
Ensaio do agora, com Natali Assunção, Domingos Jr e Analice Croccia. Foto: Ricardo_Maciel / Divulgação
O teatro já testou muita coisa, a ponto de às vezes parecer um laboratório saturado. Mas isso não significa que “tudo” foi testado. Em arte, o “novo” raramente é uma invenção absoluta; nasce da combinação singular de materiais conhecidos tensionados por um ponto de vista, um contexto, um gesto ético, uma regra de jogo e mais… O inédito vem do “como” e do “porquê”, muito mais do que do “o quê”.
Pós-dramático, documental, imersivo, participativo, site-specific, verbatim, teatro-jogo, teatro-cinema, bioficção… tudo isso já existe e segue fértil. Ainda assim, cada criação reconfigura o campo: quando se escolhem certas regras, tempos, modos de estar com a plateia e um problema ético-político-poético, pode-se criar um dispositivo único. Mas que tensão ainda não explorada entre dramaturgia, jogo e presença poderia gerar algo ímpar desse arranjo de regras, fricções e apostas?
Chamemos Zygmunt Bauman e seu conceito de “modernidade líquida”, onde vínculos e identidades se tornam instáveis. Quando as formas se dissolvem rapidamente, o desafio artístico se desloca: como criar presenças duradouras em um mundo que privilegia o escorregamento?
Byung‑Chul Han aprofunda o diagnóstico ao mostrar como a “sociedade do cansaço” esvazia a experiência através da hiperatividade. É preciso negatividade: pausas, silêncio, ritmos que prolonguem a combustão do sentido. Sem intervalos, não há ressonância (conceito de Hartmut Rosa) – aqueles momentos em que o mundo nos toca e respondemos, criando vibração transformadora.
É a partir dessas premissas que analiso o espetáculo Ensaio do agora, exibido no OFFRec 2025 compondo a programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional. A peça faz parte do projeto Contornos do tempo, com idealização e pesquisa de Natali Assunção.
A cenografia dispõe mesa lateral, telão central com projeções e figurinos esportivos luminosos dos anos 1970, criando anacronismo visual. Os três atores – Analice Croccia, Domingos Jr e Natali Assunção – vestem esses figurinos que remetem a uma estética retrô.
Anunciado como espetáculo documental nascido de conversas com nove mulheres 60+, a obra se propõe a investigar narrativas reais de afeto, dor, desejo, trabalho, cuidado e reinvenção. A questão central é criar estruturas que sustentem o encontro com as vozes que chegam e com quem as escuta.
A dramaturgia, construída pelos três intérpretes, estabelece um “entrelugar”. Natali Assunção revela que começou essa história com muitas dúvidas e algumas certezas. “As dúvidas vão se multiplicando… e, com sorte, vamos sair daqui com mais perguntas do que respostas. […] Eu falaria sobre as histórias de nove mulheres acima de 60 anos e também sobre a vida da escritora Sylvia Plath que se matou aos 30…mas na sala de ensaio, como é de costume, as coisas tomaram outros rumos”. Essa confissão metateatral sobre as metamorfoses do processo criativo poderia ter sido explorada como estratégia dramatúrgica central, transformando a instabilidade do processo em material cênico.
Os depoimentos reconstituídos em cena ou exibidos em gravações revelam momentos de genuína potência dramática. A memória de Maria José, que aos 17 anos se apaixonou por Amaro, de 25, mas foi impedida pelo pai de viver esse romance e forçada a casar-se com outro homem, é atravessada por uma melancolia que ressoa décadas depois. Sua reflexão sobre “não ter tido tempo para si” ecoa as limitações impostas às mulheres de sua geração (e não somente), criando um diálogo tácito com questões feministas contemporâneas.
A história da “penca de balangandãs” de Vera atua como uma poderosa metáfora histórica. O objeto – originalmente usado por mulheres escravizadas que compravam sua alforria através de pagamentos representados por frutas adicionadas à penca – conecta memória pessoal e história coletiva, movendo individual e político em uma imagem marcante.
A trajetória de Raquel, que encontrou no teatro um refúgio contra o preconceito, especialmente através do acolhimento de Guilherme Coelho no Grupo Vivencial, constrói um testemunho que dialoga diretamente com o próprio meio teatral. Já a memória narrada por Analice sobre abuso infantil, fuga para o convento e descoberta salvadora do teatro atinge picos de força expressiva.
Contudo, essas histórias preciosas são constantemente interrompidas por procedimentos que fragmentam a experiência sem criar uma dinâmica produtiva de tensões. O “jogo de perguntas e respostas” com metrônomo a 60 BPM e o olhar pendular das atrizes criam um ritmo hipnótico que poderia funcionar como contraponto às narrativas, mas acaba sendo mais um elemento na saturação de estratégias.

O que seria um documentário sobre nove mulheres 60+ atravessado pela poesia de Sylvia Plath ganhou outros rumos na sala de ensaio Foto: Ricardo_Maciel / Divulgação
A ideia de que o presente é um campo de forças encontra na poeta Sylvia Plath (1932-1963) um contraponto estratégico. Ensaio do agora investiga o que se acumula e o que se apaga, o que dói e o que pulsa, como o passado se insinua no hoje e como o hoje reinscreve o passado. Esse contraste entre intensidade breve e duração longa poderia funcionar como mecanismo de refiguração, criando anacronismos que fazem o passado cintilar no presente.
No entanto, ao assistir à montagem, a ambição conceitual da dramaturgia não se sustenta na transposição cênica. A tentativa de dar conta de tantos assuntos, questões e procedimentos resulta numa experiência que não entrega o que promete.
Particularmente revelador é o momento em que a dramaturgia confessa que a cena do jogo de auditório “foi construída com o auxílio de inteligência artificial” e que “o elenco tem emoções conflitantes sobre isso”. Essa transparência, embora interessante como gesto ético, exemplifica a “positividade” excessiva de que fala Byung‑Chul Han: quando tudo deve ser dito, a experiência teatral se aproxima de um relatório de processo criativo. A tentativa de “abarcar o mundo” de possibilidades, embora bem-intencionada, diluiu a potência dos elementos individuais.
Parecia que a minha crítica tinha terminado, mas resolvi esticar mais um pouquinho o texto.
A aproximação do elenco com a plateia se inicia já na entrada do público, com a organização da cena, escolha de playlist colaborativa e o tricilomelo. São opções legítimas para estabelecer um “encontro”, mas a experiência revelou os riscos inerentes de escolhas mal calibradas.
Quando solicitada a sugerir uma música, uma espectadora propõe Naquela Mesa (canção gravada por Nelson Gonçalves em 1974), que é prontamente executada. Posteriormente, um dos atores comenta que a música era “lenta”, gerando constrangimento para quem havia feito a sugestão de boa-fé. Esse episódio exemplifica uma “fratura do pacto”, pois a espectadora se sentiu julgada publicamente como hierarquia de gosto, minando a conexão que a encenação pretendia estabelecer. Similarmente, a convocação da “juventude Mucilon” para a brincadeira do tricilomelo enquanto a encenação se professa falar de “mulheres velhas”, reforça as divisões geracionais dentro da audiência. O tricilomelo é um jogo com as mãos, que se assemelha a outros muito parecidos de gerações anteriores, mas é apregoado com uma grande novidade.
A formatação de “programa de auditório” chamado Agora se propõe a ironizar a espetacularização da vida e a banalização de urgências sociais. As perguntas sobre carga horária, ganhos de entregadores, expectativa de vida de mulheres trans e cachês de artistas transformam a cena num tribunal pop, mas o humor não ganha a voltagem crítica pretendida.
Num dos quadros, identifiquei na interpretação de Domingos Jr. um pastiche que remete à atuação de Erivaldo Oliveira em montagens do Magiluth, como Ensaio Nº 1 – Morte e Vida e Édipo Rec. A vocalização, entonação, pausas características e o uso da sineta como se fosse um leque traçam intertextualidade e sugere a influência do Magiluth na construção cênica. Mas essa referência se dilui na constante variação tonal entre ludicidade e trauma.
As questões de temporalidade ganham complexidade na presença da poesia de Sylvia Plath, introduzida como contraponto entre intensidade breve (Plath, que partiu aos 30) com a duração longa (mulheres que sustentam décadas de vida), mas essa potência permanece não realizada na sua totalidade.
No 24º Festival Recife do Teatro Nacional, Ensaio do agora espelha nosso tempo fragmentado, mas falha em transformar essa fragmentação em crítica. Ao tentar abarcar todas as urgências contemporâneas, o espetáculo perdeu a oportunidade de criar aquele momento de ressonância em que somos tocados e respondemos, deixando as preciosas histórias das nove mulheres soterradas numa encenação que não soube honrar sua própria riqueza documental.
* A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife.
Ficha Técnica
Ensaio do Agora
com Analice Croccia, Domingos Júnior, Natali Assunção
Idealização e pesquisa: Natali Assunção
Criação de luz e de vídeo: Canela Vermelha/Domingos Júnior
Edição compilação das mulheres: Neto Soares
Edição para as projeções e trilha sonora: Heidi Trindade
Arte: Analice Croccia
Figurino: Gabriela Holanda
Assistência de produção: Duda Araújo
Produção: Analice Croccia, Domingos Jr. e Natali Assunção
Realização: Memória em chamas/Natali Assunção











