificação: 14 anos

21/10

Circo Godot,
da Cia. Circo Godot de Teatro (PE)
Local: Teatro Rui Limeira Rosal | Horário: 19h | Classificação: Livre

Aquelas – uma dieta para caber no mundo,
do MANADA Teatro (CE)
Local: Teatro Lycio Neves | Horário: 21h | Classificação: 14 anos

22/10

Se eu fosse Malcolm?,
de Eron Villar & DJ Vibra (PE)
Local: Teatro Rui Limeira Rosal | Horário: 19h | Classificação: 14 anos

Le Quai de Ouistreham (O cais de Ouistreham),
da Compagnie la Résolue (França)
Local: Teatro Lycio Neves | Horário: 21h | Classificação: 14 anos

23/10

Tempo de vagalume,
de Joesile Cordeiro (PE)
Local: Teatro Rui Limeira Rosal | Horário: 19h | Classificação: 14 anos

A Verdade Vencerá/LULA (La Vérité vaincra/LULA),
de Gilles Pastor – KastôrAgile (França)
Local: Teatro Lycio Neves | Horário: 21h | Classificação: 14 anos

24/10

Bolor,
de Gabi Holanda, Guilherme Allain e Isabela Severi (PE)
Local: Teatro Rui Limeira Rosal | Horário: 19h | Classificação: 12 anos

Les Sans (Os sem),
de Les Récréâtrales-ELAN (Burkina Faso)
Local: Teatro Lycio Neves | Horário: 21h | Classificação: 14 anos

25/10

L’Opéra du villageois (A ópera do camponês),
da Compagnie Zora Snake (Camarões)
Local: Estação Ferroviária | Horário: 17h | Classificação: Livre

Corpos,
da Cie Mangrove (Guadalupe/Brasil)
Local: Teatro Rui Limeira Rosal | Horário: 19h | Classificação: 12 anos

Inquieta (Música),
de Larissa Lisboa com Gabi da Pele Preta (PE)
Local: Teatro Lycio Neves | Horário: 21h | Classificação: 16 anos

RECIFE
26/10

À un endroit du début (Em algum lugar no início),
de Germaine Acogny e Mikaël Serre (Senegal/França)
Local: Teatro de Santa Isabel | Horário: 19h | Classificação: 14 anos

Oficinas e Atividades Formativas

Workshop Corpos e Territórios – Hubert Peti-Phar
Oficina de Criação – Teatro Container
Pesquisa Corporal – Gaëlle Bourges
Vendas e Mordaças – Faeina Jorge, Juliana Veras e Monique Cardoso (exclusiva para mulheres)

Serviço

📍 Período: 09 a 26 de outubro de 2025
🎭 Entrada: Gratuita mediante retirada de ingressos no Sympla
🏛️ Locais: Teatro Santa Isabel (Recife), Teatro Luiz Mendonça (Recife), Teatro Lycio Neves (Caruaru), Teatro Rui Limeira Rosal (Caruaru), Estação Ferroviária (Caruaru), Centro de Formação Paulo Freire – Assentamento Normandia (Caruaru)
🎯 Direção Geral: Fabio Pascoal
👥 Curadoria Mostra PE: Vika Schabbach e Igor Lopes
💰 Apoio: Ministério da Cultura, Funcultura, Fundarpe, Fundação de Cultura de Caruaru, Banco do Nordeste, Rede Itaú, Vale, Consulado Geral da França
ℹ️ Mais informações: @feteag

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Dança das origens
Crítica do espetáculo À un endroit du début

Germaine Acogny em À un endroit du début. Foto: Thomas Dorn / Divulgação

Germaine dança para seu pai, sua avó paterna e suas heranças africanas. Foto: Thomas Dorn / Divulgação

A performance multimídia À un endroit du début (Em Algum Lugar no Início), de Germaine Acogny, se move junto à biografia dessa dançarina e coreógrafa africana de carreira singular. Nesse solo, seus movimentos envolvem uma vida;  atravessam várias gerações; e ainda, abarcam memórias de colonialismo, origens e antepassados, tradição, identidades múltiplas, questionamentos contemporâneos.

As palavras de seu pai, um funcionário colonial; as vivências da sua avó, sacerdotisa vudu do Dahomey  (um reino africano que existiu entre 1600 e 1904, foi derrotado pelos franceses e o país foi anexado ao império colonial francês), abrem caminhos no tempo. Por gestuais e falas dessa artista de 76 anos, de vitalidade invejável, À un endroit du début exibe-se como um espetáculo desconcertante, de incrível força, visceral e emocionante.

Germaine Acogny entra em cena, senta-se no palco e lê um trecho do diário Narrativas de Aloopho. “Terminando de escrever sua biografia, meu pai diz”:

Permitam-me formular um desejo: que os homens, todos os homens, independentemente das suas origens e concepções religiosas ou filosóficas, se conheçam complementares uns dos outros e estabeleçam o diálogo indispensável. Veremos que os preconceitos cairão uns após os outros e que a terra será propriedade de todos. Viena, 10 de Agosto de 1979, Togoun Servais Acogny.

Em seguida, a artista apaga uma vela e olha para a foto projetada do pai, que parece lhe sorrir.

Togoun Servais Acogny foi administrador das colônias no Senegal dos anos 1950 e exerceu a função de diplomata em Viena. No livro paterno – não publicado – ele fala de coisas que o afetaram na época. A mãe de Togoun, Aloopho, uma sacerdotisa Yoruba, deu à luz aos 60 anos. Germaine conclama essas duas figuras para traçar sua história pessoal e familiar, provocando intepretações sobre o papel da mulher na África.

A dançarina lê em voz alta, canta, escreve palavras no ar, se desloca no espaço, honra seus antepassados convocando os rituais da avó, reclama memórias de infância submersas em enigmas.

Toi, Aloopho, ma mère, aujourd’hui tu n’est plus, ton souvenir s’efface, tu es Dieu toi même… tu as eu foi en tes Dieux et cela a suffit pour m’enggendrer. Si je remarque des erreus sur la route que tu m’as tracée, je sais au moins qu’elle ne t’a point conduit, toi, à une vie dépravée. Togoun Servais Acogny.

Tu, Aloopho, minha mãe, hoje já não és mais, a tua memória está a desvanecer-se, tu és Deus tu mesma… tiveste fé nos teus Deuses e isso foi o suficiente para me atormentar. Se eu reparo nos erros do caminho que me traçaste, pelo menos sei que ele não te conduziu, a ti, a uma vida corrompida. Togoun Servais Acogny.

A um lugar do início denuncia a negação feita pelo pai da artista aos costumes cerimoniais ancestrais senegaleses – defendidos por sua avó -, influenciado pelo colonialismo e pela conversão ao catolicismo. Ela exprime uma sociedade em guerra de valores em movimentos fortes, que passam inevitavelmente pela fúria contra os brancos e pontos de inadequação com sua própria comunidade. 

No coração dessa cena, uma dançarina feminista denuncia a violência contra as mulheres e acusa a poligamia, defendida por seu pai “convertido”. Celebra a herança abjurada, com seus cantos e danças mágicos. Ela vai ao seu lugar de início. E questiona o apagamento da memória comunitária, de uma identidade fraturada.

Moi, Togoun Sevais Acogny, j’avais 9 ans quand on m’a inculqué l’idée que les Dieux de ma mère, Aloopho, étaient des démons. “Le fétiche de Python” , me disait-on, s’est transformé en homme et a fait manger la fruit défendu à Eve . Tout cela a fini par provoquer en moi la haine des fetiches de ma mère. 

Eu, Togoun Sevais Acogny, tinha nove anos quando fui ensinado que os deuses da minha mãe, Aloopho, eram demônios. “Le fétiche de Python” , diziam-me, transformou-se em homem e fez Eva comer o fruto proibido. Tudo isso acabou por me fazer odiar os amuletos da minha mãe.

Facas projetadas refletem o corte das tradições. A artista se move angustiada entre as escolhas de seu pai e as ações de sua avó. Germaine traduz outros conflitos íntimos com sua dança. Foto Thomas Dorn

Germaine Acogny gosta de se apresentar como “uma mulher negra, nascida em Bénin, etnia yoruba, crescida no Senegal, divorciada com dois filhos, recasada com um alemão”. Desde a montagem do solo autobiográfico À un endroit du début, em 2015, ela prefere chamar-se “Germaine Marie Pentecôte Salimata Acogny”. Ela nasceu no dia de Pentecostes em 1944, e foi batizada duas vezes, na religião católica e mulçumana. 

O questionamento feminista de Germaine é espiralado nesse espetáculo em que a mulher sofre, se revolta, exalta, desconstrói paradigmas culturais, reconstrói atos contemporâneos, mas não larga as essências da tradição impregnadas nas suas células ancestrais e familiares. Sua dança está carregada dessa porosidade. Entre mutações e influências do tempo, em movimentos coloniais, religiosos, sociais.

as ideias de seu pai, que expõe os inconvenientes da monogamia e do casamento na igreja

A encenação do franco-alemão Mikael Serre cruza a dança, a narração, o teatro e a projeção de fotografias e de filmes (captações documentais e criações de Sébastien Dupouey). Mikael Serre já disse que “Germaine encarna o que quase todos nos tornamos, humanos em trânsito, exilados, convertidos e reconvertidos”.

O vocabulário gestual da bailarina está carregado das figuras tradicionais da dança africana e do contemporâneo, inspirados ainda nos bamboleios do trabalho de campo ou de casa. Um solo, com o palco vazio, repleto de uma população. Da família de Acogny, da herança africana, do multiculturalismo. Passa por diversos estados emocionais, da contemplação, transe, cólera, oração. Uma cortina de fios, na qual  são projetados  testemunhos e imagens do pai de Germaine, serve de provocação cognitiva de orgulhoso e rebeldia.

A música composta por Fabrice Bouillon alimenta a mudanças de pulsação coreográfica. São potentes os movimentos de seus braços e quadris fortes, sublinhando nos seus passos as forças ancestrais. Ela manipula com vigor a parte inferior do seu vestido longo criando outras formas. 

Filmagens de ações culturais no Senegal.

As influências de Germaine são complexas, dos estudos da dança em centros importantes da Europa às heranças artísticas e identitárias. Em 1960 ela se mudou de Dakar, Senegal, para a França em busca de dança moderna e treinamento de balé. Entre 1977 e 1982, Germaine dirigiu a Mudra Afrique, em Dakar, uma escola de dança idealizada por Maurice Béjart (1927-2007) e pelo primeiro presidente senegalês (1960 a 1980), Leopold Senghor (1906 – 2001) – poeta que cunhou, junto com o poeta antilhano Aimé Césaire (1913 – 2008), o termo “negritude”. Em 1998, Germaine cofundou a l’École des Sables (Centro internacional de danças tradicionais e contemporâneas africanas), em Toubab Dialaw, Senegal, com seu marido Helmut Vogt.

Essa autobiografia dançada forte e impactante, no entanto, não se oferece fácil na escolha plural de linguagens: memória; ficção; posicionamentos existenciais, poéticos e políticos, nessa profusão de imagens e textos, narrativas e reportagens sobre o Senegal, coreografia e questionamento social.

Depois de passar por diversos estados e tempos no palco, Germaine Acogny aparece com uma fantasia de gris gris (amuleto feito por um feiticeiro para dar sorte e conjurar os maus feitiços), uma sinalização de que é preciso preservar a memória. Mas também se despe da alegoria, lembrando que a tradição não deve engessar seus passos.

As suas últimas palavras, dirigidas ao seu pai, “Perdoo-te”, são de grande poder. Ela que se autoproclama “réincarnation” de sua avó Aloopho diz: 

Papa,
Je suis ta mère.
je te baptise.
je te pardonne

O espetáculo teve transmissão em vídeo gravado e exibido no contexto do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, do Recife. Não me pareceu a melhor filmagem do espetáculo. A produção do festival também não considerou que seria necessário legendar a montagem, o que causou prejuízo na recepção. À un endroit du début é um espetáculo de dança, teatro, vídeo, e mais, falado em francês, repleto de referências autobiográficas, de uma artista muito importante da dança mas, possivelmente, não tão conhecida do público deste JGE. Realmente uma falha.

Confira a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Bem, para quem se interessar pelo trabalho de Germaine Acogny existe uma filmagem disponível, recente, de dezembro último, feita pelo Théâtre de la Ville de Paris, em francês, uma gravação de qualidade, com contraplanos, zoons, closes, que corta menos as projeções dos textos. O ponto negativo da gravação é a permanência do logo da TV e do programa em letras grandes. O do teatro também está lá, mas é discreto e não incomoda.

Sim, a filmagem inicia com a apresentação do diretor do Théâtre de la Ville, Emmanuel Demarcy Mota, uma fala do cofundador da l’École des Sables e companheiro de Germaine, Helmut Vogt, e do diretor da peça, Mikael Serre. Além de uma pequena reportagem com Germaine Acogny. O espetáculo em si começa aos 12 minutos e 39 segundos da gravação.

 

Sombras e fantasmas

Ficha técnica:

À un endroit du début (Num lugar do início), com Germaine Acogny
Coreografia e interpretação: Germaine Acogny.
Direção: Mikael Serre.
Assistente coreógrafo: Patrick Acogny.
Cenografia: Maciej Fiszer.
Figurino: Johanna Diakhate-Rittmeyer.
Música composta e interpretada: Fabrice Bouillon «Laforest».
Vídeo: Sébastien Dupouey.
Luzes: Sebastian Michaud

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