Primeira antologia póstuma do vampiro
Crítica de Daqui ninguém sai

Espetáculo do Teatro de Comédia do Paraná comemora centenário de Dalton Trevisan, que morreu em dezembro de 2024, aos 99 anos. Foto: Annelize Tozetto

 

Se fossem ambientados no Recife, os contos de Dalton Trevisan poderiam ter como cenário a Praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista. Imagino o contista morando em alguma casa antiga em Santo Amaro e saindo anônimo para colher histórias de personagens no bairro de São José. A Conde da Boa Vista talvez seja o equivalente à XV de Novembro em Curitiba. Será? Mas Recife tem outro ar. É fétida, dá pra sentir de pronto. O cheiro do mangue que se mistura ao calor escaldante. As cores estouradas. Os personagens suariam bicas, é verdade. No entanto, continuariam pervertidos, degenerados e escrotos. As mulheres ainda seriam agredidas por seus companheiros, homens bêbados, que batem sem dó, arrastam pelo cabelo, cospem na cara, tiram sangue, matam. Os pivetes na rua cheirando cola. As putas na praça.

Curitiba engana. Parece coisa fina, moderna. Trevisan descasca: “enjoadinha, narcisista, toda de acrílico para turista ver”. Fico pensando que nós, pernambucanos bairristas declarados que somos, só falamos mal do Recife entre os nossos. Não me venha ninguém dizer um ai da Veneza pernambucana – contém ironia – que vai ouvir poucas e boas. Dalton Trevisan teria produzido mais de 700 contos e, nessa trajetória, há uma dualidade transbordante relacionada à cidade – ódio declarado e amor que transpira. Curitiba é “província, cárcere, lar”. Foi nesta cidade que o autor viveu e morreu, em dezembro do ano passado, aos 99 anos, quando já aconteciam os ensaios de Daqui ninguém sai, obra assinada pelo Teatro de Comédia do Paraná (TCP). O espetáculo estreou no Teatro Guairinha, na Rua XV de Novembro, no Festival de Curitiba, nos dias 26 e 27 de março, em duas sessões lotadas. No dia 23 de maio, volta em cartaz de sexta a domingo, no mesmo teatro, cumprindo temporada até 15 de junho.

A direção é de Nena Inoue, que também é atriz e esteve na primeira peça que levou a obra de Trevisan ao teatro: Mistérios de Curitiba, com direção de Ademar Guerra, em 1990. Nena conta que foi a primeira vez que o público curitibano se viu representado no palco. Era de certa forma uma homenagem à cidade e aos curitibanos. Em 1992, Nena voltou a trabalhar com Guerra em O Vampiro e a Polaquinha, que ficou seis anos em cartaz, mas apresentando uma realidade mais crua e sórdida.

Em Daqui ninguém sai, havia a intenção de homenagear o centenário do autor, comemorado em junho deste ano. Para essa tarefa, Nena chamou o dramaturgo Henrique Fontes, potiguar, que escreveu e dirigiu Sobrevivente, peça em que a atriz atua com o filho, Pedro Inoue, e que estreou no Festival de Curitiba de 2023. Na nova montagem, Fontes assina dramaturgia e assistência de direção. Em cena, estão os atores Carol Mascarenhas, Fábyo Rolywe, Laís Cristina, Madu Forti, Paula Roque, Paulo Chierentini, Sidy Correa, Simone Spoladore, Trava da Fronteira, Val Salles, Wenry Bueno e Zeca Sales.

A peça, dividida em nove movimentos, um prólogo (o Movimento 0) e um epílogo, explicita em sua encenação a dificuldade do processo. No “Movimento 1 – Dalton”, os atores contam que houve uma seleção pública de elenco e que, a princípio, o trabalho seria uma ocupação num casarão abandonado no alto da XV. A ideia não foi adiante. Então, o que ficou foi uma encenação que incorpora o processo de trabalho à cena: é basicamente uma trupe de atores dramatizando contos de Dalton Trevisan num exercício de metateatro. Parece ter sido a saída possível. Não é inventiva, embora funcione ao propósito da peça.

Direção é de Nena Inoue e dramaturgia e assistência de direção são de Henrique Fontes. Foto: Annelize Tozetto

Espetáculo lida com a tensão de representar o que não podemos mais aceitar. Foto: Annelize Tozetto

Neste mesmo movimento, um questionamento expõe a dúvida que ronda obras de autores que carregam um realismo repugnante, como Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan: “Fazer uma peça sobre esse cara em 2025. Para quê?”, levanta um dos atores. Essa pergunta não é pouca coisa, nem tem resposta fácil ou direta. Na literatura, as palavras explicitam a violência, mas as imagens se materializam apenas na nossa cabeça. Não é fácil de ler, às vezes pode ser enojante, inclusive pela aparência de normalidade na desumanização dos personagens. No entanto, a linguagem nos desconcerta e nos preenche, o que o autor faz com as palavras, a forma como aquilo nos atinge, nos deixa com tesão ou com ânsia de vômito, ou as duas coisas, é fascinante. De qualquer modo, não tem materialidade. Mas levar ao palco? Como representar no teatro a forma como a mulher é tratada nos contos de Trevisan? Estupros, erotismo incestuoso, pedofilia? “Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder?”, escreve no conto O vampiro de Curitiba.

Lidar com essa tensão de representar o que não podemos mais aceitar como sociedade marca a experiência de montagem da obra de Trevisan em Daqui ninguém sai desde o início da encenação, inclusive pelas escolhas do que levar ao palco e do que ressaltar. O “Movimento 0 – Maria Bueno”, prólogo do espetáculo, é um número musical a partir do conto Maria Bueno. Nele, Trevisan conta a história real de Maria da Conceição Bueno, morta em 29 de janeiro de 1893, na provinciana Curitiba.

A mulher foi degolada por Ignácio José Diniz, que prestava serviço ao Exército. O homem não queria que Maria fosse a um baile. Na encenação, um dos versos ganha potência, cantado pelo coro: “Ninguém é dono de Maria”. Esse trecho ecoa e diz, simbolicamente, logo de início, que a obra pode ser lida de muitas maneiras. E isso é eficaz, evitando a repulsa do espectador à peça à primeira vista. Mais adiante, o anúncio da “inocência”: “no júri popular do anspeçada Inácio | o doutor brada retumbante | crime passional! defesa da honra! já livre sem culpa nem pena| à desvalida Maria quem defendeu? | ó vergonha! ó justiça indigna!”.

As escolhas da encenação vão sendo amparadas por um trabalho dramatúrgico que evidencia a realidade dos escritos de Trevisan, muito mais do que a sua suposta perversão. Tem menos pus. Não se trata de uma justificativa de montagem, porque a obra do contista diz por si do seu valor, não precisa disso, mas de uma estratégia dramatúrgica que propõe um recorte de leitura, alcançando de modo menos virulento os espectadores que não necessariamente tiveram contato prévio com a literatura dele. O texto da peça acentua que os jovens não conhecem o escritor e que nem em Curitiba o contista é, de fato, lido. Então a peça é esse passeio pela obra, tirando o acelerador da repugnância e propondo visadas que nos deixam com menos incômodo, porque é como se houvesse um contraponto. A mulher ainda é espancada, degolada, morta com tiro. A mãe ainda é estuprada pelo filho. Mas há modos e modos de nos apresentar a tudo isso.

 A frase “Todas as tristezas podem ser suportadas se você as transformar em história”, por exemplo, é dita no “Movimento 3 – Maria”. No “Movimento 5 – João e Maria”, o gozo feminino ganha primeiro plano, mesmo que isso custe a vida da mulher. Maria é debochada e diz que nunca teve prazer com João. É morta. E um dos atores pergunta: “Será que não teria outro fim para essa cena?”. Uma das atrizes contesta: “Dalton escrevia o fim real das coisas. Ele não mentia e segue atual”. No “Movimento 6 – Ministórias”, temos a história de um casal que decide se matar, mas o homem faz isso primeiro e a mulher desiste, porque a vida é boa. No “Movimento 9 – Cartas”, um dos atores reproduz a defesa de Trevisan: “Quem matou Maria não fui eu”.

Há uma curadoria afiada, numa tarefa dificílima de fazer essa primeira antologia póstuma de Dalton Trevisan e não no suporte do livro, no teatro. A dramaturgia da peça teve 27 versões. De acordo com o programa, são mais de 50 contos e trechos de cartas inéditas do autor levadas à cena. É um trabalho hercúleo, não só pela dimensão da obra de Dalton Trevisan, mas pelo fato de que o autor nunca permitiu que os seus textos fossem alterados no palco: todas as vírgulas de cada conto estão lá. É literatura levada ao teatro. Então o que os criadores fizeram, numa troca que se explicita bonita entre dramaturgia e direção, foi curar esses textos num universo gigantesco e montá-los como um quebra-cabeças que tenha sentido, alinhavando dramaturgicamente a cena com as interferências de textos criados para além da obra de Dalton. Nesse processo, o espetáculo se estende, fica longo, inclusive porque são 12 atores em cena e cada um deles têm o seu momento de maior protagonismo.

Elenco tem 12 atores. Foto: Annelize Tozetto

O elenco é todo muito competente na tarefa de materializar literatura. Uma das atrizes, Paula Roque, fala em Libras e é traduzida pelos colegas em cena, como poderia sempre acontecer. Como são muitos atores, é difícil fazer destaques, mas Simone Spoladore tem a densidade que o texto de Dalton Trevisan solicita a uma atriz. E há uma cena impagável, a que mais engaja o público, que transforma o erótico em humor com maestria, o “Movimento 7 – Noite da Paixão”, um encontro amoroso entre Nelsinho (Zeca Salles) e uma puta (Carol Mascarenhas). Eles se jogam com tanto prazer e liberdade que o gozo da puta – que com  Carol Mascarenhas é gostosa e não decrépita – é aplaudido durante a cena e a imagem do combalido Nelsinho, magricelo, exausto, joelhos colados vira um deleite.

Paula Roque fala em Libras na peça e os colegas fazem a tradução para o público. Foto: Annelize Tozetto

Simone Spoladore. Foto: Annelize Tozetto

Carol Mascarenhas e Zeca Salles. Foto: Annelize Tozetto

A imagem do combalido Nelsinho. Foto: Annelize Tozetto

Depois dos contos, há ainda um Movimento com trechos das cartas trocadas entre Dalton Trevisan e muitos intelectuais e artistas da época, como Ademar Guerra, que dirigiu sua obra no teatro em duas ocasiões, e o escritor Otto Lara Rezende. Sentados em cadeiras postas em meia lua na frente do palco, os atores contam sobre a extensão da correspondência – as que foram lidas foram escolhidas num acervo de mais de 600 cartas – e citam o nome de pessoas com quem ele se correspondeu. O espetáculo talvez prescindisse das cartas. E, novamente, o recurso de encenação não nos instiga a imaginação. Mas, como dito, trata-se de uma antologia que se pretende ampla.

Nesse movimento de antologia, há ainda um resgate simbólico: as ilustrações reproduzidas no telão no fundo do palco são de Poty Lazzarotto, ilustrador das obras do contista por décadas. Se os recursos de encenação não fossem pouco provocativos na forma, essas imagens poderiam explodir de alguma maneira para além da tela estática, expandindo a cenografia por meio das ilustrações.

Dalton Trevisan, pelo que se sabe, era afeito a antologias. Entre 1979 e 2013, organizou sete antologias de sua própria obra. Em 2023, lançou Antologia pessoal, pela Record, e, segundo o professor, tradutor e escritor curitibano Caetano Galindo, no podcast 451 MHZ – O podcast dos livros, da Quatro cinco um, logo depois desse lançamento, Trevisan teria feito outra antologia, que circulou de modo mais restrito, apenas em Curitiba.

É significativo que a primeira antologia desde a morte venha do teatro, espaço privilegiado que confere materialidade às palavras. “Só Curitiba pra ter um escritor apelidado de vampiro. Me dá uma coisa de identidade”, diz Simone Spoladore em cena. Esse vampiro, que “não se alimenta de sangue mas de sonhos, confissões, palavras ao vento”. “Já estou desaparecendo?”, pergunta o personagem Trevisan no epílogo. Não, vampiro. Não há adeus para vampiros. Nem redenção.

O espetáculo Daqui ninguém sai foi apresentado nos dias 26 e 27 de março de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha técnica:

Contos: Dalton Trevisan
Direção: Nena Inoue
Dramaturgia e assistência de direção: Henrique Fontes
Pesquisa literária: Fabiana Faversani
Elenco: Carol Mascarenhas, Fábyo Rolywer, Laís Cristina, Madu Forti, Paula Roque, Paulo Chierentini, Sidy Correa, Simone Spoladore, Trava da Fronteira, Val Salles, Wenry Bueno e Zeca Sales
Composição musical: Grace Torres e Lilian Nakahodo
Composição Maria Bueno: Grace Torres, Lilian Nakahodo e colaboração do elenco
Composição Balada das mocinhas do Passeio: Paulo Chierentini
Composição Perdido: Madu Forti e Zeca Sales
Preparação vocal: Babaya
Iluminação: Beto Bruel
Figurino: Verônica Julian
Cenografia: Carila Matzenbacher
Integração somática/Hatha Yoga: Carlos Cavalcante
Preparação coreográfica: Rapha Fernandes
Projeção mapeada: Ivan Soares
Tradução para Libras: PapO Traduções Artísticas e TAÉ Libras e Cultura
Intérpretes de Libras: Beatriz Reni, Elisa Maganhoto, Jamille de Jesus, Kelly Caobianco, Lais Guebur, Letícia Guebur, Nathan Sales, Ravena Abreu e Talita Grunhagen
Tradutores em cena: Talita Grünhagen e Jessica Nascimento
Assistente de figurino: Cristina Rosa
Assistente de iluminação: Anry Aider
Costureira: Doralice Peron
Cenotécnico: Fabiano Hoffmann
Produção geral: Diego Bertazzo
Assistente de produção: Guilherme Jaccon e Daniel Militão
Ilustrações: Poty Lazzarotto
Identidade visual: Marcos Minini
Fotos: Kraw Penas

Daqui ninguém sai. Foto: Annelize Tozetto

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Crônica da demora:
Artistas questionam pagamentos de cachês
e a política cultural no Recife

 Comunidade teatral do Recife aponta atrasos sistemáticos no pagamento de cachês. Imagem do espetáculo  Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife. Foto: Ivana Moura

Cena de Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recifena comunidade do Pilar. Foto: Ivana Moura

Em novembro de 2024, o espetáculo Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife se destacou na programação da Mostra OFF-REC, parte do 23º Festival Recife do Teatro Nacional, como uma das propostas artísticas de maior impacto e relevância. A obra, que mergulha nas narrativas, trajetórias e vivências negras que moldaram e continuam a pulsar no histórico bairro da capital pernambucana, foi amplamente reconhecida por sua qualidade artística e seu inegável valor cultural e social. Contudo, passados seis meses desde sua apresentação, o diretor e produtor Marconi Bispo viu-se na difícil posição de ter que recorrer às redes sociais para realizar uma cobrança pública do cachê acordado com seu grupo, um pagamento que, até então, não havia sido efetuado pela Prefeitura do Recife.

Marconi Bispo não escondeu sua frustração e o receio que acompanha a atitude de expor publicamente tal situação. Como artista e produtor negro, ele ponderou intensamente sobre as possíveis consequências e retaliações que poderiam advir dessa manifestação. Essa hesitação inicial sublinha a vulnerabilidade de artistas que dependem do poder público e temem ser preteridos em futuras seleções ou editais.

A escolha estratégica de utilizar as redes sociais como palco para o protesto carrega uma ironia particular, considerando que o prefeito João Campos é notadamente conhecido pelo uso intensivo e hábil dessas mesmas plataformas. Campos construiu grande parte de sua imagem pública e promove ativamente sua gestão através de vídeos curtos, informais e uma comunicação direta com seus mais de 2,9 milhões de seguidores. No entanto, as mesmas ferramentas digitais que servem para celebrar conquistas institucionais tornam-se, neste caso, instrumentos de protesto para artistas locais que dizem enfrentar o silêncio institucional.

Ao expor a situação do seu grupo nas redes sociais, Marconi Bispo rapidamente percebeu que os atrasos nos pagamentos não era um caso isolado, afetando uma gama diversificada de outros profissionais da cultura. Relatos semelhantes surgiram de pareceristas da prefeitura, essenciais na avaliação técnica e artística de projetos culturais submetidos a editais públicos, que também enfrentavam longos e imprevisíveis períodos sem remuneração pelos serviços prestados. Bispo destacou que essa realidade dolorosa é parte de um cenário recorrente no setor cultural, onde o silêncio muitas vezes predomina, impulsionado pelo medo de represálias que poderiam comprometer futuras oportunidades de trabalho e pela intrínseca dependência dos recursos públicos para a viabilização de projetos e a própria subsistência. A falta de pontualidade nos pagamentos não apenas causa dificuldades financeiras imediatas, mas também desestrutura o planejamento de artistas e produtores, impactando a continuidade de suas atividades e a saúde do ecossistema cultural como um todo.

Essa situação de inadimplência por parte do poder público é corroborada por outros artistas com vasta experiência, como Paulo de Pontes, veterano com mais de 40 anos de carreira no teatro e no cinema, que já havia utilizado suas plataformas digitais para chamar atenção para os pagamentos devidos tanto pela Prefeitura quanto pelo Governo do Estado. Pontes ressalta a frustração e a insegurança geradas pela falta de clareza nas respostas obtidas junto às secretarias responsáveis e a recorrente transferência de responsabilidade entre diferentes setores ou níveis de governo. Essa burocracia deixa os artistas sem saber quando receberão pelos serviços já executados, reforçando um problema sistêmico na gestão dos recursos destinados à cultura e minando a confiança dos profissionais no poder público como parceiro e fomentador.

Paula de Renor, produtora e atriz também com mais de 40 anos de experiência nos palcos e na luta por políticas culturais, aprofunda a análise sobre o significado desses atrasos. Para ela, se trata de um modus operandi enraizado e petrificado dentro de uma cultura política. “Estamos sempre esperando a liberação da Secretaria da Fazenda e esta Secretaria passa a ser para nós , um grande limbo, onde devemos nos conformar e esperar o dia em que chegaremos ao paraíso, dia do depósito do cachê!”. Segundo ela, “No capitalismo é possível aniquilar vidas e carreiras a partir de escolhas econômicas, e isso precisa acabar”, afirma categoricamente. Sua crítica vai além da denúncia pontual, apontando para um problema estrutural: “Não é possível que no século 21 ainda existam práticas que não priorizem os artistas, já que a imagem da cidade do Recife e do estado de Pernambuco é construída em cima da arte feita por esses profissionais.”

Humor na cobrança

Durante a espera de quase cinco meses pelo pagamento de sua participação no evento “Dia do Palhaço, da Palhaça, do Palhace”, realizado em dezembro de 2024 e promovido pela Secretaria de Cultura do Recife, a atriz e palhaça Ana Nogueira encontrou na arte do cordel uma forma potente de expressar sua indignação e frustração com a morosidade burocrática. Para muitos artistas, especialmente aqueles que atuam de forma independente, o cachê de eventos culturais é fundamental para sua subsistência, tornando a demora no pagamento não apenas um inconveniente, mas um sério problema financeiro.

Diante da ausência do cachê e após inúmeras tentativas infrutíferas de esclarecimento sobre o status do pagamento junto aos setores responsáveis da Secretaria, Ana transformou sua experiência de incerteza em poesia popular. Ela compôs dois cordéis que narram o drama da longa espera, a peregrinação em busca de informações e a falta de respostas claras por parte da gestão pública. O cordel, com sua estrutura narrativa e linguagem acessível, provou ser um veículo eficaz para dar voz à sua angústia e criticar a morosidade administrativa. Um dos trechos que melhor encapsula o sentimento de espera, a busca por informações e a perplexidade diante da falta de solução é:

A pergunta que não cala
Onde está o meu dinheiro
Já liguei pra todo mundo
Até para o financeiro
Ninguém sabe me dizer
Qual é o seu paradeiro.

A artista recebeu seu cachê no final de abril de 2025, quase cinco meses após a realização do evento em que se apresentou.

A burocracia como obstáculo

Paralelamente, o ator e diretor Marcondes Lima criticou atrasos em dois cachês distintos: um referente a uma apresentação do espetáculo-palestra Babau, Pancadaria e Morte realizada em julho de 2024, durante a Semana Hermilo, e outro pelo mesmo trabalho apresentado no OFF-REC em novembro do mesmo ano. “Se passaram 10 e 6 meses, respectivamente, e nada do pagamento”, afirma. Marcondes contesta a justificativa oficial que costuma responsabilizar os próprios artistas pela demora: “As justificativas responsabilizam sempre a nós artistas: os atrasos ocorrem porque não apresentamos documentações devidas, porque não agilizamos isso no prazo estipulado, etc. Mas isso não é verdade.”

A negativa de Marcondes se baseia na sua própria experiência, afirmando que, no caso do grupo Mão Molenga, toda a documentação foi providenciada e os empenhos estavam “supostamente” garantidos. Ele atribui a demora à transferência de contas de um ano administrativo para outro, um processo interno da Prefeitura que não deveria afetar os artistas. Além disso, ele aponta para uma diferença crucial entre os contratos de artistas locais e os de artistas de renome: enquanto os primeiros carecem de clareza quanto a prazos e condições de pagamento, os segundos costumam ter esses pontos especificados, garantindo maior segurança financeira. Essa discrepância, segundo ele, demonstra que a burocracia e a morosidade afetam, desproporcionalmente, os artistas da cidade.

Um aspecto especialmente perverso desse sistema foi destacado por Marcondes Lima: “Demorou tanto tempo para recebermos (na verdade ainda não recebemos) que para poder garantir o recebimento de um dos cachês precisávamos apresentar uma nova certidão negativa de taxa municipal porque a anterior expirou. Sem capital de giro para pagar para receber e dependendo do recebimento para pagar, pedimos emprestado e ainda estamos devendo.” Esta situação ilustra como o ciclo burocrático se retroalimenta, criando novas dificuldades para os artistas.

Espetáculo Babau e Dúdú e artistas Quiercles Santana, Brunna Martins, Paula de Renor, Marcondes Lima, Marconi Bipo e Fábio Caio. Reprodução da Internet

No caso do espetáculo Ọnà Dúdú, Marconi Bispo revela uma dimensão ainda mais preocupante do problema: “São 20 pessoas, em sua grande maioria negras e periféricas, que confiam a mim o seu trabalho e a regência de uma performance complexa que, mais uma vez, é solapada e destratada por uma secretaria de Cultura.” A última informação recebida pelos artistas foi: “O pagamento está em vias de acontecer, mas não conseguimos precisar a data”.

A artista Brunna Martins confessa profunda frustração ao falar dos persistentes e significativos atrasos nos repasses financeiros referentes a cachês e recursos provenientes do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC). A crítica central de Brunna reside no que ela aponta como contraste entre a inflexibilidade e o rigor com que a administração municipal exige o cumprimento de prazos e requisitos por parte dos proponentes culturais e a notória morosidade da própria gestão pública no processamento e efetivação dos pagamentos devidos. Esse descompasso operacional, como questão burocrática, compromete de forma drástica a sustentabilidade e a viabilidade financeira dos projetos culturais da cidade.

A situação expõe fragilidades na gestão dos mecanismos de fomento à cultura, como o SIC, que, apesar de sua importância para a dinamização do setor, tem sua eficácia minada pela imprevisibilidade e pela falta de pontualidade nos pagamentos. Brunna Martins reitera o apelo para que os gestores municipais percebam o impacto desses processos no planejamento futuro e na continuidade das atividades artísticas e culturais na capital pernambucana.

A disparidade no tratamento entre profissionais locais e externos é reforçada por Marcondes Lima, que questiona: “Não parece vergonhoso pagar 400 mil reais talvez um dia depois, na semana ou no mês seguinte a uma apresentação e demorar dez meses para pagar a outra cujo valor é 4 mil reais?” Marconi Bispo faz o mesmo questionamento: “Marco Nanini está passando por isso? Othon Bastos? A Armazém Cia de Teatro? Acho que não. Para esses, a gestão tem sempre bom coração.” Segundo os artistas, essa disparidade evidencia o que Paula de Renor chama de “escolhas econômicas” que podem aniquilar carreiras – uma política que prioriza o espetáculo midiático em detrimento da sustentabilidade do ecossistema cultural local.

Necessidade de discutir a política cultural

O encenador Quiercles conta pro Yolanda: “O Festival Recife do Teatro Nacional já me pagou. Mas isso foi semana passada. Foram quase seis meses esperando um dinheiro pouco e sem graça. É de uma falta de respeito ímpar”. Mesmo tendo recebido, ele evidencia o desgaste causado pela espera prolongada e o valor insuficiente. “Toda vez que tenho de trabalhar para a prefeitura, sinto que é um dinheiro que não vou ter tão cedo”, acrescenta, demonstrando como essa prática afeta a confiança dos artistas nas instituições públicas.

Quiercles também menciona outros projetos que aguardam recursos: “Kalash (peça teatral) está aguardando o SIC Recife para poder executar o projeto nas periferias da cidade. Ninguém sabe quando será pago”. Sua reflexão sobre a viabilidade da profissão é contundente: “Viver de teatro aqui não é fácil. Sem patrocínio ou com apoios dessa natureza, estamos fadados ao abismo. Manter hoje no Recife um grupo de teatro é uma aposta arriscada na corrente contrária de qualquer ordem capitalista. Insano mesmo”. O encenador ainda amplia a crítica para além dos atrasos nos pagamentos: “Tem muita bronca envolvida, inclusive a forma como são selecionados projetos nos editais”, concluindo com um desabafo que reflete o esgotamento: “Ando com uma vontade enorme de sumir da cena”.

Fábio Caio, do grupo Mão Molenga Teatro de Bonecos, nos falou do desconforto com o atraso dos cachês. “Em breve faremos aniversário do não pagamento”, pontuou o artista, referindo-se à apresentação na Semana Hermilo de julho de 2024. “Nos exigem uma infinidade de documentos e cumprimos rigorosamente com nossas obrigações, mas infelizmente essa reciprocidade não é prática da prefeitura,” desabafou.

Caio também mencionou o trabalho feito para o Festival Recife do Teatro Nacional, realizado em novembro, que, sem previsão de pagamento que o grupo tenha conhecimento, encontra-se na mesma situação. “É tanto desrespeito que decidi não mais trabalhar para a prefeitura”, afirmou com firmeza. Ele ainda lembrou que passou por situação semelhante com o espetáculo Hélio,  o Balão que Não Consegue Voar, mas que, neste caso, o pagamento já foi efetivado.

Ouvimos o conselheiro Oséas Borba Neto, que defende sua atuação ativa no âmbito do Conselho Municipal de Cultura, focando em questões cruciais como os recorrentes atrasos nos pagamentos devidos a artistas e produtores culturais, bem como as condições muitas vezes precárias dos equipamentos culturais sob gestão municipal.

Para ilustrar a urgência, o conselheiro disse que solicitou formalmente que o conselho dedique tempo para debater e propor melhorias substanciais tanto nas estruturas físicas quanto na gestão operacional de espaços vitais para a cultura da cidade, como teatros, galerias de arte e centros culturais. A Secretaria Municipal de Cultura, em resposta a essas demandas e à necessidade de um tratamento aprofundado dos temas, sugeriu a criação de uma comissão específica dentro do conselho para se debruçar sobre os problemas de pagamentos e infraestrutura. No entanto, até o momento, essa comissão não foi efetivamente constituída.

Embora não haja uma lei específica que proíba expressamente a realização de eventos sem empenho prévio, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Isso inclui a execução orçamentária, que deve ser alicerçada na existência de disponibilidade orçamentária e financeira, garantindo que recursos estejam previstos no orçamento e disponíveis no fluxo de caixa. Como já foi dito, na gestão cultural do Recife, entretanto, foi constatado que artistas e técnicos têm recebido seus cachês com atrasos significativos.

A centralidade da arte na construção da imagem do Recife e de Pernambuco, como destacado por Paula de Renor, contrasta com a precariedade enfrentada pelos artistas.

 As políticas públicas culturais, fundamentais para o fomento e a difusão da produção artística, frequentemente encontram barreiras significativas em sua execução, impactando diretamente a atuação dos profissionais do setor. Essas dificuldades administrativas, que se manifestam em processos burocráticos excessivamente complexos, morosos e, por vezes, pouco transparentes, criam um cenário de insegurança e imprevisibilidade para os artistas. Como resultado dessa ineficiência dos canais formais, a reivindicação de direitos básicos, como o pagamento de cachês por trabalhos já realizados, é frequentemente deslocada para plataformas informais, como as redes sociais, onde a pressão pública ou a busca por informações descentralizadas se tornam as vias principais.

Essa dependência de mecanismos informais, que expõe os artistas a situações de vulnerabilidade e desgasta a relação com as instituições, evidencia a necessidade urgente e imperativa de aperfeiçoar e modernizar os mecanismos institucionais de diálogo, gestão e pagamento na esfera cultural. Isso poderá criar processos que sejam funcionais e acessíveis, mas também transparentes, ágeis e baseados em fluxos claros e previsíveis, garantindo a segurança jurídica e financeira dos profissionais e permitindo que eles se concentrem em sua produção artística, em vez de lutar por seus direitos básicos.

Resposta da Prefeitura 

Enviamos uma solicitação formal à Prefeitura do Recife, buscando esclarecimentos sobre os motivos dos atrasos nos pagamentos dos cachês dos artistas. A Prefeitura enviou a seguinte nota:

“A Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura Cidade do Recife, informa que estão sendo tramitados e realizados todos os processos e pagamentos referentes aos festivais e ciclos culturais realizados a partir do segundo semestre de 2024. Somadas as quase 300 contratações realizadas para compor a programação dos festivais de Literatura, Dança, Teatro e da Mostra de Circo, somente 11 processos seguem pendentes, em função de questões documentais. O poder público municipal reafirma o compromisso e o esforço permanentes para garantir pagamentos cada vez mais céleres aos fazedores de cultura da cidade, de todas as linguagens e cadeias produtivas”.

 

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Teatro de Santa Isabel:
175 Anos de Palco,
Resistência e Memória

Tombado pelo IPHAN em 1949, o TSI é um 14 teatros-monumentos do país. Foto: Andréa Rêgo Barros / PCR

É impactante sua arquitetura neoclássica. Foto: Andréa Rêgo Barros / PCR

Lançamento de livro e apresentação do Grupo Magiluth na celebração de aniversário. Foto: Andréa Rêgo Barros

Em 2025, o Teatro de Santa Isabel completa 175 giros em sua espiral temporal, entrelaçando passado e presente no coração do Recife. Esse corpo arquitetônico respira memórias e performa histórias que se acumulam em camadas, como uma máquina do tempo em movimento, onde cada apresentação deixa seus rastros invisíveis. Inaugurado em 18 de maio de 1850, o edifício neoclássico é um organismo cultural que pulsa, absorve e reflete as vibrações sociais de quase dois séculos.

Concebido pelo Barão da Boa Vista e materializado pelo engenheiro francês Louis Léger Vauthier, suas paredes testemunharam momentos da história, desde os debates da Revolução Praieira até os discursos que culminaram na declaração de Joaquim Nabuco: “Aqui vencemos a causa da abolição”. O incêndio de 19 de setembro de 1869, que destruiu quase toda a estrutura do teatro, deixando apenas paredes laterais, alpendre e pórtico, não silenciou sua importância. Em 16 de dezembro de 1876, o teatro ressurgiu para continuar sua missão como palco da efervescência cultural pernambucana.

Desse palco, revoluções saltaram para as ruas. Suas colunas sustentam ideais de liberdade que permeiam gerações. Ao visitá-lo hoje, conectamo-nos diretamente com um capítulo fundamental da história cultural do Brasil, apreciando tanto sua relevância arquitetônica quanto sua contribuição para a formação da identidade pernambucana. Em um país que luta para não esquecer sua memória, esperamos que o Santa Isabel permaneça – resistente, vivo e necessário – como artéria pulsante da cultura que segue reinventando o futuro a partir das lições do passado.

Para a celebração de aniversário, o Santa Isabel recebe no domingo, dia 18 de maio, às 19h, o Grupo Magiluth com o espetáculo Estudo Nº 1: Morte e Vida, uma releitura do poema de João Cabral de Melo Neto. E nesta sexta-feira (16 de maio), às 19h, ocorre o lançamento do livro digital Ponto de Vista: crítica e cena pernambucana, pesquisa minuciosa do jornalista e historiador Leidson Ferraz, que faz uma palestra sobre os primórdios da crítica no Recife.

 

Estudo Nº 1: Morte e Vida

Uma reconfiguração contemporânea do clássico severino

Cena faz alusão à precarização do trabalho, e a Thiago Dias, trabalhador de aplicativo que morreu de exaustão Foto_Vitor Pessoa/ Divulgação

Essa cena do canavial, cruza Michael Jacson com maracatu rural, com Bruno Parmera. Foto_Vitor Pessoa

 

Crises climáticas e migrações são discutidas no espetáculo. Foto_Vitor Pessoa/ Divulgação

Como parte das celebrações de 175 anos, o Teatro de Santa Isabel recebe no domingo, 18 de maio, uma das mais instigantes produções do teatro pernambucano contemporâneo. Estudo Nº 1: Morte e Vida, do Magiluth, sob direção de Luiz Fernando Marques (Lubi) e assistência de Rodrigo Mercadante, propõe uma releitura radical do clássico Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Os ingressos  para o espetáculo são distribuídos na bilheteria do teatro, a partir das 18h.

A dramaturgia expandida torna-se um “manifesto-palestra” que entretece o texto original com narrativas urgentes do presente, preservando a força poética cabralina, amplificando-a nas discussões atuais, evidenciando como as questões de migração, precarização do trabalho e crise climática permanecem dolorosamente atuais.

Podemos pensar sobre episódios trágicos do mundo real, que, embora não estejam diretamente em cena, chegam por associação, como a brutalidade sofrida por Moïse Mugenyi Kabagambe – refugiado congolês no Brasil, assassinado em 2022 no Rio de Janeiro após cobrar salários atrasados. Ou em um dos  episódios centrais da encenação, que reflete a precarização do trabalho e o desprezo pela vida, a história de Thiago Dias – trabalhador nordestino que sucumbiu em 2020 por exaustão após jornadas extenuantes como entregador de aplicativo em São Paulo.

Essas tragédias estabelecem pontes temporais que apontam a persistência das desigualdades sociais, que vem muito antes da publicação de Morte e Vida Severina (1955).

A força do texto cabralino não fica aprisionada em uma redoma de contemplação, mas, ao contrário, é potencializada ao ecoar em narrativas urgentes do presente. Quando os atores alternam entre os versos e intervenções performativas que incorporam narrativas atuais, criam um campo dialógico onde passado e presente se interpenetram, expondo as estruturas de poder e as continuidades históricas da exploração no contexto das novas configurações das ordens mundiais.

A encenação rompe radicalmente com a ilusão teatral ao expor deliberadamente seus mecanismos de produção. Microfones, mesas técnicas à vista, projeções em painéis desnudos – todos estes elementos compõem um dispositivo metateatral que transforma o espetáculo em uma “oficina” visível de criação.

A estrutura espiral da montagem sobrepõe camadas temporais através de projeções que justapõem imagens de arquivo, recortes digitais e colagens visuais. Esta fragmentação sensorial reflete a própria natureza caótica da experiência contemporânea, criando uma malha de significados que desafia interpretações lineares. O título “Estudo” não é casual: carrega a natureza investigativa de um teatro que se propõe como pesquisa contínua e menos como produto acabado.

Um dos aspectos mais provocativos da montagem é seu questionamento da própria figura do “Severino”. Ao utilizar ferramentas de busca digital para expor representações estereotipadas do nordestino, o espetáculo desnaturaliza imagens cristalizadas no imaginário nacional. O personagem insiste em dizer que não é uma entidade fixa para mostrar-se como um conceito em constante movimento, atravessado por muitas vozes e experiências.

 

Primórdios da crítica teatral no Recife

Leidson Ferraz lança livro digital e faz palestra. Foto: Léo Mota. Capas do livro. Design: Claudio Lira.

Uma investigação sem precedentes sobre os primórdios da crítica teatral pernambucana será apresentada ao público nesta sexta-feira (16 de maio), às 19h, no Teatro de Santa Isabel. Fruto de meticuloso trabalho em vários periódicos dos séculos 19 e 20, o livro Ponto de Vista: crítica e cena pernambucana, de Leidson Ferraz, doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, inaugura as celebrações pelos 175 anos da casa de espetáculos. A obra desvenda o universo das primeiras publicações críticas sobre teatro na imprensa recifense, reconstruindo o panorama cultural da época através de documentos raros e análises. O acesso ao evento é gratuito.

Durante a palestra, o pesquisador compartilha curiosidades sobre os embates e polêmicas que marcaram a cena teatral pernambucana, desde os críticos anônimos que usavam pseudônimos como “O Kapla” e “O Sentinela” até a profissionalização da crítica no início do século 20. Entre os destaques da pesquisa está o momento de transição dos gêneros teatrais, quando as operetas e o teatro de revista substituíram o teatro romântico e realista, causando reações intensas como a ocorrida em 1869, quando apresentações de óperas-buffa provocaram tumultos no mesmo ano em que o teatro sofreria um devastador incêndio. A publicação, que contou com incentivo da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB/PE), já está disponível gratuitamente em formato digital no link Livro

 

Entrevista – Romildo Moreira – diretor do Teatro de Santa Isabel

Romildo Moreira. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Aproveitando o momento significativo das comemorações dos 175 anos do Teatro de Santa Isabel, realizamos uma entrevista com Romildo Moreira, atual diretor dessa casa histórica das artes pernambucanas. Com experiência na gestão cultural e conhecimento sobre o legado deste patrimônio, Moreira compartilha reflexões sobre os desafios de preservar e administrar um espaço que testemunhou importantes capítulos da história brasileira desde 1850.

– O Teatro de Santa Isabel é um verdadeiro patrimônio cultural e arquitetônico. Quais aspectos da história e da vocação do teatro o senhor destacaria como fundamentais para sua identidade?

Romildo Moreira – O Teatro Santa Isabel é um patrimônio cultural e arquitetônico, sim. Foi tombado pelo IPHAN em 1949, já ressaltando exatamente esse patrimônio com uma ênfase da cultura local, na cidade do Recife, e patrimônio nacional da arte e da cultura, como depois ele foi eleito a esta condição.

Ele participa dos 14 teatros-monumentos do país e hoje ele é considerado pelo próprio IPHAN como um dos teatros antigos do Brasil, um dos mais bem equipados e com programação permanente.

O tanto que a gente aqui fica recebendo solicitações de pauta o tempo inteiro e já está com a pauta para 2025, por exemplo, lotada até o dia 21 de dezembro. Ou seja, tanto a produção local quanto a produção nacional e até produções internacionais, quando vem para o Nordeste, pensa no Recife e no Teatro de Santa Isabel.

De fato, ele é almejado não só pela produção local, mas, como falei, nacional e internacional.

 – Considerando a importância histórica e a relevância na cena cultural do Recife, como o teatro se posiciona para cumprir seu papel frente aos desafios contemporâneos?

Romildo Moreira – Com relação aos desafios contemporâneos, mesmo o teatro sendo muito antigo, com 175 anos de existência, a gente não faz discriminação de espetáculos contemporâneos, de teatro, dança, circo, ópera etc., desde que não haja nenhum prejuízo físico ou moral para casa, a gente tem todo o prazer em receber essas produções aqui no palco do Teatro Santo Isabel. Isso tem ocorrido frequentemente. Inclusive, a nossa comemoração dos 175 anos do Teatro Santo Isabel é com o Grupo Magiluth, que tem um espetáculo muito contemporâneo, um espetáculo que não tem uma pegada cênica de antigamente, muito pelo contrário, é um espetáculo jovem, atemporal, contemporâneo etc.

Gostaria de entender melhor o que significa “prejuízo físico ou moral para casa”.

Romildo Moreira – Prejuízo físico é que danifique alguma coisa de palco, da plateia, das cadeiras, do gradil que é tombado etc. Então, prejuízo físico seria exatamente danificar algo que caracteriza o patrimônio. E prejuízo moral seria espetáculos de cenas explícitas, de pornografias, de sexo etc.

Só lembrando também que prejuízo moral também seria espetáculos pornográficos. A gente não teria esta condição de recebê-lo pela própria história e relevância do Teatro Santo Isabel.

 O mês de maio reserva uma programação especial para o aniversário do teatro.

Romildo Moreira – Para a celebração dos 175 anos, na programação oficial nossa aqui do Teatro de Santa Isabel, temos o lançamento do livro Ponto de Vista: Crítica e Cena Pernambucana, de Leidson Ferraz,  na sexta-feira, 16/05, (às 19h) e no domingo, 18/05, a apresentação gratuita de Estudo nº1: Morte e Vida, do grupo Magiluth, em comemoração ao aniversário

Quanto à Orquestra Sinfônica do Recife, os concertos (27/05 e 28/05, às 20h) fazem parte da programação mensal. Não está diretamente vinculado ao aniversário do teatro, mas também não deixa de ser uma oportunidade das pessoas estarem aqui nesta semana de comemoração desta data tão importante para um teatro que está permanentemente ativo. Não é verdade?

– O que motivou a escolha dessa programação especial?”

Romildo Moreira – Com relação ao que motivou essa programação que você chama de especial para o aniversário do teatro, é uma coisa muito simples. Primeiro, o lançamento do livro de Leidson Ferraz trata-se de teatro, e nada melhor do que lançar num teatro, como o Teatro de Santa Isabel, porque muita pesquisa ele fez aqui também, no nosso material. E na própria descrição do livro se fala muito no Teatro de Santa Isabel. E quanto ao Grupo Magiluth, a escolha do Grupo Magiluth é porque é um grupo local importantíssimo que faz apresentações aqui esporadicamente por outras questões, por falta de pauta etc., e pela qualidade do grupo, a qualidade dos espetáculos do grupo, inclusive trazendo uma peça baseada em João Cabral, do Melo Neto. Então a pernambucanidade do espetáculo tem tudo a ver também com a pernambucanidade do Teatro de Santa Isabel. Enfim, mas independente dessa coisa bairrista mesmo, é a qualidade artística que o grupo Magiluth tem nos seus espetáculos.

E esta é a razão mais forte que a gente encontra para dizer que este grupo vai entrar nesse aniversário do teatro tranquilamente.

– O teatro possui algum projeto de curadoria específico para contornar questões contemporâneas e potencializar o uso do espaço cultural? Como esse projeto tem influenciado a escolha e a execução dos eventos?”

Romildo Moreira – Bem, não existe uma curadoria para escolhas dos espetáculos a acontecer no Teatro de Santa Isabel. Existe um decreto de número 21-924, de 10 de maio de 2006, que normaliza as pautas que a gente pode oferecer, pode receber aqui. Então, não pode ter excesso de som, som até 95 decibéis, não pode ter abundância de água em cena, não pode ter fogo, não pode ter drone etc., coisas que possam pôr em risco o patrimônio cultural do Teatro de Santa Isabel. Então isso a gente leva em conta quando recebe as propostas de pauta se esse espetáculo pode ser apresentado aqui ou não. Quando não pode ser apresentado aqui, a gente explica o motivo e sugere uma outra casa de espetáculos. Normalmente, a produção local já sabe disso e não traz esse problema para a gente resolver, mas as produções de fora, quando ocorre, a gente explica e eles entendem completamente bem.

Quais são os critérios adotados para escolher as pautas e os eventos executados no teatro ao longo do ano? Há uma linha diretriz definida para a programação?

Gostaria de compreender com mais profundidade como funciona o processo de distribuição de pautas ao longo do ano no Teatro. Poderia descrever, de forma detalhada, o passo a passo desse procedimento? Por exemplo, se uma produtora local tem interesse em reservar uma pauta para maio de 2026, qual seria o período ideal para entrar em contato, e quais os documentos e informações necessários para formalizar a solicitação?

Romildo Moreira – Não há linha definida para a ocupação da pauta, o que há é a não aceitação de eventos artísticos e culturais que não tem perfil para o Teatro de Santa Isabel. Por exemplo: concurso de miss, eventos evangélicos, espetáculo pornográficos…

Se eu, como produtora cultural, precisar de uma pauta, como consigo? Quais os critérios? Não tem critérios?

Romildo Moreira – Se você precisar de uma pauta, é só encaminhar para o nosso e-mail a solicitação de pauta dizendo o que vai ser utilizado nessa pauta, qual é o espetáculo, se é teatro, dança, circo, ópera, como é que ele se porta, mandar fotos, mandar material em geral sobre a peça, para a gente saber o que é etc.

É isso. Se houver alguma impossibilidade de recebê-lo pela data, já é uma coisa óbvia, porque já está ocupado. Ou então porque o espetáculo não se porta dentro do que a gente já falou antes, se é pornográfico, se tem danos físicos ou morais para o teatro.

É isso, não tem outro critério, que a gente não vai fazer censura estética, entendeu?

Há variação também nos valores dos aluguéis e nas condições de contratação nesses casos, ou são uniformes para todos?

Romildo Moreira – O pagamento da pauta do Teatro de Santa Isabel tem uma diferença da produção local para a produção visitante. A produção local paga 10% da bilheteria bruta com o valor mínimo de R$ 2 mil por apresentação. A produção visitante paga 10% da bilheteria bruta com valor mínimo de R$4.000 por cada apresentação. Só isso que difere, é só o valor mesmo, porque a produção local tem esse abatimento de 50% do valor da pauta.

Por fim na questão das pautas, gostaria de saber se existem restrições específicas para espetáculos destinados ao público infantil ou juvenil e como essas particularidades influenciam a distribuição de pautas.

Romildo Moreira – Inclusive, no mês de julho, existe o Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco, da Metro Produções, e o Teatro de Santa Isabel também recebe esse festival. Então, nós temos o maior prazer também de apresentar espetáculo para criança, que é o público do futuro.

– O Teatro de Santa Isabel, com sua longa trajetória, sempre enfrentou desafios de manutenção e sustentabilidade. Quais estratégias e parcerias têm sido implementadas para garantir sua sobrevivência e modernização sem perder sua essência histórica?

Romildo Moreira – Quanto à manutenção e sustentabilidade, existe uma questão bem presente, como o teatro é da Prefeitura do Recife, a Prefeitura, através da Fundação de Cultura e da Secretaria de Cultura, faz a manutenção permanente através de empresas que são licitadas para tal. Então, a gente tem uma empresa que cuida da manutenção do ar-condicionado, outra que cuida da manutenção estrutural, enfim, e por aí vai. São empresas que permanentemente, como por exemplo os elevadores, têm um problema no elevador, então tem a empresa de manutenção do elevador  que vem e conserta na hora e por aí vai. Isso facilita, porque é um órgão público. Se fosse pela bilheteria do teatro, jamais isso ocorreria, porque a gente não teria disponibilidade financeira para tal. Mas, ao contrário, a gente mantém sempre essas questões em dia por conta dessas parcerias que são com a Fundação de Cultura e Secretaria de Cultura para a manutenção de empresas com esta obrigatoriedade.

– Quantos funcionários compõem a equipe que trabalha no teatro e quais têm sido os principais desafios enfrentados na gestão do espaço atualmente?

Romildo Moreira – 49 funcionários

– Qual tem sido o papel do investimento público no fortalecimento e na manutenção do teatro? De que forma esses recursos têm contribuído para a preservação e renovação do espaço?

Romildo Moreira – Reforçando. Acho importante também falar sobre a manutenção do teatro. Todo mês de fevereiro, anualmente, a gente não abre pautas, não abre para atividades artísticas, a gente faz uma manutenção de equipamento, de som, de luz, de toda parte estrutural do teatro, fazendo também alguns reparos de pintura, etc., para manter o teatro sempre bem quisto e bem visto pela sociedade.

– Como o cidadão, de todas as classes sociais, pode ter acesso ao teatro? Existem projetos ou estratégias que promovem a participação popular e a democratização do espaço?

Romildo Moreira – Quando se trata de sociedade, o teatro tem esse cuidado de não ser uma casa distante da população. Por isso que temos muitos espetáculos gratuitos.

A Orquestra Sinfônica do Recife faz quatro concertos aqui no teatro mensalmente, com sessões gratuitas. Além disso, o teatro tem um projeto chamado Santa Isabel em Cena, que tem duas vertentes. A primeira vertente é que, às terças-feiras, a gente recebe uma média de 300 jovens, entre alunos de escolas públicas, escolas privadas e de ONGs que trabalham com essa faixa etária. Essas pessoas vêm aqui para conhecer o teatro e assistem um espetáculo gratuitamente, um espetáculo local.

E a segunda versão desse Santa Isabel em Cena é que acontece aos domingos, uma vez por mês, um espetáculo direcionado mais à terceira idade, que é uma forma também de a gente trazer e manter este público. Na primeira versão é para os novos frequentadores do teatro, com essa juventude, e nessa segunda versão é para a manutenção desse povo que já acostumou vir ao teatro e assistir a um espetáculo, principalmente de música camerística. Enfim, de forma que a gente tem essa preocupação de um público sempre ampliado e renovado nas apresentações do Teatro de Santa Isabel.

Também temos tido o cuidado de negociar com as produções que vêm para cá, para o Teatro de Santa Isabel, de não fazerem preços muito altos, até mesmo porque o pagamento da pauta é muito pequeno, é 10% da bilheteria bruta, de forma que os ingressos aqui não são de preço tão volumosos exatamente para facilitar uma camada mais ampla de pessoas poderem assistir, já que os ingressos não são tão caros.

– Considerando a situação do entorno do teatro, com calçadas em péssimo estado, a presença de moradores de rua e mendicância, há alguma estratégia integrada ou parceria com órgãos públicos para revitalizar a área?

Romildo Moreira – Com relação a essa questão de moradores de rua, quando o teatro fecha, fica invadido, pessoas dormindo aí, a gente não tem como resolver isso aqui. A prefeitura passa toda quarta-feira aqui, oferece abrigo para essas pessoas, umas já foram, outras já tiveram a família inteira abrigada, mas tem gente que não quer. Então, rua é rua, a gente não tem como fazer. Isso não seria com a Secretaria de Cultura nem com a Fundação de Cultura, muito menos com o teatro. Mas a prefeitura, de um modo geral, tem tido uma ação permanente de fazer com que essas pessoas não agridam o espaço etc. Mas é bem complexo em função disso. Tem gente que não quer sair da rua, enfim. Quando chove, principalmente, eles vão para os lugares onde tem abrigo, como tem aqui no Teatro de Santa Isabel, nessa Dantas Barreto, na Guararapes, é o que mais se vê, como se vê também em outras capitais, Rio de Janeiro, São Paulo etc.

– Que mensagem o senhor deixaria para o público e a comunidade?

Romildo Moreira – A mensagem que deixo para o público e o mundo geral é que não temos aqui a preocupação de fazer censura estética com a utilização do teatro de Santa Isabel. Tanto espetáculo, teatro, dança, circo, ópera, música, enfim, temos só a preocupação prevista no decreto, como já falei anteriormente, porque é para a pluralidade de público mesmo.

Enquanto a gente recebe um espetáculo que requer mais um público jovem, o público jovem vem. Quando requer mais um público mais maduro, terceira idade, etc., esse público vem. E é importante saber que, quando eles vêm, eles veem um bom espetáculo aqui quer mais um público mais maduro, terceira idade etc., esse público vem.

E é importante saber que, quando eles vêm, eles veem um bom espetáculo aqui e ficam sempre aguardando novas oportunidades para retornar, porque o Teatro Santa Isabel é a casa do povo do Recife, e o povo do Recife é plural. E essa pluralidade também a gente mantém na programação exatamente para atender todos os desejos e necessidades de uma sociedade tão ampla como é a nossa.

 

 

 

 

 

 

 

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A mesma peça 15 anos depois:
memória, história e atualizações
Crítica de In On It

In On It voltou ao Festival de Curitiba depois de 15 anos. Foto: Lina Sumizono

 

O espetáculo In On It fala de muitos fins em suas narrativas que correm ao mesmo tempo paralelas e entrelaçadas. Mas não quero começar tratando de fins e sim de começos e de retomadas. De movimento, memória e história. Da nossa capacidade de fazer de novo e de novo, igual e diferente. Não só da peça, mas do teatro. Do Brasil e de seus artistas. Da passagem do tempo. Em 2010, Emílio de Mello e Fernando Eiras apresentaram In On It pela primeira vez no Festival de Curitiba, no Guairinha. 15 anos depois, nesta edição 2025 do Festival, estiveram aqui novamente, com a mesma peça, desta vez fazendo duas sessões, cada uma com mais de 700 pessoas na plateia, no Teatro da Reitoria.

No Recife, In On It foi apresentada pela primeira vez no 12º Festival Recife do Teatro Nacional, no segundo semestre de 2009. As sessões foram no Teatro Apolo, o teatro mais antigo da cidade, inaugurado em 1842, no Bairro do Recife. Repórter setorista de artes cênicas do jornal Diario de Pernambuco, eu estava na plateia. Em janeiro de 2011, surgia o Satisfeita, Yolanda?, site de críticas e notícias que edito desde então com Ivana Moura.

 O curador daquela edição do festival era o jornalista e crítico de teatro Kil Abreu. Valmir Santos, também jornalista e crítico, foi convidado a acompanhar a programação e fazer uma avaliação pública da mostra. Ainda hoje, esse é um momento importante para o festival e para a classe artística da cidade, que contribui com essa análise. Sem surpresas, todos os anos, o debate indubitavelmente resvala para a discussão sobre as políticas públicas para o teatro. O festival é realizado pela Prefeitura do Recife e desde então passou por interrupções, sendo retomado há dois anos.

Naquele ano, a edição de In On It, foram 18 espetáculos. A programação abriu na rua, na Praça do Arsenal, também no Bairro do Recife, com Till, a saga de um herói torto, do grupo mineiro Galpão. Vimos Rainhas[(s)] – Duas atrizes em busca de um coração, com Georgette Fadel e Isabel Teixeira, de São Paulo; Meire love – uma tragédia lúdica, do grupo Bagaceira de Teatro, de Fortaleza; e peças criadas no Recife, como Carícias, da Remo Produções Artísticas, de Paula de Renor; Encruzilhada Hamlet, da Cia do Ator Nu, com direção de João Denys; e Cordel do amor sem fim, do grupo O Poste Soluções Luminosas. A curadoria de Kil Abreu fazia um recorte do que era produzido no teatro brasileiro naquele período. In On It havia estreado em março de 2009, no Rio de Janeiro. À distância, as escolhas do curador parecem fazer ainda mais sentido. Avisei que seria sobre história, memória e teatro.

Em sua avaliação publicada no site Teatrojornal, Valmir Santos escreveu: “Em montagem paralela a sua Companhia dos Atores, Enrique Diaz (diretor) encontra no texto do canadense Daniel MacIvor as condições ideais para compor uma ode à metalinguagem teatral da qual maneja como poucos no Brasil, basta lembrar suas últimas visitas a Shakespeare e Tchekhov. Somos embriagados pela dança de Fernando Eiras e Emílio de Mello nas várias camadas de uma história de amor entre dois homens. A narrativa transcorre de maneira inusual, é depositária dos atores e dos mínimos recursos, como uma cadeira, um casaco e um desenho de luz fundamental para compor tempos e espaços. Esse trabalho seco não impede que se alcance a espiritualidade de uma ópera e tampouco economizar no humor e na emoção”.

Em 2009, ano das apresentações de In On It no Festival Recife, grupos que ainda hoje são fundamentais para o teatro pernambucano tinham pouco tempo de trajetória. O Poste Soluções Luminosas e o Magiluth foram criados no mesmo ano, em 2004; um ano antes, tinham surgido a Companhia Fiandeiros de Teatro e o Coletivo Angu de Teatro; e, em 2001, a Cênicas Cia de Repertório foi criada.

Ampliando o foco do Recife, em 2008, a Cia Hiato, de São Paulo, estreou o seu primeiro espetáculo, Cachorro morto, com direção de Leonardo Moreira; em 2005, o Espanca!, de Belo Horizonte, estreou Por Elise, com texto e direção de Grace Passô; em 2002, em Curitiba, a companhia brasileira de teatro lançou Volta ao dia, texto e direção de Marcio Abreu; em 2001, o Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, estreou Hysteria, direção de Luiz Fernando Marques, Lubi.

O texto de Valmir Santos deixa pistas da importância que In On It teria para o movimento de experimentação de linguagem empreendido por esses e tantos outros grupos de teatro contemporâneo recém-formados no país. O que propunha o texto de Daniel MacIvor, traduzido para o português por Daniele Avila Small, era mesmo incomum, três planos distintos na mesma peça, que iam se relacionando e se sobrepondo. Como este texto é sobre memória, no entanto, não nos esqueçamos de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (1912-1980), encenada por Ziembinski (1908-1978) em 1943, com os três planos: a realidade, a alucinação e a memória, e Sortilégio – Mistério Negro, de Abdias Nascimento (1914-2011), com direção de Léo Jusi (1930-2011), que estreou em 1957, e tinha uma estrutura dramatúrgica não-linear. Ainda assim, In On It não era mesmo uma estrutura dramatúrgica corriqueira. Luiz Fernando Ramos, professor, crítico à época da Folha de S.Paulo, escreveu: “É um feito dramatúrgico notável, que coloca esse autor canadense, antes inédito no Brasil, entre os mais inventivos da atualidade”.

Dramaturgia não-linear, em três planos, influenciou teatro brasileiro contemporâneo. Foto: Lina Sumizono

Hoje, os três planos: a montagem da peça que conta a história de Ray, um homem que recebe uma notícia importante e vai compartilhá-la com a família; a discussão de Brian (Fernando Eiras), que está criando a peça, e Brad (Emílio de Mello), sobre a história de Ray e sobre a relação dos dois; e o passado dos dois homens, flui de modo mais fácil. Deixou de ser singular – o recurso da simultaneidade de narrativas foi bastante experimentado, inúmeras vezes, no cinema e, de modo mais significativo para este texto, no teatro. Outro recurso de MacIvor utilizado à exaustão nos anos que se seguiram: os falsos finais nas peças. Que espectador de teatro, nos últimos 15 anos, não viu uma peça que parece que vai acabar, mas ainda não?

 Sobre a agilidade na apreensão do espectador, talvez ela seja influenciada também, como os atores pontuaram no debate pós-espetáculo, no último dia 2 de abril, por nossa vivência com a comunicação nas redes sociais, que se intensificou nos últimos anos, e que se dá rápida, mudando de um tema ao outro em segundos ao arrastar a tela do celular com os dedos. Timelines com muitos assuntos aleatórios e simultâneos.

Ainda assim, 16 anos depois da montagem no Brasil, 25 anos depois de ter estreado fora do país, na Escócia, o texto continua inventivo e surpreendente, se bastando em si mesmo. Claro que, para funcionar, essa peça precisa de dois atores com muita sintonia e uma direção precisa, mas o texto mais do que aponta, carrega os direcionamentos da encenação. Se a forma continua interessante, o conteúdo ainda faz muito sentido, não é anacrônico. É um texto que fala sobre as relações, sobre a nossa falsa sensação de controle, sobre aproveitar a vida enquanto há tempo. 

Os poucos recursos da encenação – duas cadeiras e um casaco – pontuados no texto de Santos, também se multiplicaram no teatro contemporâneo por muitos anos. Seja porque o que importava, naquele momento, era o trabalho dos atores, a concisão, o minimalismo, seja porque isso influenciava categoricamente na circulação dos espetáculos. Era muito mais fácil – talvez ainda seja – circular com um espetáculo que não conta com cenário grande, volumoso, pesado. Cenário que pode ser arranjado em qualquer cidade, duas cadeiras. A iluminação de Maneco Quinderé funciona como esse cenário, preenchendo o palco nu, pontuando com beleza as mudanças de planos nas narrativas do espetáculo.

Fernando Eiras Foto: Lina Sumizono

Emílio de Mello. Foto: Lina Sumizono

É como se, na forma, tanto do texto quanto da cena, estivéssemos agora vendo algo que foi muito importante para o teatro brasileiro. Como assistíamos há alguns anos, por exemplo, aos trabalhos de criadores da década de 1980, chaves na experimentação estética de um tipo de teatro, que foi se transformando em outros ao longo do tempo, como aconteceu com In On It.

Para além dessa forma, o jogo dos atores é a delícia do espetáculo. São dois atores muito bons, com um timing preciso de troca entre eles, inclusive para o humor e para a interação com a plateia, cumplicidade, agilidade. Naquele espaço, entre os dois atores, cabe o mundo todo num segundo de hesitação entre um texto e o próximo, dado pelo parceiro.

Há, porém, um senão que diz respeito à representação: a caricatura na interpretação de alguns personagens, especialmente das mulheres. E sim, isso já estava na encenação lá atrás, há 16 anos. Só que não nos afetava, não a ponto de nos incomodar, não era uma questão com a qual estávamos lidando naquele momento. Mas aparecia, mesmo que de modo ainda incompreendido. Luciana Romagnolli, jornalista e crítica, escreveu para a Gazeta do Povo, jornal curitibano, depois da primeira sessão no Festival de Curitiba, em 2010: “O texto assim se abre em duas camadas, e mais uma terceira que é o passado, enquanto os dois se desdobram em personagens, homens e mulheres diferenciados pela sutileza mesmo quando incorporam o estereótipo. A direção de Enrique Diaz é impecável ao reconhecer cada movimento do texto astucioso e traduzir em um jogo limpo.” A sensação trazida por Luciana Romagnolli era compartilhada por toda uma plateia, inclusive de artistas e críticos. Não nos perturbava e é com pesar que digo isso hoje, mesmo entendendo que essa apreensão da realidade faz parte de um processo histórico. Avisei que o texto seria sobre fazer de novo, igual, mas diferente.

Apesar da liberdade que os atores possuem na interpretação, não cabe mais – nunca deveria ter cabido – a personagem ser caricaturizada e estereotipada, com uma vozinha fina irritante e uma língua presa que nem dá a ouvir o texto direito, e a composição de feminilidade frágil aparente no corpo, mesmo que essa mulher – que no texto não é uma jovem, já tem filho adulto e casado – esteja escolhendo a felicidade dela, abandonando o marido que está doente, porque se apaixonou por outro. Uma personagem incrível, Brenda, feita por Fernando Eiras. Ou assistir à interpretação de Emílio de Mello para Pam Ellis, que surge como uma fútil, louca por homem, que coloca a mão na testa, joga a cabeça para trás, pisca e solta beijinhos. No texto, Pam foi abandonada por um homem que cuidava do filho dela como pai e que sofre com a ausência dele. E, mesmo assim, ela não está chorando, ela está num bar e oferece uma bebida a Ray, que também foi traído e abandonado. Outra personagem incrível. A gente só precisa de uma cena para ver o quanto as duas podem ser complexas. Mas viram caricaturas na construção de um feminino que se ergue apenas pelos estereótipos. Essas interpretações nos afastam de quem são essas personagens, de suas humanidades, que estão lá, na dramaturgia. Inclusive, o próprio texto problematiza como as mulheres são retratadas na história de Ray que os dois atores estão construindo, como duas bêbadas, o que não é o caso. É só para levantar o debate.

Interpretação caricaturizada e estereotipada das mulheres é uma questão na versão atual. Foto: Lina Sumizono

Personagens complexas são reduzidas pela interpretação. Foto: Lina Sumizono

As transformações sociais e as discussões identitárias que tomaram o Brasil e, como consequência, o teatro, não podem mais ser negadas, mesmo que no resgate de uma peça que influenciou o modo de fazer teatro de toda uma geração. Em 2010, Dilma Rousseff foi eleita a primeira mulher presidenta do Brasil. No seu segundo mandato, sofreu um golpe que expôs a misoginia no país. De lá para cá, a extrema direita desgovernou o Brasil durante uma pandemia. 700 mil pessoas morreram. Estamos aqui, agora, nos agarrando a uma esperança de reconstrução de direitos fundamentais, não sem muita disputa de poder e emendas pix e mercado irritado. O mundo se modificou, mesmo que a passos lentos, mesmo que a plateia continue amando o espetáculo. O teatro – que continua contemporâneo – precisa estar alinhado às mudanças se ainda desejar relevância.

O espetáculo In on It foi apresentado nos dias 2 e 3 de abril de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha Técnica:

Texto: Daniel MacIvor
Tradução: Daniele Avila Small
Direção: Enrique Diaz
Elenco: Emilio de Mello e Fernando Eiras
Iluminação: Maneco Quinderé
Cenografia: Domingos de Alcântara
Figurino: Luciana Cardoso
Figurino 2024: Carla Garan e Thiago Gandra
Trilha sonora: Lucas Marcier
Programação visual: Olívia Ferreira e Pedro Garavaglia
Operador de luz: Lina Kaplan
Operador de som: Gabriel Reis
Direção de produção: Joana D’Aguiar
Produção executiva: Ana Beatriz Figueras
Idealização: Emilio de Mello e Enrique Diaz
Realização: Machenka Produções

Direção de In On It é assinada por Enrique Diaz. Foto: Lina Sumizono

Plateia do Teatro da Reitoria, no Festival de Curitiba 2025. Foto: Lina Sumizono

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“Amem-se, exageradamente. Jesus, já veio!”
Crítica de Pontilhados em Olinda

Pontilhados Olinda. Fotos: Rogério Alves / Divulgação

Cena inicial, com a noiva em frente à Igreja da Sé, de Olinda. Fotos: Rogério Alves / Divulgação

Sinalizações das cenas. Foto: Rogério Alves / Divulgação

Pontilhados – Intervenções humanas em ambientes urbanos é travessia. Uma experiência performática-urbana tecida pelo Grupo Experimental, do Recife, sob direção de Mônica Lira, que mergulha na pesquisa entre corpo, cidade, memória e presença. Trata-se de um espetáculo com roteiro, dramaturgia, direção e trilha sonora cuidadosamente elaborados: intérpretes e dançarinos apresentam cenas enquanto o público os acompanha pelas ruas. A obra integra som, poesia, música, deslocamentos, paradas e ações coreográficas. Contudo, é no processo subjetivo de cada participante que Pontilhados se amplia e se reinventa: percepções, lembranças e afetos individuais se entrelaçam ao tecido coletivo da experiência. Pontilhados é dança, caminhada, peregrinação, rito de passagem, arte do encontro e da escuta — e é desse diálogo entre estrutura e vivência que a obra se mantém viva a cada edição.

A peça é proposição sensorial: o convite propõe ver e sentir, habitar, perder-se, reconhecer-se, reaprender a olhar e escutar. A rota nunca é neutra: há camadas urbanas, marcas sociais, marcas no corpo da cidade e dos dançadores, marcas nos olhos de quem caminha junto; memórias pessoais colidem com memórias coletivas, criando uma trama plural e aberta.

Pontilhados, que teve sua primeira edição em 2016, surge com a urgência de existir poeticamente no espaço público, em tensão constante com os desafios das grandes cidades: suas dores, abismos sociais, festas de resistência e histórias de apagamento e reinvenção. É obra afetiva, política e profundamente viva, tornando-se sempre diferente, pois cada cidade, chão, grupo e plateia refaz o bordado de suas linhas a cada montagem.

O Grupo Experimental já apresentou Pontilhados no Recife (duas versões), São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Garanhuns, Fortaleza, Arcoverde e Medellín (Colômbia), levando para cada espaço um processo singular de reinvenção. Nesta 10ª edição, em Olinda (que ocorreu nos dias 9, 10 e 11 de maio), uma residência reuniu 20 artistas de diferentes territórios – entre eles Jean Souza (participante de Pontilhados em Salvador), Georgia Palomino (de São Paulo, que atuou em Salvador e Garanhuns) e Álefe Passarin (no elenco de Arcoverde), que trouxeram sabedoria de outros territórios para costurar junto o fluxo olindense.

O espetáculo conta com os intérpretes-criadores Rafaella Trindade, Everton Gomes, Henrique Braz, Marcos Teófilo e Anne Costa (convidada). A coordenação de Mônica Lira, fundadora do grupo, potencializa o intercâmbio de saberes, integrando diferentes trajetórias e experiências em uma mesma tessitura cênica. A participação dos residentes — Aline Sou, Camila Ribeiro, Dadinha Gomes, Daniel Dias, Isaac Souza, Jair Simão, Jonas Alves, Marcela Rabelo, Marcia Luz, Márcio Allan, Marcos Júnior, Maya Ferreira, Maysa Toledo, Natália Marinho, Salomé Archanjo, Yanca Lima e Yuri Barbosa — amplia ainda mais o coro de vozes e corpos.

Público percorre sítio histórico de Olinda, com a audioguia Paula Call e a diretora Mônica Lira à frente. 

A caminhada propõe um mergulho sensorial mediado pela tecnologia: o público percorre as ruas com fones de ouvido, ouvindo um audioguia transmitido em tempo real. Vozes poéticas, trilhas cuidadosamente escolhidas e palavras emergem misturadas ao som da cidade. O desafio exige presença: é preciso subir e descer ladeiras, caminhar por calçadas antigas, enfrentar o calor, o vento ou a chuva inesperada que altera o percurso, sentir o cheiro da terra e perceber o tempo próprio da cidade.

Olinda acolheu Pontilhados de maneira intensa e singular. Suas ladeiras sinuosas, casarios coloniais e mirantes oferecem terrenos irregulares ao corpo, impondo a cada passo um novo ritmo e convidando a respirar no compasso da cidade. Lá, raízes indígenas e o legado africano se manifestam em cada traço urbano e na força vibrante da cultura popular. Esta edição constrói pontes entre histórias de resistência, convivência e transformação.

Mais profundamente, Olinda carrega a radicalidade da sobrevivência: o peso das invasões, o legado das festas populares — carnavais de maracatus, frevos, caboclinhos — e o misticismo de seus santos e orixás. É raro encontrar um lugar onde arquitetura, história, resistência cultural e religiosidade dancem tão em harmonia. Em Olinda, Pontilhados se reinventa como um tecido que recebe novos fios e cores sem perder o desenho-matriz.

Ao mesmo tempo, Olinda se torna protagonista e interlocutora do espetáculo. Cada recanto, cada curva das ruas, cada memória do povo dialoga com as perguntas lançadas pelo Grupo Experimental. A cidade responde – seja no silêncio, seja nas palavras recolhidas pela dramaturgia -, abrindo novas possibilidades de encontro entre intenções artísticas e vida real.

As atrizes dançarinas trazem questões do feminino: da luta por existir à violência sofrida. Foto: Rogério Alves

Os cães de rua entram na cena e parecem guardar a integridade do corpo. Foto: Rogério Alves / Divulgação

O itinerário de Pontilhados atravessa marcos emblemáticos do Sítio Histórico, transformando o espaço em dramaturgia viva. A caminhada começa na imponente Catedral da Sé – São Salvador do Mundo. O toque dos sinos, ouvido pelos fones ou imaginado em nossas mentes, marca um mergulho poético no início do trânsito.

Ali, diante da Catedral, uma mulher vestida de branco – figura tradicional dos rituais de casamento – surge sozinha, evocando mistério e poesia. Sob o olhar feminista e antimisógino de Pontilhados, essa presença solitária transforma-se em protagonista da própria história. Muito além do clichê da mulher abandonada, ela se revela sinal de autonomia, resistência e reinvenção. Suas emoções e silêncios se abrem a muitas leituras: não à espera da perda, mas afirmando a potência do feminino em sua complexidade, longe de narrativas engessadas.

O trajeto segue pela Ladeira da Sé, com o Palácio de Iemanjá testemunhando as águas e heranças de matriz africana. No Alto da Sé, a escadaria diante do Preto Velho convida a uma pausa de espiritualidade e ancestralidade: a cidade e o mar se revelam como paisagem e memória.

No Mirante do Observatório Astronômico – onde Emmanuel Liais, em 26 de fevereiro de 1860, observou e registrou o cometa Olinda (primeira descoberta do gênero na América do Sul e no Brasil) -, o horizonte se desdobra e o céu flerta com a dramaturgia dos corpos. Assistimos atentamente aos movimentos das bailarinas de vermelho, que encarnam a luta cotidiana das mulheres por existência e visibilidade.

Durante a caminhada, ouvimos em nossos fones, na voz de Silvinha Goes, evocação da trajetória de Branca Dias, mulher que desafiou opressões e lutou por direitos femininos ao lado de tantas companheiras. Em cena e na vida, essas mulheres dançam e enfrentam os algozes patriarcais — corpo a corpo, passo a passo, constroem uma coreografia de coragem e resistência. Até mesmo cães, vigias silenciosos das ruas, parecem zelar pela dignidade dos corpos que ali circulam ou já circularam.

O percurso se expande em paradas marcantes: a porta da Igreja da Misericórdia, a sombra generosa do Mirante das Flores, o popular Beco do Bajado, a Rua do Amparo, a calçada da Bodega do Veio, a varanda do Amparo, a Sede do Homem da Meia-Noite, até culminar na ladeira que leva à Igreja do Rosário. Cada etapa é imersão no sagrado e no profano, reconhecendo a cidade em sua vitalidade pulsante.

Irreverêcia inspirada no Grupo Vivencial. Foto: Rogério Alves

Maracatu no Largo do Amparo. Foto: Rogério Alves

Quando o cortejo chega à Varanda do Amparo, a atmosfera carnavalesca se intensifica. Os artistas ocupam os dois níveis — em cima e embaixo — evocando o espírito irreverente do icônico Grupo Vivencial, referência fundamental da cena alternativa olindense/recifense, cuja ousadia inspirou o filme Tatuagem. No espaço, poesia e performance se cruzam em cenas que desconstroem a caretice de ontem e de hoje, colocando em xeque todas as normatividades. O audioguia ecoa essa energia subversiva em frases provocativas, como: “Tenho a mim mesma de coração exposto…cago nessa humanidade inteira, essa humanidade de coração engolido, cheio de proteção.” A irreverência ganha ainda mais força com a trilha sonora Polka do Cu (Cuica Feat – Tatuagem), entre risos, corpos em trânsito e afronta criativa.

Em seguida, no Largo do Amparo, o espetáculo mergulha na celebração coletiva do carnaval pernambucano. Enquanto os clássicos — como o Hino de Pernambuco, Maracatu Nação, Hino do Elefante de Olinda, orquestras e frevos — embalam o ambiente, o audioguia celebra a multidão, a alegria que brota da esperança e a força coletiva da festa: a cidade, feita de arte, gente e contrastes, se transforma em cenário e personagem, revelando todo o vigor do carnaval. Neste trecho, foliões solitários, pequenos grupos de passistas e agremiações de maracatu ocupam os espaços, surgindo em aparições fugazes e surpreendentes, como se fossem sonhos de carnaval materializados no caminho. A música, os corpos e os sentidos se fundem, tornando o percurso uma ode à criatividade popular e à vitalidade urbana.

Ao atravessar Olinda, não se pode ignorar a dor: as marcas históricas de exclusão, violência e desumanidade inscritas nessas ladeiras. Mas Pontilhados não transforma essa realidade em espetáculo da miséria. Ao contrário, coloca a dor em diálogo com o desejo de libertação, com o corpo em festa, a política da transgressão lúdica, a força dos rituais populares e a ressurreição poética da arte. O carnaval, nos becos e ladeiras, é síntese de política, resistência, afeto e esperança uma explosão coletiva onde drama, utopia e luta se encontram sem hierarquia, no terreno fértil das subjetividades em movimento.

Na frente da Igreja da Misericórdia, em Olinda. Foto: Rogério Alves

Olinda é paisagem, personagem, cenário em constante mutação. Ao longo da caminhada, a natureza se faz presente: o cheiro das árvores, a iluminação que se transforma ao entardecer, a brisa vinda do mar. A natureza dialoga com o roteiro, os pássaros se entrelaçam à trilha sonora, o vento sopra ou leva embora palavras – tudo contribui para uma dramaturgia ampliada, convidando todos à presença atenta.

Silvia Góes, responsável pela dramaturgia (também atuante como a Noiva e a voz do audioguia, em Olinda) constrói um fluxo de sensibilidade que se adapta a cada lugar. Sua escrita dialoga com vozes recolhidas em entrevistas, documentos históricos e palavras que atravessam o tempo, como paráfrases e diálogos de autores como Clarice Lispector, Affonso Romano de Sant’Anna, Mario Quintana, Hilda Hilst e a polonesa Wisława Szymborska. São trechos que questionam a fluidez da identidade, o lugar do humano na cidade, o caos e a esperança coletiva.

Sua dramaturgia flui ora lírica, ora cortante, conduzindo do poético ao político, do íntimo ao social. Fala de liberdade sem camuflar prisões, de amor como experiência radical de alteridade, de utopia como persistência mesmo diante da falta. A palavra se reinventa em cada edição, filtrada pelo tempo, pelos gestos e pela escuta singular de cada lugar. O percurso em Olinda se faz entre perguntas -“O que é pertencer?” – em vozes, músicas, poesia e no próprio rumor da cidade.

Diálogo com a pulsação da cidade. Foto: Rogério Alves

As sonoridades dialogam com o ritmo coletivo do caminhar, fazendo ecoar o tempo da cidade, com suas pausas e abrindo passagem para o fluxo da palavra falada. Em certos momentos, a trilha se deixa atravessar pelos sons do ambiente: buzinas, conversas de moradores, latidos — autores reais da festa e do cotidiano, compondo uma orquestra viva e imprevisível.

As músicas escolhidas fazem ponte com a história e cultura pernambucana: do Afoxé Omunile Ogunja à voz de Aurinha do Coco, de Alceu Valença ao hino do carnaval, do maracatu às orquestras de frevo, e também o experimentalismo sonoro de Chico Science e Nação Zumbi. Cada trilha reverbera nos corpos, ativa memórias, convoca pertencimento. A música dialoga com a dramaturgia, ora potencializando o fluxo poético, ora criando pausas e transições, organizando o pulso do coletivo, a densidade do que é dito e sentido.

Pontilhados propõe ao público novas maneiras de pertencer e perceber o território – de modo que a cidade nunca é a mesma ao final da travessia. Cada microcena transforma-se em experiência, feita de paixão, estranhamento, dor, surpresa, comunhão, alegria e deslocamento.

Ao final, é do lado subjetivo que Pontilhados se projeta: na memória de cada participante, na marca deixada pela natureza e pela paisagem urbana, nos rastros dos que caminharam juntos e nos silêncios que residem após cada estação. Pontilhados é, sobretudo, experiência viva, plural, aberta ao imprevisto e em permanente reinvenção.

Corações espalhados nas ladeiras de Olinda. Rogério Alves

Ficha Técnica

Realização: Grupo Experimental
Direção, concepção e dramaturgia: Mônica Lira
Assistente de direção: Rafaella Trindade
Dramaturgia, voz-guia e artista convidada: Silvia Góes
Coordenação de produção: Chris Galdino
Comunicação e intérprete-guia: Paula Caal
Assessoria de imprensa: Lança Comunicação
Elenco: Rafaella Trindade, Everton Gomes, Henrique Braz, Marcos Teófilo
Artista convidada: Anne Costa
Artistas residentes: Álefe Passarin, Aline Sou, Camila Ribeiro, Dadinha Gomes, Daniel Dias, Georgia Palomino, Isaac Souza, Jair Simão, Jean Souza, Jonas Alves, Marcela Rabelo, Marcia Luz, Márcio Allan, Marcos Júnior, Maya Ferreira, Maysa Toledo, Natália Marinho, Salomé Archanjo, Yanca Lima, Yuri Barbosa
Figurino: Carol Monteiro
Identidade visual: Carlos Moura
Montagem da trilha e apoio de produção: Silvio Barreto, Iramaia Dália, Georgia Trindade, Bianca Alencar
Pesquisa musical: Ivo Thavora
Transmissão da trilha: Alexandre Nascimento
Fotografia: Rogério Alves

Apoios: Secretaria de Patrimônio e Cultura da Prefeitura de Olinda, Homem da Meia-Noite, Centro Cultural Mercado Eufrásio Barbosa, Catedral Sé de Olinda, Alma Arte Café, MST

Incentivo: Ministério da Cultura [Governo Federal], PNAB Pernambuco/Nacional, Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco.

O espetáculo Pontilhados Olinda foi apreentado nos dias 9,10 e 11 de maio de 2025, com concentração na Igreja da Sé, em Olinda 

Leia também a crítica da apresentação de Pontilhados em São Paulo, postada em 30 de novembro de 2018 aqui 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

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