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Eldorado dos Carajás em Avignon da França
Crítica do espetáculo Antigone in Amazonia
Por Viviane Dias*

Frederico Araujo na tela e na cena no papel de militante do MST. Ele também interpreta Antígona no palco presencial. Foto: Christophe Raynaud de Lage

Kay Sara no vídeo. Foto Christophe Raynaud de Lage/ Divulgação

Um clássico nunca acaba de dizer o que tem para dizer, nos lembra Ítalo Calvino. Sua força está na possibilidade de nos ajudar a ler, com todos os nossos sentidos (e os dele), o tempo que nos é dado a viver e de sermos afetados com a profundidade e o impacto que nossas mídias contemporâneas não alcançam. Mídias que ainda determinam o que pode ser visto. E aquilo que não pode. O teatro, na borda entre os mundos visíveis e invisíveis, arte da religação entre territórios nem sempre conectados, como razão-emoção, Europa-“resto do mundo”, nos ajuda a traçar os fios dos pactos que ganham as suas forças por serem escondidos. Com sua sagacidade de produzir raciocínios bastardos, uniu Antígona & Amazônia, numa experiência marcante, proposta pelo diretor suíço Milo Rau, sua trupe, artistas brasileiros e o MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. E o massacre de Eldorado do Carajás, o holocausto da floresta brasileira, o agronegócio predatório e suas alianças com o poder que destroem toda a vida e a guerra contra os povos indígenas que não cessou desde a invasão europeia foram vistos, com o apoio da tragédia grega, por um público majoritariamente europeu, que lotou o Teatro de Vedène, na França.

Vedène é a 20 minutos de Avignon, no ônibus. Era preciso um deslocamento do numeroso público do festival até a peça. Um deslocamento que, reflito, já fez parte da experiência do atento espectador europeu que deve sair também de seus territórios habituais para vislumbrar o espanto de um novo mundo-Pará. O gigante estado brasileiro, de cultura riquíssima e um dos campeões de violência, no universo-Amazônia. Quando se ouve cá e lá neste planeta se falar da Amazônia – na TV, no jornal, na rede social – é possível permitir que a anestesia do nosso tempo nos conforte: a floresta é tão longe… No teatro, o etnocídio indígena e da floresta teve rostos, vozes, calor, música. O que é silêncio se fez presente. Nos unindo numa experiência única em que a realidade se apresentou em toda sua nudez crua, no palco: a floresta caminhou!

Na chegada ao teatro, o MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, um gigante na história brasileira dos últimos anos, que há décadas faz o impossível, enfrentando toda sorte de violências físicas e psíquicas – ou falando em brasileiro, de assassinatos a campanhas difamatórias – fincou a bandeira naquele território. Ocupou Avignon, a tragédia grega, o mundo europeu. Uma façanha em termos de deslocamento do imaginário…por segundos me lembrei da bandeira fincada do homem na lua… devaneios…o MST está ligado a grandes ousadias, coisas impossíveis como … mexer na estrutura agrária de uma ideia de nação que nasceu da grande propriedade, da monocultura e da escravidão. Era uma bandeira de um outro mundo & vermelha fincada num território quase-impossível, sim.

Antígona, a eterna voz contra a violência patriarcal e todo universo de valores associados a ela, que há séculos já denuncia a arrogância do antropoceno – produto cultural desta antiguidade clássica e que se espalha como vírus no mundo, se acreditando maior que as leis da natureza – vai se revelando uma tragédia que sim, hoje pode ter a face da Amazônia. Começou na Grécia, mas queima a Amazônia até hoje! Na Tebas de Sófocles, dois irmãos em lados opostos de uma guerra se matam e o tirano Creonte ordena que um deles, Polinice, que lutou para reconquistar a cidade perdida por um acordo rompido na família, não fosse enterrado. Antígona, a filha de Édipo e Jocasta desafia o poder estabelecido para honrar leis mais antigas que as de Creonte, e celebrar os ritos fúnebres de seu irmão. Na construção das pontes entre o ontem e o hoje, a mistura de cenas ao vivo, no teatro e imagens de um documentário gravado pela equipe em Eldorado do Carajás, permite ao público tecer diálogos entre tempos e espaços, entre as palavras do trabalhador rural do Pará, dos indígenas e as de Sófocles, entre os eternos desmandos do poder de sempre: a destruição patriarcal que não cessa há séculos e só muda de nome e terra.

Embora anunciado que a indígena Kay Sara viveria Antígona, em Avignon Antígona foi vivida no palco pelo ator brasileiro Federico Araújo, que nos conta também ter enfrentado violências inúmeras pelo mesmo conjunto de valores que mata Antígona, por sua orientação sexual e por sua ascendência indígena e preta. Um ator que se reveza ainda em outros papeis e dá voz a si mesmo, está no palco e no vídeo e tece, com competência, suas passagens entre a ficção e a realidade, Grécia antiga e Brasil hoje.

Algumas opções da montagem, entretanto, nos parecem esvaziar o poder concentrado do mito Antígona para revelar a dor da Amazônia. A escolha da atriz Sara De Bosschere no papel do tirano Creonte e não um homem reduz camadas de sentidos da tragédia. A encenação perde a oportunidade de relacionar mais profundamente o território daquele conflito clássico e a tragédia amazônica de hoje – os tais pactos escondidos entre patriarcado e poder de destruição da terra e tudo que tem nela. Mas em relação ao mesmo Creonte, um ponto sagaz da peça é fazê-lo se comportar como um neoliberal moderno, tentando apagar o antagonismo daquilo que Antígona representa: quer que ela faça acordos com o poder, concilie o inconciliável – como os hábitos normalizados de consumo contemporâneos e a preservação da vida no planeta.

Uma das grandes protagonistas das narrativas que se cruzam no trabalho é a carismática dona Maria Zelzuita, sobrevivente do massacre, com sua sabedoria da terra, matriarca que nos conta sua história de ontem e hoje, no documentário. Kay Sara, no vídeo, também se torna Antígona e só ou junto com Célia Maracajá criam intensas cenas. Pinturas, adereços, vestes e uma forte presença unem o teatro, rito ancestral à cultura ancestral brasileira nos proporcionando momentos de impactante prazer estético, ao mesmo tempo em que contaminando, de maneira contundente, o massacre que jamais cessou contra os indígenas no Brasil ao mito de Antígona. Quantos corpos indígenas jamais foram enterrados?

Ailton Krenak interpreta Tirésias, em vídeo. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

O filósofo nativo brasileiro Ailton Krenak como Tirésias, o vidente mítico, é uma escolha genial da Antígona na Amazônia, uma sugestão de Zé Celso. Ailton, uma das vozes mais lúcidas de nosso tempo, merece mais e mais espaço para suas mensagens que, como as de Tirésias, nem sempre são fáceis de ouvir e que, decididamente, o poder estabelecido não quer escutar. Na tragédia grega, não escutar Tirésias leva todos ao desastre. Entretanto, a aproximação destes dois mitos não se realiza completamente na encenação – fica uma sensação de que a figura de Krenak, especialmente seu enorme poder autoral, um semeador de futuros, poderia ter tido mais presença no trabalho, uma vez que sua imagem é evocada no projeto.

Como era de se esperar, uma das cenas mais fortes é a encenação do massacre que ocorreu em 1996 em Eldorado do Carajás, matando 21 pessoas. A gravação foi feita este ano, no aniversário triste do evento, com atores e sobreviventes, como perpetuação da memória, um diálogo ainda com a tradição coral e artística cultural do MST, com suas místicas. Mas assistir a cena nos impacta não pela ficção em si, mas pelos transbordamentos insuspeitos da encenação na realidade: durante a gravação, um grupo de policiais acompanhou o processo, num jogo tenso entre os planos da vida e da arte. Na imagem de seus rostos, ao assistirem à reprodução “teatral” do evento, sua reação, como metonímia de uma corporação associada ao poder, nos prova finalmente a tese de Hamlet. No texto de Shakespeare, Hamlet intuía que a cena do assassinato de seu pai feita diante do assassino seria gatilho que o revelasse publicamente culpado por sua reação emocional, por sua perturbação. Os rostos dos policiais que assistiam à encenação talvez tenham sido uma das imagens mais perturbadoras daquele momento, presenciadas por toda a plateia do teatro. Um jogo de espelhos…

Cabe ainda destacar a presença sutil e forte do ator-músico Pablo Casella que nos recebe, conduz a narrativa, aproxima o público do contexto do Brasil e tece, especialmente com Frederico, a linha da história do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, bem como cria atmosferas que nos permitem saltar um oceano, e do teatro ao documentário.

No final o Brasil se separa da Grécia. Na Antígona, de Sófocles, à violência de Creonte se seguem suicídios – de seu filho, de sua esposa. Na Antígona na Amazônia, a encenação em parceria com a luta sem fim do MST parece nos dizer que não temos este “privilégio”: a ideia de construção de uma nova realidade num país colonizado não admitiria a desistência!

No último momento em que a equipe de Milo Rau gravava em Eldorado do Carajás, no aniversário do massacre deste ano, num projeto que começou em 2020 e foi parado pela pandemia, o Théâtre de l’ Opprimé de Paris, dirigido por Rui Frati e ligado à tradição de Augusto Boal, também trabalhava lá, junto com a Universidade Federal do Pará, num grande evento organizado pela juventude do MST o “Acampamento Pedagógico Oziel Alves Pereira”, que reuniu cerca de 400 jovens vindos de todo norte do Brasil. A viagem, envolvendo intensa troca artístico-pedagógica com os trabalhadores rurais, faz parte da gestação de seu novo trabalho “Massacres” entrecruzando experiências que o coletivo sediado em Paris teve: no enclave de Shatila, no Líbano, lugar da chacina contra os refugiados palestinos em setembro de 1982, presenciando uma situação cada vez pior com a chegada de refugiados sírios; aos massacres brasileiros na selva e na cidade: em Eldorado de Carajás e também na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, com o assassinato de 111 presos, em outubro de 1992, pelo estado de São Paulo; e terá em setembro no Chile, estudando os massacres ao povo chileno no golpe militar contra Salvador Allende, em 1974, com apoio dos Estados Unidos. Um trabalho cujo texto em processo vai ser lido, numa primeira abertura pública, em São Paulo, pelo Théâtre de l’Opprimé, dia 12 de setembro deste ano. Histórias todas que não podem ser simplesmente esquecidas para que os mortos – alguns cujos corpos jamais foram encontrados – não somente possam ser honrados. Mas que nos ajudem a olhar e romper os pactos que permitiram seus tristes fins.

* Viviane Dias é doutora em Artes Cênicas pela ECA-USP e com um doutorado Sanduíche na Paris VIII. Dramaturga, diretora, atriz e jornalista.

A leitura da peça Massacres, do Théâtre de L’Opprimé, acontecerá em São Paulo, no dia 12 de setembro próximo, às 20h. Gratuito. No Teatro Estelar. R. 13 de maio, 120.

 

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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