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Começo, meio, começo
Crítica: Àwọn Irúgbin
Por Annelise Schwarcz*

Àwọn Irúgbin participou da programação do OFFRec, no FRTN 2025. Foto: Ricardo Maciel

Em 1989, Beatriz Nascimento – historiadora e intelectual brasileira –, lançou em parceria com Raquel Gerber o filme Ôrí. Enquanto historiadora, Beatriz observava como o negro é retratado na historiografia do Brasil apenas sob a ótica da escravidão. É no intuito de devolver a humanidade e a identidade negra roubada ao longo do processo da colonização que Beatriz se lança em sua pesquisa em torno da reconstrução dessa imagem. No filme Ôrí (1989), temos Beatriz – na qualidade de narradora e roteirista – compartilhando os frutos dessa pesquisa. O que estava em disputa com o resgate dos símbolos da cultura negra no país era a construção de uma identidade como instrumento de auto afirmação racial, intelectual e existencial. O filme retrata a organização dos movimentos negros brasileiros das décadas de 70 e 80, os barracões e as apresentações das escolas de samba, terreiros, encontros acadêmicos entre intelectuais negras/os, os bailes blacks e mais uma série de expressões artísticas afrodiaspóricas, manifestações religiosas e eventos em torno da construção de uma agenda negra. Todos esses registros visavam responder à questão “onde é quilombo hoje?” e oferecer um reflexo no qual a/o negra/o pudesse se reconhecer.

Beatriz Nascimento abriu caminhos para que muitas e muitos, após ela, seguissem somando na busca pela identidade negra, disputando a construção de imagens para além daquelas estigmatizantes que remetem ao colonialismo e que, ainda hoje, são disseminadas pelo racismo cordial à brasileira. O convite de Nascimento para escrever “uma história feita por mãos negras” (título de um de seus livros), encontrou reverberação e hoje assistimos a uma verdadeira proliferação de mãos negras tecendo histórias ou, para ficarmos com o termo de Conceição Evaristo, compondo um grande arquivo a partir de suas escrevivências: deixando o lugar de objeto dos discursos dominantes e assumindo a autoria de suas próprias narrativas. 

Àwọn Irúgbin, espetáculo apresentado no OFFRec 2025 compondo a programação do Festival Recife do Teatro Nacional, é mais uma realização comprometido com o resgate e valorização da cultura negra. Deixando evidente sua orientação pelas ideias de Beatriz Nascimento, o elenco – composto exclusivamente por jovens negras/os da periferia da Região Metropolitana do Recife – nos recebe dançando, como em um baile black, e nos convida a dançar também. Em seguida, cita as palavras da autora sergipana, presentes no filme Ôrí: “É preciso imagem para recuperar a identidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade”. 

A peça é resultado de uma residência de dois anos com o núcleo O Postinho, uma residência oferecida pelo grupo O Poste Soluções Luminosas. A Escola O Poste de Antropologia Teatral oferece uma formação que inclui atividades como “Tradições da Mata: Cavalo Marinho e Maracatu de Baque Solto na construção do ator”, com Andala Quituche; “O Corpo Ancestral – Práticas de Treinamento Ancestral do grupo O Poste Soluções Luminosas” e “Voz Criativa”, com Naná Sodré; “Tradição indígena como preparação para o corpo do ator”, com Iara Campos; “Poética Matricial dos Orixás e Encantados” e “A criação do figurino e acessibilidade em perspectiva acessível de retomada”, com Agrinez Melo; “O Performer Ancestral” e “Dramaturgia”, com Samuel Santos; “Capoeira no jogo do ator”, assinada por Gaby Conde, além de preparação de corpo, de voz, criação de figurinos, aulas de danças diaspóricas e aulas de história do teatro negro-africano.

Àwọn Irúgbin, que significa “sementes” em yorubá, consiste em um espetáculo composto por quatro cenas unidas pela temática da busca por uma referência na qual a/o negra/o possa se reconhecer, com dramaturgias distintas em cada cena desenvolvidas pelo próprio elenco. As diferentes potências e o fato de cada cena ser idealizada por um/a artista diferente resulta numa montagem de qualidade heterogênea, mas também é prova do incentivo à autonomia e à conquista da própria voz, por parte do grupo O Poste. Cada cena tem como pano de fundo as escrevivências de Cecília Chá, Larissa Lira, Sthe Vieira e Thallis Ítalo em diálogo com suas referências, como quem nos conta quem plantou as sementes para que eles pudessem colher os frutos como, por exemplo, Zumbi dos Palmares, João Cândido, Luiza Mahin, Luiz Gama, Conceição Evaristo, Leda Maria Martins, além da já mencionada Beatriz Nascimento. Todas essas figuras complexificam o quadro do que é ser negra/o e contribuem para o alargamento da história e da cultura afrodiaspórica no Brasil, superando narrativas de invisibilização e subalternidade. 

Larissa Lira dedica a sua cena à Elza Soares e relembra marcos do Brasil e da vida pessoal da cantora costurados pelas letras de suas músicas (“O meu país é meu lugar de fala”, trecho de o que se cala, e “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, trecho de A carne). Elza, que sofreu tentativas de feminicídio e agressões do seu ex-companheiro, é apresentada como signo de força e resistência a partir da contação de um sonho com búfalos e com a orixá Iansã. Como uma espécie de porta-bandeira – toda de verde brincando e girando com uma bandeira de cor verde sólida –, a jovem atriz busca mimetizar em sua dicção o timbre inconfundível da voz rasgada de Elza, demonstrando o tamanho de sua extensão vocal explorando dos sons mais graves aos agudos, privilegiando o experimento sonoro à transmissão do texto. 

Espetáculo é fruto de uma residência do núcleo O Postinho, projeto do grupo O Poste Soluções Luminosas. Foto: Ricardo Maciel

Na cena seguinte, Sthe Vieira interpreta uma afroindígena que não encontra figuras semelhantes a si mesma nas revistas, jornais, filmes e propagandas. Sua cena dá o tom da interseccionalidade entre as lutas das gentes negras e indígenas. Assim como na citação de Beatriz Nascimento que abre a peça, ela também está em busca de sua identidade e as imagens de mulheres na mídia a afastam da sua cultura, história e percepção de si. 

Sthe canta a música Me usa da Banda Magníficos e dá voz a uma narrativa muito familiar a muitos/as brasileiros/as: a da avó ou bisavó “pega no laço”. O eufemismo dessa expressão – que não é utilizada pela atriz – esconde que ser “pega no laço”, na verdade, significa ser levada contra sua vontade, sequestrada. Sthe, ao evitar a expressão popular, dá o tom da gravidade e nos faz estranhar o forró que nos é tão familiar quanto a expressão aqui citada: “Amor, me leva e faz de mim o que quiser. Me usa. Me abusa, pois o meu maior prazer é ser tua mulher”. Crescendo longe de suas referências, ela se volta à sua ancestralidade através da música: a personagem – que desde o início da cena veste um cocar – toca chocalho, canta ponto de caboclo e canta em uma das línguas originárias acompanhada pelas/os demais artistas do elenco, que estão tocando ao vivo alguns instrumentos do outro lado do palco do teatro Hermilo Borba Filho. 

Cecília Chá também manda um salve para as mais velhas em sua cena e homenageia as vovós. Talvez o momento mais emocionante da montagem seja o momento em que Cecília interpreta uma neta ao lado de sua avó vendo nuvens. A atriz consegue criar uma atmosfera na qual a vemos ali, junto com essa avó, apontando para o céu e reconhecendo pessoas nas nuvens: Bernadete Pinheiro, Sueli Carneiro, Nego Bispo, Conceição Evaristo e, de repente, a avó já não está mais ali. Isso não a impede de seguir conversando com a sua avó. Cecília nos transporta para uma sessão de Preto Velho num terreiro de umbanda. Ouvimos o ponto da Vovó Maria Redonda enquanto Cecília se transmuta na Preta Velha. A neta e a avó se encontram no mesmo corpo e nos lembram que não há fim: apenas começo, meio e começo. Ela(s) se agacha(m), risca(m) com pemba uma espiral no chão com algumas nuvens dentro e nos pede(m) para não esquecermos o formato das nuvens como quem pede para não esquecer dos que vieram antes de nós, pois assim como as nuvens, eles/as ainda nos acompanham. 

Àwọn Irúgbin reverbera ideias de Beatriz Nascimento. Foto: Ricardo Maciel

O palco está no meio, entre as duas arquibancadas, e o público está dividido por esse corredor onde se dão os atos. A montagem brinca com a extensão desse corredor, aproveitando que estamos olhando em determinada direção para aprontar a próxima cena na direção oposta. Thallis Ítalo surge dentro de uma bacia de água do lado oposto do palco enquanto nosso olhar ainda se despedia de Cecília. A cena de Thallis, diferentemente das demais, parece explorar um conflito interior. Seu personagem se chama Obelin e nasceu próximo às águas de Oxum, filho de mãe preta, mas por ser mais claro que sua mãe, ele não sabe que cor tem. Thallis aborda a questão da mestiçagem e do colorismo. A que coletividade pertence um filho claro de uma mãe de pele escura? Em busca de respostas, Obelin vaga pelas águas de rio e de mar. Como elemento cenográfico, Thallis lança mão de uma bacia com água e não economiza banhos ao longo de suas cenas, permitindo-se até mesmo dar eventuais banhos na plateia de tabela.

Sthe Lima interpreta Yemanjá, a rainha do mar, e Larissa Lira interpreta Oxum na cena de Thallis. As duas cantam em yorubá, enquanto Obelin segue em busca da resposta pela sua ancestralidade. É Vovô Dedé quem lhe pede para olhar para seu reflexo nas águas e, assim, Obelin se reconecta com suas raízes negras, remetendo mais uma vez à citação de Beatriz Nascimento: “A invisibilidade está na raiz da perda da identidade”.

A montagem, que não tem fim, “termina no meio” da mesma forma que começa: trazendo o público para dançar como em um baile black. O lema espiralar “começo, meio e começo” se configura em um dispositivo performativo e organiza a estrutura da montagem que, devido ao seu caráter episódico, poderia vir a ter no futuro, se for do desejo das/os envolvidas/os, mais cenas e artistas acoplados/as ao espetáculo multiplicando essas sementes. Me pergunto, apenas, se ao insistir em frases como “o negro é espiralar, o negro dança, o negro ginga” não acabamos por criar novos essencialismos acerca da identidade negra. Quero dizer: será que na busca pela identidade negra, ao invés de contribuir com o alargamento e complexificação do ser negra/o, não estamos incorrendo em novas clausuras ao afirmar que “o negro” – já começando pelo uso da palavra no singular e no masculino – é definido pelos atributos do que o seu corpo pode fazer? Não estamos mais uma vez reincidindo numa essencialização do que somos e/ou podemos ser ao investir nessa relação direta entre as gentes negras e o corpo? Podemos não ser ou não fazer o que dizem que fazemos? Creio que essa conversa talvez não caiba nesta crítica – o que não quer dizer que gostaria que ela terminasse aqui –, mas quero, desde já, lançar também algumas sementes. 

* A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife.

Ficha técnica:
Produção/direção: Núcleo O Poste Soluções Luminosas / Agrinez Melo
Elenco: Cecília Chá, Larissa Lira, Sthe Vieira e Thallis Ítalo
Preparação corporal/ancestral/voz: Naná Sodré e Darana Nagô
Preparação poética/figurino: Agrinez Melo
Assessoria dramatúrgica: Samuel Santos
Aulas de história do teatro negro-africano e performance Bantue: Jeff Vitorino e Matheus Amador
Assessoria de imprensa: Daniel Lima

Cena de Thallis Ítalo explora questão da mestiçagem e do colorismo. Foto: Ricardo Maciel

 

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A Insurreição Que Assombra
Sessão única de Ayiti,
com Marconi Bispo

 

Marconi Bispo desvela em Pernambuco a revolução haitiana que permanece silenciada nos livros de história. Foto: Arthur Canavarro

Existe uma lacuna imensa na educação brasileira. Uma ausência que não parece casual, mas estratégica. Enquanto aprendemos sobre diversas revoluções ao longo da formação escolar, uma permanece deliberadamente esquecida: a única insurreição escrava vitoriosa da história moderna, que aconteceu no Haiti entre 1791 e 1804. É exatamente essa ferida na memória coletiva que o experiente artista pernambucano Marconi Bispo decidiu confrontar.

Aos 30 anos de carreira — trajetória que o consolida como uma das vozes mais consistentes das artes cênicas pernambucanas —, Marconi apresenta Ayiti, a montanha que assombra o mundo, trabalho que inaugura em solo pernambucano um diálogo cênico com a Revolução Haitiana. A montagem retorna ao cartaz nesta terça-feira (14), às 20h, no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife Antigo.

Descolonizando a Dramaturgia 

O projeto nasce de uma inquietação que indaga por que a primeira república negra da história mundial, que derrotou militarmente França, Espanha e Inglaterra, permanece ausente dos currículos escolares? Por que essa vitória extraordinária – que antecipou em décadas os ideais de igualdade racial — foi sistematicamente apagada da historiografia oficial?

Marconi Bispo, em parceria com o pesquisador Kamai Freire, constrói uma dramaturgia que vai além da reconstituição histórica. O espetáculo avança como arqueologia da resistência, escavando memórias soterradas e devolvendo dignidade a narrativas marginalizadas. A pesquisa, baseada em 13 obras sobre o tema e amadurecida durante residência artística em Portugal, revela conexões históricas surpreendentes entre Recife e Haiti.

“A ilha era chamada de Kiskeya — Mãe de Todas as Terras — pelo povo Taíno”, explica o artista. Essa recuperação da nomenclatura original exemplifica o método do espetáculo: desconstruir sistematicamente a linguagem colonial para assumir outras formas de compreender o mundo.

Além de Marconi, estão no elenco Brunna Martins, Kadydja Erlen e os músicos Beto Xambá e Thulio Xambá

A força da montagem resulta da articulação entre diferentes linguagens artísticas afro-pernambucanas. O elenco reúne Brunna Martins, Kadydja Erlen e os músicos Beto Xambá e Thulio Xambá, do respeitado Grupo Bongar. Essa formação processa a confluência de tradições culturais que dialogam diretamente com o universo revolucionário haitiano.

A percussão assume papel dramatúrgico central, ecoando os tambores que convocaram os escravizados para a insurreição. As batidas atuam como código ancestral, linguagem cifrada que atravessou o Atlântico e permanece viva nas manifestações culturais negras contemporâneas.

Mais que criação artística, Ayiti processa como dispositivo pedagógico, que assume dimensão política fundamental. Ele democratiza o acesso a conhecimentos que as instituições de ensino tradicionalmente negam às classes populares.

A produção independente e os ingressos a preços acessíveis (R$ 25 e R$ 50)) materializam essa vocação democrática. Marconi Bispo compreende que a arte deve circular entre as comunidades que mais se beneficiam dessas narrativas de empoderamento.

Espetáculo estabelece paralelos entre a luta anticolonial caribenha e as resistências negras em Pernambuco

O conceito de “contracolonização”, desenvolvido pelo filósofo Nego Bispo, permeia toda a construção dramatúrgica. O espetáculo pratica essa contracolonização ao recusar a vitimização dos povos escravizados e celebrar sua capacidade de auto-organização política e militar.

“A Revolução Haitiana não acabou”, defende Marconi Bispo. “Ela segue reverberando como o movimento mais impactante de todos os tempos.” Essa perspectiva transforma o Haiti de símbolo de miséria — como frequentemente aparece na mídia — em farol de dignidade e resistência.

A montagem conecta passado e presente. Ao estabelecer paralelos entre a luta anticolonial caribenha e as resistências negras em Pernambuco, o espetáculo fortalece genealogias de luta que nutrem as comunidades afro-brasileiras contemporâneas.

A pergunta que atravessa toda a encenação — “Qual revolução você ainda não fez?” — sintetiza esse potencial transformador. Ayiti convoca cada espectador a refletir sobre seu papel na construção de uma sociedade antirracista e verdadeiramente democrática.

Leia a outra matéria sobre Ayiti AQUI

Serviço

Ayiti, a montanha que assombra o mundo

14 de outubro de 2025 (terça-feira), 20h
Teatro Hermilo Borba Filho (Cais do Apolo, 142 – Recife Antigo)
Ingressos: R$ 25 (meia) / R$ 50 (inteira)
Vendas: bit.ly/3L5xPQg

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Ayiti: o espetáculo da revolução

Ayiti, a montanha que assombra o mundo se desenvolve em um contexto de crescente questionamento às narrativas históricas hegemônicas. Foto: Marina Cavalcante / Divulgação

A Revolução Haitiana (1791-1804) foi uma insurreição que desafiou as bases ideológicas do colonialismo europeu e demonstrou a falência moral do sistema escravocrata. Contudo, permanece sistematicamente marginalizada nos currículos escolares das elites acadêmicas e dos Estados nacionais. Neste sábado, 2 de agosto, Marconi Bispo apresenta no Teatro Solo Gens, no Recife Antigo, a pré-estreia de Ayiti, a montanha que assombra o mundo. O espetáculo resgata essa memória silenciada e marca os 30 anos de carreira de desse artista,  uma voz coerente e lúcida do teatro político que fala a partir de Pernambuco e do Nordeste brasileiro.

O ator confronta diretamente o cânone historiográfico ocidental ao colocar em cena o que o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot definiu como “o evento impensável da modernidade” – uma revolução que a mentalidade colonial não conseguia nem mesmo conceber como possibilidade histórica. A montagem questiona por que uma revolução tão impactante permanece ausente dos sistemas educacionais globais.

Enquanto a Revolução Francesa (1789-1799) ocupa lugar central nos estudos históricos mundiais, poucos conhecem o movimento simultâneo que, nas Antilhas, superou em radicalidade os próprios jacobinos parisienses. Esta disparidade não é acidental: revela o caráter eurocêntrico da produção do conhecimento histórico.

A revolução haitiana foi mais radical porque os escravizados de Saint-Domingue (atual Haiti) levaram os ideais iluministas às suas consequências lógicas finais. Enquanto os revolucionários franceses mantiveram a escravidão nas colônias e excluíram mulheres e pobres dos direitos políticos, os insurgentes haitianos aboliram simultaneamente escravidão, colonialismo e hierarquias raciais. Entre 1791 e 1804, aproximadamente 500 mil africanos escravizados derrotaram militarmente França, Espanha e Inglaterra, expulsaram os colonizadores e fundaram a primeira república negra independente das Américas.

Pernambucano Marconi Bispo leva aos palcos a insurreição que apavorou impérios e inspirou liberdades. Foto: Inês Costa / Divulgação 

Michel-Rolph Trouillot, autor de Silencing the Past: Power and the Production of History (1995), argumenta que “a Revolução Haitiana é o acontecimento mais revolucionário na história das revoluções” precisamente porque representa uma ruptura ontológica – isto é, uma quebra fundamental na própria concepção de realidade – no pensamento ocidental. Trouillot, professor de antropologia na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, Estados Unidos) até sua morte em 2012, demonstra como essa revolução foi sistematicamente apagada por contradizer as bases ideológicas da supremacia branca – sistema de poder que estabelece a superioridade racial europeia como fundamento natural da organização social.

Sob a liderança de figuras extraordinárias como Toussaint Louverture (1743-1803) – ex-escravizado que se tornou autodidata em latim, francês, história militar e filosofia política –, Jean-Jacques Dessalines (1758-1806) – general que proclamou a independência haitiana e se tornou o primeiro governante do país livre –, e Henri Christophe (1767-1820) – que construiu fortalezas monumentais ainda hoje patrimônio da UNESCO –, os revolucionários haitianos derrotaram os exércitos de Napoleão Bonaparte e proclamaram a abolição total da escravidão 64 anos antes do Brasil.

O impacto global foi imediato e aterrorizante para as potências escravistas. Thomas Jefferson, terceiro presidente americano e proprietário de mais de 600 escravizados, conforme documenta a obra Master of the Mountain (2012) do historiador Henry Wiencek, impôs embargo comercial total ao Haiti e se recusou a reconhecer sua independência. A França, por sua vez, exigiu uma indenização de 150 milhões de francos (equivalente a cerca de 21 bilhões de dólares atuais) pela “perda de propriedade” – os próprios ex-escravizados –, dívida que estrangulou economicamente o país até 1947.

Por que essa revolução permanece ausente dos currículos escolares brasileiros e mundiais? A resposta encontra-se na própria natureza transformadora radical do episódio – sua capacidade de romper completamente com as estruturas de poder estabelecidas. Como explicar que africanos “primitivos” – segundo a ideologia colonial – derrotaram a “civilizada” Europa? Como justificar a manutenção da escravidão após escravizados demonstrarem sua capacidade revolucionária e organizativa?

Cyril Lionel Robert James (1901-1989), autor de The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution (1938), obra considerada pioneira nos estudos pós-coloniais, demonstra magistralmente como os revolucionários haitianos aplicaram os princípios da Revolução Francesa com uma coerência que os próprios franceses não tiveram. Enquanto Robespierre guilhotinava aristocratas mas mantinha a escravidão colonial, Toussaint abolia a escravidão e estabelecia igualdade racial absoluta.

A Perspectiva Decolonial de Marconi Bispo

Bispo tem 45 produções cênicas na trajetória. Foto: Leandro Lima / Divulgação

Dramaturgia entrelaça performance corporal, percussões de matriz africana, poesia oral e dança ritual. Foto: Lucas Emanuel / Divulgação

Ayiti, a montanha que assombra o mundo nasce de um contexto de crescente questionamento às narrativas históricas hegemônicas. Marconi Bispo constrói uma dramaturgia que entrelaça performance corporal, percussões de matriz africana, poesia oral e dança ritual, estruturando o espetáculo como o que a teórica Leda Maria Martins denomina “oralitura” – conceito que reconhece as tradições orais africanas como epistemologias legítimas, desenvolvido em obras como Afrografias da Memória (1997).

“Por que sabemos tão pouco sobre a revolução que fundou a primeira nação negra de ex-escravizados a derrotar invasores, expulsar colonizadores, abolir escravidão e proclamar soberania absoluta?”, questiona Bispo. A pergunta funciona como fio condutor dramatúrgico porque sua resposta revela os mecanismos de apagamento que ainda operam na contemporaneidade.

O artista estabelece conexões históricas concretas entre Haiti e Pernambuco através de uma metodologia que denomina “cartografia afroatlântica”. Ambos territórios compartilham heranças iorubás, experiências quilombolas e tradições de resistência que atravessaram o Atlântico. A Revolução Haitiana ecoou diretamente no Quilombo dos Palmares (século XVII, Serra da Barriga/AL), na Revolta dos Malês (1835, Salvador/BA) – insurreição de escravizados muçulmanos que planejavam tomar o poder na Bahia –, e na Cabanagem (1835-1840, Pará) – revolta popular que chegou a controlar a província paraense por quase um ano.

A Colaboração Acadêmica Internacional

A dramaturgia compartilhada com Kamai Freire adiciona rigor acadêmico internacional ao projeto. Freire, maestro e sacerdote de candomblé que desenvolve pesquisa doutoral sobre música e espiritualidade na Revolução Haitiana pela Universidade HfM Franz Liszt Weimar – instituição alemã especializada em música fundada em 1872 na cidade de Weimar –, traz perspectivas que conectam sonoridades africanas, liturgias haitianas e cosmogonias afro-brasileiras.

Esta colaboração interliga diferentes tradições acadêmicas e saberes ancestrais, criando uma obra que dialoga simultaneamente com a pesquisa universitária europeia, as tradições orais africanas e as experiências diaspóricas contemporâneas. No final de 2024, entre os meses de outubro e dezembro, o artista pernambucano desenvolveu uma residência artística no Porto, Portugal, viabilizada através de uma parceria institucional que envolveu a Circolando Cooperativa Cultural, Central Elétrica, Programa InResidence e Câmara Municipal do Porto. Esta imersão investigativa na cidade portuguesa aprofundou sua pesquisa sobre as reverberações atlânticas da insurreição haitiana e suas conexões com o imaginário colonial luso-brasileiro.

Três Décadas de Arte Política Consistente

Marconi Bispo completa 30 anos de carreira em 2025, consolidando três décadas de teatro político. Sua trajetória de 45 produções cênicas evidencia uma consistência artística construída sobre compromissos éticos com as questões raciais e territoriais. Ao longo dessas três décadas, o artista desenvolveu um conceito de transformação artística permanente baseado na constante renovação das formas estéticas como instrumento de mudança social – perspectiva que encontra eco na pedagogia teatral de Paulo Freire e nas propostas de democratização cultural de Augusto Boal.

Formado pela UFPE em 1999, Bispo desenvolveu uma metodologia que articula teatro brechtiano, ritualística afro-brasileira e pedagogia freiriana. Como sacerdote iniciado para Ìyémọjá e Ọbàlùfọ̀n (2004) e Ọrúnmìlà Bàbá Ifá (2023), sua criação artística funciona como canal de ancestralidade e ferramenta de cura coletiva – conceito fundamentado nos estudos de Muniz Sodré sobre a “ciência social afro-brasileira” (Pensar Nagô, 2017), que demonstra como as tradições iorubás operam processos terapêuticos comunitários.

A pré-estreia reúne importantes nomes da cultura pernambucana: Thulio Xambá e Beto Xambá, do Grupo Bongar, trazem percussões que conectam Recife às sonoridades da resistência haitiana. Os tambores desempenharam papel fundamental na comunicação entre insurgentes durante a revolução.

Brunna Martins, Kadydja Erlen e Arthur Canavarro integram um elenco que representa a diversidade geracional do teatro negro nordestino. Esta aliança materializa redes de solidariedade artística que espelham as próprias redes clandestinas que sustentaram a comunicação entre diferentes regiões de Saint-Domingue durante a revolução. 

SERVIÇO
🎭 ESPETÁCULO “AYITI, A MONTANHA QUE ASSOMBRA O MUNDO”
📅 2 de agosto (sábado) | ⏰ 19h
📍 Solo Gens – Rua do Apolo, 70, Recife Antigo
🎫 R$ 20 (meia) | R$ 40 (inteira)
📧 marconibispo77@gmail.com | 📱 @marconi.bispo

🔥 FICHA TÉCNICA
Concepção e Interpretação: Marconi Bispo
Dramaturgia: Marconi Bispo e Kamai Freire
Coordenação de Pesquisa: Kamai Freire
Audiovisual: Arthur Canavarro, Diego Amorim, Fernando Camaroti, Hassan Santos
Projeção e Iluminação: João Guilherme de Paula
Assessoria de Imprensa: Daniel Lima
Participações: Arthur Canavarro, Beto Xambá, Brunna Martins, Kadydja Erlen, Thulio Xambá

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