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Ané das Pedras: Ritual Ancestral do Povo Kariri
Entre acolhimento e violência simbólica

 

Sob céu claro e ventos frios, a ancestralidade indígena atravessa a capital gaúcha com Ané das Pedras. Foto: Denis Gosch

Depois de alguns dias de chuva em Porto Alegre, neste sábado, 31 de maio, o céu estava claro, com temperaturas baixas e ventos frios que levaram muitas pessoas a usar casacos pesados e óculos escuros na Praça da Alfândega, no centro da cidade. Foi neste cenário que a artista indígena Bárbara Matias Kariri apresentou Ané das Pedras, uma performance ritual do repertório da Coletiva Flecha Lançada Arte (CE), com produção de Lara Alencar, que integra a programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre.

Na língua do povo Kariri, “Ané” representa o sonho, conceito que fundamenta esta performance singular. A obra estabelece um diálogo profundo com as pedras enquanto entidades ancestrais e encantadas, elementos centrais na cosmovisão desta nação indígena nordestina. “Essa prática ritual nos convida a confiar à pedra aquilo que buscamos, nossas necessidades mais íntimas, depositando nela nossos desejos e aspirações”, revela Bárbara.

Na tradição Kariri, as pedras transcendem sua materialidade aparente — são compreendidas como seres dotados de vida, ancestrais que oferecem proteção e força. “Em momentos de impossibilidade, minha avó sempre evocava a Santa Pedra”, recorda a artista. “Durante uma severa seca que assolou o Ceará, quando a fome se alastrou, meus ancestrais preparavam um caldo ritualístico com ervas e pedras. Após o preparo, retiravam as pedras, devolvendo-as respeitosamente à terra, e consumiam aquele líquido que lhes proporcionava sustento e vitalidade.”

O vasto território do Cariri, cercado por imponentes chapadas e formações rochosas, mantém uma relação simbiótica com estes elementos minerais. “As pedras não apenas nos circundam, mas caminham conosco, compartilham nossa existência, são seres vivos que integram nossa realidade”, enfatiza Bárbara. Esta perspectiva contrasta radicalmente com o pensamento ocidental, que frequentemente reduz as pedras a meros obstáculos a serem removidos do caminho, revelando cosmologias fundamentalmente distintas sobre nossa relação com o mundo mineral.

Entre a violência simbólica e o acolhimento: três encontros marcantes

A performance de Bárbara em Porto Alegre foi marcada por três episódios significativos que revelam diferentes formas de recepção ao seu trabalho e à sua identidade indígena.

O primeiro ocorreu quando uma mulher, ao ser abordada pela artista, respondeu friamente: “Você é tão jovem, vá procurar um trabalho”. Quando Bárbara tentou estabelecer um diálogo sobre a ancestralidade das pedras, a mulher declarou: “Eu não tenho essa coisa espiritual, eu sou materialista”. A artista ainda tentou explicar que a pedra é, de fato, material, mas a conexão espiritual viria do contato, ao que a mulher respondeu negativamente. O encontro terminou com um comentário sobre os dentes da artista, revelando um olhar exotizante.

O segundo episódio, considerado mais grave pela performer, envolveu uma senhora que insistentemente a chamava de “índia” (não de indígena) e oferecia dinheiro, balançando uma nota de 100 reais. “Como ela teve autorização, no meio de um monte de gente, para fazer essa provocação toda?”, questiona Bárbara, evidenciando o desconforto com a situação.

Contrastando com essas experiências, uma terceira mulher demonstrou genuíno interesse. Ao receber a pedra das mãos de Bárbara, ela não apenas se engajou na apresentação como também convidou duas amigas para participarem. “O trabalho também tem esse lugar do encontro que pode dar certo ou não, pode acontecer violência, mas também tem um lugar de identificação, de afeto e de muita força espiritual”, reflete a artista.

Público participa ativamente da performance. Foto: Denis Gosch

Os caminhos rituais do Ané das Pedras

A performance, que estreou em 2019 num festival no Crato (CE), tem circulado por festivais de teatro, performance e dança. O trabalho começa com Bárbara vestida com trajes tradicionais de palha, carregando um maracá e uma cuia com pedras. Ela caminha pelas ruas da cidade, criando encontros com as pessoas e convidando-as a participar do ritual final: o plantio das pedras.

“O percurso demora uns 22 minutos, porque não é sobre a distância, mas sobre os encontros”, diz. Ela busca ruas com grande fluxo de pessoas e vai se conectando pelo olhar, um desafio na sociedade contemporânea. O trajeto termina em uma árvore cuidadosamente escolhida, que precisa atender a requisitos técnicos específicos.

“Eu preciso de uma árvore que não tenha concreto debaixo e normalmente escolho uma que consiga receber um bom número de pessoas”, detalha Bárbara. Na apresentação em Porto Alegre, mais de 60 pessoas acompanharam o ritual até seu momento final.

Importante destacar que as pedras utilizadas são sempre do próprio local onde a performance acontece. “Eu trabalho com as pedras daquele determinado lugar que eu me encontro. Porque não adianta eu pensar só que o rio lá da minha comunidade é um ancestral. É importante que eu pense que o rio que está em São Paulo, os rios que estão em outros lugares também precisam ser protegidos”, explica.

Um ato de resistência indígena e reeducação de imaginários

TRabalho é uma forma de reexistência cultural Foto: Lara Alencar

Ané das Pedras vai além da apresentação artística, pois posiciona-se como uma forma de reexistência cultural e uma proposta de reeducação de imaginários. “A cosmovisão dos povos indígenas é uma visão de mundo muito mais anticolonial e contracolonial na sociedade capitalista que a gente vive”, defende Bárbara.

Levar para o espaço público e para as artes cênicas elementos sagrados da cultura Kariri é um ato político. “Trazer a pedra como algo importante num lugar em que o que é importante é o dinheiro, o que alguém deu valor. Trazer para o palco algo que é forte para a gente, que é importante para a gente, é também uma reeducação de imaginários”, assinala.

A exibição em Porto Alegre ganhou significado adicional após a crise climática que assolou o estado. “Para mim foi muito forte vir fazer o trabalho aqui depois dessa crise climática escancarada que o estado viveu e que todo mundo assistiu”, situa Bárbara, estabelecendo uma conexão entre seu trabalho com os elementos da natureza e as questões ambientais contemporâneas.

Uma conquista histórica no Palco Giratório

A circulação de Ané das Pedras pelo Palco Giratório do Sesc Brasil representa um marco importante tanto para a artista quanto para a visibilidade das artes indígenas no circuito nacional. “A gente é o segundo grupo do interior do Ceará a circular pelo Palco Giratório e eu acredito que a gente é o primeiro grupo indígena com um trabalho voltado para a memória indígena a circular nesse programa que tem tantos anos”, celebra.

A decisão política de permanecer no Cariri

Apesar do reconhecimento nacional e das oportunidades de circulação, Bárbara Matias mantém uma posição política clara: continuar vivendo no interior do Ceará. “Por muito tempo a gente viu as pessoas do Nordeste sendo obrigadas, em sua maioria por questões de trabalho, a se deslocar para os grandes centros. Eu reivindico continuar morando no interior do Ceará”, afirma.

Para a artista, essa escolha é também um exercício político. “Tem aeroporto, as pessoas sabem do meu trabalho, as redes sociais estão aí, tem um telefone que pode ligar, dá para atender o e-mail. Não precisamos nos deslocar do nosso território de origem”, argumenta.

Permanecer no Cariri significa manter proximidade com sua família e comunidade, elementos que alimentam sua produção artística. “Continuar morando lá é também uma forma de não perder alguma coisa que alimenta muito firmemente o meu trabalho”, conclui Bárbara, reafirmando seu compromisso com suas raízes e com a valorização do território nordestino como espaço legítimo de produção cultural contemporânea.

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Teatro de Santa Isabel:
175 Anos de Palco,
Resistência e Memória

Tombado pelo IPHAN em 1949, o TSI é um 14 teatros-monumentos do país. Foto: Andréa Rêgo Barros / PCR

É impactante sua arquitetura neoclássica. Foto: Andréa Rêgo Barros / PCR

Lançamento de livro e apresentação do Grupo Magiluth na celebração de aniversário. Foto: Andréa Rêgo Barros

Em 2025, o Teatro de Santa Isabel completa 175 giros em sua espiral temporal, entrelaçando passado e presente no coração do Recife. Esse corpo arquitetônico respira memórias e performa histórias que se acumulam em camadas, como uma máquina do tempo em movimento, onde cada apresentação deixa seus rastros invisíveis. Inaugurado em 18 de maio de 1850, o edifício neoclássico é um organismo cultural que pulsa, absorve e reflete as vibrações sociais de quase dois séculos.

Concebido pelo Barão da Boa Vista e materializado pelo engenheiro francês Louis Léger Vauthier, suas paredes testemunharam momentos da história, desde os debates da Revolução Praieira até os discursos que culminaram na declaração de Joaquim Nabuco: “Aqui vencemos a causa da abolição”. O incêndio de 19 de setembro de 1869, que destruiu quase toda a estrutura do teatro, deixando apenas paredes laterais, alpendre e pórtico, não silenciou sua importância. Em 16 de dezembro de 1876, o teatro ressurgiu para continuar sua missão como palco da efervescência cultural pernambucana.

Desse palco, revoluções saltaram para as ruas. Suas colunas sustentam ideais de liberdade que permeiam gerações. Ao visitá-lo hoje, conectamo-nos diretamente com um capítulo fundamental da história cultural do Brasil, apreciando tanto sua relevância arquitetônica quanto sua contribuição para a formação da identidade pernambucana. Em um país que luta para não esquecer sua memória, esperamos que o Santa Isabel permaneça – resistente, vivo e necessário – como artéria pulsante da cultura que segue reinventando o futuro a partir das lições do passado.

Para a celebração de aniversário, o Santa Isabel recebe no domingo, dia 18 de maio, às 19h, o Grupo Magiluth com o espetáculo Estudo Nº 1: Morte e Vida, uma releitura do poema de João Cabral de Melo Neto. E nesta sexta-feira (16 de maio), às 19h, ocorre o lançamento do livro digital Ponto de Vista: crítica e cena pernambucana, pesquisa minuciosa do jornalista e historiador Leidson Ferraz, que faz uma palestra sobre os primórdios da crítica no Recife.

 

Estudo Nº 1: Morte e Vida

Uma reconfiguração contemporânea do clássico severino

Cena faz alusão à precarização do trabalho, e a Thiago Dias, trabalhador de aplicativo que morreu de exaustão Foto_Vitor Pessoa/ Divulgação

Essa cena do canavial, cruza Michael Jacson com maracatu rural, com Bruno Parmera. Foto_Vitor Pessoa

 

Crises climáticas e migrações são discutidas no espetáculo. Foto_Vitor Pessoa/ Divulgação

Como parte das celebrações de 175 anos, o Teatro de Santa Isabel recebe no domingo, 18 de maio, uma das mais instigantes produções do teatro pernambucano contemporâneo. Estudo Nº 1: Morte e Vida, do Magiluth, sob direção de Luiz Fernando Marques (Lubi) e assistência de Rodrigo Mercadante, propõe uma releitura radical do clássico Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Os ingressos  para o espetáculo são distribuídos na bilheteria do teatro, a partir das 18h.

A dramaturgia expandida torna-se um “manifesto-palestra” que entretece o texto original com narrativas urgentes do presente, preservando a força poética cabralina, amplificando-a nas discussões atuais, evidenciando como as questões de migração, precarização do trabalho e crise climática permanecem dolorosamente atuais.

Podemos pensar sobre episódios trágicos do mundo real, que, embora não estejam diretamente em cena, chegam por associação, como a brutalidade sofrida por Moïse Mugenyi Kabagambe – refugiado congolês no Brasil, assassinado em 2022 no Rio de Janeiro após cobrar salários atrasados. Ou em um dos  episódios centrais da encenação, que reflete a precarização do trabalho e o desprezo pela vida, a história de Thiago Dias – trabalhador nordestino que sucumbiu em 2020 por exaustão após jornadas extenuantes como entregador de aplicativo em São Paulo.

Essas tragédias estabelecem pontes temporais que apontam a persistência das desigualdades sociais, que vem muito antes da publicação de Morte e Vida Severina (1955).

A força do texto cabralino não fica aprisionada em uma redoma de contemplação, mas, ao contrário, é potencializada ao ecoar em narrativas urgentes do presente. Quando os atores alternam entre os versos e intervenções performativas que incorporam narrativas atuais, criam um campo dialógico onde passado e presente se interpenetram, expondo as estruturas de poder e as continuidades históricas da exploração no contexto das novas configurações das ordens mundiais.

A encenação rompe radicalmente com a ilusão teatral ao expor deliberadamente seus mecanismos de produção. Microfones, mesas técnicas à vista, projeções em painéis desnudos – todos estes elementos compõem um dispositivo metateatral que transforma o espetáculo em uma “oficina” visível de criação.

A estrutura espiral da montagem sobrepõe camadas temporais através de projeções que justapõem imagens de arquivo, recortes digitais e colagens visuais. Esta fragmentação sensorial reflete a própria natureza caótica da experiência contemporânea, criando uma malha de significados que desafia interpretações lineares. O título “Estudo” não é casual: carrega a natureza investigativa de um teatro que se propõe como pesquisa contínua e menos como produto acabado.

Um dos aspectos mais provocativos da montagem é seu questionamento da própria figura do “Severino”. Ao utilizar ferramentas de busca digital para expor representações estereotipadas do nordestino, o espetáculo desnaturaliza imagens cristalizadas no imaginário nacional. O personagem insiste em dizer que não é uma entidade fixa para mostrar-se como um conceito em constante movimento, atravessado por muitas vozes e experiências.

 

Primórdios da crítica teatral no Recife

Leidson Ferraz lança livro digital e faz palestra. Foto: Léo Mota. Capas do livro. Design: Claudio Lira.

Uma investigação sem precedentes sobre os primórdios da crítica teatral pernambucana será apresentada ao público nesta sexta-feira (16 de maio), às 19h, no Teatro de Santa Isabel. Fruto de meticuloso trabalho em vários periódicos dos séculos 19 e 20, o livro Ponto de Vista: crítica e cena pernambucana, de Leidson Ferraz, doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, inaugura as celebrações pelos 175 anos da casa de espetáculos. A obra desvenda o universo das primeiras publicações críticas sobre teatro na imprensa recifense, reconstruindo o panorama cultural da época através de documentos raros e análises. O acesso ao evento é gratuito.

Durante a palestra, o pesquisador compartilha curiosidades sobre os embates e polêmicas que marcaram a cena teatral pernambucana, desde os críticos anônimos que usavam pseudônimos como “O Kapla” e “O Sentinela” até a profissionalização da crítica no início do século 20. Entre os destaques da pesquisa está o momento de transição dos gêneros teatrais, quando as operetas e o teatro de revista substituíram o teatro romântico e realista, causando reações intensas como a ocorrida em 1869, quando apresentações de óperas-buffa provocaram tumultos no mesmo ano em que o teatro sofreria um devastador incêndio. A publicação, que contou com incentivo da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB/PE), já está disponível gratuitamente em formato digital no link Livro

 

Entrevista – Romildo Moreira – diretor do Teatro de Santa Isabel

Romildo Moreira. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Aproveitando o momento significativo das comemorações dos 175 anos do Teatro de Santa Isabel, realizamos uma entrevista com Romildo Moreira, atual diretor dessa casa histórica das artes pernambucanas. Com experiência na gestão cultural e conhecimento sobre o legado deste patrimônio, Moreira compartilha reflexões sobre os desafios de preservar e administrar um espaço que testemunhou importantes capítulos da história brasileira desde 1850.

– O Teatro de Santa Isabel é um verdadeiro patrimônio cultural e arquitetônico. Quais aspectos da história e da vocação do teatro o senhor destacaria como fundamentais para sua identidade?

Romildo Moreira – O Teatro Santa Isabel é um patrimônio cultural e arquitetônico, sim. Foi tombado pelo IPHAN em 1949, já ressaltando exatamente esse patrimônio com uma ênfase da cultura local, na cidade do Recife, e patrimônio nacional da arte e da cultura, como depois ele foi eleito a esta condição.

Ele participa dos 14 teatros-monumentos do país e hoje ele é considerado pelo próprio IPHAN como um dos teatros antigos do Brasil, um dos mais bem equipados e com programação permanente.

O tanto que a gente aqui fica recebendo solicitações de pauta o tempo inteiro e já está com a pauta para 2025, por exemplo, lotada até o dia 21 de dezembro. Ou seja, tanto a produção local quanto a produção nacional e até produções internacionais, quando vem para o Nordeste, pensa no Recife e no Teatro de Santa Isabel.

De fato, ele é almejado não só pela produção local, mas, como falei, nacional e internacional.

 – Considerando a importância histórica e a relevância na cena cultural do Recife, como o teatro se posiciona para cumprir seu papel frente aos desafios contemporâneos?

Romildo Moreira – Com relação aos desafios contemporâneos, mesmo o teatro sendo muito antigo, com 175 anos de existência, a gente não faz discriminação de espetáculos contemporâneos, de teatro, dança, circo, ópera etc., desde que não haja nenhum prejuízo físico ou moral para casa, a gente tem todo o prazer em receber essas produções aqui no palco do Teatro Santo Isabel. Isso tem ocorrido frequentemente. Inclusive, a nossa comemoração dos 175 anos do Teatro Santo Isabel é com o Grupo Magiluth, que tem um espetáculo muito contemporâneo, um espetáculo que não tem uma pegada cênica de antigamente, muito pelo contrário, é um espetáculo jovem, atemporal, contemporâneo etc.

Gostaria de entender melhor o que significa “prejuízo físico ou moral para casa”.

Romildo Moreira – Prejuízo físico é que danifique alguma coisa de palco, da plateia, das cadeiras, do gradil que é tombado etc. Então, prejuízo físico seria exatamente danificar algo que caracteriza o patrimônio. E prejuízo moral seria espetáculos de cenas explícitas, de pornografias, de sexo etc.

Só lembrando também que prejuízo moral também seria espetáculos pornográficos. A gente não teria esta condição de recebê-lo pela própria história e relevância do Teatro Santo Isabel.

 O mês de maio reserva uma programação especial para o aniversário do teatro.

Romildo Moreira – Para a celebração dos 175 anos, na programação oficial nossa aqui do Teatro de Santa Isabel, temos o lançamento do livro Ponto de Vista: Crítica e Cena Pernambucana, de Leidson Ferraz,  na sexta-feira, 16/05, (às 19h) e no domingo, 18/05, a apresentação gratuita de Estudo nº1: Morte e Vida, do grupo Magiluth, em comemoração ao aniversário

Quanto à Orquestra Sinfônica do Recife, os concertos (27/05 e 28/05, às 20h) fazem parte da programação mensal. Não está diretamente vinculado ao aniversário do teatro, mas também não deixa de ser uma oportunidade das pessoas estarem aqui nesta semana de comemoração desta data tão importante para um teatro que está permanentemente ativo. Não é verdade?

– O que motivou a escolha dessa programação especial?”

Romildo Moreira – Com relação ao que motivou essa programação que você chama de especial para o aniversário do teatro, é uma coisa muito simples. Primeiro, o lançamento do livro de Leidson Ferraz trata-se de teatro, e nada melhor do que lançar num teatro, como o Teatro de Santa Isabel, porque muita pesquisa ele fez aqui também, no nosso material. E na própria descrição do livro se fala muito no Teatro de Santa Isabel. E quanto ao Grupo Magiluth, a escolha do Grupo Magiluth é porque é um grupo local importantíssimo que faz apresentações aqui esporadicamente por outras questões, por falta de pauta etc., e pela qualidade do grupo, a qualidade dos espetáculos do grupo, inclusive trazendo uma peça baseada em João Cabral, do Melo Neto. Então a pernambucanidade do espetáculo tem tudo a ver também com a pernambucanidade do Teatro de Santa Isabel. Enfim, mas independente dessa coisa bairrista mesmo, é a qualidade artística que o grupo Magiluth tem nos seus espetáculos.

E esta é a razão mais forte que a gente encontra para dizer que este grupo vai entrar nesse aniversário do teatro tranquilamente.

– O teatro possui algum projeto de curadoria específico para contornar questões contemporâneas e potencializar o uso do espaço cultural? Como esse projeto tem influenciado a escolha e a execução dos eventos?”

Romildo Moreira – Bem, não existe uma curadoria para escolhas dos espetáculos a acontecer no Teatro de Santa Isabel. Existe um decreto de número 21-924, de 10 de maio de 2006, que normaliza as pautas que a gente pode oferecer, pode receber aqui. Então, não pode ter excesso de som, som até 95 decibéis, não pode ter abundância de água em cena, não pode ter fogo, não pode ter drone etc., coisas que possam pôr em risco o patrimônio cultural do Teatro de Santa Isabel. Então isso a gente leva em conta quando recebe as propostas de pauta se esse espetáculo pode ser apresentado aqui ou não. Quando não pode ser apresentado aqui, a gente explica o motivo e sugere uma outra casa de espetáculos. Normalmente, a produção local já sabe disso e não traz esse problema para a gente resolver, mas as produções de fora, quando ocorre, a gente explica e eles entendem completamente bem.

Quais são os critérios adotados para escolher as pautas e os eventos executados no teatro ao longo do ano? Há uma linha diretriz definida para a programação?

Gostaria de compreender com mais profundidade como funciona o processo de distribuição de pautas ao longo do ano no Teatro. Poderia descrever, de forma detalhada, o passo a passo desse procedimento? Por exemplo, se uma produtora local tem interesse em reservar uma pauta para maio de 2026, qual seria o período ideal para entrar em contato, e quais os documentos e informações necessários para formalizar a solicitação?

Romildo Moreira – Não há linha definida para a ocupação da pauta, o que há é a não aceitação de eventos artísticos e culturais que não tem perfil para o Teatro de Santa Isabel. Por exemplo: concurso de miss, eventos evangélicos, espetáculo pornográficos…

Se eu, como produtora cultural, precisar de uma pauta, como consigo? Quais os critérios? Não tem critérios?

Romildo Moreira – Se você precisar de uma pauta, é só encaminhar para o nosso e-mail a solicitação de pauta dizendo o que vai ser utilizado nessa pauta, qual é o espetáculo, se é teatro, dança, circo, ópera, como é que ele se porta, mandar fotos, mandar material em geral sobre a peça, para a gente saber o que é etc.

É isso. Se houver alguma impossibilidade de recebê-lo pela data, já é uma coisa óbvia, porque já está ocupado. Ou então porque o espetáculo não se porta dentro do que a gente já falou antes, se é pornográfico, se tem danos físicos ou morais para o teatro.

É isso, não tem outro critério, que a gente não vai fazer censura estética, entendeu?

Há variação também nos valores dos aluguéis e nas condições de contratação nesses casos, ou são uniformes para todos?

Romildo Moreira – O pagamento da pauta do Teatro de Santa Isabel tem uma diferença da produção local para a produção visitante. A produção local paga 10% da bilheteria bruta com o valor mínimo de R$ 2 mil por apresentação. A produção visitante paga 10% da bilheteria bruta com valor mínimo de R$4.000 por cada apresentação. Só isso que difere, é só o valor mesmo, porque a produção local tem esse abatimento de 50% do valor da pauta.

Por fim na questão das pautas, gostaria de saber se existem restrições específicas para espetáculos destinados ao público infantil ou juvenil e como essas particularidades influenciam a distribuição de pautas.

Romildo Moreira – Inclusive, no mês de julho, existe o Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco, da Metro Produções, e o Teatro de Santa Isabel também recebe esse festival. Então, nós temos o maior prazer também de apresentar espetáculo para criança, que é o público do futuro.

– O Teatro de Santa Isabel, com sua longa trajetória, sempre enfrentou desafios de manutenção e sustentabilidade. Quais estratégias e parcerias têm sido implementadas para garantir sua sobrevivência e modernização sem perder sua essência histórica?

Romildo Moreira – Quanto à manutenção e sustentabilidade, existe uma questão bem presente, como o teatro é da Prefeitura do Recife, a Prefeitura, através da Fundação de Cultura e da Secretaria de Cultura, faz a manutenção permanente através de empresas que são licitadas para tal. Então, a gente tem uma empresa que cuida da manutenção do ar-condicionado, outra que cuida da manutenção estrutural, enfim, e por aí vai. São empresas que permanentemente, como por exemplo os elevadores, têm um problema no elevador, então tem a empresa de manutenção do elevador  que vem e conserta na hora e por aí vai. Isso facilita, porque é um órgão público. Se fosse pela bilheteria do teatro, jamais isso ocorreria, porque a gente não teria disponibilidade financeira para tal. Mas, ao contrário, a gente mantém sempre essas questões em dia por conta dessas parcerias que são com a Fundação de Cultura e Secretaria de Cultura para a manutenção de empresas com esta obrigatoriedade.

– Quantos funcionários compõem a equipe que trabalha no teatro e quais têm sido os principais desafios enfrentados na gestão do espaço atualmente?

Romildo Moreira – 49 funcionários

– Qual tem sido o papel do investimento público no fortalecimento e na manutenção do teatro? De que forma esses recursos têm contribuído para a preservação e renovação do espaço?

Romildo Moreira – Reforçando. Acho importante também falar sobre a manutenção do teatro. Todo mês de fevereiro, anualmente, a gente não abre pautas, não abre para atividades artísticas, a gente faz uma manutenção de equipamento, de som, de luz, de toda parte estrutural do teatro, fazendo também alguns reparos de pintura, etc., para manter o teatro sempre bem quisto e bem visto pela sociedade.

– Como o cidadão, de todas as classes sociais, pode ter acesso ao teatro? Existem projetos ou estratégias que promovem a participação popular e a democratização do espaço?

Romildo Moreira – Quando se trata de sociedade, o teatro tem esse cuidado de não ser uma casa distante da população. Por isso que temos muitos espetáculos gratuitos.

A Orquestra Sinfônica do Recife faz quatro concertos aqui no teatro mensalmente, com sessões gratuitas. Além disso, o teatro tem um projeto chamado Santa Isabel em Cena, que tem duas vertentes. A primeira vertente é que, às terças-feiras, a gente recebe uma média de 300 jovens, entre alunos de escolas públicas, escolas privadas e de ONGs que trabalham com essa faixa etária. Essas pessoas vêm aqui para conhecer o teatro e assistem um espetáculo gratuitamente, um espetáculo local.

E a segunda versão desse Santa Isabel em Cena é que acontece aos domingos, uma vez por mês, um espetáculo direcionado mais à terceira idade, que é uma forma também de a gente trazer e manter este público. Na primeira versão é para os novos frequentadores do teatro, com essa juventude, e nessa segunda versão é para a manutenção desse povo que já acostumou vir ao teatro e assistir a um espetáculo, principalmente de música camerística. Enfim, de forma que a gente tem essa preocupação de um público sempre ampliado e renovado nas apresentações do Teatro de Santa Isabel.

Também temos tido o cuidado de negociar com as produções que vêm para cá, para o Teatro de Santa Isabel, de não fazerem preços muito altos, até mesmo porque o pagamento da pauta é muito pequeno, é 10% da bilheteria bruta, de forma que os ingressos aqui não são de preço tão volumosos exatamente para facilitar uma camada mais ampla de pessoas poderem assistir, já que os ingressos não são tão caros.

– Considerando a situação do entorno do teatro, com calçadas em péssimo estado, a presença de moradores de rua e mendicância, há alguma estratégia integrada ou parceria com órgãos públicos para revitalizar a área?

Romildo Moreira – Com relação a essa questão de moradores de rua, quando o teatro fecha, fica invadido, pessoas dormindo aí, a gente não tem como resolver isso aqui. A prefeitura passa toda quarta-feira aqui, oferece abrigo para essas pessoas, umas já foram, outras já tiveram a família inteira abrigada, mas tem gente que não quer. Então, rua é rua, a gente não tem como fazer. Isso não seria com a Secretaria de Cultura nem com a Fundação de Cultura, muito menos com o teatro. Mas a prefeitura, de um modo geral, tem tido uma ação permanente de fazer com que essas pessoas não agridam o espaço etc. Mas é bem complexo em função disso. Tem gente que não quer sair da rua, enfim. Quando chove, principalmente, eles vão para os lugares onde tem abrigo, como tem aqui no Teatro de Santa Isabel, nessa Dantas Barreto, na Guararapes, é o que mais se vê, como se vê também em outras capitais, Rio de Janeiro, São Paulo etc.

– Que mensagem o senhor deixaria para o público e a comunidade?

Romildo Moreira – A mensagem que deixo para o público e o mundo geral é que não temos aqui a preocupação de fazer censura estética com a utilização do teatro de Santa Isabel. Tanto espetáculo, teatro, dança, circo, ópera, música, enfim, temos só a preocupação prevista no decreto, como já falei anteriormente, porque é para a pluralidade de público mesmo.

Enquanto a gente recebe um espetáculo que requer mais um público jovem, o público jovem vem. Quando requer mais um público mais maduro, terceira idade, etc., esse público vem. E é importante saber que, quando eles vêm, eles veem um bom espetáculo aqui quer mais um público mais maduro, terceira idade etc., esse público vem.

E é importante saber que, quando eles vêm, eles veem um bom espetáculo aqui e ficam sempre aguardando novas oportunidades para retornar, porque o Teatro Santa Isabel é a casa do povo do Recife, e o povo do Recife é plural. E essa pluralidade também a gente mantém na programação exatamente para atender todos os desejos e necessidades de uma sociedade tão ampla como é a nossa.

 

 

 

 

 

 

 

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O valor dos processos nas artes da cena

Gabi Gonçalves, produtora da Corpo Rastreado. Foto: Divulgação

Gabi Gonçalves, produtora da Corpo Rastreado. Foto: Divulgação

Enviei umas perguntas para Gabi Gonçalves, da produtora Corpo Rastreado, na perspectiva de postar aqui no Yolanda, no formato perguntas e respostas, sobre a Farofa.

As questões seguiram por zap. A comunicação por um tipo de aplicativo desse, não totalmente direta, deixa dúvidas e achei interessante expor essas dúvidas, pensando que estamos falando do projeto Farofa do processo.

No 29 de fevereiro, a  produtora estava em Bogotá e eu em São Paulo, trancada num quarto durante uma noite insone para terminar um trabalho.

Recebi as respostas no dia 1 de março, por volta de 1h da manhã, mas só consegui ouvir os áudios no final da tarde. Achei interessante registrar essa troca praticamente na íntegra a partir desses breves diálogos por áudio e texto que criam uma rasura, um troço meio performativo, por suas condições.

ENTREVISTA || GABI GONÇALVES

Ivana – A Corpo não escolhe, a Corpo aceita?!!!! Como funciona essa lógica de quem entra na Farofa?

Gabi – A Corpo não escolhe, a Corpo aceita, eu não entendi se é uma pergunta ou se é uma afirmação, né? Mas a Corpo escolhe e a Corpo aceita. Imaginar essa possibilidade de uma curadoria, que não é exatamente isso que a gente faz, mas é uma aproximação desses artistas e desses agentes, como os produtores, porque muitas vezes a gente vai atrás dos produtores também, principalmente quando não são projetos que estão próximos de nós. A gente se aproxima deles para entender o quanto eles se interessam ou não de estar nesse movimento, que é a Farofa, que eu tenho gostado de chamar de movimento. Eu sei que é sempre necessário colocar em caixas mais organizadoras, como festival, como um movimento conjunto e poderosíssimo entre artistas e produtores, encontrando outros espaços e outros modos de fazer. Então, a nossa lógica não tem a ver com quem eu vou escolher, quem é bom, quem é ruim, o que eu quero, o que eu não quero. Não, a gente olha para o cenário, a gente conhece as pessoas, conhece os artistas, sabe em que momento eles estão e pergunta se eles têm desejo de fazer parte desse movimento nesse momento, se não, num outro momento, porque já fizemos várias. Então, é isso, a Corpo escolhe, a Corpo aceita, a Corpo não escolhe, a Corpo aceita, a Corpo observa. Na verdade, somos pessoas. Quando a gente está falando da Corpo, é esse coletivo de 26 pessoas que trazem ideias, que trazem propostas, que trocam com os artistas, os artistas indicam outras pessoas. Então, é um movimento bastante coletivo que resulta nesse formato que a gente está apresentando agora, nesse recorte dessa Farofa de 2024, pelo menos até agora, é essa.

(Era uma pergunta!)

Ivana – Que tipo de trabalho interessa à Corpo? E o que não interessa?

Gabi – Eu não consigo te responder essa pergunta desse jeito, de forma tão direta, porque eu não construo interesse de uma maneira tão rápida. Não é assim, isso me interessa e não me interessa. Eu preciso de tempo, eu preciso estar junto, eu preciso conhecer, eu preciso trocar, eu preciso compreender, eu preciso brigar, eu preciso fazer as pazes. Então, assim, eu me interesso por ideias, por posicionamentos, mais que tudo. Eu acho que é isso, é como essas pessoas, esses artistas se posicionam diante da arte que fazem, diante dos trabalhos que fazem, o quão essas ideias e esses trabalhos são vitais para essas pessoas. Porque é isso, eu acompanho a trajetória desses artistas.

Então, numa trajetória, quiçá bastante longa, que é o que desejo para todos, todas e todes. Em alguns momentos nós vamos fazer coisas interessantes, noutros não vamos fazer coisas interessantes. Vamos acertar, errar e tudo isso junto. Isso que é a beleza de você poder passar um tempo prolongado vendo o desenvolvimento dos artistas, aprendendo pra caramba com eles. E o que não me interessa, talvez… Não me interesso por teatro musical, tem muita gente maravilhosa fazendo, fazendo bem. Eu jamais conseguiria fazer bem. Eu não me interesso em trabalhar com artistas globais, pessoas famosas, porque é um jeito muito peculiar de fazer, que eu respeito, mas eu não acredito muito, não me faz brilhar os olhos, mas eu realmente respeito bastante. Então é isso, se eu tivesse que dizer o que me interessa, o que não me interessa. Todo o resto que tiver desejo de investigar e de gastar tempo, eu me interesso. Aí eu posso te dizer que me interesso.

Ivana – Por que a produção resolveu trabalhar nesse formato?

Gabi – Por que a produção resolveu trabalhar nesse formato? Eu não sei se eu entendi essa pergunta. Por que a produção resolveu trabalhar em que formato exatamente? Acho que essa pergunta talvez eu gostaria que você me explicasse um pouco melhor. Por que a Farofa é nesse formato? É isso? Porque a gente está dando luz mais à produção do que se é dado normalmente, é isso. Eu fiquei confusa com essa, estou com medo de responder errado.

Ivana – Em tantos anos de festival é possível mapear mudanças ou tendências de uma cena brasileira a partir da Farofa?

Gabi – Bom, essa pergunta eu te diria, eu começaria te respondendo que não, eu não vejo mudança nenhuma, porque eu acho que seria muita pretensão da minha parte te responder que sim, assim de imediato, até porque a gente só existe há quatro anos, a gente fez muitas edições, essa é a nossa oitava edição, se eu não me engano, que eu também não fiquei contando, mas foram muitas já para quatro anos, então, no mínimo, fiz duas ou três por ano. O que acho é que a gente da Corpo Rastreado, como produtor, a nossa ideia é abrir espaço.

Então, a gente vai caçando meios e modos de abrir mais espaço para que os artistas tenham condição de mostrar os seus trabalhos. E eu venho percebendo ao longo do tempo que o processo está definhando em termos de importância dentro do todo. Então, o que eu poderia te dizer é que eu acho que as pessoas hoje em dia, de alguma maneira, já esperam a oportunidade de poder ou não participar da Farofa e sabem que ali elas podem experimentar livremente.

É óbvio que quatro anos não é nada para isso, então o que eu imagino é que ao longo de mais pelo menos quatro anos a gente vai ter que ir mostrando para os artistas, mostrando para o mercado, mostrando para o público que o processo é uma coisa linda, divina, que vale a pena ser compartilhado. Então, o que a gente está fazendo é abrir espaço de compartilhamento. E esse compartilhamento mais genuíno, onde o artista mostra como ele está organizando as ideias, mas ainda inseguro, sem saber, e abrindo isso para uma troca. E eu acho isso lindo, eu acho incrível. A gente não precisa mostrar só produtos incríveis que morrem depois de um mês. A gente precisa mostrar que existe muita coisa por trás disso. Então, se eu tiver algum desejo nos próximos quatro anos, é que a gente entenda o valor do processo.

Ivana – Você acha que expor o trabalho em processo aproxima-se da crítica genética no aspecto de “revelar os segredos da fabricação da obra”?

Gabi – Eu acho que sim, eu acho que se aproxima sim, e eu acho bonito você revelar segredos, eu acho que nós não somos mágicos nem ilusionistas que precisam tanto desses segredos, a magia tá também na feitura. Eu só acho que não é uma questão de exposição, sabe? É uma questão de compartilhamento mesmo. Compartilhar o trabalho em processo. Trazer as suas ideias e as suas incertezas e as suas dúvidas genuinamente para trocar com outros. Por isso que, esse ano, a gente perguntou para cada um dos artistas com quem você quer conversar, com quem você gostaria de conversar, para quem você gostaria de mostrar o seu processo. E aí nós convidamos essas pessoas para que elas estejam lá para essa troca. E essa troca é muito aberta. Como ela vai acontecer, a gente não sabe, só vai acontecer em algum momento ali, entendeu?

Então, vão ser trinta e tantas trocas diferentes. A gente tá bem, assim, eu tô bem curiosa para ver como é que vai ser isso, porque eu tenho certeza absoluta que, por exemplo, para um aluno que está estudando teatro e tudo mais, poder se aproximar desse tipo de ação, se aproximar do trabalho do artista tão genuinamente, eu só vejo ganhos e possibilidades de futuro. Então, acho que revelar os segredos de como a gente faz uma obra é muito foda, porque as camadas de aprendizado são infinitas.

Ivana – Penso em colocar como pergunta e resposta, se você concordar em responder. Pode ser por áudio, se achar melhor.

Gabi – Ivana, eu não tenho certeza do que você está pensando em fazer com essas perguntas, porque você me fala se pode ser uma entrevista ou não. Eu acredito que sim, se você achar que dá para ser como uma entrevista, se precisar editar alguma coisa, eu poder te responder a partir do que eu entender, porque eu acho que pode ser que seja uma pergunta-chave, sabe? Do que nós estamos fazendo, o que exatamente é a Farofa, porque eu fiquei na dúvida se nessa entrevista a gente estava falando da Corpo ou da Farofa, porque muitas vezes você fala a Corpo aceita, Corpo isso, é a Corpo óbvio, mas essa ação da Farofa ela é muito maior do que a Corpo, é um movimento que parte de todos e todas e todes nós, mas ele é, ele fica muito maior que a gente.

E eu gosto disso, eu gosto desse lugar. Eu gosto de imaginar que eu tô começando de uma maneira e eu não tenho a menor ideia como vai terminar. É desse jeito que eu gosto de pensar em curadoria. Por isso que eu não assino como curadoria, porque o curador poderia ficar chateado comigo. Então, eu prefiro assinar como produtora e ser essa pessoa que está testando outros paradigmas, porque é isso que a gente está fazendo. A gente está testando outros paradigmas para encontrar mais saídas, mais possibilidades. A Farofa não deixa de ser um espaço onde eu estou tentando criar mais possibilidades de trabalho para os artistas. No fundo, é isso. Estou buscando mais possibilidades de trabalho. Organizo isso em um movimento que é a Farofa. Mas sei qual é o objetivo todo o tempo, sabe? Que, obviamente, é em cima de muitos erros, alguns acertos e continuidade. Sigo sempre com essa possibilidade, fazendo, refazendo, avaliando e refazendo, e fazendo de novo, errando, acertando um pouco, enfim, a gente tá aí nesse movimento bem vivo, sabe? É um organismo bem vivo. O que a gente sabe que o que a gente tem, a gente divide. Isso pra mim é muito importante. Então a gente não perde, a gente divide pra multiplicar. Então esse é o nosso, digamos, o nosso lema, o nosso canto pra subir.

 

 

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“Depois de um ato tão violento
não se entende o que é o amor”
Entrevista || Carolina Bianchi

Carolina Bianchi em cena de A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Carolina Bianchi. Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

A norte-americana Emilie Dickinson (1830-1886) intrigou e chocou seus contemporâneos com sua poesia “explosiva e espasmódica”. Dickinson é uma das grandes inspirações de arte para a encenadora, atriz, dramaturga e performer Carolina Bianchi. A diretora do coletivo Cara de Cavalo, de São Paulo, com quem criou as peças O Tremor Magnífico (2020), Lobo (2018), Quiero hacer el amor (Quero fazer amor) (2017) e Mata-me de Prazer (2016) recebe os versos de Dickinson como uma “tentativa de elaborar coisas impossíveis, uma dor constante, uma negociação entre a dor e a beleza, que me toca muito”.

Nessa tentativa de elaborar coisas impossíveis, Bianchi encara de frente o monstro, o fantasma, a questão da violência sexual no espetáculo A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força, que estreou no Festival de Avignon, com uma repercussão incrível. O grupo ataca de frente as questões de violência sexual, estupro, feminicídio. E leva à cena de maneira potente a perda de consciência, o apagar da memória, um território borrado, num espetáculo muito rico em camadas.  

Bianchi e o coletivo Cara de Cavalo põem um pé no inferno nessa peça que já no título projeta os dois núcleos da dramaturgia do trabalho. A Noiva é a parte da palestra no espetáculo, em que a atriz compartilha seus estudos sobre o caso de uma artista italiana, Pippa Bacca, que foi estuprada e assassinada durante uma performance, em que estava vestida de noiva.

A outra parte do título, Boa noite Cinderela, é o nome que se usa no Brasil para uma combinação de sedativos colocados nas bebidas das pessoas nas festas; no caso das mulheres, geralmente com o intuito do estupro enquanto estão desacordadas.

Ao tentar elaborar essa violência, o espetáculo busca amparos poéticos em artistas como Dante Alighieri ou o escritor chileno Roberto Bolaño, a partir do seu livro 2666. “O objetivo da peça não é encontrar sentido para essa violência, porque isso é impossível. Mas acredito que o teatro é um campo onde essa repetição pode ser possível através da criação de uma linguagem. Não apenas o depoimento sobre a violência, mas a criação de uma maneira de tocar nesses assuntos, inventar, imaginar”.

Carolina Bianchi. Foto Ivana Moura

Entrevista || Carolina Bianchi

Como você conseguiu furar a bolha e chegar à programação principal do festival de Avignon?

O que acontece é que o Tiago (Rodrigues, diretor do festival a partir desta edição) e Magda (Bizarro) me conhecem há muitos anos. Eles viram meus trabalhos: Lobo (2018) e O Tremor Magnífico (2020). Eu estava fazendo uma residência dentro do Festival Proximamente (no KVS, em Bruxelas) e quando eu abro ao público a primeira parte do trabalho – estava pesquisando essa parte da conferência –, nessa noite, a Magda (que é parceira do Tiago Rodrigues e está trabalhando na curadoria do festival) assiste ao trabalho e essa conversa começa. Isso tem quase dois anos.

Depois, o Tiago assistiu à finalização do meu mestrado na DAS Théâtre, ainda como processo aberto, e essa conversa continua. Então não é uma estratégia. E eu acho isso muito importante de deixar claro. Porque não é um trabalho para que isso aconteça… Foi realmente o trabalho, a pesquisa, uma pesquisa continuada de uma artista que está no corre há muitos anos. Por isso esse espaço se abre, se apresenta como possível.

É uma possibilidade de o trabalho chegar noutros campos.

Sim. Vamos nomear as coisas, vamos nomear estupro, vamos nomear essa violência. E ao nomear isso eu sinto que consigo, quiçá, criar um trabalho que abre um escopo de comunicação muito mais amplo.

Como artista brasileira que não está morando no Brasil, a estreia aqui permite horizontes amplos. Não lembro o último trabalho brasileiro que esteve em Avignon na programação oficial.

Só Christiane Jatahy, que já está em Paris há muitos anos e é associada de vários teatros na França.

Nesse ponto é um gesto muito importante. Nós somos um grupo de teatro independente da  cena de São Paulo, um grupo que não teve apoio institucional em São Paulo em nenhum dos meus últimos trabalhos. Lobo foi feito com crowdfunding (financiamento participativo), Tremor Magnífico foi feito sem nenhum apoio. Estávamos trabalhando num sistema superprecário. O que acontecia é que a gente conseguia juntar um grupo interessado e, no caso de Lobo, isso dava alguma visibilidade. Eu sempre fui uma pessoa comprometida em compartilhar os meus processos através de workshops, a gente fazia girar uma cena de workshops. Eram trabalhos que tinham sempre muita gente ao redor, que estavam sendo feitos continuamente, mas não estavam  sendo sustentados financeiramente. Então é um grupo de teatro independente que vem para um programa da cena principal de Avignon. E acho que isso é alguma coisa.

Lembro que, quando soltaram a programação, recebi muitas mensagens de amigas minhas do Brasil, diretoras, inclusive muitas que foram minhas alunas, dizendo: “Uau! Agora a gente pode sonhar que isso é possível!”. E eu me reconheço nisso, porque não achava que era possível. Uma diretora como eu, que vem de uma família de classe baixa, que tem um monte de gente que está no mesmo corre. A gente só tinha 247 empregos para conseguir fazer o que a gente precisa fazer! Estou falando isso, mas não é para dizer “Vejam como a gente fez um caminho árduo”. Não, não é essa a narrativa, não tem a narrativa heroica. Eu já dizia isso no Brasil. As pessoas falavam: “Mas vocês conseguem se virar, fizeram Lobo com crowdfunding…” e eu respondia: “Vão se fuder! Não exaltem isso. Eu não estou exaltando essa precariedade”. Mas, pra mim, a coisa mais importante é que outras diretoras entendam que espaços como esse são possíveis.

Nessa mudança na direção do festival, Tiago Rodrigues defendia, entre outras coisas, a paridade, e conseguiu por em prática nesta edição. Há uma maioria de mulheres que dirigem espetáculos na programação.

Totalmente. Acho que somado a tudo, há uma mudança na direção para um artista incrível, que é o Tiago Rodrigues, uma pessoa muito sensível, que tem uma relação profunda com o Brasil, com a América Latina. Então muda essa estrutura de ter na programação só espetáculos que são inalcançáveis. Nesse contexto, que acho que tem a ver com questões de classe, mas isso é outro assunto, acho importante que a gente comece a poder estar nesses espaços

Você acha que essa participação em Avignon já deu uma nova direção, um outro rumo para seu trabalho. Já está repercutindo?

Sim, no sentido de que a gente já tem turnês, já tem espaços que estão interessados no projeto. E sobretudo poder trabalhar com dignidade com o meu coletivo. Conhecer, eu diria, como é possível fazer um teatro assim.

O que é fazer um teatro com dignidade? Você está falando economicamente ?

Não só economicamente… quase que psiquicamente. Você começa a ver que o trabalho está gerando retornos. Você vai vendo palpavelmente o que pode acontecer. Isso para mim é inédito.

Saíram críticas bacanas no Le Monde e em muitos jornais e revistas importantes de vários países da Europa.

Isso é inédito. A gente falava isso, no Brasil, não saía nada. A gente ia fazer site e não tinha fortuna crítica. Claro, já sinto que há uma grande mudança. Pra mim, uma das coisas mais lindas era abrir a Folha e ver lá uma crítica da Janaína Leite, minha amiga, e a gente dizia “Alguma coisa está acontecendo”, porque há algum tempo a gente não tinha nem espaço; eram as pessoas de sempre ali, os espaços centrados nos mesmos diretores, então vamos furando esse lugar que, pra mim, é muito importante.

“Como se esse corpo estivesse
sempre tentando se aproximar
tentando desvendar
um enigma impossível.
Então isso é a linguagem”.

Gostaria que você falasse mais sobre linguagem e o desenvolvimento da sua pesquisa sobre feminicídio, feminino e tal. Porque a questão não é o tema, não é assunto, mas a linguagem. O que é a sua linguagem, como você desenvolve essa linguagem e isso entra para mexer com o teatro brasileiro e agora para além?

Esse é um dos meus temas preferidos. Sinto que sou muito obcecada por essa criação. A gente falou na Jana leite e lembro de quando ela foi participar de um debate sobre Lobo – depois de uma apresentação que eu a tinha convidado para ser provocadora dessa conversa – e ela disse que quando ela assistia aos nossos trabalhos, ela sentia que um mundo muito particular era criado. E eu uso essas palavras dela agora para refletir sobre esse mundo particular, como isso opera. O meu desejo de que através do teatro seja possível manifestar algum tipo de invenção, de como esse imaginário se manifesta.

Eu sinto que isso começa a partir da escrita. Estou falando isso porque a minha dramaturgia, a minha escrita, tem uma particularidade de imagens, de como essas imagens vão acontecendo, dessas associações. Acho que esse já seria o primeiro passo. Quando estou compartilhando informações, eu não só compartilho informações, mas tem alguma coisa ali que vai parar dentro de outra coisa, na maneira como escrevo. Por isso o espetáculo tem que ser em português. A gente está rodando com um espetáculo de duas horas e meia, com texto do começo ao fim, onde as pessoas vão ter que ler, e é isso, o espetáculo é em português. Tem uma coisa dessa poética, que vem. Esse é o exercício de linguagem número 1, a escrita. 

E, a partir dessa escrita, como a gente manifesta na cena, junto com a minha companhia Cara de Cavalo, como nós manifestamos na cena – através de práticas que a gente vem desenvolvendo – como a gente se aproxima, como a gente dá corpo, como a gente manifesta essas ideias. É como você falou, não é o assunto, o assunto a gente já sabe, não é isso. A peça para mim é sobre isso, sobre linguagem. Tem essa pergunta: “É possível criar algo que seja tão violento quanto o ato em si?”. A peça é uma tentativa. Como se esse corpo estivesse sempre tentando se aproximar, tentando desvendar um enigma impossível. Sinto que isso é a linguagem.

Poder ter essa cena, onde existe o musical dentro do carro, que está misturada a outras coisas, com esse rasgo do real que é a performance, com esse acúmulo infinito de camadas, isso está conectado com essa criação de uma linguagem.

E você surpreende quem pensa que a peça fica na parte da palestra. Depois vem uma produção complexa, do carro, todas aquelas coisas, a movimentação. Da palestra para a coisa mais representacional e por que você fez essas escolhas?

Eu acho que tem a ver com esse fio dramatúrgico: a palestra era para compartilhar as informações sobre a vida e as histórias dessas artistas. E eu não poderia fazer isso de outra forma. Essas informações precisavam ser compartilhadas. Então, a performance vem como gesto de aproximação dessas histórias de violência. Estou falando de uma performer que foi assassinada (Pippa Bacca); como falar, como me aproximar dessa história? Então também coloco meu corpo em vulnerabilidade para conseguir chegar a essas histórias. Acho que, por outro lado, na segunda parte, o teatro vem reclamar o seu espaço completo; porque depois que você toma o “boa noite cinderela”, para onde nós vamos? A gente vai para o teatro. A gente precisa ir para essa representação alucinante.  Acho que essa era a única maneira que tinha de seguir elaborando. O teatro precisa vir com essa possibilidade de elucubrar, como espaço de sustentação, o teatro precisa sustentar a sequência desse acontecimento. Eu preciso do teatro para tornar possível essa aproximação.

“Esse trabalho tem
que ser árduo num pacto
com o espectador. Nós não
podemos falar de violência
e sair daqui numa
nice”.

 

Você falou que o teatro não é um lugar seguro. E na peça você fala que há um outro tetro que não se arrisca. Gostaria que você desenvolvesse essa ideia do teatro ser um lugar inseguro e dos riscos que você resolve, escolhe e vai por esse caminho. E outra coisa é que você está desbravando, está inventando a cada passo.

Para mim é muito importante dizer – e essa pergunta está dentro do texto da peça, quando falo com o quê o teatro tem que se parecer.  Eu não acho que os teatros tenham que ser iguais, são muitos teatros. E acho que essa é a grande beleza da existência do teatro. Eu sou uma pessoa que ama o teatro. Mas o teatro que estamos fazendo nesse coletivo, nós sim acreditamos que o teatro é o espaço da instabilidade. Se a gente está falando de violência sexual – e acho que estamos sempre falando em nossos trabalhos de alguma maneira disso – o teatro precisa ser um espaço da instabilidade, ele precisa colocar em jogo um trabalho árduo. Encarar isso é um trabalho árduo e esse trabalho não pode ser árduo só para mim, ele tem que ser árduo num pacto com o espectador. Vamos juntos nessa jornada olhar para isso. Nós não podemos falar de violência e sair daqui numa nice.  

Acho que por isso o “Fuck Catharsis”. A gente sabe que esse tipo de experiência não tem cura. Eu sei que esse tipo de experiência não tem cura. Você não vai superar, mas você vai entender, vai ficar olhando para ela e entender: “Ok, como eu faço, quais as minhas ferramentas para entender, como fui lidando com elas ao longo dos anos?”. E, nesse sentido, o teatro, não é que ele precise de riscos, colocar coisas em risco, mas o teatro é um espaço que não é seguro no sentido de que ele precisa atravessar você de alguma maneira, algo precisa se mover, algo precisa acontecer.

Eu não acredito que o teatro vai mudar o mundo, que porque estreei essa peça, 10 mil feminicídios vão acontecer a menos. Isso é uma bobagem, não acredito nisso. Mas acredito que algum movimento pode ser feito, se esses espectadores que estão assistindo à peça saírem um pouco perturbados, isso no próprio corpo, algo aconteceu. Esse algo a gente precisa deixar no mundo, para ver o que acontece depois.

Fuck Catharsis é um conceito?

Sim, mas não um conceito, digamos, teórico. Ele é um conceito da experiência. Num momento em que você vive uma violência sexual,  porque eu sinto assim que tem muito esse papo, eu vejo outras peças que abordam o mesmo tema que adotam muito esse slogan “a vida depois disso, a cura, a superação”. Não tem superação! Fudeu! E aí o grande trabalho da sua vida é dizer “e agora ?”. Aí tem que buscar ferramentas para lidar com a violência. Não é dizer “assim, gente, estou curada do estupro que sofri, tô de boas, a peça me ajudou”. Porque tem muita essa ideia na peça autobiográfica de quando você vai lá e expõe seu problema com o público e o público te aplaude, chora, se pensa, aí Catharsis, pronto, ficou para trás. Não ficou para trás! Todos os dias você vai carregar consigo os efeitos disso. O que começa a acontecer é que você vai encontrando formas de lidar, de articular isso.

Na peça você fala que não existe amor, só ternura. Como é isso?

A sobrevivência à uma violência sexual implica em algo que confunde completamente a linha do tempo. E por isso, claro, é precisa inventar uma maneira de se relacionar com o desejo, com o amor, com as relações pessoais. Nesse sentido, esse amor que não existe na peça é a constatação de que depois de um ato tão violento não se entende o que é o amor. Mas há a ternura, e aí tem outro ponto chave do trabalho que é entender qual o papel da amizade. O espetáculo termina com uma carta a uma amiga. Qual o papel da amizade? Como a amizade pode sustentar, a amizade entre as mulheres sobretudo, essa continuidade, esse seguir vivendo? Por isso o Fuck Catharsis, porque não é cura. A  gente tem que entender o que fazer, articular e descobrir como seguir.

Qual o poder do teatro?

Eu diria que uma das coisas mais importantes do teatro é o seu processo coletivo, a coletivização das coisas, a coletivização das questões, a experiência coletiva. Desde o grupo até o encontro com o público, a experiência de coletivizar algo. Ainda mais no caso de A Noiva e o Boa noite Cinderela, que traz experiências que deveriam ser abafadas, pertencer ao lugar privado; o que significa colocar essas experiências lá, por isso é que é confuso, por isso são essas camadas que quase dão a sensação de que a gente não suporta mais, porque essas histórias vêm como uma avalanche, ela só pode vir assim como uma grande tempestade de merda. Porque não tem como, a gente precisa falar. E aí tem esse grande trabalho aí que é a escuta. Como é que a gente escuta essas histórias, como é que a gente conta?  

Leia a crítica do espetáculo A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força, de Carolina Bianchi e do coletivo Cara de Cavalo.

 

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Corpo e poesia: Magiluth e Miró no teatro

Miró: Estudo Nº2 estreia em curta temporada no Itaú Cultural. Foto: Ashlley Melo

“A minha poesia, ela não é só a minha poesia, ela é o meu corpo.”
Miró da Muribeca em entrevista para a Trip TV

Giordano Castro, ator e dramaturgo do grupo Magiluth, do Recife, disse que já viu acontecer: “As pessoas pegarem o livro e alguém dizer, ah, mas tu tem que ver, bota o vídeo dele na internet. Caralho! Não, porra. Lê, caceta. Ele é foda e tal, mas a gente é finito. Ele morreu, a gente vai morrer, todo mundo vai. E o que vai ficar é o que o cara produziu. E obviamente era incrível ver a performance dele, mas isso era ele. E o que cabe ao Magiluth? O que vai caber a outra pessoa fazer?”, questiona.

Nesta quinta-feira, 20 de abril, o encontro entre o grupo de teatro pernambucano e Miró da Muribeca, poeta que andava pelas ruas do Recife vendendo os próprios livros e fazendo poesia do que via, vai estrear no Itaú Cultural. Miró: Estudo nº2 segue a trilha aberta por Estudo nº1: Morte e Vida, inspirada em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que também estreou em São Paulo, em janeiro de 2022, no Sesc Ipiranga.

Mas, antes desses dois, tiveram também os trabalhos da sobrevivência, quando só dava para criar de dentro de casa e o corpo era materializado na imaginação de quem ouvia a voz dos atores em Tudo que coube numa VHS, Todas as histórias possíveis e Virá. E, se a gente puxar, o novelo vai longe, porque as coisas estão entrelaçadas e vão se desdobrando na trajetória de um grupo que permanece junto desde os tempos dos corredores do Centro de Arte e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, em 2004, quando o grupo foi formado.

Se a principal pergunta de Estudo nº1 é “como montar uma peça de teatro?”, a pergunta evocada em Estudo nº2 é “como fazer um personagem?”, a partir da obra e da figura de Miró, que morreu em julho de 2022, aos 61 anos. “A gente tem uma perspectiva muito particular sobre personagem, sobre se colocar em cena. Não há uma investigação muito stanislavskiana ou aprofundada mesmo. É algo muito mais perto do jogo, do estado de presença, do que da ideia da própria figura”, conta Castro.

Miró escrevia poesia sobre a cidade, o amor, a violência e tudo que via. Foto: Ashlley Melo

O grupo pensou em montar uma peça a partir da obra de Miró em 2015, quando ocupava uma sala no Edifício Texas, no bairro da Boa Vista, região central do Recife, e passou a encontrar e conviver com Miró mais de perto. Em parceria com o diretor Pedro Escobar, chegaram a gravar alguns vídeos com poesias e mostraram ao cronista lírico do cotidiano, como se definia João Flávio Cordeiro da Silva, nome de registro de Miró.

O poeta, que sim, performava suas poesias de maneira única, disse algo que marcou os atores. “Nossa, eu gosto muito de ver os vídeos de vocês porque eu vejo a minha poesia e isso é muito forte. Sempre quando me dizem poeta, dizem que minha poesia é minha performance, como se uma coisa estivesse sempre ligada a outra e quando eu vejo vocês fazendo, eu não vejo a minha performance, eu vejo o meu texto, a minha poesia”, relembra Giordano Castro.

E ainda que palavra seja corpo, principalmente depois da morte de Miró, vincular sua poesia à sua performance não seria matar ou deixar morrer também a poesia? E o quanto a pecha de performático, que nesse caso carrega muitos julgamentos, como àqueles relacionados ao consumo de álcool, uma questão com a qual Miró teve que lidar principalmente depois da morte da mãe, pode reduzir ou restringir a obra em tantos âmbitos?

Se as coisas não mudaram (já que essa conversa com Giordano Castro foi no fim de março), você, espectador, pode esperar uma cena de 20 minutos, só com textos de Miró. “E vai ser uma cena de teatro”, avisa. “E a gente diz, velho, vê como é possível a poesia desse cara se transformar e ir para lugares além dele! Não, nós não vamos reduzir a poesia de Miró a ele mesmo”.

Miró: Estudo N°2, do Grupo Magiluth

Quando: de 20 a 30 de abril, de quinta-feira a domingo
Horário: Quinta-feira a sábado, às 20h; domingos e feriados às 19h
Quanto: Gratuito.
Ingressos: Para retirar ingressos com antecedência, é preciso acessar o site do Itaú Cultural. Os ingressos reservados valem até 10 minutos antes do início da sessão. Após esse horário, os ingressos que não tiverem o check-in feito na entrada do auditório, perdem a validade e serão disponibilizados para a fila de espera organizada presencialmente. A bilheteria presencial abre uma hora antes do evento começar para retirada de uma senha, que posteriormente pode ser trocada pelos ingressos de pessoas que não compareceram.
Duração: 90 minutos

Ficha Técnica:
Direção: Grupo Magiluth
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira e Giordano Castro
Stand in: Mário Sergio Cabral e Lucas Torres
Fotografia: Ashlley Melo
Design gráfico: Bruno Parmera
Colaboração: Grace Passô, Kenia Dias, Anna Carolina Nogueira e Luiz Fernando Marques
Realização: Grupo Magiluth

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