Eu Vi o Palco Giratório e ele começava no Recife

O espetáculo Circo Science vai rodar o Brasil pelo programa do Sesc, Palco Giratório. Fotos: Maker Midia

Entre gritos e risos de crianças e a magia eterna do picadeiro, a 27ª edição do Palco Giratório foi lançada na noite de sexta-feira (25/04) no Parque Urbano da Macaxeira, zona norte do Recife. A estreia do maior projeto de itinerância das artes cênicas do Brasil ocorreu no mesmo bairro onde Fátima Pontes, homenageada deste ano, mantém sua base de trabalho desde 1996, criando uma conexão direta entre o evento e a comunidade local. Promovido pelo Sesc nacional, o Palco Giratório de 2025 tem o circo como tema central e traz uma programação que inclui teatro, circo, dança e performance em atividades gratuitas ou a tarifas módicas.

O Parque da Macaxeira transformou-se em palco popular para o lançamento, com uma grande lona abrigando o cerimonial e o espetáculo de estreia, cercada por arquibancadas completamente tomadas pela comunidade local. A atmosfera festiva ganhou condução especial da atriz Nínive Caldas, que com elegância e humor enfrentou o desafio de acalmar crianças impacientes que gritavam “começa, começa!” enquanto ela anunciava e agradecia aos gestores presentes na cerimônia. As crianças têm as suas razões; os adultos precisam encontrar outras formas de dar conta dos reconhecimentos a pessoas, instituições e patrocinadores nas aberturas de festivais e coisas dessa natureza.

O diretor regional do Sesc em Pernambuco, Oswaldo Ramos, entendeu a urgência das crianças e fez um intervenção brevíssima; um secretário do Recife fez um papel dúbio, de dar o recado institucional e instigar a plateia a se manifestar mais fortemente. Segura essa, Nìnive! Mas o momento mais emotivo veio com o discurso comovente da própria Fátima Pontes, antes que o espetáculo Circo Science incendiasse a plateia.

Fátima Pontes, coordenadora da Escola Pernambucana de Circo, representa o coração da homenagem desta edição após quase três décadas de dedicação à formação artística de jovens nas periferias recifenses. Seu trabalho gerou frutos como a Trupe Circus, primeira companhia profissional formada por alunos egressos da Escola, que representa Pernambuco no circuito nacional com o espetáculo Circo Science – Do Mangue ao Picadeiro, misturando técnicas circenses com referências do movimento manguebeat.

Além da homenagem, o Palco Giratório também fortaleceu a inauguração da nova estrutura da Escola Sesc de Circo Social em São Lourenço da Mata, que ocorreu no sábado. A estrutura oferece 141 vagas gratuitas anuais para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade.

Fátima Pontes, homenageada do Palco Giratório de 2025

No discurso emocionado, Fátima Pontes demonstrou sua autenticidade ao se apresentar como uma mulher de ação e não de palavras formais. Mesmo afirmando não ser “uma pessoa de muitas falas e discursos oficiais”, Fatinha, como é carinhosamente conhecida, aproveitou o momento para agradecer a homenagem recebida, destacando que o reconhecimento não era apenas pessoal, mas de toda a Escola Pernambucana de Circo.

Com mais de 25 anos dedicados à instituição, ela relembrou sua trajetória marcada por lutas sociais, políticas e culturais, sempre se posicionando como “mulher, parda, periférica” que precisou abrir portas à força em diversos espaços. Sua fala evidenciou como o machismo, a misoginia, o racismo e o preconceito social foram obstáculos que, ao invés de enfraquecê-la, fortaleceram sua determinação.

Em um dos momentos mais tocantes do pronunciamento, Fátima ressignificou o conceito de pobreza ao afirmar que as pessoas com quem trabalha não são pobres, mas “muito ricas pelo amor ao que fazemos, que é a arte”. Ela salientou sobre a importância de não romantizar o trabalho por amor, reconhecendo que é necessário “matar a fome” – não apenas de comida, mas “de amor, de fraternidade, de união, de respeito, dignidade e direitos humanos”.

Ao encerrar sua fala, agradeceu especialmente aos jovens artistas que participariam da apresentação e a todos que fazem parte da Escola Pernambucana de Circo, instituição que define como “feita por gente que acredita em gente para formar outras vidas”, ressaltando a essência de um trabalho que vai além do ensino artístico para se tornar uma ferramenta de transformação social.

No lançamento do Palco Giratório

O Palco Giratório do Sesc se consolidou como uma das mais importantes plataformas de circulação das artes cênicas brasileiras, criando uma rede nacional que busca democratizar o acesso à cultura e valorizar a diversidade artística do país. Em sua essência, o projeto rompe fronteiras geográficas ao levar espetáculos selecionados para dezenas de cidades brasileiras, desde capitais até municípios do interior, permitindo que comunidades distantes dos grandes centros culturais tenham acesso a produções de qualidade.

Para 2025, a jornada do Palco Giratório 2025 promete ser grandiosa, levando 16 grupos artísticos de 15 estados brasileiros a 96 cidades até dezembro, criando um verdadeiro movimento de intercâmbio cultural e formação de público em todas as regiões do país, de trabalhos de teatro, dança, circo, performance e manifestações híbridas. Entre eles estão o espetáculo Da Janela, da Trupe do Experimento (RJ), que narra a amizade entre três crianças e utiliza a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como elemento de acessibilidade e expressão artística, e Ané das Pedras, da Coletiva Flecha Lançada Arte da cidade do Crato, no Ceará, uma performance de Bárbara Matias Kariri que mostra um ritual de plantação de pedra, como quem conta um sonho, e revela ao público a arte da cena dos povos indígenas e sua urgência de trazer seus saberes para o centro dos debates.

O grupo Dimenti, da Bahia, participa do Palco Giratório com o espetáculo Biblioteca de dança, em que artistas transformam seus corpos em “livros vivos” para compartilhar com o público memórias associadas a danças e pensamentos, que marcam a vida de cada um.

Parto Pavilhão, monólogo paulista com dramaturgia de Jhonny Salaberg, direção de Naruna Costa e atuação de Aysha Nascimento, apresenta a história de Rose, ex-técnica de enfermagem encarcerada que auxilia parturientes numa penitenciária para mães. Durante uma Copa do Mundo, ela planeja uma fuga coletiva, inspirada em caso real ocorrido em 2009.

Além das apresentações, o Palco Giratório promove atividades formativas como oficinas, debates e intercâmbios entre artistas locais e visitantes, criando um ambiente de troca e aprendizado contínuo. Como acentuou Janaina Cunha, diretora de Programas Sociais do Departamento Nacional do Sesc, o projeto difunde a produção artística nacional, ao mesmo tempo que impulsiona a economia criativa, movimentando a cadeia cultural e setores correlatos como logística, comércio e hotelaria nas cidades por onde passa.

Ao longo de suas edições, o Palco Giratório tem se firmado como um importante catalisador para a formação de plateias, o fortalecimento de grupos teatrais em diferentes regiões e a valorização da diversidade cultural brasileira, abordando temas urgentes como inclusão social, ancestralidade, questões ambientais e identitárias que refletem a complexidade da sociedade contemporânea. É o Sesc e o seu grande poder para a cultura na república brasileira.

A programação pernambucana se estende até 27 de abril com espetáculos, oficinas, rodas de conversa e apresentações musicais, ocupando unidades do Sesc e outros espaços culturais da região. Nesse lançamento no Recife, a apresentações ficaram por conta do espetáculos Biblioteca de Dança do grupo baiano Dimenti; Kombinando com Cerrado do grupo mato-grossense Du Cafundó, que mostra palhaços em busca de novas experiências; Itan e Tal do Grupo Baquetá do Paraná, que explora a ancestralidade afro-indígena; e Divagar e Sempre do grupo paraense Las Cabaças, retratando a amizade entre duas palhaças em jornada pela floresta.

Vale lembrar que em 2024, o Palco Giratório retornou ao Recife após dez anos de ausência, transformando-se em um verdadeiro festival sob a coordenação de Rudimar Constâncio, que não está mais no Sesc PE. Na época, foram apresentados 46 espetáculos durante 17 dias, sendo 30 produções locais e 16 vindas de outras regiões do Brasil, com homenagens a Amir Haddad e Maurício Tizumba. Desde sua criação em 1998, o projeto já contou com 412 grupos artísticos e mais de 10 mil apresentações, consolidando-se como uma plataforma essencial para a democratização das artes cênicas no Brasil e reafirmando sua importância na formação de plateia e valorização da cultura brasileira.

Circo Science – Do Mangue ao Picadeiro

O elenco é formado por Ítalo Feitosa, Maria Karolaine, Gabriel Marques, Bruno Luna, João Fernando e João Vítor 

No Parque da Macaxeira, sob a lona de um circo repleto de quase 800 pessoas, a Trupe Circus inaugurou o Festival Palco Giratório com uma apresentação eletrizante do espetáculo Circo Science – Do Mangue ao Picadeiro. A energia que circulava pelo ambiente era quase palpável, intensificada por um público que, em grande parte, já conhecia o espetáculo e reagia com entusiasmo a cada número apresentado. Crianças e adolescentes transformaram-se em verdadeiros torcedores, aplaudindo efusivamente as acrobacias de solo, os números aéreos, os mortais, a dança do maracatu e as demonstrações de equilíbrio. Essa atmosfera de celebração coletiva evidenciou o poder do circo como manifestação artística capaz de unir gerações em torno de uma experiência compartilhada.

O espetáculo, que celebra os 30 anos do lançamento do álbum Da Lama ao Caos, parte da homenagem a Chico Science para se estabelecer como um manifesto político-cultural. Composto por seis jovens negros e LGBTQIAP+ das periferias do Recife – Ítalo Feitosa, Maria Karolaine, Gabriel Marques, Bruno Luna, João Fernando e João Vítor – a Trupe Circus demonstrou uma fisicalidade impressionante aliada a uma consciência social aguda. A estrutura cenográfica metálica, complementada por videocenografia no telão, transportou o público para os manguezais pernambucanos, territórios historicamente negligenciados que ganharam visibilidade através da arte. A trilha sonora, baseada nas composições de Chico Science e remixada pela equipe de Vibra DJ, criou uma simbiose entre o universo manguebeat e as técnicas circenses.

O que torna Circo Science uma obra singular é sua capacidade de fundir tradição e contemporaneidade. Os números circenses tradicionais dialogam com criações inéditas da Trupe, enquanto a estética do Manguebeat é atualizada com elementos culturais das periferias atuais. Esta perspectiva acentua como o movimento iniciado por Chico Science continua vivo e pulsante, influenciando novas gerações de artistas. Sob a direção de Ítalo Feitosa e com dramaturgia de Fátima Pontes, o espetáculo consegue o difícil equilíbrio entre destreza técnica e experimentação conceitual, transformando o picadeiro em uma “manguetown circense” onde corpos diversos expressam suas identidades, angústias e resistências.

É impossível não reconhecer o impacto social deste trabalho, fruto da Escola Pernambucana de Circo, instituição que desde 1996 promove inclusão social e formação artística para crianças e jovens da zona norte do Recife. Os seis integrantes da Trupe Circus, que estudaram na escola desde a infância, evidenciam a eficácia deste projeto de transformação social através da arte. Como afirmou Fátima Pontes, coordenadora executiva da escola, o espetáculo é “um manifesto através da arte circense de reafirmação da força e resistência da arte e educação realizadas pelas juventudes negras e periféricas do Recife”. Esta dimensão política potencializa o valor estético da obra.

Circo Science – Do Mangue ao Picadeiro consegue, assim, ser simultaneamente um espetáculo de entretenimento altamente contagiante e um ato político. Ao questionar “Como estão os manguezais? Como está o ecossistema propagado pelo manguebeat?”, a Trupe Circus convida o público a refletir sobre as transformações sociais e ambientais das últimas três décadas, sem jamais perder a potência celebratória característica do circo. O resultado é uma experiência artística que encanta pelos saltos mortais e acrobacias aéreas, emociona pela honestidade das expressões corporais e provoca pela contundência de seu discurso. Como dizia Chico Science, citado no espetáculo: “Posso sair daqui pra me organizar, posso sair daqui pra desorganizar” – e é exatamente isso que faz a Trupe Circus, organizando técnicas circenses para desorganizar preconceitos e desigualdades, provando que a periferia tem, sim, um poder transformador que continua a reverberar, 30 anos depois do surgimento do Manguebeat

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Você está me ouvindo?
Isso é um estrondo estético-político
Crítica: Pai contra mãe

Aysha Nascimento e Flávio Rodrigues em cena de Pai contra mãe ou Você está me ouvindo? Foto: Marcelle Cerutti / Divulgação

Nem todos compreendem em profundidade palavras como atroz e impiedoso quando se referem ao arcabouço do racismo entranhado na sociedade brasileira. E não é uma questão de cognição. (Ou é???) De todo modo, o entendimento não atravessou o corpo (da branquitude). Por isso é preciso dizer de novo, mostrar, para ver se desperta alguma sensibilidade adormecida. Você está me ouvindo?

Os adjetivos são tentativas de nomear o inominável. “…Cruel, desumano e aterrorizante é a herança escravocrata materializada na miséria e nas desigualdades raciais e sociais que vivemos e convivemos até os dias atuais. Uma espécie de necropolítica (Mbembe, 2018) cotidiana acaba por decidir quem sobreviverá ou não”, escreve Jé Oliveira, diretor e dramaturgo do espetáculo Pai contra mãe ou Você está me ouvindo?, no programa da peça.

Nem todos sentem na própria pele as feridas abertas que o sistema racista, patriarcal e misógino continua a infligir diariamente em nossa existência coletiva. O Coletivo Negro, com maestria, destrincha brechtianamente esse rosário de violências sistêmicas na peça livremente inspirada no conto de Machado de Assis, Pai contra mãe, escrito em 1906 – uma obra que, mesmo após mais de um século, continua a ecoar verdades, pois as engrenagens opressoras permanecem erguidas, sustentando os alicerces de nossa coletividade fraturada. 

No conto Pai contra Mãe, Cândido Neves, o Candinho, um homem branco e “livre”, mas desempregado e afundado em dívidas, sobrevive de favor com sua esposa grávida, Clara, na casa de Tia Mônica. Pressionado pelo proprietário que exige o pagamento do aluguel atrasado e pela tia, que sugere entregar o recém-nascido à roda dos enjeitados caso não obtenha recursos, ele se sente encurralado. Em seu desespero, Candinho se torna “capitão do mato avulso” e recorre à captura de uma escravizada fugitiva em troca da recompensa oferecida.

 Já na versão cênica do Coletivo Negro, essa subjugação ganha contornos contemporâneos e mais complexos: Osvaldo, homem negro recém-empregado como vigilante de supermercado, persegue Zaíra da Conceição, mulher negra retinta, após um alerta do sistema de monitoramento que a acusa falsamente de furto. Ele a conduz à força para um reservado do estabelecimento – uma espécie de senzala particular – onde a pressiona violentamente durante o interrogatório, provocando o aborto. 

O espetáculo expõe brilhantemente a perspectiva interseccional de camadas sobrepostas de opressão: Osvaldo, mesmo sendo negro, exerce poder institucional sobre Zaíra, porém permanece subjugado pelo sistema capitalista neoliberal que o emprega precariamente. Esse intrincamento demonstra como raça, classe e gênero se entrelaçam, criando hierarquias mesmo entre os historicamente oprimidos – mas reservando às mulheres negras o lugar mais vulnerável dessa estratificação social.

O supermercado como cenário teatral estabelece um paralelo significativo entre a escravidão histórica e as estruturas do capitalismo tardio. Enquanto no conto machadiano, a perseguição a Arminda ocorre abertamente nas ruas coloniais, o espaço comercial funciona de forma mais sutil, porém igualmente eficaz. As câmeras de vigilância, protocolos de segurança e monitoramento constante substituem as correntes físicas do passado, mantendo, contudo, sua função essencial: limitar a autonomia e explorar o trabalho sob uma aparência de normalidade e ordem social estabelecida. O que evidencia como práticas opressivas se adaptam e se revestem de novas formas ao longo do tempo.

A maternidade interrompida permanece como elemento central em ambas narrativas, mas com potências distintas. Se no conto original o aborto de Arminda é narrado friamente com efeito calculadamente cortante, na peça teatral este fato torna-se nevrálgico para o desfecho que projeta-se como um “se liga, mano”.

Thiago Sonho, Lua Bernardo e Maurício Pazz: músicos que tocam na peça. Foto: Marcelle Cerutti / Divulgação

Criadas especificamente para o espetáculo, as composições musicais operam como pontes temporais que conectam passado ao presente. Na tessitura cênica elaborada por Jé Oliveira, a dimensão musical estabelece-se como uma dramaturgia sonora, onde letras e melodias constituem uma poética  própria da encenação, amplificando questões cruciais sobre ancestralidade e resistência.

A proposta musical posiciona-se como elemento estruturante da narrativa épica, executada pelo trio formado por Lua Bernardo (baixo acústico e elétrico, sopros e voz), Maurício Pazz (bandolim, violão, guitarra, cavaco e voz) e Thiago Sonho (percussão, bateria, samplers e voz). Assinadas por Oliveira em parceria com Jonathan Silva – responsável pelas melodias – , as composições articulam uma linguagem que atravessa tempos históricos distintos, costurando o Brasil colonial ao contemporâneo através de estruturas rítmicas que funcionam como arquivo vivo da memória afrodiaspórica.

Entre tradições percussivas de matriz africana e experimentações sonoras contemporâneas, entre jogos vocais que remetem aos cantos de trabalho e harmonizações que dialogam com o jazz e a música experimental, a paisagem sonora da montagem reforça o que o texto aponta: a persistência dos sistemas de opressão sob novas máscaras.

A música em Pai contra Mãe ou Você está me Ouvindo? reivindica escuta e desestabiliza certezas – elementos fundamentais para uma obra que, longe de oferecer respostas consoladoras, insiste em formular as perguntas perturbadoras que a sociedade brasileira continua a evitar. Particularmente emblemática é a composição Quem manda no mundo não muda, concretizando sonoramente o argumento central da montagem.

Flávio Rodrigues como narrador: Machado de Assis. Foto: Marcelle Cerutti / Divulgação

A vocalização de Flávio Rodrigues como narrador — um Machado de Assis materializado e retinto — provocou-me um impacto desconcertante logo nas primeiras cenas. O ator inicia sua atuação pelo caminho do estranhamento e do deboche calculado, uma escolha que potencializa os aspectos mais incômodos do texto machadiano. Seu trabalho vocal evolui gradativamente, transformando o distanciamento irônico em uma contundente crítica social, num movimento que espelha a própria estratégia narrativa da peça. A decisão de representar o autor como um homem negro retinto funciona como dispositivo cênico que robustece a identidade racial do escritor, frequentemente embranquecida pela historiografia tradicional.

Jé Oliveira demonstra notável maturidade ao orquestrar os diversos elementos cênicos em uma narrativa coesa e impactante. O adensamento de sua poética como encenador (Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens; Gota d’Água {Preta}) manifesta-se na precisão com que articula música, atuação, cenografia e projeções, criando um todo integrado onde cada componente amplifica o efeito dos demais. Ao provocar questionamentos complexos, Oliveira confirma profunda compreensão do teatro como espaço de reflexão política. Com habilidade singular, o diretor equilibra momentos de densidade com necessários respiros poéticos, conduzindo o público por uma experiência teatral marcante.

Um dos aspectos mais contundentes da encenação é a coragem de apresentar racismo e classe como sistemas de opressão interdependentes. A montagem não romantiza a negritude nem reduz as complexas relações raciais brasileiras a esquemas simplistas. Ao contrário, escava as contradições internas das desigualdades racializadas.

Com agudeza crítica, a encenação expõe a fragmentação interna da comunidade negra mencionada por Oliveira, explorando como determinados indivíduos não se reconhecem como negros ou negam a existência do racismo. Mais que isso, a obra desnuda os mecanismos de dominação que estrategicamente posicionam negros contra negros, mulheres contra mulheres ou pobres contra pobres, transformando potenciais aliados em adversários. Essas engrenagens conseguem  fragmentar grupos que, unidos, poderiam desafiar os poderes opressivas.

Elenco: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues e Raphael Garcia

A cenografia concebida por Flávio Rodrigues traduz materialmente as metáforas sobre o corpo negro na sociedade brasileira. O uso do plástico como elemento central aparece potente em sua polissemia: ora sugere o mar que trouxe os escravizados, ora se transforma em envoltório que cobre corpos assassinados, ora sufoca como as estruturas opressivas que limitam a respiração social. Este material barato e descartável, funciona como alegoria para a objetificação histórica dos corpos negros no Brasil.

As projeções ampliam a potência do cenário, estabelecendo conexões imagéticas entre o passado colonial e o presente neoliberal. Esta camada sobreposta aos elementos físicos cria profundidades que enriquecem simultaneamente a experiência estética e o impacto político do espetáculo, evidenciando continuidades históricas através de uma linguagem iconográfica contemporânea.

A atuação do elenco constitui um dos pilares de força da montagem. Aysha Nascimento, como a mãe escravizada, constrói uma presença cênica que oscila entre a fragilidade imposta pela pressão social e a força interior de quem resiste. Seu corpo comunica tanto quanto suas palavras, numa performance física intensa que materializa o sofrimento e a resistência.

Raphael Garcia, interpretando o pai endividado, navega com precisão pelos territórios moralmente ambíguos de seu personagem, evitando tanto a demonização simplista quanto a absolvição fácil.

Já Flávio Rodrigues, como narrador-Machado, estabelece um vínculo direto com a plateia que ora convida à cumplicidade, ora provoca desconforto necessário.

Os três atores demonstram notável cumplicidade cênica, que dá sustentação às complexas camadas do espetáculo.

Pai contra Mãe ou Você está me Ouvindo? chega como um manifesto estético-político que ressignifica a obra original de Machado de Assis à luz das urgências contemporâneas. No desfecho da obra, o Coletivo articula uma mensagem direta de conscientização, convocando especialmente a comunidade negra a fortalecer seus laços de resistência coletiva. O recado para os “manos se ligarem” evidencia a persistência de uma lógica perversa: nas disputas por sobrevivência e dignidade, quem está em posição de desvantagem estrutural inevitavelmente arca com o preço mais alto. Então, o peso das crises econômicas, da violência estatal e das injustiças sociais recai desproporcionalmente sobre a população negra e periférica.

 

Pai Contra Mãe Ou Você Está Me Ouvindo?

Ficha Técnica

Idealização, Concepção, Dramaturgia e Direção Geral: Jé Oliveira
Assistência de Direção: Rodrigo Mercadante
Atuação: Aysha Nascimento / Flávio Rodrigues / Raphael Garcia
Direção de Movimento e Coreografia: Aysha Nascimento
Direção Musical: Guilherme Kastrup e Jé Oliveira

Banda:
Baixo Acústico e Elétrico, Sopros e Voz: Lua Bernardo
Bandolim, Violão, Guitarra, Cavaco e Voz: Maurício Pazz
Percussão, Bateria, Samplers e Voz: Thiago Sonho
Composições Originais: Jé Oliveira e Jonathan Silva
Melodias: Jonathan Silva
Arranjos: Guilherme Kastrup, Jé Oliveira, Lua Bernardo, Maurício Pazz e Thiago Sonho
Preparação de canto: William Guedes

Videografia: Bianca Turner
Light Designer: Matheus Brant
Assistência e Operação de Luz: Aline Sayuri
Figurinos: Eder Lopes
Costureira: Nininha Lopes
Cenografia: Flávio Rodrigues
Cenotécnico: Wanderley Wagner
Serralheiro: Mauricio Batista
Engenharia de Som: Tomé de Souza
Contrarregras: China, Billy e Flávio Serafin
Fotos: Marcelle Cerutti
Identidade Visual: Murilo Thaveira
Participação em Vídeo: Lilian Regina e Sidney Santiago Kuanza
Estudos teóricos e oficinas: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Jé Oliveira e Raphael Garcia
Produção Executiva: Catarina Milani
Assistência de Produção: Éder Lopes
Produção Geral: Gira Pro Sol Produções – Jé Oliveira

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

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A tradição desencantada
Crítica: Paixão de Cristo do Recife

Primeira noite da Paixão de Cristo do Recife, no Marco Zero. Foto:: TFN

Jesus, mulheres e crianças. Foto: TFN

Paixão de Cristo do Recife é apresentada ao ar livre, na Praça do Marco Zero. Foto: TFN

Desde que comecei a acompanhar a Paixão de Cristo do Recife, exibida primeiramente no Estádio do Arruda e, nos últimos anos, na Praça do Marco Zero, no centro do Recife, sempre me tocou a valentia desse conjunto de artistas pernambucanos em realizar essa montagem, enfrentando desafios financeiros, estruturais e de toda ordem. É uma persistência coletiva que mantém o espetáculo vivo.

Quando soube que a montagem de 2025 traria aspectos mais contemporâneos tanto no conceito quanto na encenação, minha curiosidade foi aguçada. Fui à estreia na sexta-feira (18). Ao final da sessão, senti uma espécie de pesar e perplexidade, como se a experiência provocasse um lamento pelo resultado alcançado, evidenciando a dificuldade em discernir, de imediato, o sentido das inovações propostas.

Antes do início da apresentação, o produtor Paulo de Castro deu seu recado, destacando que o espetáculo reaviva o lema “Paixão do Povo”. Castro agradeceu ao apoio de patrocinadores, dos recursos da Lei Rouanet e de diversas instituições, como a Prefeitura do Recife, a Secretaria de Cultura, a Fundação de Cultura Cidade do Recife, o Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros – Suape e a Companhia Pernambucana de Gás (Copergás).

A 27ª edição da Paixão de Cristo do Recife vai até segunda-feira, 21 de abril, sempre às 18h, no Marco Zero. Apresentada pela Roda Cultural e com direção e roteiro de Carlos Carvalho, a encenação reúne um elenco composto por 50 atores e 60 figurantes. Entre os protagonistas estão Asaías Rodrigues (Zaza), no papel de Jesus, e Brenda Ligia, interpretando Maria. Além deles, Carlos Lira encarna Pilatos; Albemar Araújo, Herodes; Clau Barros, Madalena; Gil Paz, João Batista; Ivo Barreto, Judas; e Paula de Tássia, o Diabo.

A cena da Santa Ceia. Foto: TFN

Milhares de pessoas acompanham a Paixão de Cristo do Recife, um espetáculo ao ar livre, em uma praça às margens do rio Capibaribe. A produção utiliza vozes pré-gravadas, com os atores dublando a si próprios ou a outros — como no caso do personagem Judas, interpretado por Ivo Barreto, mas com a voz de Júnior Aguiar.

Nesse tipo de encenação, a abundância de teatralidade visual almeja conectar o público aos valores do cristianismo, ao sofrimento e posterior triunfo de Cristo. É necessário envolver o espectador numa experiência coletiva marcante, criar um ambiente que transporte a plateia para a história que está sendo contada. 

Nesta edição da Paixão de Cristo do Recife o encanto que esses elementos da encenação poderiam ter despertado na plateia não aconteceu. Os recursos técnicos mostraram-se insuficientes para engendrar a energia e a magnitude esperada para uma produção de tamanha relevância. A iluminação teve falhas técnicas que se mostraram evidentes ao público, como momentos de sombras que prejudicaram algumas cenas, enquanto a cenografia, mesmo sendo indicativa, se restringiu a uma apresentação simplória, sem realçar adequadamente os momentos dramáticos.

O que realmente se destacava era o descompasso entre a rica tradição histórica da narrativa e a tentativa de tradução contemporânea, marcada por uma execução aquém do ideal.

Um dos primeiros aspectos que chamam a atenção é o figurino, assinado por Álcio Lins, que mistura referências históricas com elementos contemporâneos. Na maior parte da montagem, os personagens vestem roupas comuns, como calças jeans e camisetas coloridas, numa tentativa de aproximá-los do público atual — incluindo Asaías Rodrigues (Zaza), intérprete de Jesus. Em contraponto, alguns integrantes da corte de Herodes e sacerdotes do Sinédrio utilizam vestimentas que rememoram, ainda que de forma muito distante, a indumentária da época de Jesus, criando um hibridismo visual que causa estranheza ao espectador.

Embora a proposta de desconstrução — trazer a narrativa para o presente — seja conceitualmente interessante ao sugerir que Cristo enfrentaria a crucificação mesmo nos dias de hoje, essa opção acabou comprometendo a força poética do espetáculo.

Esse cenário revela a complexidade e o desafio de manter vivas e relevantes as tradições, equilibrando respeito à narrativa histórica e experimentação contemporânea — sempre com o objetivo de tocar o público profundamente, tanto no âmbito espiritual quanto artístico.

Participação do Bacnaré é um dos melhores momentos do espetáculo. Foto: TFN

Na encenação, o diabo é uma personagem feminina. Foto: TFN

A encenação oscila entre momentos de lampejos e outros de completa falta de energia. Por exemplo, as cenas dos carrascos que condenaram Jesus inicialmente ganhavam força, mas logo perdiam o ritmo, resultando em ações desequilibradas, mesmo contando com um elenco de atores experientes.

A cena do bacanal, protagonizada pelo grupo Bacnaré de dança e música, conseguiu criar um ambiente dinâmico e cativante em sua participação. No entanto, não havia unidade, nem ao menos estética na cena: ao mesmo tempo em que o Bacnaré brilhava no centro do palco, o lado direito do palco, sugeria um cabaré popular precário. Um espectador chegou a gritar: “Tira essa galega daí”, alegando desconforto com as roupas transparentes de uma figurante em razão da presença de crianças.

Outra questão diz respeito à proposta de transformar o diabo em uma personagem feminina, interpretada por Paula de Tássia. Embora existam encenações que adotam essa estratégia, a abordagem utilizada em “A Paixão do Recife” provocou em mim reflexões. Sob uma suposta perspectiva feminista, a escolha parecia visar romper paradigmas e oferecer novas leituras sobre poder e a subversão dos papéis tradicionais. Contudo, por que, novamente, atribuir à mulher o papel de tentação, mantendo uma lógica maniqueísta entre o bem e o mal, enfatizando a figura do mal e, ainda, aludindo ao arquétipo da pombagira — não como exaltação do feminino, mas como demonstração da demonização da mulher? Em cena, vemos um Filho de Deus que se sacrifica pela humanidade, enquanto o diabo assume uma forma feminina. Embora a cena seja bem conduzida e a performance de Paula de Tássia seja desenvolta e convincente, questiono as camadas desta narrativa, que parecem reafirmar uma posição patriarcal.

A dramaturgia buscou um caminho direto para dialogar com as sequelas atuais. Em determinadas falas, como as de Maria, procurou relacionar o sofrimento das mães com o peso da violência policial, aproximando a figura da Mãe de Deus do sofrimento dos oprimidos contemporâneos. Contudo, essa estratégia se apresentou como uma solução fácil — um discurso social que não explora a profundidade que esses temas exigem.

Figurinos de época e estilo casual são utilizados no espetáculo. Foto: TFN

Quase um aparte, ou desvio, ou…

No quadro atual, considero cada vez mais problemático analisar os trabalhos das artes cênicas de Pernambuco, visivelmente pressionados pela falta de apoio, de editais, de políticas robustas e de espaços para o desenvolvimento das ideias, desde o processo até o resultado final com dignidade. A precarização está presente em praticamente todos os âmbitos da feitura das artes cênicas pernambucanas. Mas o que fazer diante disso? Ser sempre conivente na análise por conta dessa situação? Ou cobrar para que se chegue a resultados que apresentem mais qualidade, independente do estilo do trabalho?

Esse é um assunto complexo, que merece ser discutido com mais fôlego. No entanto, na maior parte do tempo atribuo essa carência aos limites impostos pelo capitalismo e à falta de recursos, à precarização progressiva das artes cênicas. Mas será que essa é a única explicação? Penso nas montagens das décadas de 1980 e 1990 dirigidas em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, por Vital Santos e outros artistas, que, embora marcadas pela carência de recursos, transbordavam inquietação e uma estética inovadora. Mas era outro contexto, dirão alguns. Sempre é outro contexto.

A verdade é que o teatro pernambucano precisa ser respeitado e, para isso, deve contar com investimentos, editais e condições para se realizar plenamente. Não adianta ser “meia-boca”, sabe? Não basta só o Funcultura, que patrocina dois projetos por ano para montagens novas, uma ou outra para manutenção e poucas outras coisas.

O fato é que o teatro pernambucano está em condições extremamente precárias. As casas de espetáculos estão caindo aos pedaços; as que estão em boas condições — como o Santa Isabel e o Parque, casas maiores — são ocupadas com a circulação do teatro nacional, que também é importante. Os artistas do Recife reclamam, mas parece que os órgãos públicos não respondem. Enquanto milhões são investidos em turismo, o teatro fica diante de uma carência crônica. Pode parecer que estou desviando o assunto, mas tudo está entrelaçado. E são questões complexas, é verdade, mas profundamente conectadas.

Cena de Pilatos. Foto: TFN

Reconheço a importância e a experiência do diretor e encenador Carlos Carvalho, que tem uma trajetória respeitável. No entanto, como colaboração honesta, é preciso apontar as fragilidades da montagem, como a falta de coesão do conjunto cênico.

Essa 27ª edição da Paixão de Cristo do Recife se caracteriza por ser um espetáculo morno. Conta com muitos atores e atrizes talentosos e dedicados. Porém, um espetáculo dessa envergadura ganha pontos e convence o público pela composição cênica, pelo ritmo, pela harmonia da visualidade em combinação com a sonorização, a perfeita dublagem e os gestos largos.

A atuação de Asaías, que faz de Jesus uma figura próxima do povo, é admirável, mas o personagem de Cristo demanda que o elenco funcione como guindaste simbólico para sua liderança e apoio. A presença das atrizes é marcante para além dos papéis de Maria, de Lígia, e Madalena, de Clau, mesmo que pontuais.

Judas, interpretado por Ivo Barreto, suscita uma reação da plateia e existe uma boa solução para o seu enforcamento. Albemar cria um Herodes carregado de ironia. Além disso, outros atores, como Carlos Lira, que interpreta um Pilatos consistente, entram no redemoinho de cenas que perdem força, mesmo com a participação de um time experiente.

O que me parece, inclusive pela reação ao final da sessão, é que a Paixão de Cristo do Recife não conseguiu envolver o público como noutras edições de sua própria trajetória. Uma produção que falha em criar conexões mais intensas ou que não apresenta elementos visuais inovadores, surpreendentes ou emocionalmente marcantes pode ter dificuldades para manter a plateia engajada. Nesse contexto, são a apatia e o desencanto que surgem, como consequência direta ao espetáculo.

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

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Haja Paixão
Pernambuco encena a trajetória de Cristo

Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, com José Loreto no papel principal. Foto: Divulgação

Paixão de Cristo do Recife, em imagem da encenação de 2024. Foto: Hans von-Manteuffel / Divulgação

Se existe uma devoção que pulsa intensamente no coração e na cultura de Pernambuco, é a arte de encenar a Paixão de Cristo. Mais que tradição, o fenômeno se tornou um verdadeiro encantamento coletivo, uma energia que a cada ano renova cidades inteiras, transforma ruas, praças e palcos em territórios sagrados onde o drama de Jesus é vivido entre lágrimas, aplausos, emoção, filmagens com smartphone e muita self. O fervor pernambucano ultrapassa o rito: é devoção que se faz teatro, identidade que se constrói na partilha e na coletividade. Da monumental Nova Jerusalém, reconhecida como o maior teatro ao ar livre do mundo, às montagens de bairros, igrejas e povoados, milhões de espectadores participam dessa experiência única, que mistura fé, espetáculo, arte popular e memória afetiva. Não importa o tamanho ou formato: cada montagem é um mergulho intenso da comunidade em sua história, suas esperanças e seus sonhos. Em Pernambuco, a encenação da Paixão é tanto um ato de religiosidade quanto um gesto de afirmação cultural, revelando a impressionante capacidade criativa de produtores, artistas, comunidades, e do povo de reinventar, ano após ano, a maior história de amor e redenção do mundo cristão.

Leopoldo Pacheco vive Pilatos em Nova Jerusalém. Foto: Divulgação

O mais tradicional espetáculo da Semana Santa em Pernambuco ocorre nos cenários monumentais de Nova Jerusalém, no distrito de Fazenda Nova, Brejo da Madre de Deus. A temporada 2025 da Paixão de Cristo vai até 20 de abril, trazendo como grande novidade o encerramento no domingo de Páscoa — algo inédito desde 1998, planejado especialmente para aproveitar o feriado do dia 21 de abril e atrair ainda mais visitantes. Com mais de 100 mil metros quadrados de extensão e imponentes muralhas de quatro metros de altura, o teatro a céu aberto replica ambientes emblemáticos da Jerusalém dos tempos de Jesus, transportando o público por lagos, jardins, palácios, o Templo e os arruados da antiga cidade sagrada. O projeto da cidade-teatro foi inaugurado em 1968 e é considerado um dos maiores do mundo em seu gênero, atraindo anualmente dezenas de milhares de espectadores de todo o Brasil.

Neste ano, o elenco principal ostenta nomes de grande expressão nacional e novos rostos no papel de figuras bíblicas marcantes. José Loreto assume o papel de Jesus, Letícia Sabatella interpreta Maria, Leopoldo Pacheco vive Pilatos, enquanto Werner Schünemann dá vida a Herodes. Além deles, Luana Cavalcante interpreta Herodíades, prometendo mais dramaticidade às cenas do palácio. Uma novidade para 2025 é o retorno da personagem Verônica, ausente desde 1993 — quando Letícia Sabatella a encarnou pela última vez e que agora é vivida pela atriz pernambucana Angélica Zenith.

O espetáculo também investe em inovações técnicas e visuais para impactar ainda mais quem assiste. A edição deste ano conta com novos efeitos especiais em cenas icônicas como o Sermão da Montanha e a Tentação de Jesus no Horto, buscando desperta mais emoção das passagens bíblicas. 

A Paixão de Cristo de Nova Jerusalém segue em grandiosidade, elenco estrelado e enorme participação do público, que marca presença em todas as edições. Só na noite de estreia deste ano (12/04), mais de 10 mil pessoas compareceram, superando as expectativas da organização e os números do ano anterior — reafirmando o status do evento como uma das maiores manifestações culturais e religiosas do país.

O espetáculo dialoga de forma surpreendente com temas da atualidade, como se viu quando, durante uma sessão, na clássica cena em que Pilatos indaga a multidão sobre libertar Barrabás ou Jesus, alguém na plateia gritou: “Solta os dois e prende Bolsonaro”, mostrando como, mesmo recriando uma história milenar, a Paixão de Nova Jerusalém permanece próxima dos debates e sentimentos do presente.

Os ingressos para a temporada 2025 variam de R$ 80 (meia) a R$ 220 (inteira), conforme o dia do espetáculo. 

Asaías Rodrigues – Zaza (Jesus) e Carlos Lira (Pilatos) na Paixão de Cristo do Recife. Foto: Hans von-Manteuffel

Em sua 27ª edição, a Paixão de Cristo do Recife vem em 2025 com uma proposta ainda mais  próxima do público. Realizado pela Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe), o espetáculo se destaca este ano por estender sua temporada: são quatro sessões gratuitas e a céu aberto, na Praça do Marco Zero, entre os dias 18 e 21 de abril, sempre às 18h, aproveitando tanto o feriado de Tiradentes quanto o contexto da Semana Santa. A encenação, que reafirma no próprio nome o compromisso popular ao se apresentar como Paixão do Povo, aproveita uma nova configuração de palco com passarela e praticáveis móveis, permitindo que cenas como a entrada de Jesus no templo e a Via Crúcis se aproximem ainda mais da plateia, na perspectiva de tornar a experiência mais dinâmica e envolvente.

O elenco conta com Asaías Rodrigues (Zaza) interpretando Jesus e Brenda Ligia no papel de Maria, além de Jr. Aguiar (Judas), Carlos Lira (Pilatos), Albemar Araújo (Herodes), Clau Barros (Madalena), Gil Paz (João Batista) e Paula de Tássia (Diabo), totalizando 50 atores e 60 figurantes. A direção e o texto são assinados por Carlos Carvalho, que traz para a cena uma leitura atenta dos discursos político e religioso de Jesus e Maria. Os temas da montagem — amor, solidariedade e liberdade — são tratados como valores sagrados, essenciais à humanidade e ao futuro, e discutem questões contemporâneas, como racismo e violência urbana, sob a luz dos ensinamentos amorosos de Cristo. Os figurinos criados por Álcio Lins dialogam com diferentes épocas e contextos, misturando tecidos e referências históricas a modelagens atuais.

A trilha sonora harmoniza o tradicional com o contemporâneo, incluindo composições de Milton Nascimento e de Erasmo e Roberto Carlos. Destaque para a participação do grupo musical e de dança Bacnaré (Balé da Cultura Negra do Recife), recentemente reconhecido como Patrimônio Vivo do Recife. 

Paixão de Cristo em Triunfo. Foto: Divulgação

No Sertão do Pajeú, a Paixão de Cristo de Triunfo chega à sua 50ª edição como uma das mais antigas encenações do gênero em Pernambuco e celebra este marco com novidades no roteiro e na produção. A apresentação deste ano, encenada pelo Grupo de Teatro Nós em Cena no Parque Iaiá Medeiros Gastão — conhecido como Via Verde, o primeiro teatro ao ar livre do Sertão — ganha novos contornos com a inclusão de personagens e cenas inéditas, como Adão e Eva no paraíso, a profecia de Abraão, a trajetória de Maria Madalena antes do encontro com Jesus e a ressurreição de Lázaro, além de outros milagres marcantes da vida de Cristo. O elenco ampliado, com 90 integrantes entre atores e figurantes, promete uma experiência ainda mais envolvente nas apresentações gratuitas marcadas para os dias 17 e 18 de abril, às 19h, confirmando o evento como referência de fé, arte e memória cultural do povo sertanejo.

Lucas e Maria Oliveira no elenco da Paixão de Cristo dos Bonecos. Foto: Divulgação

Entre as alternativas diferentes está a Paixão de Cristo dos Bonecos, apresentada pela Associação Pernambucana de Teatro de Bonecos (APTB). Este espetáculo acontece em 17 e 18 de abril, às 16h30, no Teatro Apolo, bairro do Recife, com entrada gratuita (retirada antecipada de ingressos na bilheteria).

A peça, adaptada por Jorge Costa e dirigida por Izabel Concessa, utiliza bonecos de vara e títeres, com irreverência e humor. Segue a cronologia tradicional (da entrada em Jerusalém à ressurreição), mas inserindo personagens como anjos, a Morte e os Reis Magos, reinterpretando episódios marcantes e derramando leveza mesmo no drama. O elenco é formado por Fábio Caio, Antero Assis, Álcio Lins, Lu Jordani, Jurubeba, Sílvia Mariz, Lucas e Maria Oliveira, Ana Rocha, Leila Gibson, Lello Vasques e Pompeia Cavalcante, além de alunos de Artes Cênicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Conta com Libras e audiodescrição).

Paixão de Cristo de Camaragibe, em foto da montagem de 2022. Reprodução do Facebook

A Paixão de Cristo de Camaragibe, a Paixão dos Camarás, transforma a Praça de Eventos da Vila da Fábrica, em Camaragibe, Região Metropolitana do Recife, em grande palco nos dias 18, 19 e 20 de abril. Dirigido por Anderson Henry e apresentado por elencos da Companhia de Teatro Popular de Camaragibe, Grupo Teatral Risadinha e outros, a montagem tem Gustavo Veiga (Jesus), Patrícia Assunção (Maria) e Mano Casado (Herodes) nos papéis principais. Com coreografia de Micael Júlio, a peça contra com tradução em Libras. O evento é gratuito, inclusivo e referência cultural do município.

PAIXÃO DE GAIBU

A Praia de Gaibu é cenário, no dia 18 de abril , às 19h, da 12ª edição da tradicional Paixão de Gaibu. O espetáculo conta com mais de 100 atores e figurantes, encenando 13 cenas inspiradas em pontos turísticos do Cabo de Santo Agostinho sob as estrelas e ao som das ondas. Com entrada gratuita, a peça valoriza a cultura local, transforma Gaibu em um grande palco, misturando fé, arte e emoção, e representa um dos momentos mais aguardados da Páscoa para moradores e visitantes.

PAIXÃO DE LAGOA GRANDE (NA REGIÃO DE PETROLINA)

Em Lagoa Grande, Sertão de Pernambuco, o grupo JUNAC apresenta o drama sacro Paixão de Cristo, o Nazareno” nos dias 18 e 20 de abril, sempre às 18h30, no estacionamento da Enoteca Francesco Luigi Pérsico, distrito de Vermelhos. O espetáculo, gratuito, reúne jovens católicos e amigos de toda a região, mobilizando mais de 60 pessoas numa narrativa emocionante que retrata personagens centrais da literatura cristã. Um ônibus especial transporta a comunidade e moradores de Izacolândia, saindo da Igreja Matriz, às 17h30, facilitando o acesso do público local.

Paixão de Cristo de Serra Talhada. Foto: Divulgação

O espetáculo Jesus Sertanejo – A Paixão de Cristo ocorre nos dias 17 e 18 de abril, no Sítio Passagem das Pedras, em Serra Talhada, Pernambuco. A montagem conta com texto e direção de Anildomá Wilians e produção da Fundação Cabras de Lampião. Mais de 30 atores e atrizes participam da apresentação, com a caatinga como cenário. A peça reforça elementos da cultura sertaneja e busca transmitir a mensagem central da história de Jesus Cristo, destacando a fé, a esperança e o amor, a partir de referências do sertão. O papel de Maria é interpretado por Laisa Magalhães e Jesus será vivido por Karl Marx. Esse projeto foi selecionado pelo 16º Pernambuco de Todas as Paixões e conta com o patrocínio da Secretaria de Cultura de Pernambuco.

 

SERVIÇO

🎭 Paixão de Cristo do Recife: A Paixão do Povo
📍 Local: Marco Zero – Recife Antigo
📅 Datas: 18, 19, 20 e 21 de abril de 2025
⏰ Horário: 18h
🎟️ Entrada: Gratuita

🎭Paixão de Cristo de Nova Jerusalém
📍 Local: Fazenda Nova, Brejo da Madre de Deus
📅 Datas: 12 a 20 de abril de 2025
⏰ Horário: 18h
🎟️ Ingressos: De R$ 80 (meia) a R$ 220 (inteira) – conforme o dia
🔗 Oficial: www.novajerusalem.com.br

🎭 Paixão de Cristo dos Bonecos
📍 Local: Teatro Apolo, Recife
📅 Datas: 17 e 18 de abril de 2025
⏰ Horário: 16h30
🎟️ Entrada: Gratuita (retirada de ingressos na bilheteria)

🎉 Paixão de Cristo de Camaragibe
📍 Local: Praça de Eventos Vila da Fábrica, Camaragibe
📅 Datas: 18 a 20 de abril de 2025
⏰ Horário: 19h30
🎟️ Entrada: Gratuita

🌊 Paixão de Cristo de Gaibu
📍 Local: Praia de Gaibu, Cabo de Santo Agostinho
📅 Data: 18 de abril de 2025
⏰ Horário: 19h
🎟️ Entrada: Gratuita
ℹ️ Detalhe: 12ª edição, mais de 100 atores em 13 cenas à beira-mar

🍇 Paixão de Cristo de Lagoa Grande (região de Petrolina)
📍 Local: Enoteca Francesco Luigi Pérsico, distrito de Vermelhos, Lagoa Grande
📅 Datas: 18 e 20 de abril de 2025
⏰ Horário: 18h30
🎟️ Entrada: Gratuita
🚌 Transporte: Ônibus gratuito saindo da Igreja Matriz às 17h30
ℹ️ Grupo: JUNAC

🏠 Paixão de Cristo de Casa Amarela
📍 Local: Concha Acústica do Sítio Trindade, Recife
📅 Datas: 17 a 19 de abril de 2025
⏰ Horário: 20h
🎟️ Entrada: Gratuita

⛰️ Paixão dos Guararapes
📍 Local: Monte dos Guararapes, Jaboatão dos Guararapes
📅 Datas: 17 a 19 de abril de 2025
⏰ Horário: 19h30
🎟️ Entrada: Gratuita

🎭 Paixão de Cristo de Triunfo – 50 anos!
📍 Local: Parque Iaiá Medeiros Gastão (Via Verde), Triunfo
📅 Datas: 17 e 18 de abril de 2025
⏰ Horário: 19h
🎟️ Entrada: Gratuita
🎭 Grupo: Grupo de Teatro Nós em Cena

Paixão de Cristo do Paulista
📍 Local: Jardim Paulista Baixo, Paulista
📅 Datas: 18 a 20 de abril de 2025
⏰ Horário: 20h
🎟️ Entrada: Gratuita

🍋 Paixão de Cristo de Limoeiro
📍 Local: Centro Cultural de Limoeiro
📅 Datas: 16 a 19 de abril de 2025
⏰ Horário: 20h
🎟️ Entrada: Gratuita

⛰️ Paixão de Cristo do Monte da Fé (Paudalho)
📍 Local: Vila Asa Branca, Paudalho
📅 Datas: 16 a 18 de abril de 2025
⏰ Horário: 19h30
🎟️ Entrada: Gratuita

🌄 Paixão pela Serra (Bezerros)
📍 Local: Circuito das Estações, Bezerros
📅 Datas: 18 a 20 de abril de 2025
⏰ Horário: 19h
🎟️ Entrada: Gratuita

🏛️ Paixão de Cristo de Igarassu
📍 Local: Sítio Histórico de Igarassu
📅 Datas: 19 e 20 de abril de 2025
⏰ Horário: 19h
🎟️ Entrada: Gratuita

✝️ Jesus Sertanejo – A Paixão de Cristo
📍 Local: Sítio Passagem das Pedras – Serra Talhada/PE
📅 Datas: 17 e 18 de abril de 2025 (Quinta e Sexta-feira da Semana Santa)
⏰ Horário: 20h
🎟️ Entrada: Gratuita

 

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Dois portos: reflexões sobre diversidade, disparidade e deslocamentos*

Projeto Conexões Norte Sul reuniu espetáculos e ações de Porto Velho e Porto Alegre. Na foto, Trivial – Um espetáculo de B-boys, de Porto Alegre.  Foto: Nando Espinosa

A Cabeça de Tereza foi criado no âmbito da Universidade Federal de Rondônia. Foto: Agência Ophélia

Quando se trabalha com arte no Brasil e, especificamente, com as artes da cena, partindo de lugares que não aqueles considerados “eixo”, ou seja, São Paulo e Rio de Janeiro, no Sudeste do país, o que se há de fazer é não se deixar enquadrar. Mover-se por dentro e por fora para instaurar as nossas próprias realidades. O Brasil é muito grande para caber num eixo só. Imaginar – e percorrer – os caminhos que podem ser traçados se mostra uma tarefa de liberdade e de resistência. E essa não é uma afirmação romântica ou que idealiza desigualdades e precariedades. Falo de uma operação cotidiana, repetitiva, trabalhosa, por vezes exaustiva, mas imprescindível quando lidamos não só com sobrevivência, mas com o que nos move. A vista nem alcança os caminhos reais e simbólicos que podem ser forjados, quais mapas desenhamos quando as miradas são ampliadas. 

Fazendo perguntas que promovem esses deslocamentos de imaginários, o projeto Conexões Norte Sul, idealizado pelo Itaú Cultural em parceria com o Sesc Rio Grande do Sul, e curadoria de Jane Schoninger, coordenadora de Artes Cênicas, Visuais e Arte Educação da instituição (Porto Alegre/RS), e Andressa Batista (Porto Velho/RO), artista, gestora e produtora cultural, partilhou espetáculos, conversas com espectadores e debates entre 6 e 16 de março. Quais conexões entre dois Portos, um no Norte e outro no Sul do país, podemos alinhavar? Porto Velho, em Rondônia, estado criado oficialmente em 1982, e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, estado devastado por enchentes que mataram 183 pessoas e deixaram 27 desaparecidos no primeiro semestre do ano passado? A distância entre as duas cidades, localizadas cada uma num extremo, reforça o quanto o Brasil é enorme e as dificuldades implicadas nessa obviedade. 

Se a arte precisa circular, alcançar públicos diversos, ser colocada em fricção a partir do encontro com outras realidades, gerar relações, isso fica muito mais difícil quando levamos em consideração, por exemplo, o custo amazônico, que são as despesas relacionadas à transporte e logística na região. Quando os investimentos já anunciados e provisionados por meio de políticas públicas atrasam meses ou mesmo nem chegam. Quando os orçamentos para a cultura no país são cortados pela inaptidão política em reconhecer a economia criativa como um motor de desenvolvimento para as diversas regiões do país. Quando produtores e artistas não encontram parceiros na iniciativa privada interessados em deslocar os seus investimentos do “eixo” que supostamente gera visibilidade. São muitos os “quandos”. Questões como essas foram abordadas na mesa “Modos de produção e seus operários”, com a participação das produtoras Luka Ibarra e Cynthia Margareth, a primeira de Porto Alegre e a segunda de Limeira (SP), residente em São Paulo, e do ator Chicão Santos, de Porto Velho, com mediação do crítico Kil Abreu, de Belém do Pará, residente em São Paulo. 

Na segunda mesa do evento, a discussão teve como tema “Curadorias, circulações”, com as curadoras Galiana Brasil, recifense que reside em São Paulo, e Jane Schoninger, de Porto Alegre, e Kil Abreu. A conversa propôs questionamentos que perpassam o poder que as curadorias exercem num país desigual e diverso como o Brasil. Quem são as pessoas que possuem o poder de decidir quais artistas, grupos e trabalhos vão circular? Por quais lugares do país esses curadores se movem e estabelecem relações? E, mesmo que sejam curadores de lugares fora do “eixo”, quando levam trabalhos aos seus territórios, quais as referências? Qual o lugar do pensamento e da crítica na construção de uma cena que possa, de fato, ser chamada de brasileira? Quais as repercussões dos festivais e das circulações para os artistas de uma cidade? Até que ponto as curadorias desenhadas no país, seja por curadores de instituições públicas ou privadas e por curadores independentes, podem ser consideradas instrumentos que questionam uma estrutura colonialista de pensamento e ação?

Participantes da mesa Modos de produção e seus operários. Foto: Pollyanna Diniz

Jane Schoninger, Galiana Brasil e Kil Abreu compartilharam suas experiências na mesa Curadorias, circulações. Foto: Agência Ophélia

Artistas, curadores e críticos participaram da mesa Curadoria, circulações. Foto: Agência Ophélia

Espetáculos como metáforas

São, de fato, muitas perguntas. Parece que giramos em círculos quando falamos, por exemplo, sobre política cultural no Brasil. Nessa espiral, o que me interessa é imaginar outras possibilidades, tanto de questionamentos quanto de respostas. E os espetáculos que perpassam essa conexão Porto Velho – Porto Alegre são meios de estabelecer diálogo, dissenso, provocação, encantamento. De modo diverso, enxergo que cada um deles carrega metáforas que podem ser relacionadas às discussões que o projeto Conexões Norte Sul propõe.

Novos Velhos Corpos 50+ traz veteranos da dança em Porto Alegre. Foto: Adriana Marchiori

No espetáculo Novos Velhos Corpos 50+, de Porto Alegre, estão em cena artistas da dança com trajetórias relevantes, todos com mais de 50, 60, 70 anos: Eduardo Severino, Eva Schul, Robson Lima Duarte, Monica Dantas e Suzi Weber. Essa última assina a direção geral do espetáculo. Os bailarinos estão acompanhados por músicos que fazem a trilha sonora ao vivo: Dora Avila, Flavio Flu, Marcelo Fornazier e Vasco Piva. 

A mais direta das metáforas entre o espetáculo e o Conexões Norte Sul diz respeito a permanecer criando arte ao longo do tempo, das décadas que se sucedem, a despeito das circunstâncias que possam se interpor nesse caminho. Continuidade, persistência, resistência. Na dança ocidental, os bailarinos carregavam em seus corpos, seus instrumentos de trabalho, um prazo de validade. De algum tempo para cá, brechas estão sendo abertas nesse cenário. Por que não permanecer em cena? Por que ser destituída do direito de criar com o próprio corpo? E aqui falo no feminino porque, como mulher, entendo que essa discussão, quando cruza o gênero, adquire contornos muito cruéis. E se agregarmos classe, a questão fica ainda mais complexa, porque somos matéria-prima moída por uma indústria. São as mulheres aquelas cobradas a se enquadrarem em padrões estéticos irreais e que mudam o tempo inteiro no mundo capitalista do consumo. Somos nós, mulheres, que há pouco tempo perdíamos espaço radicalmente por conta da idade: desde o teatro e as produções audiovisuais, nas quais as mulheres mais velhas tinham papéis socialmente muito determinados, até o mercado de trabalho tradicional. 

Meu Amigo Inglês traz ao palco um artista que lida com as consequências do mal de Parkinson. Foto: Eliane Viana

O corpo velho também está em cena em Meu amigo inglês, espetáculo de Rondônia, com Chicão Santos e Flávia Diniz, texto e direção de Mário Zumba. Neste caso, o corpo de um homem, que lida com as consequências do mal de Parkinson. A temática é aderente por conta da sua amplitude e da sua humanidade, dos impactos sociais que a doença acarreta, no âmbito pessoal e na família.

A dramaturgia e a encenação esbarram, no entanto, na armadilha da reprodução do machismo, do sexismo e de violências simbólicas na relação que se estabelece entre os personagens, marido e mulher, ela muito mais nova do que ele. Num país tão plural como o Brasil, mas desigual, violento e misógino, as problematizações da nossa realidade e as revoluções de pensamento e atitude precisam acontecer desde o espaço da criação e da fruição artística, em cada canto do Brasil. 

O espaço universitário pode ser propulsor dessas revoluções. É o que nos lembra A cabeça de Tereza, também de Rondônia, que tem dramaturgia e atuação de Jam Soares e direção do professor Luiz Lerro, e foi concebido no âmbito do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia, instituição criada em 1982. A universidade tem papel fundamental no questionamento de conceitos e na elaboração e imaginação de novos saberes. Perguntas “antigas” precisam de respostas contínuas: como definimos, por exemplo, o que é centro e o que é periferia quando olhamos para o Brasil? Como determinamos o que é arte regional e o que é arte nacional? Como imaginar projetos que contemplem os nossos lugares de partida e os nossos desejos? Jam Soares, mulher jovem afro amazônida, criou um espetáculo que é um manifesto pela memória de mulheres invisibilizadas na nossa história a partir da personagem ficcional Tereza Sankofa, uma homenagem a Tereza de Benguela que, por cerca de 20 anos, foi líder do maior quilombo no território que hoje é o Mato Grosso. 

Ensaio geral faz homenagem a Selma Bustamante. Foto: Agência Ophélia

Ensaio geral, espetáculo de teatro de rua de Klindson Cruz, manauara residente em Porto Velho, também é uma homenagem a uma mulher. Protagonizado pelo palhaço Pingo, o trabalho celebra a vida e a trajetória de Selma Bustamante, atriz do grupo Ventoforte, em São Paulo, falecida em 2019, que morou por bastante tempo no Amazonas. Embora artifícios dramatúrgicos e de encenação se desgastem ao longo das cenas, como a procura repetitiva por objetos em malas, e o artista perca possibilidades interessantes a partir da interação com os espectadores, o palhaço meio mal-humorado captura a atenção e a curiosidade do público. E o mote é tão importante para o espetáculo quanto para o projeto Conexões Norte Sul: o processo artístico, o ensaio, a transmissão de saberes entre os artistas, a celebração aos que vieram antes de nós.

O espetáculo Teatro dos seres imaginários, da Cia Seres Imaginários, de Porto Alegre, que também foi apresentado na rua, mas com uma estrutura bastante específica, provoca encantamento no espectador, nos lembrando que teatro é exercício político de imaginação e criatividade. O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luís Borges e Margarita Guerrero, é a inspiração para um espetáculo com bonecos que saem da cabeça do autor – um boneco – para dividir o espaço cênico com as cabeças dos espectadores, fazendo as pessoas se moverem em volta de si mesmas na busca por acompanhar aquelas criaturas intrigantes, assustadoras, curiosas. O público, de apenas 18 pessoas, coloca as cabeças numa espécie de caixa de tecido suspensa a 1,5 metro do chão, e o espetáculo de bonecos, que tem direção de arte e música primorosas, se desenrola dentro daquele espaço. A manipulação é feita pelos artistas Cacá Sena, Charles Kray, Elaine Regina e Silvia Regina Ferrare e a música é de Sérgio Olive.

De volta ao palco, Trivial – Um Espetáculo de B-boys, com direção e coreografia de Driko Oliveira, de Porto Alegre, traz a cultura break como motor para um espetáculo que tem na dança sua força física e na palavra a exposição da vulnerabilidade que pode ser transformadora. Estão em cena os Bboys Daniel Carvalheiro, T2, Deaf, Julinho RC e César RC e a B-girl Naju. Com os seus corpos, eles nos mostram o quanto a arte no Brasil é diversa e não aceita caixinhas. O break é da rua, é do palco, é do esporte, é de qualquer lugar. Mas quando expõem por meio de relatos pessoais demandas de suas realidades, como a disparidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, a invisibilidade de jovens negros, as violências a que são submetidos, o espetáculo toma fôlego de mudança, de ruptura. 

É esse fôlego, de artistas que se colocam em suas inteirezas e fragilidades, que precisamos tomar para continuar lidando com o cotidiano de diversidades e disparidades, aqui especificamente nas artes da cena no Brasil. E para lembrar que não lutamos somente por nós, seja qual for a nossa circunstância. As reflexões e provocações do projeto Conexões Norte Sul nos levam ao entendimento de que a briga precisa ser coletiva e deve abarcar todas as realidades: desde os artistas que têm fome, aqueles que andam de metrô ou de avião, os que estão começando, estão na universidade, que possuem trajetórias consolidadas, que já conseguem circular pelo país por meios próprios, que sonham em ver o que criaram extrapolar  limites. Artistas que, independentemente de suas situações específicas, se inquietam e desejam colocar na roda possibilidades coletivas de construir novas realidades. 

*Texto escrito como uma das ações do Projeto Conexões Norte Sul, a convite do Itaú Cultural e Sesc RS. Além de Pollyanna Diniz, do Satisfeita, Yolanda?, participaram do acompanhamento crítico do evento Valmir Santos, do Teatrojornal, e Kil Abreu, do Cena Aberta.

Teatro dos Seres Imaginários se inspira em livro de Jorge Luís Borges e Margarita Guerrero. Foto: Rique Barbo

 

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