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Jornada de risos e resistência
Crítica a partir de Palhaçadas – História de um circo sem lona

Risada e Risadinha, interpretados por Arnaldo Rodrigues e Alexsandro Silva, respectivamente. Foto: Divulgação  

O palhaço é um provocador de risos que nos faz refletir sobre os fiapos de humanidade que nos restam. Para alcançar o status de um verdadeiro produtor de alegrias, o caminho é longo e árduo, repleto de treinamentos e experimentações. É um processo constante para observar as reações do público e avaliar os efeitos de cada performance. Ao longo do tempo, certas práticas testadas e aprimoradas, provam-se eficazes em cumprir seu propósito.

É justamente nessa rica tradição da arte da palhaçaria que se inspira Palhaçadas – História de um circo sem lona, uma montagem da Cia 2 em Cena de Teatro, Circo e Dança. Esta peça, que estreou em julho de 2007, é fruto de uma robusta pesquisa realizada pela companhia nos circos de médio e pequeno porte da periferia recifense. Ao longo de seus 18 anos de existência, o espetáculo tem sido atualizado, tornando-se uma das peças mais exibidas do repertório do grupo.

História de um circo sem lona fez uma apresentação única dentro da programação do 23º Festival Recife do Teatro Nacional, no Teatro Barreto Júnior, para um público majoritariamente composto por estudantes de escolas da rede municipal de ensino. As expressões de alegria estampadas nos rostos das crianças evidenciam a eficácia da encenação em acionar os mecanismos do riso. As gargalhadas espontâneas e os olhares brilhantes do jovem público demonstram como a performance habilmente aciona os gatilhos da comicidade, provocando uma resposta genuína e contagiante.

A obra mergulha na herança circense pernambucana, oferecendo uma combinação de gags, quadros, números, reprises e entradas da palhaçaria clássica, cuidadosamente processados e reinterpretados.

Em cena, como dupla cômica clássica, estão Alexsandro Silva que interpreta o Risadinha, a figura palhacesca e ingênua; e Arnaldo Rodrigues que defende Risada, o esperto e autoritário da dupla, representando o patrão e dono do circo.

Arnaldo Rodrigues, com sua formação em dança, exibe uma elegância notável na precisão de seus gestos e na partitura de movimentos de Risada. Em contrapartida, Alexsandro Silva compõe Risadinha como o excêntrico e bobo que transforma tudo em brincadeira.

Complementando o duo principal, dois músicos, Flávio Santana e Davison Wescley, integram-se à cena, trabalhando os efeitos sonoros e canções do universo popular, que pontuam e amplificam o enredo cômico.

Crianças da rede pública das escolas municipais na plateia. Foto: Divulgação

O Circo Brasil enfrenta dificuldades. Foto: Divulgação

A trama se desenrola no Circo Brasil, um pequeno estabelecimento em dificuldades, com uma lona precária que mal protege das intempéries. A situação já crítica, com o circo quase falido e sem público, agrava-se drasticamente quando um incêndio consome tudo, deixando apenas o velho picadeiro. Diante dessa adversidade, os palhaços decidem levar seus números para as ruas, numa tentativa desesperada de reconstruir o circo.

A essência de Palhaçadas reside em sua capacidade de transformar tudo em objeto de riso. A dramaturgia investe em temas simples e cotidianos. Então aparece a relação entre o dominante e o subordinado. Esta dinâmica serve como alicerce para toda a estrutura cômica da peça, que se baseia em diversos elementos cuidadosamente orquestrados, como o contraste de personalidades, os jogos de status, a tensão cômica e as reviravoltas inesperadas para manter o público engajado.

O timing cômico é executado com precisão na produção de gags e piadas visuais, mostrando um senso aguçado de ritmo e entrosamento entre a equipe. A linguagem corporal exagerada, com movimentos amplos e expressivos, comunica emoções e intenções de forma explícita e divertida. Esse procedimento relacional também reflete, de forma humorada e subversiva, as hierarquias e tensões sociais do mundo real. Com isso, Palhaçadas incentiva o público rir de situações que, na vida real, podem ser opressivas ou desconfortáveis, mas na palhaçaria ganha um outro lugar. 

A sonoplastia é executada ao vivo pelos palhaços-músicos, apresentados como Sem Nome e Dunga. A dupla utiliza vários instrumentos que inclui violão, kazoo, apitos e uma bateria percussiva. Esta combinação cria uma atmosfera sonora que promove uma sinergia entre o visual e o auditivo.

Três músicas principais compõem a trilha sonora do Palhaçadas. A primeira, Vinde, vinde, moços e velhos, é uma canção de domínio público, que foi gravada pelo multiartista Antônio Nóbrega, com um arranjo composto para o espetáculo, com referências no pastoril pernambucano. A segunda música, intitulada Quem disse, fala da humanidade do palhaço, expondo suas necessidades afetivas, fisiológicas e sociais. Essa composição acompanha o ritual da passagem do chapéu. A terceira música, Alta noite, lua quieta, é um poema musicado que atenta sobre a vida nômade do artista circense.

Na cena da “passagem do chapéu”, os palhaços subvertem as expectativas do público com um toque de humor e criatividade. Em vez de pedir dinheiro, como é tradicional, eles embarcam em uma divertida missão de “empréstimos temporários”. Mochilas, sapatos, garrafa d’água, e outros, entram no jogo de confiança e diversão. 

Cena de Palhaçadas

O jogo e a cumplicidade entre os dois artistas

Dentre os vários números, cito dois que exemplificam a maestria dos palhaços em criar humor a partir de situações simples, envolvendo ativamente o público e explorando a dinâmica clássica entre o palhaço autoritário e o travesso: A Visita ao Cemitério e O Apito

A Visita ao Cemitério é um número que mistura elementos clássicos da palhaçaria com uma pitada de suspense. Os palhaços Risada e Risadinha protagonizam a cena centrada na suposta bravura de Risada, que se vangloria de ter visitado um cemitério à meia-noite. A narrativa toma um rumo inesperado quando os músicos do circo decidem pregar uma peça no palhaço fanfarrão, com um deles se disfarçando de Fantasma. Este quadro combina habilmente humor físico, timing preciso e interação com o público, exemplificando a arte da palhaçaria em sua melhor forma.

O Apito se desenrola em torno da tentativa de Risadinha e sua banda de realizar um número musical, constantemente interrompido por Risada, que alega estar com dor de cabeça. O conflito se intensifica quando Risada proíbe o uso de apitos, confiscando-os repetidamente de Risadinha. Com criatividade, Risadinha encontra formas engenhosas de continuar apitando, como esconder o apito e distribuir apitos extras para a plateia. O clímax da apresentação ocorre quando o público se torna parte ativa do espetáculo, apitando em uníssono para frustração de Risada. A cena demonstra a essência da palhaçaria: o jogo constante entre autoridade e rebeldia, regras e transgressão. Enfim, Palhaçadas – História de um circo sem lona exalta a arte da palhaçaria, evidenciando sua contínua relevância na cultura contemporânea.

Ficha Técnica
Texto / Direção: Alexsandro Silva
Elenco : Alexsandro Silva ( Palhaço Risadinha)/ Arnaldo Rodrigues ( Palhaço Risada)/ Davison wescley ( Palhaço Dunga) e Flávio Santana ( Palhaço Sem Nome)
Direção Musical: Davison Wescley
Direção de arte: Eri Moreira
Assistente de produção/ iluminadora: Cindy Fragoso
Produção Executiva: Alexsandro Silva, Arnaldo Rodrigues e Cindy Fragoso
Duração 60min
Classificação Livre

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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O palhaço da minha infância

Palhaçadas - Histórias de um circo sem lona. Foto: Pollyanna Diniz

Palhaçadas – Histórias de um circo sem lona

Palhaças – História de um circo sem lona, montagem da Cia 2 Em Cena de Teatro, Circo e Dança, é uma prova de que o “tradicional” pode sim nos envolver e surpreender. De que “invencionices” nem sempre são necessárias para nos levarem ao espaço do lúdico, da imaginação, da risada despretensiosa – mas que é cheia de significados, como só a criança consegue dar.

A peça, que foi encenada no Janeiro de Grandes Espetáculos e ganhou os prêmios de melhor ator (Alexsandro Silva), melhor ator coadjuvante (Arnaldo Rodrigues) e maquiagem, é fruto da pesquisa sobre Palhaços Brasileiros – A formação do palhaço no Brasil, realizada pela companhia.E não dá mesmo para dissociar o resultado no palco do mergulho que esses atores engendraram pelo circo tradicional. É consistente, rico, tem densidade. A dramaturgia, assinada por Alexsandro Silva (além da encenação e da preparação de palhaços), os números, as piadas, a maquiagem, o figurino, tudo tão conhecido – poderia mesmo cair no “mais do mesmo”, mas eles escapam disso com competência.

São dois palhaços que perderam tudo num incêndio e daí partem para se apresentar nas ruas. A dupla Alexsandro Silva e Arnaldo Rodrigues é uma delícia. E o primeiro consegue uma empatia com as crianças surpreendente. Quem nunca viu o número do fantasma no circo? Quer mais clichê? Mas é maravilhoso e as crianças de hoje definitivamente merecem isso.

Outro ponto alto da montagem é a música ao vivo com Flávio Santana e Davison Weslley. Agrega poesia, lirismo, brincadeira, timing certo para os números. O único momento em que para mim há uma quebra no ritmo da montagem é exatamente o final. É como se a peça viesse sempre no crescente de força e energia e naquele momento para todo mundo sair feliz do teatro – houvesse uma quebra nesse ritmo.

Palhaçadas – Histórias de um circo sem lona já tem sete anos de estrada e fez muitas apresentações em espaços públicos, principalmente em feiras livres. E, segundo os atores, está em constante recriação para nos fazer amar de novo – e sempre – a figura do palhaço.

O fantasma! Atrás de você!

O fantasma! Atrás de você!

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