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Memórias em dispersão
Crítica: Ensaio do agora
Por Ivana Moura

Ensaio do agora, com Natali Assunção, Domingos Jr e Analice Croccia. Foto: Ricardo_Maciel / Divulgação

O teatro já testou muita coisa, a ponto de às vezes parecer um laboratório saturado. Mas isso não significa que “tudo” foi testado. Em arte, o “novo” raramente é uma invenção absoluta; nasce da combinação singular de materiais conhecidos tensionados por um ponto de vista, um contexto, um gesto ético, uma regra de jogo e mais… O inédito vem do “como” e do “porquê”, muito mais do que do “o quê”.

Pós-dramático, documental, imersivo, participativo, site-specific, verbatim, teatro-jogo, teatro-cinema, bioficção… tudo isso já existe e segue fértil. Ainda assim, cada criação reconfigura o campo: quando se escolhem certas regras, tempos, modos de estar com a plateia e um problema ético-político-poético, pode-se criar um dispositivo único. Mas que tensão ainda não explorada entre dramaturgia, jogo e presença poderia gerar algo ímpar desse arranjo de regras, fricções e apostas?

Chamemos Zygmunt Bauman e seu conceito de “modernidade líquida”, onde vínculos e identidades se tornam instáveis. Quando as formas se dissolvem rapidamente, o desafio artístico se desloca: como criar presenças duradouras em um mundo que privilegia o escorregamento?

Byung‑Chul Han aprofunda o diagnóstico ao mostrar como a “sociedade do cansaço” esvazia a experiência através da hiperatividade. É preciso negatividade: pausas, silêncio, ritmos que prolonguem a combustão do sentido. Sem intervalos, não há ressonância (conceito de Hartmut Rosa) – aqueles momentos em que o mundo nos toca e respondemos, criando vibração transformadora.

É a partir dessas premissas que analiso o espetáculo Ensaio do agora, exibido no OFFRec 2025 compondo a programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional. A peça faz parte do projeto Contornos do tempo, com idealização e pesquisa de Natali Assunção.

Natali Assunção, Domingos Jr numa cena de DR. Ricardo_Maciel / Divulgação

A cenografia dispõe mesa lateral, telão central com projeções e figurinos esportivos luminosos dos anos 1970, criando anacronismo visual. Os três atores – Analice Croccia, Domingos Jr e Natali Assunção – vestem esses figurinos que remetem a uma estética retrô.

Anunciado como espetáculo documental nascido de conversas com nove mulheres 60+, a obra se propõe a investigar narrativas reais de afeto, dor, desejo, trabalho, cuidado e reinvenção. A questão central é criar estruturas que sustentem o encontro com as vozes que chegam e com quem as escuta.

A dramaturgia, construída pelos três intérpretes, estabelece um “entrelugar”. Natali Assunção revela que começou essa história com muitas dúvidas e algumas certezas. “As dúvidas vão se multiplicando… e, com sorte, vamos sair daqui com mais perguntas do que respostas. […] Eu falaria sobre as histórias de nove mulheres acima de 60 anos e também sobre a vida da escritora Sylvia Plath que se matou aos 30…mas na sala de ensaio, como é de costume, as coisas tomaram outros rumos”. Essa confissão metateatral sobre as metamorfoses do processo criativo poderia ter sido explorada como estratégia dramatúrgica central, transformando a instabilidade do processo em material cênico.

Os depoimentos reconstituídos em cena ou exibidos em gravações revelam momentos de genuína potência dramática. A memória de Maria José, que aos 17 anos se apaixonou por Amaro, de 25, mas foi impedida pelo pai de viver esse romance e forçada a casar-se com outro homem, é atravessada por uma melancolia que ressoa décadas depois. Sua reflexão sobre “não ter tido tempo para si” ecoa as limitações impostas às mulheres de sua geração (e não somente), criando um diálogo tácito com questões feministas contemporâneas.

A história da “penca de balangandãs” de Vera atua como uma poderosa metáfora histórica. O objeto – originalmente usado por mulheres escravizadas que compravam sua alforria através de pagamentos representados por frutas adicionadas à penca – conecta memória pessoal e história coletiva, movendo individual e político em uma imagem marcante.

A trajetória de Raquel, que encontrou no teatro um refúgio contra o preconceito, especialmente através do acolhimento de Guilherme Coelho no Grupo Vivencial, constrói um testemunho que dialoga diretamente com o próprio meio teatral. Já a memória narrada por Analice sobre abuso infantil, fuga para o convento e descoberta salvadora do teatro atinge picos de força expressiva.

Contudo, essas histórias preciosas são constantemente interrompidas por procedimentos que fragmentam a experiência sem criar uma dinâmica produtiva de tensões. O “jogo de perguntas e respostas” com metrônomo a 60 BPM e o olhar pendular das atrizes criam um ritmo hipnótico que poderia funcionar como contraponto às narrativas, mas acaba sendo mais um elemento na saturação de estratégias.

O que seria um documentário sobre nove mulheres 60+ atravessado pela poesia de Sylvia Plath ganhou outros rumos na sala de ensaio Foto: Ricardo_Maciel / Divulgação

Memórias entrelaçadas de um aniversário. Foto: Ricardo_Maciel / Divulgação

A ideia de que o presente é um campo de forças encontra na poeta Sylvia Plath (1932-1963) um contraponto estratégico. Ensaio do agora investiga o que se acumula e o que se apaga, o que dói e o que pulsa, como o passado se insinua no hoje e como o hoje reinscreve o passado. Esse contraste entre intensidade breve e duração longa poderia funcionar como mecanismo de refiguração, criando anacronismos que fazem o passado cintilar no presente.

No entanto, ao assistir à montagem, a ambição conceitual da dramaturgia não se sustenta na transposição cênica. A tentativa de dar conta de tantos assuntos, questões e procedimentos resulta numa experiência que não entrega o que promete.

Particularmente revelador é o momento em que a dramaturgia confessa que a cena do jogo de auditório “foi construída com o auxílio de inteligência artificial” e que “o elenco tem emoções conflitantes sobre isso”. Essa transparência, embora interessante como gesto ético, exemplifica a “positividade” excessiva de que fala Byung‑Chul Han: quando tudo deve ser dito, a experiência teatral se aproxima de um relatório de processo criativo. A tentativa de “abarcar o mundo” de possibilidades, embora bem-intencionada, diluiu a potência dos elementos individuais.

Tricilomelo, uma brincadeira com as mãos que chama o público jovem para participar

Parecia que a minha crítica tinha terminado, mas resolvi esticar mais um pouquinho o texto. 

A aproximação do elenco com a plateia se inicia já na entrada do público, com a organização da cena, escolha de playlist colaborativa e o tricilomelo. São opções legítimas para estabelecer um “encontro”, mas a experiência revelou os riscos inerentes de escolhas mal calibradas.

Quando solicitada a sugerir uma música, uma espectadora propõe Naquela Mesa (canção gravada por Nelson Gonçalves em 1974), que é prontamente executada. Posteriormente, um dos atores comenta que a música era “lenta”, gerando constrangimento para quem havia feito a sugestão de boa-fé. Esse episódio exemplifica uma “fratura do pacto”, pois a espectadora se sentiu julgada publicamente como hierarquia de gosto, minando a conexão que a encenação pretendia estabelecer. Similarmente, a convocação da “juventude Mucilon” para a brincadeira do tricilomelo enquanto a encenação se professa falar de “mulheres velhas”, reforça as divisões geracionais dentro da audiência. O tricilomelo é um jogo com as mãos, que se assemelha a outros muito parecidos de gerações anteriores, mas é apregoado com uma grande novidade. 

A formatação de “programa de auditório” chamado Agora se propõe a ironizar a espetacularização da vida e a banalização de urgências sociais. As perguntas sobre carga horária, ganhos de entregadores, expectativa de vida de mulheres trans e cachês de artistas transformam a cena num tribunal pop, mas o humor não ganha a voltagem crítica pretendida.

Num dos quadros, identifiquei na interpretação de Domingos Jr. um pastiche que remete à atuação de Erivaldo Oliveira em montagens do Magiluth, como Ensaio Nº 1 – Morte e Vida e Édipo Rec. A vocalização, entonação, pausas características e o uso da sineta como se fosse um leque traçam intertextualidade e sugere a influência do Magiluth na construção cênica. Mas essa referência se dilui na constante variação tonal entre ludicidade e trauma.

As questões de temporalidade ganham complexidade na presença da poesia de Sylvia Plath, introduzida como contraponto entre intensidade breve (Plath, que partiu aos 30) com a duração longa (mulheres que sustentam décadas de vida), mas essa potência permanece não realizada na sua totalidade.

No 24º Festival Recife do Teatro Nacional, Ensaio do agora espelha nosso tempo fragmentado, mas falha em transformar essa fragmentação em crítica. Ao tentar abarcar todas as urgências contemporâneas, o espetáculo perdeu a oportunidade de criar aquele momento de ressonância em que somos tocados e respondemos, deixando as preciosas histórias das nove mulheres soterradas numa encenação que não soube honrar sua própria riqueza documental.

* A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife.

Ficha Técnica 

Ensaio do Agora
com Analice Croccia, Domingos Júnior, Natali Assunção
Idealização e pesquisa: Natali Assunção
Criação de luz e de vídeo: Canela Vermelha/Domingos Júnior
Edição compilação das mulheres: Neto Soares
Edição para as projeções e trilha sonora: Heidi Trindade
Arte: Analice Croccia
Figurino: Gabriela Holanda
Assistência de produção: Duda Araújo
Produção: Analice Croccia, Domingos Jr. e Natali Assunção
Realização: Memória em chamas/Natali Assunção

Domingos Jr. em cena do espetáculo Ensaio do Agora. Foto: Foto: Ricardo_Maciel / Divulgação

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Jornada de resistência e busca por liberdade
Crítica da peça Alguém pra fugir comigo

Espetáculo recifense Alguém para fugir comigo. Foto: Ivana Moura

Alguém pra fugir comigo é um espetáculo de estrutura fragmentada e não linear, do Resta 1 Coletivo de Teatro, do Recife, que expõe diversas formas de opressão e de resistência em diferentes tempos – desde o “período escravocrata” até os dias atuais. A peça tem apelos de humanidades perdidas; ou clamor desesperado de que seja possível encontrar algum fio que leve ao coração das trevas.

Como se configuram os dispositivos da montagem, a peça parece abraçar as ideias de Chimamanda Ngozi Adichie sobre a importância de contar histórias e de evitar o perigo da história única.

Seus personagens, figuras ou flashes humanos são pobres e oprimidos, e a opção da montagem é a partir do olhar de luta delas e deles. Com isso, oferece ao público uma tapeçaria complexa de experiências de pessoas subalternizadas pelo sistema de ontem e de hoje. Pois como diz Adichie, “histórias importam”.

Montado em 2016, o que resultou na formação do Resta 1 Coletivo de Teatro, Alguém pra fugir comigo atravessou o pós-golpe de Dilma Rousseff, sobreviveu à pandemia, e respirou aliviado depois de quase sumir com ações diretas e indiretas do pior presente do Brasil. Isso está encarnado no corpo dos atores, nos fluxos de tensões e distensões da encenação. Nos quadros que se articulam entre si há encaixes perfeitos e outros que não se acomodam, gritam isoladamente.

A encenação de Analice Croccia e Quiercles Santana, corajosa e pulsante, desafia ao seu jeito, as convenções teatrais, mesclando diferentes estilos e abordagens narrativas. É uma trama que perpassa diferentes tempos e tipos, rasgando temas como desigualdade, resistência, injustiças e afetos. A origem conceitual e os disparadores vêm de textos políticos, líricos, filosóficos; relatos de fatos verídicos e imaginários.

Nessa estrutura estilhaçada se enroscam diferentes épocas e perspectivas. Desde a fuga de Liberdade, uma escravizada que busca escapar dos abusos da casa-grande, até reflexões sobre nossa cidadania vez por outra ameaçada, a peça mexe um caldo de experiências.

Há imagens extremamente potentes, poéticas, comoventes. Existe uma entrega na atuação do elenco, composto por Analice Croccia, Ane Lima, Caíque Ferraz, Clau Barros, Pollyanna Cabral, Raphael Bernardo e Wilamys Rosendo. Eles “abraçam” tipos cotidianos em situações extremas e performance mais autoral. Mas há quebras, uns hiatos, umas ruínas expostas que se apresentam febris, mas podem cair em fragilidades.

A direção musical e o desenho de som de Kleber Santana, combinados com a iluminação de Luciana Raposo e o figurino simples em tons pastéis, criam uma atmosfera envolvente. Os trechos musicados e coreografados são carregados de poética onírica.

Personagens questionam como conquistar a liberdade. Foto: Ivana Moura

A peça provoca uma gama de emoções no público, desde risos frouxos com o vocabulário escatológico de algum personagem até momentos de profunda reflexão e comoção. Minha amiga Inocência Galvão foi às lágrimas na sessão de 15 de agosto, no Teatro Apolo.

O grupo vai abrindo caminho em busca de uma linguagem própria. Mas soa como uma provocação/cilada o aviso do elenco de que “não há nada de novo ali” e que o público não deve esperar “isso” e “aquilo”. Pareceu-me um jogo de palavras para trazer o niilismo do quadro difícil que o teatro pernambucano enfrenta há anos e que só piorou. Cria um sentido dúbio sobre a obra. E não sei se devolve o efeito esperado pelos criadores/criadoras da cena.

Até porque, o espetáculo propõe uma escuta cúmplice, empática, de quem está à beira do abismo, de quem não suporta mais tanta pressão, dos momentos em que o mundo espreme tanto que quase não sobra fôlego para viver. E como alimentar a coragem, eles vão perguntando e vendo a resposta adiada.

Alguém pra fugir comigo evita oferecer respostas simplistas ou conforto imediato. Mas mesmo assim, relembra que é fundamental o exercício do afeto, da empatia e da solidariedade, especialmente em tempos de turbulência e incerteza. Talvez por a cena ser dura, com episódios cruéis, sinalize para esse caminho de humanidade.

A direção Analice Croccia e Quiercles Santana. Foto: Ivana Moura

O conceito de fuga é central na encenação, servindo como metáfora para a busca por liberdade e autodescoberta. A peça questiona: “Quando fuga virou sinônimo de liberdade? Justiça é sinônimo de liberdade? Estar livre é o mesmo que estar liberto?” Estas perguntas provocativas convidam o público a refletir sobre o verdadeiro significado de liberdade em diferentes contextos históricos e pessoais.

Através de personagens como Liberdade, a peça explora questões de identidade e pertencimento. A pergunta “Essas são nossas terras e origens?” ressoa profundamente, especialmente no contexto da história brasileira e sua herança colonial.

A direção de Analice Croccia e Quiercles Santana cria um jogo teatral dinâmico, mas com andamentos diferentes, da agilidade à lentidão. O uso de elementos simbólicos, como as malas carregadas pelos atores, funciona como metáfora para as bagagens emocionais e históricas que todos carregamos.

Como a própria peça sugere, qualquer dia desses você pode estar mais frágil e precisar de uma mão, de um braço, de um colo, de um abraço, de um empurrão. Talvez seja bom não esquecer disso.

FICHA TÉCNICA
Atuantes:
@analicecroccia
@ane_clima
@claubarros__
@pedrocaiqueferraz
@pollycabral
@rapha_berna
@wilamysrosendo

Operação de luz de @lucianaraposoluz
Pesquisa musical e execução de @klebersantana_bill
Direção de movimento de @patricia.costabailarina
Preparação de canto de @katarinamenezescanto
Texto de Ana Paula Sá e Quiercles Santana
Encenação de Analice Croccia e @quiercles

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Sobre desejos, descolonização e mal-estar
Acompanhamento de processo de Práticas Desejantes

Práticas Desejantes utiliza dispositivo do jogo de tabuleiro. Foto: Guto Muniz

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

A abertura de processo da pesquisa Práticas Desejantes me instigou a pesquisar sobre a mexicana sor Juana Inés de la Cruz (1648 ou 1651-1695), uma freira poeta, dramaturga, considerada a primeira escritora de língua espanhola na América. Uma matéria da revista Época diz: “Sor Juana manejou como ninguém os maneirismos do barroco – a retórica elevada, o virtuosismo linguístico, o gosto pela contradição e pelo exagero. Compôs poemas, comédias teatrais, defendeu o direito da mulher à educação e se envolveu num acirrado debate teológico com o padre Antônio Vieira, expoente do barroco luso-brasileiro”. Octavio Paz escreveu sobre a mexicana no ensaio Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé, uma obra de fôlego misturando biografia, história, antropologia e crítica literária, que entrou na lista de próximas leituras depois da minha breve pesquisa.

Sor Juana é uma das mulheres que compõem o jogo “Who´s She?”, dispositivo utilizado no processo de Práticas Desejantes para desencadear uma série de possibilidades de sentidos. Frestas de luz que são abertas a cada nova interação entre as jogadoras, Daniele Avila Small e Andrezza Alves. Quem foi criança ou interagiu com uma nas décadas de 1980 e 1990 provavelmente vai lembrar do jogo que inspirou Who´s She?: Cara a Cara, era muito comum.

Descobri que é vendido ainda hoje, inclusive numa versão princesas da Disney. Duas pessoas jogam e a ideia é descobrir, pelas características físicas, quem é o personagem do seu adversário. Em Who´s She?, as perguntas sobre aparência foram substituídas pelas biografias, conquistas, feitos de mulheres de tempos diversos, desde o Egito Antigo, até a jogadora de tênis Serena Williams e a mais jovem ganhadora do Nobel da Paz, Malala. Ela era artista? Ativista? Inventou algo? Ocupou algum cargo político? Pelo que vi no site da fabricante do jogo, Playeress, ainda não há uma versão em português.

Como espectadores, acompanhamos o jogo e a só aparente, pelo clima de descontração, despretensiosa conversa entre Daniele e Andrezza. Não há aleatoriedades – nem na forma e nem na escolha de dar espaço a biografias de mulheres que é, por si, política, ainda mais quando lembramos do contexto de pandemia e de como as mulheres são as mais prejudicadas nessa situação de tragédia sanitária, seja pelas consequências no mercado de trabalho, seja pelo aumento do trabalho não-remunerado, como os cuidados com a casa, com os filhos, com os parentes mais próximos. 

No Cara a Cara versão Who´s She? que Daniele e Andreza jogaram, entre tantas mulheres incríveis, como Hedy Lamarr, Aretha Franklin, Yoko Ono, Chimamanda Ngozi Adichie, só há duas latino-americanas: a freira Juana Inés de la Cruz e Frida Kahlo. Numa versão mais recente, a brasileira Marielle Franco foi incluída. No instagram da marca, o anúncio dizia: “Como muitos de vocês pediram, nós decidimos fazer uma pequena substituição no nosso jogo de cartão. A partir de agora, vocês poderão aprender mais sobre a história de Marielle Franco, feminista e política brasileira que sacrificou sua vida para lutar pelos direitos humanos, especialmente daqueles que vivem em bairros pobres do Brasil”.

Marielle Franco é uma das cartas da nova versão do jogo Who´s She?. Foto: reprodução Instagram

A pesquisa do projeto Práticas Desejantes tem muito a ver com Há mais futuro que passado – um documentário de ficção, dramaturgia de Clarisse Zarvos, Mariana Barcelos e Daniele Avila, que também assina direção. São cruzamentos e expansões: a peça resgata as obras e as histórias de artistas latino-americanas que não têm vez diante da narrativa hegemônica, masculina, sobre a história da arte. A encenação percorre  os caminhos de uma palestra-performance, tema que Daniele estudou no doutorado em Artes Cênicas na Unirio.

A abertura de processo experimenta na forma, manejando os códigos teatrais, fazendo com  que o espectador se pergunte: o que é mesmo uma peça de teatro? Quais as características que definem o que convencionamos chamar de espetáculo? Se desestabilizar esses limites já trazia fricções interessantes, como o formato da palestra levado ao palco, com a explosão do teatro digital, parece que as fronteiras estão sendo alargadas cada vez mais. A questão é se perguntar se aquela forma atende às aspirações com relação ao conteúdo. Alinhar essas expectativas é uma das questões que o grupo deve encarar ao longo do processo, já que os desejos ainda são maiores do que o que está posto como encenação e dramaturgia.

Andrezza Alves e Daniele Avila Small jogam Who´s She?. Foto: Guto Muniz

 

Desejos e descolonização – Na segunda metade da abertura do processo, outras pessoas entraram na live exibida durante a programação do festival Reside Lab – Plataforma PE: Ana Paula Sá, Analice Croccia e o namorado, Carlos Manoel Valença, Geraldo Monteiro e Lais Machado. No mesmo registro da conversa, da coloquialidade, as discussões sobre as intenções do projeto foram esmiuçadas a partir do jogo do tarot, indicando caminhos de como será o processo desse grupo, decidido a enveredar pelo desejo de descolonização dos pensamentos e da prática artística.

Neste momento de retrocesso do mundo, em que constatamos mais uma vez as desgraças do “capitalismo do desastre”, como pontua Naomi Klein, estamos lutando a duras penas para resguardar e manter a luta, nos nossos processos de emancipação. Pelo que percebo, Práticas Desejantes faz parte disso, uma tentativa, ao mesmo tempo aguerrida e afetuosa, de causar fissuras aos modelos do nosso inconsciente colonial.

No prólogo que Paul B. Preciado escreve para Esferas da Insurreição – notas para uma vida não cafetinada, de Suely Rolnik, tem um trecho que me parece ser exatamente o que esses artistas discursivamente expressam que estão buscando, tateando, transpondo ao ambiente das artes da cena, mas explodindo para a vida: “A revolução não se reduz a uma apropriação dos meios de produção, mas inclui e baseia-se em uma reapropriação dos meios de reprodução – reapropriação, portanto, do ‘saber-do-corpo’, da sexualidade, dos afetos, da linguagem, da imaginação e do desejo. A autêntica fábrica é o inconsciente e, portanto, a batalha mais intensa e crucial é micropolítica”.

Pela interpretação de Lais Machado, comentada pelos demais participantes da live, as cartas do tarot falaram em conflito, em trabalhar mesmo longe dos holofotes, em buscar as reais motivações, em reconhecer privilégios e lugares de descoberta. Continuo com Preciado citando Rolnik, porque os textos imbricados agregam muito significado aos mistérios do tarot: “Diferentemente das receitas de felicidades instantâneas e do feel good, a condição de possibilidade de resistência micropolítica é ‘sustentar o mal-estar’ que gera nos processos de subjetivação a introdução de uma diferença, uma ruptura, uma mudança. É preciso reivindicar o mal-estar que tais rupturas supõem: resistir à tendência dominante da subjetividade colonial capitalística que, reduzida ao sujeito, interpreta o mal-estar como ameaça de desagregação e o transforma em angústia (…)”

O mal-estar faz parte do processo de quem deseja descolonizar práticas e pensamentos. O conflito, os erros e os acertos. Mas há vários caminhos possíveis e as artes da cenas são espaço pulsante para essa investigação e experimentação. O processo parece longo, desafiador e exaustivo. Mas precisamos, não só os artistas de Práticas Desejantes, na vida, percorrê-lo, se estivermos interessados em construir outros mundos possíveis.

Jogo de tarot é o dispositivo utilizado na segunda parte da abertura de processo. Foto: Guto Muniz

Uma das etapas do projeto, contemplado pela Lei Aldir Blanc de Pernambuco, é a “Semana da Invasão”, com conversas abertas com artistas pernambucanas. Confira a programação:

Tema: Interfaces Artísticas e Matrizes de Identidade
Quando: 21 de abril (quarta-feira), às 18h30
Com Anne Mota, Iara Campos, Íris Campos e Lau Veríssimo
Onde: Youtube e Zoom 

Tema: Produção, ocupação de territórios e identidades coletivas
Quando: 22 de abril (quinta), às 18h30
Com Odília Nunes, Paula de Renor e Sophia William
Onde: YouTube  e Zoom 

Ficha técnica:
Práticas Desejantes
Idealização e performance: Andrezza Alves e Daniele Avila Small
Pesquisa, levantamento do material, criação do repositório, dramaturgia e curadoria: Ana Paula Sá, Andrezza Alves, Daniele Avila Small e Geraldo Monteiro
Mediação dos encontros e produção: Ana Paula Sá, Andrezza Alves e Daniele Avila Small
Edição, plataforma digital, gerenciamento e compartilhamento de conteúdos: Geraldo Monteiro
Identidade visual: Analice Croccia
Fotografia: Guto Muniz – Foco in Cena

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Memória em chamas no Mercado Eufrásio Barbosa

Natali Assunção entrelaça vozes reais e ficcionais para investigar temas como aprisionamentos e liberdades femininos numa sociedade patriarcal no espetáculo Ainda escrevo para elas. Foto: Li Buarque / Divulgação

O espetáculo Ainda escrevo para elas joga foco sobre vidas de 11 mulheres comuns, de feitos minimalistamente extraordinários no enfrentamento de suas prisões subjetivas e sociais. O monólogo de Natali Assunção, com direção de Hilda Torres e Analice Croccia, percorre territórios de delicadezas e complexidades para traçar uma rebelião silenciosa (ou nem tanto) numa sociedade patriarcal.

Com a escuta da fala dessas mulheres de diferentes realidades sócio-econômico-culturais, as vivências, histórias e memórias, além da fricção com a escrita de Mia Couto, foi tecido esse monólogo, que faz duas apresentações, nos dias 10 e 11 de janeiro, no Teatro Fernando Santa Cruz (Mercado Eufrásio Barbosa – Varadouro, Olinda).

A peça integra o projeto Narrativas de uma memória em chamas, idealizado por Natali Assunção. Algumas ações foram traçadas para perscrutar os limites da liberdade e dos aprisionamentos no cotidiano feminino. Uma imersão na linguagem documental alinhavada pela literatura, pelo  ensaio fotográfico Espelhos, um filme e o monólogo. A dissertação Narrativas de uma memória em chamas: Uma experiência em teatro documentário, a ser defendida no início de fevereiro de 2020, no Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), traça pensamentos e vivências desse processo.

SERVIÇO

Ainda escrevo para elas
Quando: 10 e 11 de janeiro, às 19h30
Onde: Teatro Fernando Santa Cruz (Mercado Eufrásio Barbosa – Av. Joaquim Nabuco – Varadouro, Olinda)
Ingresso: R$ 30 e R$ 15

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Carta para Alice, que anseia abraçar Pessoa

A peça, que segue em março para Portugal, faz uma reflexão sobre as perdas que temos ao longo da vida e sobre o ímpeto de viver.

Três sessões da peça Espera o outono, Alice, da AMARÉ Grupo de Teatro faz parte da campanha “Alice em Portugal”

                                                                                                                         Por Natali Assunção *

Alice, de um ano para cá a vida tem sido um turbilhão, né? Estreamos em janeiro de 2018 depois de um longo processo mergulhados nas necessidades, angústias e sonhos des envolvides. Lembra que, no início, queríamos adaptar Esperando Godot de Beckett? Desse referencial inicial levantamos diversos pontos que nos ligam. O cinema nos impregnou e quase virou título do espetáculo e textos nossos e de autores como Pedro Bomba, Marla de Queiroz, Hilda Hilst, Carl Sagan e Felipe André, por exemplo, também nos atravessaram. Estudamos view points e nos lançamos em um mergulho vertiginoso.

No início você ainda não estava materializada, mas no decorrer dessa teia você nos chegou com essa energia imensa, com esse sorriso largo de envolver o mundo! Você sabia que o ambiente se ilumina quando você chega e que nós morremos de saudade quando você não está por perto? Na verdade é meio assustador quando você diz que vai ali e volta já e demora muito para retornar. Faz falta.

Hoje eu gostaria de um abraço seu. Quem sabe sair para dançar? Tanto de você carrego em mim e quanto de mim você leva contigo, né!? Tanta coisa vem se passando que, às vezes, eu fico até tonta com o tudo que se segue. Os dias têm sido difíceis e pensar em você traz um pouco de paz, acalanta o coração. Engraçado, volta e meia me pego perdida admirando a lua e me pergunto se você está fazendo o mesmo.

Hoje, na verdade, não consegui ver a lua, mas tenho pensado nisso porque de vez em quando esqueço das cores e tudo parece cinza. No entanto ali, no palco, quando estamos juntas, tudo se alinha e, por um momento, penso que nos encontramos. Que verdadeiramente nos encontramos porque aquele espaço ainda nos reserva o encontro, essa magia de estarmos juntes. Olhos nos olhos. Então a perspectiva de te ver na sexta (15) e no sábado (16), às 20h, com mais um encontro no domingo (17), às 18h, lá no Teatro Arraial (R. da Aurora, 457 – Boa Vista) é de uma alegria imensa!

Estou ansiosa com essa perspectiva de estarmos em Portugal. É muito bonito ver que nossos passos se expandem. Veja bem, depois de tantos percalços e de forma totalmente independente, assim como fizemos no nosso primeiro espetáculo, Amar é crime, baseado no livro homônimo de Marcelino Freire, estreamos e, nesse nascimento, fomos vistos pelos Gambuzinos com um pé de fora, grupo português que, na época, realizava um intercâmbio com outro grupo pernambucano, o Resta 1 Coletivo de Teatro, nosso grupo irmão. Quem diria, né? Recebemos o convite e agora temos quatro apresentações em vista para além-mar hahahaha Mar… Tô rindo porque eu sei do seu apreço pelo mar.

Seria ótimo um mergulho numa noite de lua cheia. Vamos? Podemos terminar a noite dançando para secar a água salgada do nosso corpo. Mas voltando, temos então duas apresentações no Festival Ao teatro!, em Benedita, e ainda uma em Idanha-a-Nova e uma em Lisboa. É bom levar nosso trabalho para novas trocas porque, às vezes, poxa Alice, vou te confessar, às vezes, parece que tudo é muito difícil. Eu sei, eu sei, “tudo é muita coisa”;)

Acho que já falei demais, olha como os ponteiros seguem soltos… Mal posso esperar para te ver…

• O AMARÉ Grupo de Teatro iniciou uma campanha para levar Espera o outono, Alice para Portugal. Além de conferir as apresentações no Teatro Arraial, nas quais haverá ainda a venda de alguns produtos relacionados ao espetáculo, você também pode contribuir com qualquer valor por meio da conta:

CONTA POUPANÇA
BANCO DO BRASIL
AGÊNCIA: 3243-3
CONTA: 42.073-5
VARIAÇÃO: 51

Aproveita se segue o grupo nas redes sociais: @amaregrupodeteatro

                                           * Natali Assunção é atriz do espetáculo Espera o Outono, Alice

Espera o outono, Alice, do AMARÉ Grupo de Teatro, foi o terceira montagem a sair do festival. Foto Arnaldo Sete

Espetáculo traça reflexão sobre as perdas ao longo da vida e sobre o ímpeto de viver. Foto Arnaldo Sete

Serviço

Espera o outono, Alice
Quando: 15 e 16 de fevereiro (sexta-feira e sábado), às 20h, e 17 de fevereiro (domingo), às 18h
Onde: Teatro Arraial Ariano Suassuna – Rua da Aurora, 457, Boa Vista
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), à venda na bilheteria 1h antes do início de cada sessão e antecipado no Site Sympla – Espera o outono Alice
Classificação indicativa: 14 anos Informações: 3184-3057 / 97914-4306

Direção: Quiercles Santana e Analice Croccia.
Elenco: Bruna Justino, Paulo César Freire, Isabelle Barros e Natali Assunção

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