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Ter Exu como princípio: estranhar a cronologia
Crítica: HBLynda em TRANSito
Por Annelise Schwarcz*

HBLynda em TRANSito participou do OFFRec, na programação do FRTN. Foto: Ricardo Maciel/Palco Pernambuco

O que é ser homem? O que é ser mulher? A gente nasce mulher ou se torna? Como esses gêneros são construídos? Culturalmente? Biologicamente? É possível ser homem e mulher? É possível ser nenhum dos dois? O que acontece com quem recusa os quadros de reconhecimento impostos, ou seja, quem recusa ser enquadrado pelas categorias disponíveis? O que é ser não binário? O que significa ser ciborgue? A gente nasce ciborgue ou se torna? Essas são algumas questões que têm animado as discussões das teorias queer, um campo relativamente recente com menos de oito décadas de existência, e seus desdobramentos podem ser encontrados nas obras de autoras/es como Monique Wittig, Judith Butler, Donna Haraway, Paul B. Preciado e Jack Halberstam – apenas para citar alguns exemplos. Nos últimos anos, as teorias em torno dos modos de vida queer têm se popularizado e extrapolado o âmbito acadêmico, ganhando repercussão especialmente nas artes da cena e nas ruas.

HBLynda em TRANSito, espetáculo de HBLynda Moraes apresentado no OFFRec 2025 durante o 24º Festival Recife do Teatro Nacional, é mais uma montagem que se soma ao grande corpo de produções em torno da temática queer. A peça conta em primeira pessoa a vida de HBLynda Moraes – pessoa trans não binária – desde os primeiros confrontos, ainda na escola, com a não conformidade com a performance da masculinidade até o encontro com seu novo nome e identidade de gênero em trânsito. A dramaturgia segue de forma cronologicamente linear os marcos traumáticos e os prazeres da descoberta, costurados por danças aos orixás Exu, Ogum, Oxum e à Pombagira 7 Catacumbas. Com Exu, HBLynda abre os trabalhos, com Dona 7 Catacumbas dança os vivos e os mortos, com Ogum tem força para enfrentar as violências e vencer as batalhas, e com Oxum gesta um novo nome, uma nova forma de ser e estar no mundo.

Da direita para a esquerda, o cenário montado no teatro Hermilo Borba Filho é composto por quatro cadeiras ao centro, próximas a quatro lousas acopladas umas às outras e, ao lado delas, uma mesa com uma miniatura da Torre Eiffel e dois porta retratos sobre ela, um bambolê led no chão. Agora pensa numa peça generosa: logo na entrada você ganha shot de cachaça, tangerina, pompom de festa e ainda é recebida/e/o por arruda e alecrim macerados, espalhados pelo chão, perfumando o ambiente. A peça ainda conta com momentos interativos com o público como, por exemplo, distribuição de coxinhas e uma aula sobre gênero e performatividade, além de trilha sonora e sonoplastia ao vivo de Raphael Venos.

No entanto, em alguns momentos, tantos elementos sendo ofertados ao público resultam em um esvaziamento do sentido de alguns dispositivos. Por exemplo, ao distribuir as coxinhas durante o depoimento da mãe de HBLynda, os burburinhos das pessoas aceitando ou recusando, assim como a conversa em torno do quão gostoso estava o salgadinho compete com o volume do vídeo, prejudicando a compreensão do relato. Em outro momento, começa a tocar a música do Xou da Xuxa e somos convidadas/es/os a balançar nossos pompons azul e rosa que ganhamos na bilheteria ao adquirir os ingressos. O show é interrompido abruptamente quando HBLynda pede ajuda da plateia para revelar o sexo do bebê e brinca que nós, plateia majoritariamente cis, devemos adorar um chá de revelação. Depois, a cena se metamorfoseia em uma aula a partir da pergunta “quem sabe como o gênero é constituído?” e a breve cena em torno dos pompons, que estávamos carregando desde antes de entrar no teatro conosco, parece gratuita. 

Espetáculo leva à cena discussões da teoria queer que extrapolaram o ambiente acadêmico nos últimos anos. Foto: Ricardo Maciel/Palco Pernambuco

A dramaturgia é voltada para o público cis e busca oferecer letramento acerca de questões como sexo, gênero e transição. A performer explica que transicionar não é como “um botão do BBB, que você aperta para sair” e que, sobretudo para pessoas trans não binárias como ela, o gênero está em trânsito. Gênero em encruzilhada: muito ela para ser ele, muito ele para ser ela. Da mesma forma, a peça situa-se numa encruzilhada na qual, por vezes, supõe a ignorância de seu público e por isso aposta no didatismo, como quando questiona “quem sabe como o gênero é constituído?” e, ao receber como resposta o silêncio da plateia, HBLynda responde que o gênero é constituído socialmente e nos faz repetir em coro: “nem toda pessoa de pau é homem, nem toda pessoa de buceta é mulher”. Por outro lado, em outros momentos, aposta que termos como “enquadramento” de Judith Butler ou “corpo ciborgue”, conceito de Donna Haraway que se refere a um corpo composto por ficções políticas contraditórias, dispensam apresentações. 

HBLynda canta o desejo de “não ser quadrada” ou “ser enquadrada” nas normas sociais, nos quadros de reconhecimento disponíveis. A performer relembra a forma que crianças na escola, só de ver sua letra redonda e caprichada, começaram a expor sua feminilidade para ela mesma que, até então, vivia alheia a essas questões. Foram anos tentando disfarçar e se adequar, sobrevivendo às violências até que pudesse se encontrar. Um pouco antes de saudar Oxum e celebrar seu renascimento, HBLynda relembra o itan “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que lançou hoje”. Exu abre a apresentação, mas não (des)organiza a cronologia. A peça autobiográfica poderia se nutrir do princípio exusíaco – proferido pela própria performer e dramaturga – na construção da dramaturgia, reposicionando a convencional narrativa que parte da infância à vida adulta, quiçá revendo até os eventos traumáticos como pontos de referência. Se tudo é trânsito, a identidade e a memória se tornam ilhas de edição: o nascimento pode ter sido a morte dos pais, a aula pode acontecer sem interromper o show e o pedido para contar uma memória do passado, pode se tornar o convite para vislumbrar um futuro. 

*A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife

Ficha técnica:
HBLynda em TRANSito
Idealização, dramaturgia e atuação: HBlynda Morais
Direção artística/geral: Emmanuel Matheus
Produção executiva: Juliana Couto
Direção musical e músico: Raphael Venos
Preparação coreográfica/corporal: Aline Gomes
Iluminação: Cleison Ramos (Farol Atelier da Luz)
Figurino: Agrinez Melo
Confecção do figurino: Mariana Barbosa
Programação visual e monitoramento de redes: Bagasá / Emmanuel Matheus

Biografia é utilizada como material para elaboração da dramaturgia. Foto: Ricardo Maciel/Palco Pernambuco

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Mostra de Mulheres Pretas discute visibilidade

Aline Gomes performa Mãe Maria. Foto: Shilton Araújo

Nesta quinta-feira, 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela, líder quilombola do século 18, O Poste Soluções Luminosas abre a programação de uma iniciativa fundamental: a PretAção – I Mostra de Mulheres Pretas.

A invisibilidade da mulher negra é um dos muitos reflexos do racismo institucional. Quando pensamos no contexto da arte, essa realidade não é diferente. Talvez por isso, os trabalhos que compõem a PretAção tratem sobre representatividade, o enfrentamento cotidiano do preconceito e de todas as formas de violência sofridas pelas mulheres negras.

“Queremos visibilizar todas essas artistas que estão participando da primeira edição da PretAção, visibilizar as que vieram antes de nós e, inclusive, quem vem depois, como Eloísa, minha filha, que tem só dois anos. A gente quer deixar esse espaço de representatividade, esse lugar de fala, para que outas pretas, as que estão vindo, as que vão chegar, possam assumir esse lugar. E que o discurso não seja de resistência, mas de existência”, afirma Agrinez Melo, uma das idealizadoras da ação, que não conta com nenhum apoio governamental.

Muitos dos espetáculos e performances transitam pelo documental, pelo autobiográfico, como é o caso de Mi Madre, de Jhanaína Gomes, que traça relações entre a sua história e as histórias de mulheres da sua família, explicitando uma relação de tensão entre a presença masculina e feminina. Ou do solo da própria Agrinez Melo, Histórias Bordadas em Mim, um convite para um chá e para ouvir sobre a trajetória da atriz.

Na PretAção, essas mulheres pretas, artistas, são protagonistas das próprias narrativas. “Os quatro espetáculos falam de nós mesmas, das nossas experiências, das novas vivências ressignificadas. Ressignificar é uma palavra forte neste momento. A partir das nossas vivências, falamos de várias questões, como empoderamento, a reafirmação da mulher negra na sociedade e da artista negra nesse espaço, questionar o porquê dessa invisibilidade”, comenta Agrinez. Para a atriz, a mostra é também um espaço de irmandade. “É uma mostra de comemoração, que festeja o nosso encontro, a nossa união. E nada melhor do que essa data, que nos representa”.

A programação montada por Agrinez e Naná Sodré, ambas do grupo O Poste Soluções Luminosas – um espaço de referência e resistência do teatro negro em Pernambuco e no Brasil –, em parceria com várias artistas, inclui espetáculos, performances e rodas de diálogos.

A programação vai até o próximo domingo (28), no O Poste Soluções Luminosas (Rua da Aurora, 529, Boa Vista). Os ingressos custam R$ 15 + 1 quilo de alimento não perecível ou R$ 20. Os alimentos arrecadados serão doados a instituições que trabalham com o empoderamento da mulher negra e contra a violência.  

Agrinez Melo no solo Histórias Bordadas em Mim. Foto: Fernando Azevedo

Programação:

25 de julho (quinta-feira), às 18h
Abertura PretAção – I Mostra de Mulheres Pretas
Onde:  Ao ar livre, no entorno do Espaço O Poste
Performance de abertura com Camila Mendes (Nós), Jhanaína Gomes (Mi Madre), Yasmmyn Nejaim (poesia) e Odailta Alves (poesia).

26 de julho (sexta-feira)
Onde: Espaço O Poste Soluções Luminosas
19h: A Receita
Sinopse: Morte, violência, loucura e a intolerância de uma maneira peculiar são narradas nesse solo, que traz uma personagem no seu processo limite. A dramaturgia é de Samuel Santos. Atuação: Naná Sodré
20h: Performances Mãe Maria, De Corpo e Dandara
Sinopses:
Mãe Maria: A personagem Mãe Maria nasceu dentro do espetáculo O Mensageiro, a partir da necessidade da atriz, dançarina e pesquisadora Aline Gomes de trazer à cena a condição feminina no início do século XX na Região Metropolitana do Recife. Atuação: Aline Gomes
De Corpo: Resgata a exposição das maranhas ancestrais que percorrem o corpo feminino. Dos fios que cercam de chagas nativas e genéticas a vivência da pele negra. Narra em movimentos o grito do pulso, da pausa, da prosa, da carne, da víscera, da dor e da beleza da mulher preta. Atuação: Brunna Martins
Dandara: Inspirada na heroína Dandara, que lutou ao lado de homens e mulheres nas muitas batalhas e ataques a Palmares, a atriz Érika Nery nos mostra sua força, fé e ancestralidade traduzida em arte. Atuação: Érika Nery
20h30: Roda de Diálogo com as performers

Dandara. Foto: Fernando Azevedo

27 de julho (sábado)
Onde: Espaço O Poste Soluções Luminosas
17h: Mi Madre
Sinopse: Inspirada por imagens e histórias contadas durante seu período de infância, Jhanaína Gomes remonta memórias de suas antepassadas alinhavando pontos de convergência entre sua própria história e a de suas matriarcas, tecendo uma correlação de tensão entre a presença masculina e o feminino ferido no percurso da vida dessas mulheres. Atuação: Jhanaína Gomes
18h15: Performances Kami** e Nada Mais me Deixará Calada
Sinopses:
Kami**: Traz à tona o corpo presente e potente da mulher. Construída a partir de técnicas utilizadas no Teatro Antropológico, das referências dos orixás Oxum e Iansã, e de elementos da natureza, mostra de forma muito simples, coesa e poética, que as mulheres querem liberdade. Atuação: Camila Mendes
Nada Mais me Deixará Calada: Durante sua jornada, enfrentando o processo de aceitação, a mulher negra se depara sempre com a solidão. Entretanto, em um momento crucial, ela acaba descobrindo que toda sua essência foi posta em segundo plano, e depois de ser enganada, maquiada e sexualizada, ela se rebela, mostrando que não irá aguentar mais nada e nem ficará mais calada. Atuação: Yasmmyn Nejaim
19h: Histórias Bordadas em Mim
Sinopse: Uma atriz, um baú, uma borboleta e uma conversa…é assim que se inicia Histórias Bordadas em Mim. Um convite para um chá, acompanhado de tareco e pão doce, e assim vão se alinhavando as histórias reais, vividas pela atriz em diversos momentos de sua vida. Atuação: Agrinez Melo
20h: Roda de Diálogo com as performers

28 de julho (domingo)
18h: Ombela
Sinopse: Ombela é uma palavra africana na língua Umbundo angolana, que em português significa “chuva”. É através da sacralidade da água que o espetáculo se desvela ao público; do elemento físico, Ombela se transforma em duas entidades que ganham corpo e voz. Atuação: Agrinez Melo e Naná Sodré.
19h10: Roda de Diálogo com as performers e encerramento da mostra

Ingressos: R$15,00 + 1kg de alimento não perecível ou R$20,00, sem o alimento.

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